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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E CONTABILIDADE DEPARTAMENTO DE ADMINISTRAÇÃO SSÉÉRRIIEE DDEE WWOORRKKIINNGG PPAAPPEERRSS WWOORRKKIINNGG PPAAPPEERR NNºº 0011//000099 NOTAS PARA UMA CRÍTICA INSTITUCIONALISTA DA “NOVA ECONOMIA INSTITUCIONAL” CARLOS DE BRITO PEREIRA Doutorando e Mestre em Administração pela FEA/USP Economista pelo IE/Unicamp Este artigo pode ser obtido no site: www.ead.fea.usp.br/wpapers/ Os comentários, críticas e sugestões devem ser enviados ao e-mail: carlosbp@usp.br 2 Dizem que ofendo as pessoas. É um erro. Trato as pessoas como adultas. Critico-as. É tão incomum isso na nossa imprensa que as pessoas acham que é ofensa. Crítica não é raiva. É crítica. Às vezes é estúpida. O leitor que julgue. Acho que quem ofende os outros e os leitores é o jornalismo em cima do muro, que não quer contestar coisa alguma. Meu tom às vezes é sarcástico. Pode ser desagradável. Mas é, insisto, uma forma de respeito, ou, até, se quiserem, a irritação do amante rejeitado. Paulo Francis, 1/10/1983 1 Sumário 1. Introdução ................................ ................................ ................................ ................................ 1 2. A “nova” e a “velha” Economia Institucional ................................ ................................ ....... 2 2.1. O que é “instituição”? ................................ ................................ ................................ ..... 2 2.2. “Regra” ou “norma”? ................................ ................................ ................................ ..... 6 2.3. O “homem econômico”................................ ................................ ................................ 11 3. Alguns exemplos de como funciona a “Nova Economia Institucional” ........................... 20 3.1. A natureza da firma revisitada ................................ ................................ ..................... 20 3.2. A eficiência acima de tudo: a economia de Oliver Williamson ................................ 23 3.3. A metodologia da Nova Economia Institucional: um exemplo ................................ .30 3.4. O trabalhador é avesso ao risco? ................................ ................................ .................. 34 4. Conclusão ................................ ................................ ................................ .............................. 36 5. Apêndice: uma possível explicação para a gênese das modernas teorias econômicas ..... 40 5.1. A metodologia científica tradicional ................................ ................................ ........... 40 5.2. Uma abordagem geroinstitucionalista da filosofia da ciência ................................ ...43 5.3. Uma explicação weberiana para a ascensão da “Nova Economia Institucional” ..... 45 5.3.1. O homem científico ................................ ................................ .............................. 45 5.3.2. O homem ortodoxo................................ ................................ ............................... 46 5.3.3. Os tipos ideais de economistas e a ascensão da “Nova Economia Institucional” 49 6. Referências Bibliográficas ................................ ................................ ................................ ..... 52 1 1. Introdução1 Se a miséria de nossos pobres não é causada por leis da natureza, mas por nossas instituições, grande é a nossa culpa. (Charles Darwin) 2 As instituições há muito são um problema para os economistas. Quanto mais aumenta a complexidade das economias do mundo ocidental, mais os economistas se deparam com a influência das instituições sociais (econômicas ou não) no funcionamento dos mercados. E, obviamente, as limitações das teorias econômicas tradicionais são cada vez mais percebidas. Em uma tentativa de preencher esta lacuna teórica, vários economistas têm estudado e apresentado formas de incluir os fenômenos institucionais na teoria econômica. Notadamente aqueles economistas associados à teoria ortodoxa (mainstream), que utilizam em seus estudos o aparato teórico do valor-utilidade e das curvas de utilidade, das análises de concorrência perfeita e imperfeita etc. Ao perceberem as insuficiências dessa teoria tradicional, esses economistas “ortodoxos” realizam um esforço de aperfeiçoar a teoria que utilizam, acrescentando as instituições em seus modelos econômicos. Daí surge a “Nova Economia Institucional”, embora este termo ainda não seja o ideal para caracterizar o trabalho de tais economistas. Alguns, como James Buchanan, até mesmo rejeitam o rótulo e dizem que estudam outro tipo de economia — no caso de Buchanan,3 trata-se de entender a economia em dois momentos: o “pré-constitucional” e o “pós-constitucional”, ou seja, antes e depois do surgimentos de instituições sociais. — Outros, como Oliver Williamson, dedicam-se ao estudo da “economia dos custos de transação”4, ainda que alegue pertencer a essa nova “escola de pensamento”, a “Nova Economia Institucional”. Paul Joskow assim tentou definir a “Nova Economia Institucional”: “I view the New Institucional Economics as taking the analysis that flows from the Modern Industrial Organization paradigm and expanding it with a richer and more complete specification of the institucional environment and of the transactional variables that characterize the organization of the firms and the markets. Furthermore, the New Institucional Economics is sensitive to feedbacks and interactions between the institucional environment and the structure, behavior and performance of firms and markets.”5 Em outras palavras, os neoinstitucionalistas estão tentando incorporar as instituições no 1 Sou grato à profª Drª. Basília Maria Baptista Aguirre e ao prof. Dr. Décio Zylbersztajn, por me instigarem a estudar o tema, bem como por me apresentarem a vários dos artigos usados neste trabalho; ao prof. Dr. José Carlos de Medeiros Pereira, por suas críticas e comentários, especialmente nas passagens sobre Durkheim e Weber; ao prof. Dr. Celso Cláudio de Hildebrand e Grisi, pelo contínuo incentivo e por me lembrar que para expormos uma boa idéia não é preciso usar adjetivos; e, finalmente mas não menos importante, aos colegas de mestrado Eugênio Carlos Arima e Marcelo Miele, por discutirem comigo várias das idéias apresentadas neste trabalho. Em especial, sou muito grato a Marcelo Miele por haver insistido em me fazer ler o interessante artigo da sra. Véronique Dutraive: “La firme entre transaction et contrat: Williamson épigone ou dissident de la pensée institutionnaliste?” e discuti-lo comigo. Como de praxe, devo também dizer que quaisquer erros ou imprecisões cometidas ao longo deste trabalho são de única responsabilidade deste autor. 2 Citado em GOULD (1981), frontiscípio. 3 Ver BUCHANAN (1991). 4 Um bom comentário sobre essa “economia dos custos de transação” está em KREPS (1990). 5 JOSKOW (1995), pg. 254. 2 tradicional modelo econômico da teoria neoclássica. De todo modo, o afixo “nova” serve para diferenciar esses autores da “velha” escola institucional, de Veblen, Myrdal e Commons, entre outros6, bem como o termo “institucional” os diferencia dos neoclássicos. Como veremos todavia, há muito mais diferenças entre essas duas correntes teóricas do institucionalismo do que os simples epítetos “nova” e “velha” — ou como quer a sra. Dutraive, o autodenominado “novo institucionalismo” está mais próximo da teoria neoclássica, renovando-a, do que do institucionalismo “histórico” (ou “velho institucionalismo”).7Ao longo deste texto pretendemos discutir algumas hipóteses centrais dos trabalhos de autores filiados à “Nova Economia Institucional”, verificando se de fato há essa proximidade com a teoria neoclássica e se existem diferenças relevantes com a “velha” escola institucionalista.8 Para tanto, no capítulo 2 discutiremos os postulados centrais da teoria neoclássica e verificaremos se os mesmos se aplicam à “Nova Economia Institucional”. No capítulo 3 discutiremos alguns trabalhos realizados por autores identificados como fazendo parte dessa nova corrente teórica. Finalmente, no último capítulo, tentaremos mostrar até que ponto é válido a um autor filiar-se exclusivamente a uma corrente teórica, em uma espécie de “fanatismo metodológico”. 2. A “nova” e a “velha” Economia Institucional 2.1. O que é “instituição”? Acima de qualquer outro conceito, o ponto-chave na análise de teorias econômicas voltadas ao estudo das instituições é, obviamente, o próprio conceito de “instituição”. Este não é um debate marginal : há muita discórdia entre os neoinstitucionalistas9 sobre o que é, de fato, uma “instituição”. Uma economista da nova cepa, Elinor Ostrom,10 tentou enfrentar a tarefa de conceituar 6 Ver HODGSON (1994). É importante ressaltarmos que alguns autores discutem até que ponto é possível associar Commons à mesma escola de Veblen: ver RUTHERFORD (1983), PARSONS (1985) e ZINGLER (1974). 7 Ver DUTRAIVE (1993). 8 Neste sentido, podemos afirmar que estamos testando as afirmações da sra. Dutraive (ainda que esta refira-se basicamente à obra de um único economista ligado à “Nova Economia Institucional”, Oliver Williamson). Ver DUTRAIVE (1993). 9 Neste artigo, a expressão “neoinstitucionalista” significa um economista que professa a “Nova Economia Institucional”. Em contrapartida, os institucionalistas que seguem a linha de Veblen e Myrdal serão chamados de “geroinstitucionalistas”. A expressão “novos instuticionalistas”, a nosso ver, é um barbarismo, uma tradução literal de new institutionalists. Melhor usar os prefixos “neo” e “gero” para realizar a distinção, como preconiza a norma culta. Já DUGGER (1988, pp. 552-553), propõe a seguinte distinção: new institutionalism para os trabalhos feitos por autores como Oliver Williamson e radical institutionalism para os trabalhos realizados na linha de Thorstein Veblen. Para Dugger, o “institucionalismo radical” seria primo em primeiro grau (first cousin) do marxismo, ao passo que os neoinstitucionalistas pertenceriam à tradição neoclássica. 10 OSTROM (1986), pg. 5. 3 “instituição”. Todavia, após uma série de considerações sobre os vários conceitos utilizados por vários economistas neoinstitucionalistas, concluiu que ainda não há um consenso sobre o que é “instituição” entre os economistas — ou melhor: entre os “neoinstitucionalistas”, deixemos claro. — Assim, Ostrom preferiu mudar o foco de sua discussão, passando a comentar o conceito de regra (rule). Para Ostrom, o fato de haver várias definições de “instituição” impede a boa comunicação entre os pesquisadores da área. E isto detém o avanço da ciência, pois tal avanço depende da boa comunicação entre os cientistas, para que estes partilhem suas descobertas e suas dúvidas. Como os autores pesquisados por Ostrom sempre se referem a “regras” (rules), a autora contorna o debate sobre o conceito de “instituição” e passa a discorrer sobre regras, em uma forma canhestra de evitar o debate. Dessa forma, Elinor Ostrom conseguiu a proeza de estar certa e errada ao mesmo tempo. Sem dúvida, a precisão vocabular é importante. Como salienta Arjo Klamer, sem um mínimo de consenso sobre o significado dos conceitos utilizados, é impossível haver debate.11 Mas esta busca do mote correto não deve remeter o pesquisador à síndrome do marceneiro: o sujeito passa a vida a afiar suas ferramentas e jamais constrói o móvel encomendado. Como nos diz o filósofo austríaco Karl Popper, “[a] idéia de que a precisão da ciência e a da linguagem científica dependem da precisão dos termos empregados é certamente muito plausível, mas não passa, creio eu, de mero preconceito. A precisão de uma linguagem depende antes e tão-somente do fato de ela acautelar-se para não sobrecarregar os termos de que se vale com o ônus de serem precisos. Uma expressão como “duna-de-areia”, ou “vento” é, por certo, muito vaga. (...) Sem embargo, para muitos dos propósitos com que os geólogos possam ter em vista, esses termos são suficientemente precisos. (...) a precisão não consiste em tentar reduzir essa amplitude a nada ou em pretender que não exista essa margem de erro, mas antes em reconhecê-la explicitamente.”12 Assim, discutir a precisão conceitual, nas palavras de Magee, “longe de se fazer necessária para esclarecer o pensamento e tornar preciso o conhecimento, obscurece um e outro e tende a conduzir a controvérsias intermináveis a propósito de palavras, em vez de fazer com que as controvérsias girem em torno de questões de substância.”13 O problema de Ostrom, pois, está no fato de ela e os outros neoinstitucionalistas desejarem o impossível: um conceito definitivo e incontroverso. Seria mais sensato aceitar a recomendação de Popper e evitar esse debate estéril: “Nunca se incline a considerar seriamente problemas relativos a palavras e seus significados. O que deve ser encarado com seriedade são questões de fato e asserções a propósito de fatos: teorias e hipóteses, bem como os problemas que elas resolvem e suscitam. “(...) Aí está, segundo ainda hoje me parece, a via mais segura para a perdição intelectual: abandonar problemas reais em favor de problemas verbais.”14 [Os itálicos 11 Ver KLAMER (1983), cap. TREZE. 12 POPPER, K., The Open Society and Its Enemies, vol. ii, pp.19-20, apud MAGEE (1973), pg. 52. 13 MAGEE (1973), pg. 52. 14 POPPER (1974), pg. 25. 4 estão no original.] Logo, parece-nos que Ostrom caiu na “perdição de Popper”, ao preocupar-se sobremaneira com a definição de rule. Ademais, há pelo menos um século os sociólogos chegaram a um consenso razoável sobre o que é uma “instituição”. E como o objeto de estudo último de sociólogos e economistas é o mesmo (a sociedade), não há nada de mais em os economistas utilizarem uma definição pensada por sociólogos. Assim, podemos dizer que “instituição” é: “uma estrutura parcial da sociedade, diferente do grupo, e desempenhando uma função específica na vida social. Possui certas normas que tendem a ser obrigatórias e que lhe são reconhecidas ou impostas pela sociedade global. Realiza ao longo de várias gerações objectivos explícitos que a tornam conhecida e aceite por toda a sociedade; as normas, os objectivos que se pretendem, os valores escolhidos, constituem um sistema que pode evoluir, mas que mantém unidade e coerência.”15 O ponto fundamental, neste caso, é que uma instituição tem uma função social. Sem função social, uma instituição fenece.16 Não há “instituição” em abstrato, e sim em um mundo real, em um dado momento histórico. É, pois, inútil discorrer sobre “instituições” sem especificarmos a qual sociedade e a qual momento histórico nos referimos.17 Também é mister compreender que uma instituição pode ter sua função modificada ao longo do tempo. Em outras palavras, uma instituição social que dure por muito tempo pode ter sua função social alterada ao longo do tempo, sendo que sua última função pode eventualmente ser bastante distinta da original. Este conceito, o de função social, é aparentemente ignorado pelos neoinstitucionalistas. James Buchanan, por exemplo, diz que uma economia não tem função18 e que se trata de rematada tolice atribuir uma “função”a um fenômeno social (pois a economia e o mercado econômico são fenômenos sociais). Para Buchanan, a economia não tem função, por não se tratar de um ser vivo, dotado de vontade própria. Ora, Buchanan confunde vontade com função. Por exemplo, no jogo de futebol a bola tem uma função: sem ela não há jogo. Entretanto, nenhuma pessoa em pleno gozo de suas faculdades mentais atribuirá qualquer tipo de vontade ou desejo à bola. Podemos apresentar ainda dois exemplos ligados à economia, ambos ligados às funções da moeda (e a moeda pode ser considerada uma instituição social).19 O primeiro é simples: a literatura especializada há muito demonstrou que nos processos hiperinflacionários a moeda nacional sofre uma progressiva perda de funções. Em um primeiro momento, deixa de ser reserva de valor. Ou seja, as pessoas fazem suas poupanças em moeda estrangeira ou em algum bem tangível, como o ouro. Depois, em um segundo momento do processo inflacionário, os agentes econômicos passam a realizar suas contas em uma moeda estrangeira, pois a moeda nacional deixa de exercer a função de unidade de conta. Finalmente, no ápice da hiperinflação, a moeda nacional deixa de realizar a função de meio de troca. Em outras palavras, as pessoas recusam-se a 15 BIROU (1966), pg. 209. 16 Este ponto é especialmente enfatizado por MITCHELL (1979), no verbete “Institution; social institution” . 17 Para uma discussão mais aprofundada sobre função social, ver PEREIRA (1983), especialmente capítulo terceiro: “A interpretação funcionalista”. 18 BUCHANAN (1991), pp.20-21. 19 Um interessante estudo, utilizando a moeda como instituição social é AGLIETTA & ORLÉAN (1982). 5 receber pagamentos na moeda do país. Neste momento, para todos os efeitos a moeda deixa de existir, pois já não guarda nenhuma função. O outro exemplo está ligado à teoria econômica tradicional. Diz a “Lei de Gresham” que a má moeda expulsa a boa. Em outras palavras, quando há duas moedas circulando em uma mesma economia, aquela que tem valor é entesourada, ao passo que a “sem valor” tem sua velocidade de circulação levada ao infinito, pois todos desejam se desfazer dessa moeda desvalorizada. Assim, enquanto a moeda “boa” assume a função de reserva de valor, a moeda “má” tem a função exclusiva de meio de troca. Via de regra, isto ocorre em algum momento de uma crise hiperinflacionária, quando uma moeda estrangeira passa a circular formal ou informalmente na economia.20 Vejamos ainda a questão de como uma instituição pode ter sua função transformada ao longo do tempo. O melhor exemplo neste caso, sem dúvida é o famoso trabalho de Max Weber: A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Nesse trabalho, o sociólogo alemão mostra como a ética do trabalho duro tem função religiosa, mas passa a exercer uma função fundamental na ascensão do capitalismo. É interessante cotejar o livro de Weber com o de Thorstein Veblen: A Teoria da Classe Ociosa, que mostra a nós como também o ócio tem sua função mudada com o avanço do capitalismo. O ócio, conquanto seja prova de status, deve ser revestido de uma aura de seriedade. As atividades economicamente improdutivas não podem ser mera vagabundagem, é preciso justificá-las socialmente. Assim, o trabalho e seu oposto, o ócio, têm suas funções mudadas ao longo do tempo.21 Enfim, abundam exemplos em economia da existência de instituições com função social. Pena que Buchanan os ignore solenemente. Para realizar tal proeza, como autor a ser criticado por defender a existência de funções para a economia, Buchanan não cita nenhum renomado sociólogo da escola funcionalista (da qual, obviamente, Émile Durkheim é o principal expoente)22. Prefere citar um autor de menor proeminência no campo da sociologia, Frank Knight, um economista que foi chefe do departamento de economia da escola de Chicago.23 Essa é uma característica recorrente em autores neoinstitucionalistas: raramente citam outro autor que não um outro neoinstitucionalista... Enfim, tornemos ao conceito de “instituição”. Alguns economistas preferem uma definição mais simples: “[institution is] the regular, patterned behaviour of people in a society and for the ideas and values associated with these regularities.”24 Notemos contudo que a definição simplificada dos economistas em momento nenhum 20 Sobre teorias sobre inflação e estudos de casos de hiperinflação ver duas coletâneas de artigos: REGO (1986) e BELLUZZO & BATISTA Jr. (1992). 21 DAVIS (1944) fez esse cotejamento, ainda que de forma exploratória. Já HANSEN (1964), cotejou a obra de Veblen com a de Weber no sentido de mostrar caminhos para uma possível teoria do crescimento econômico. 22 Ver GIDDENS (1978). 23 Sobre a trajetória de Frank Knight, de economista a “filósofo social” e sobre seu comportamento como colega de departamento, ver STIGLER (1988), especialmente pp. 23-30 e o cap. 12. 24 NEALE (1994), pg.402. 6 sugere uma instituição a-histórica — se enfatizamos este ponto é porque se trata de uma das questões-chave para compreendermos as diferenças entre o “velho” e o “novo” institucionalismo. 2.2. “Regra” ou “norma”? Outro ponto sobre o qual não deve pairar dúvida é o conceito de norma (regra). Este é outro debate que talvez cause estranheza ao leitor versado em ciências sociais outras como a sociologia ou o direito, ciências estas que usam indistintamente os termos regra e norma.25 Todavia, para os neoinstitucionalistas, aparentemente há diferenças. Elinor Ostrom, ao fugir do debate sobre o termo “instituição”, diz que o melhor é utilizar o conceito de regras (rules). Estas são “potentially linguistic entities that refer to prescriptions commonly known and used by a set of participants to order repetitive, interdependent relationships.”26 Aqui o problema é de outra ordem: enquanto os economistas neoinstitucionalistas usam o termo “regra”, os outros cientistas sociais utilizam o termo “norma”. A distância entre um e outro pode ser substantiva e denota uma diferença fundamental entre os neoinstitucionalistas e os geroinstitucionalistas e outros cientistas sociais. Para Mitchell, norma (norm, em inglês) é: “Social norms are thus general precepts which, being internalized or accepted by individuals, induce conformity in simple actions or in complex ethical judgements, thus increasing group unity.”27 Notem que uma norma social induz a um comportamento uniforme. Isto é logicamente possível apenas em sociedades nas quais o comportamento dos indivíduos não é uniforme, a princípio. Em outras palavras, não há porque imaginar a princípio que todos se comportem da mesma maneira, a não ser quando há alguma norma social que induza a tanto. Outrossim, comportar-se de acordo com as normas de forma nenhuma implica em aceitá-las como corretas ou como verdades indiscutíveis: este ponto será importante ao discutirmos a principal diferença entre neo e gero institucionalistas, a saber, a hipótese de racionalidade econômica no comportamento dos indivíduos.28 Se todos os indivíduos são “racionais-econômicos”, então nossa definição de norma social deixa de fazer sentido, pois inexiste a necessidade de uma norma que induza a comportamentos semelhantes por parte dos indivíduos. Em uma sociedade na qual todos se comportam uniformemente, qual a função de uma norma social? E, como vimos, se não tem função, uma norma social simplesmente deixa de existir. É significativo aqui reafirmar aquela que parece ser uma característica recorrente dos neoinstitucionalistas: embora estejam enfrentando um problema sobre o qual já há bastante literatura, eles raramente citam outros cientistas sociais que não sejam também neoinstitucionalistas.Assim, Ostrom confunde-se em uma longa explicação na utilização do 25 Sou grato aos profs. Drs. Celso C.H. Grisi (advogado) e José Carlos M. Pereira (sociólogo) por me atentarem para este fato. 26 OSTROM (1986), pg. 5. 27 MITCHELL (1979), pg. 132. 28 Ver seção 2.3 O “homem econômico”. 7 conceito de “regra”, quando bastaria aceitar o consagrado termo “norma”. Em outras palavras: os neoinstitucionalistas gastam muita tinta tentando reinventar a roda, pois desprezam tudo o que não seja neoinstitucionalista. Mas isto, obviamente, não é um engano ingênuo ou apenas fruto da ignorância em ciência social. Há uma outra questão de fundo: a utilização do conceito de regra (ou norma, que é um termo preferível a “regra”). Os neoinstitucionalistas pretendem que as regras sejam utilizáveis em modelos, especialmente se puderem ser empregadas em modelos baseados na teoria dos jogos. Daí Ostrom29 apresentar sua idéia de que há três tipos de regras: “(1) A rule states that some particular actions or outcomes are forbidden.(...) (2) A rule enumerates specific actions or outcomes or states the upper and lower bound of permitted actions or outcomes and forbids those that are not specifically included.(...) (3) A rule requires a particular action or outcome.”30 As definições de regra elaboradas por Elinor Ostrom claramente facilitam a modelagem matemática. Agora, retornemos ao conceito sociológico de instituição e a partir deste vejamos alguns padrões de comportamento (normas). Uma instituição tem algumas caracterísiticas básicas, sendo a principal a de se constituir em torno de interesses socialmente reconhecidos: daí uma instituição determinar padrões de comportamento para seus membros, através de normas não necessariamente escritas ou formalmente estabelecidas. Alguns interesses são básicos em uma sociedade, tais como família, propriedade, religião, transmissão e criação de conhecimento, governo. Essas instituições regulam o funcionamento da sociedade e são chamadas de regulativas.31 Já as instituições operativas são aquelas com funções mais restritas (uma agência governamental, como uma biblioteca pública, ou um fundo de pensão estatal, por exemplo). Estas instituições operativas são as que mais interessam aos grupos que dominam a sociedade — pois obviamente permitem ganhos mais imediatos, sejam estes monetários, de “status” ou prestígio etc. — Desnecessário dizer que, se utilizarmos os conceitos sociológicos de “instituição”, a modelagem matemática de Ostrom e suas rules (regras) é extremamente prejudicada. Eis, pois, porque os geroinstitucionalistas discordam da forma neoinstitucional de conceituar “instituição”. Afinal, para os geroinstitucionalistas a modelagem matemática é apenas uma ferramenta, não o objetivo em si. Fazer ciência não é construir equações matemáticas (ou aplicar indiscriminadamente o “dilema do prisioneiro”). Para mostrar como a matematização tornou-se um hábito recorrente entre os economistas, é interessante apresentar um levantamento estatístico feito por Wassily Leontief a partir de artigos publicados ao longo de dez anos na American Economic Review e citado no já clássico trabalho de Mark Blaug:32 29 OSTROM (1986), pp. 6 e seguintes. 30 Idem, pg. 7. 31 Ver WILLEMS (1961). 32 Ver BLAUG (1993). 8 Artigos Publicados na American Economic Review Período e % Tipos de artigo 1972-1976 (%) 1977- 1981 (%) 1. Modelos matemáticos sem quaisquer dados 50,1 54,0 2. Modelos teóricos sem formulação matemática e sem dados 21,2 11,6 3. Metodologia estatística 0,6 0,5 4. Análise empírica baseada em dados desenvolvidos pelo autor 0,8 1,4 5. Análise empírica usando inferência estatística em dados publicados 21,4 22,7 6. Outros tipos de análise empírica 5,4 7,9 7. Análise empírica baseada em simulação e experimento artificiais. 0,5 1,9 Fonte: Wassily Leontief: “American Economics”. In Science, 217, 1982.33 A partir dessa tabela, Mark Blaug cita outros estudos que, à época (1988), confirmaram as estatísticas de Leontief e conclui que a economia está a se tornar uma espécie de “matemática social” ou uma “filosofia matemática”. Nas palavras de Blaug: “O que temos aqui é um tipo de formalismo: refestelar-se na técnica por amor à técnica.”34 Ademais, nos estudos citados por Blaug, há indicações que é justamente na microeconomia a área da economia onde há mais estudos matemáticos. Não por acaso, a microeconomia moderna é a área na qual reina soberana a teoria ortodoxa (mainstream), da qual descende diretamente a “Nova Economia Institucional”. É como se esses economistas jamais se recordassem do ensinamento de Kalecki, um economista com sólidos conhecimentos de matemática: “Enquanto a Economia não esgotar as possibilidades do ábaco, não há motivo para recorrer à Matemática superior.” 35 Voltando ao nosso ponto principal, vemos assim que a confusão entre “regra” e “norma” deriva do conceito básico que é “instituição”. Novamente, a questão não é a definição de “ regra” em si, mas como esta é utilizada. Poderíamos simplesmente dizer que uma regra é um padrão de comportamento utilizado por um conjunto de pessoas dentro de uma determinada sociedade. Assim, uma instituição seria um conjunto de regras. Por exemplo, uma religião é uma instituição e as pessoas que professarem tal religião devem seguir um dado conjunto de regras. Um ponto importante é que em uma sociedade pode haver um sem número de regras conflitantes entre si e um mesmo indivíduo pode tentar seguir regras contraditórias.36 Em última instância, serão os 33 Citado em BLAUG (1993), pg. 32. 34 Idem, ibidem. 35 MIGLIOLI (1980), pg. 10. 36 Em sociologia, diríamos que cada indivíduo cumpre vários “papéis sociais”. Para uma breve explanação sobre isto, ver DAHRENDORF (1968a), pp. 109-110; nessa passagem, Ralf Dahrendorf apresenta uma “regra” da sociologia: “o homem se comporta de acordo com seus papéis.” [Dahrendorf, 1968a, pg. 110. Os itálicos constam do original.] 9 objetivos pessoais que valorarão as regras a serem seguidas por um determinado indivíduo.37 Este seria o ponto de vista geroinstitucionalista. Já os neoinstitucionalistas pretendem que as regras de alguma forma são criadas para aumentar a eficiência alocativa (dos fatores econômicos) do sistema e que tais regras são fonte de coesão social.38 Ora, pretender que qualquer norma social, para existir, deve ter como função última facilitar a eficiência alocativa é ir longe demais no economicismo. Mesmo porque, há normas conflitantes em uma mesma sociedade. Talvez os neoinstitucionalistas não se apercebam que “o consenso moral abrangente representa, de fato, uma condição necessária de solidariedade social, assentia Durkheim: mas só nas sociedades mais simples, onde o desenvolvimento da divisão social do trabalho ainda é rudimentar.”39 [Sem os grifos no original.] A esse consenso moral Durkheim chamou “solidariedade mecânica”. No caso de sociedades capitalistas modernas, há outro tipo de coesão, a chamada “solidariedade orgânica”: “[a solidariedade orgânica] — isto é, a interdependência de indivíduos ou grupos em relações sistemáticas de troca uns com os outros — só começa a emergir num sentido importante com o desenvolvimento da especialização da produção. Pois a solidariedade orgânica não pressupõe a similaridade dos indivíduos, mas o crescimento das diferenças entre eles. Há duas precondições históricas correlatas: a separação das tarefas econômicas das obrigações familiais, e a concentração da autoridade legítima nas mãos de um organismocentral (casa monárquica ou Estado).”40[Sem os grifos no original.] Como a principal hipótese dos neoinstitucionalistas é a crença de que o homem sempre age de forma “racional econômica”, esses economistas não poderiam utilizar os conceitos de Durkheim para analisar uma economia capitalista: para os neoinstitucionalistas, um homem é igual a outro homem: não há diferenças. Mas é justamente a emergência dessas diferenças uma das principais características de uma economia capitalista! Ademais, o problema dos neoinstitucionalistas é de modelagem: é preciso construir um modelo “elegante” formalmente (em outras palavras, passível de algum tipo de matematização). Assim, não lhes resta outro caminho a não ser estender sua forma de análise (economicista) ao estudo das instituições e ignorar tudo o que não coadune com essa visão de mundo. Não é outro o motivo de Russell Hardin gastar páginas e mais páginas discorrendo sobre as “estruturas da interação social” e não citar um único sociólogo, exceto Talcott Parsons — um autor ultrapassado em sociologia.41, 42 37 Neste sentido, qualquer indivíduo é racional, pois esta expressão significa apenas e tão somente escolher os melhores meios para atingir um determinado fim. Os meios são racionais, nunca os fins. Confundir meios e fins é algo comum entre economistas. Sobre isto, ver PEREIRA (1993) e DAHRENDORF (1968b), que afirma textualmente: “ De fato, parece que a racionalidade é simplesmente uma maneira de resolver problemas, não uma maneira de descobrir o que são ou se suas soluções são moralmente aceitáveis. [...] O que é racional, então, são sempre os meios, nunca os fins.” [Dahrendorf, 1968b, pg. 245, sem os grifos no original] 38 Ver KHALIL (1994) e WILLIAMSON (1985). 39 GIDDENS (1978), pg.14. 40 Idem, pg. 17. 41 HARDIN (1994), pg. 26 e seguintes. 10 Embora involuntariamente, é exatamente isto que nos mostra Trháinn Eggertsson,43 ao afirmar que os economistas neoinstitucionalistas pretendem generalizar o uso das “ferramentas teóricas” neoclássicas aplicando-as no estudo das instituições. De certo modo, seguem o conselho de Karl Brunner, de que os modelos econômicos são bons demais para serem aplicados somente a problemas estritamente econômicos. Por que não usá-los em outros campos, tais como a sociologia ou a política?44 O curioso é que, quando o inverso ocorre, ou seja, quando um economista se vale do aparato teórico desenvolvido por outros cientistas sociais, é logo taxado de “sociólogo”(e isto está longe de ser considerado elogio). Se esse economista for um estilista e escrever em linguagem escorreita, simples e direta, será então taxado de “jornalista”.45 Não é à- toa que a economia, por vezes, é chamada de “a ciência imperialista”. De certo modo, o problema da “Nova Economia Institucional” talvez esteja na confusão entre modelo e teoria. C. Wright Mills assim diferenciou os dois conceitos: “Um modêlo é um inventário mais ou menos sistemático dos elementos aos quais devemos prestar atenção para compreender alguma coisa. Não é verdadeiro nem falso: tem graus variados de utilidade e adequação. Uma teoria, em contraste, é uma afirmação que pode ser verdadeira ou falsa, sôbre o pêso causal e as relações dos elementos de um modêlo.”46 Em síntese, ao utilizar conceitos mal-definidos e hipóteses aparentemente pouco realistas, os neoinstitucionalistas conseguem apenas construir um modelo de, aparentemente, pouca aplicação. Daí a ter a pretensão de desenvolver uma “teoria das instituições” saindo praticamente do nada, sem recorrer a tantos sociólogos e economistas não neoclássicos que já se debruçaram sobre o tema, há uma grande diferença. Nesse sentido, correta está Elinor Ostrom, ao aplicar seu modelo a situações muito específicas,47 sem ter a pretensão de James M. Buchanan de explicar a origem de todas as sociedades capitalistas48 (ao menos, esperamos que ela não tente estender suas conclusões sobre uma comunidade de pescadores ao funcionamento do mercado financeiro norte- americano, ou algo do gênero). 42 Sobre críticas a Talcott Parsons, ver WRIGHT MILLS (1959). Nessa interessante passagem, Wright Mills “traduz” todo o linguajar oco de Parsons em algumas poucas frases. Todavia, dado que não é nosso objetivo discutir Talcott Parsons, remetemos o leitor ao trabalho de Wright Mills. Para nós, interessa apenas frisar que, quando um neoinstitucionalista cita um sociólogo, cita um autor ultrapassado. 43 Ver EGGERTSSON (1990), cap. 1. 44 KLAMER (1983), pg. 192. 45 MYRDAL (1973), pg.30. 46 WRIGHT MILLS (1963a), pg. 41. 47 Ver OSTROM (1990). 48 Aliás, a separação entre economia pré-constitucional e pós-constitucional de Buchanan é mero absurdo: é possível haver sociedades com instituições complexas e desenvolvidas sem que haja o desenvolvimento de uma economia (ou de algo semelhante a um mercado capitalista). Ao leitor interessado em trabalhos sobre uma sociedade complexa sem economia, remetemo-lo à dissertação de mestrado e à tese de doutorado do professor Florestan Fernandes, respectivamente: A Organização Social dos Tupinambá e A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá (o autor agradece ao professor José Carlos de Medeiros Pereira por este comentário, eximindo-o, como de praxe, por quaisquer equívocos ou erros). Buchanan aparentemente ignora quaisquer autores que não compartilhem de seus pressupostos teóricos e/ou ideológicos. 11 2.3. O “homem econômico” Já abordamos nos itens anteriores duas fontes de diferença entre a “nova” e a “velha” Economia Institucional: os conceitos de “instituição” e o de “norma social”. Resta-nos, porém, tratar de uma discordância fundamental entre as duas escolas de pensamento: a hipótese de racionalidade dos agentes econômicos. Tanto um adepto da “Nova Economia Institucional” como Trháinn Eggertson49 quanto um crítico moderado como Geoffrey Hogdson50 concordam que essa hipótese é o pilar dos modelos (e não teorias) apresentadas por neoinstitucionalistas. Essa hipótese de racionalidade é rejeitada completamente por geroinstitucionalistas como Thorstein Veblen51. Segundo Eggertsson, preferências estáveis, escolha racional e tendência ao equilíbrio são o ponto central da economia neoclássica52 (e também da “Nova Economia Institucional”). Sem isto, o “paradigma” não sobrevive. Eggertsson, seguindo a tendência dos neoinstitucionalistas, mostra vários refinamentos da hipótese original (racionalidade limitada, inclusão dos custos de transação53 etc.), mas isto não escamoteia o fato de que, sem a idéia de racionalidade, o neoinstitucionalismo não sobrevive sequer como modelo, quanto mais como “paradigma”.54 A hipótese fundamental comum à maioria, senão todos os trabalhos da “Nova Economia Institucional” é a de que o homem sempre tem um comportamento racional-econômico.55 E o que vêm a ser tal “racionalidade-econômica”? Segundo Barry Hindes: “one of the most influential contemporary usages is to identify rationality with 49 Ver EGGERTSSON (1990). 50 Ver HOGDSON (1994). 51 Ver, por exemplo, o excelente A Teoria da Classe Ociosa. 52 EGGERTSSON (1990), pg. 5. 53 Ao contrário do que dá a entender STIGLER (1988, pp. 80 e seguintes), Ronald Coase não é o “descobridor” dos custos de transação em economia. Quem primeiro abordou esse problema foi John R. Commons — ver RUTHERFORD (1994) ou WILLIAMSON (1985), pg. 15. 54 Preferimos “modelo” a “paradigma” neoinstitucional porque paradigmas, ensina-nos Kuhn, 1962 (pg. 13): “[São]as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade praticante de uma ciência.” Ora, a economia neoinstitucional não é “universalmente reconhecida”. 55 HARDIN (1994) praticamente afirma que não há comportamento altruísta que seja racional. Todo comportamento racional, para esse autor, é egoísta (self-interest) (pp. 46-47). Há biólogos que discordam dessa forma de ver o ser humano: ver, por exemplo, GOULD (1981). Aliás, é interessante contrastar a defesa do egoísmo feita por Hardin às palavras de Péricles (apud TUCIDIDES, 1986, pg. 99): “olhamos o homem alheio às atividades públicas não como alguém que cuida de seus próprios interesses, mas como um inútil”. Essa insistência dos neoinstitucionalistas em atribuir à humanidade um comportamento monodirecionado, voltado apenas aos fins econômicos pessoais, também pode ser explicada utilizando-se Péricles (apud TUCIDIDES, 1986, pg. 97): “elogios a outras pessoas são toleráveis somente até onde cada um se julga capaz de realizar qualquer dos atos cuja menção está ouvindo; quando vão além disso, provocam a inveja, e com ela a incredulidade.” Assim, os neoinstitucionalistas são incapazes de conceber um comportamento altruísta, pois tomam-se como medida única e definitiva da humanidade. 12 behaviour that maximizes the satisfaction of preferences. Models of maximizing behaviour are widely used in economic theory, and rational choice analysis can be understood as proposing to extend that ‘economic approach’ to others areas as social life. It is in this spirit, for example, that Gary Becker insists that the economic approach ‘is applicable to all human behaviour, be it behaviour involving money prices or imputed shadow prices... rich or poor persons, men or women, adults or children, brilliant or stupid persons, businessmen or politicians, teacher or students’56. Becker and other advocates of the economic approach insist that it is rigorous, capable of great technical sophistication and able to generate powerful explanations across a wide range of situations.”57 Como nossa longa citação mostra, há economistas que crêem na utilização de modelos econômicos em praticamente qualquer circunstância da vida cotidiana. A forma como isso se processa é circular: Becker nos diz que se pudermos imputar preços (monetários ou não), então poderemos aplicar o método da economia ortodoxa. Ora, nós continuamente valoramos (“precificamos”58) nossas ações. As escolhas pessoais de um indivíduo qualquer refletem, em alguma medida, sua escala de valores. Ao escolher uma esposa, ao procurar um emprego, ao professar uma dada religião, ao esposar uma determinada teoria econômica etc. o indivíduo está atuando de acordo com sua a “curva de utilidade”. Mas poucos seriam ingênuos a ponto de estender a aplicação do método econômico a todas as atividades de um ser humano. Nem todas as escolhas na vida de um indivíduo são “racionais-econômicas”. Mesmo Gary Becker ou James Buchanan provavelmente têm algumas manias “irracionais” (das quais a mais óbvia é crer na onipotência da teoria econômica ortodoxa). Ocorre que Becker chegou à sua formulação valendo- se da célebre definição de economia feita por Lionel Robbins: “a ciência que estuda o comportamento humano como uma relação entre fins e meios raros que têm usos alternados.” 59 Deixemos a Godelier o encargo de mostrar o absurdo dessa tese: “A economia política não é mais um domínio particular da vida social, mas se apresenta atualmente como um aspecto de tôda atividade humana com a condição de que esta procure ‘economizar’ seus meios. Tôda atividade dirigida se torna de direito ‘econômica’ ou, pelo menos, já o é em essência (...) e a Economia Política se dissolve numa teoria geral da ação na qual nada a distingue das teorias do político, do religioso, etc...”60 E qual o fundamento para essa generalização do uso da teoria econômica ortodoxa na explicação de todos os fenômenos sociais? A hipótese fundamental é a de que o homem está continuamente agindo no intuito de maximizar sua utilidade, de ser “racional-econômico”. Um ponto importante na aceitação desta hipótese, e ressaltado por Barry Hindess61, é que aceitar esse tipo de racionalidade implica em aceitar o chamado “individualismo metodológico”: o homem 56 Gary Becker (1976), The Economic Approach to Human Behaviour, Chicago: University of Chicago Press, citado por HINDESS (1994), pg. 215. 57 HINDESS (1994), pg. 215. 58 “Precificar” é um verbo inexistente na língua portuguesa, daí utilizarmos o verbo “valorar”. 59 GODELIER (s.d.), pg. 22. Sobre isto, ver também RAMOS (1993, pg. 102) que, citando Lionel Robbins, apresenta a seguinte definição de economia: “Economia é a ciência que estuda o comportamento humano como um relacionamento entre fins e meios escassos que têm usos alternativos.” 60 Idem, ibidem. 61HINDESS (1994), pg. 215. 13 não é influenciado pelo meio em que vive. Todas as suas decisões (econômicas ou não) são tomadas levando em conta a maximização de sua satisfação. Também, aparentemente, a consequência a outrem de seus atos pouco importa. Em síntese, é um homem a-social. Esta é uma posição em tudo contrária à de Karl Marx, que em seu Para a Crítica de Economia Política, afirma: “Todavia, a época em que produz esse ponto de vista [a época do capitalismo], o do indivíduo isolado, é precisamente aquela na qual as relações sociais (e, desse ponto de vista, gerais) alcançaram o mais alto grau de desenvolvimento. O homem é no sentido mais literal, um zoon politikon62 , não só animal social, mas animal que só pode isolar- se em sociedade. A produção do indivíduo fora da sociedade (...) é uma coisa tão absurda como o desenvolvimento da linguagem sem indivíduos que vivam juntos e falem entre si. É inútil deter-se mais tempo sobre isso. Nem sequer seria necessário tocar nesse ponto se essa banalidade (...) não fosse seriamente reintroduzida na mais moderna Economia. (...) Nada é mais aborrecedor e árido do que o locus communis (lugar-comum) disfarçado.”63 Portanto, no mínimo desde Marx há esse debate sobre a utilização da hipótese do “homem- racional” (porque este é a-social e a-histórico). Ao longo do tempo, e provavelmente por causa das críticas, os defensores dessa hipótese passaram a refiná-la, afirmando que é óbvio que o homem não é sempre racional. Mas ainda assim, a hipótese deve ser o ponto de partida para qualquer análise econômica “séria”.64 Chegam até mesmo a afirmar, como Milton Friedman, que a veracidade das hipóteses não importa em um modelo. O fundamental é a capacidade preditiva deste.65 Em síntese, para Friedman e seus seguidores, ainda estaríamos utilizando a astronomia Ptolomaica, posto que esta é capaz de prever quando ocorrerão os eclipses.66 Como ressalta Maurice Godelier (e enfatizando as palavras de Karl Marx), esse incensamento da racionalidade econômica é um fenômeno histórico e coincide com a ascensão do capitalismo. Godelier exagera em suas críticas e chega mesmo a batizar os economistas partidários do valor-utilidade de “turiferários do capitalismo”.67 Não chegamos a tanto, porque não se trata de ofender nossos colegas ortodoxos. A questão, mais complexa e interessante, é convencê-los de que não podem generalizar um fenômeno histórico, a racionalidade econômica característica da ação capitalista, a todos os acontecimentos históricos e pré-históricos da humanidade. 62 Marx está citando Aristóteles: De Republica. Livro Primeiro, cap. 2. 63 MARX (1857), pg. 4. 64 Ver HINDESS, (1994). 65 Idem, ibidem. 66 Essa discussão sobre a veracidade das hipóteses não é recente entre oseconomista. Em carta a David Ricardo, em 26 de janeiro de 1817, Thomas Malthus já dizia que: “A writer may, to be sure, make any hypothesis he pleases; but if he supposes what is not at all true practically, he precludes himself from drawing any practical inferences from his hypothesis.” Este trecho está citado em KEYNES (1933a) à pg. 98. Mais adiante, comentando essa carta de Malthus, Keynes concluiria que “One cannot rise from a perusal of this correspondence without a feeling that the almost total obliteration of Malthus’s line of approach and the complete domination of Ricardo’s for a period of a hundred years has been a disaster to the progress of economics.” (pg. 98) 67 GODELIER (s.d.), pg. 29. 14 O fundamental para nós, portanto, é enfatizar que a hipótese do “homem-racional” garante a aplicação indiscriminada desse modelo a uma série de economias dos mais diferentes países, nos mais diferentes momentos históricos. Afinal, o uso de tal hipótese assevera a homogeneização do comportamento humano. Caso contrário não seria possível a modelagem. Se houver uma sociedade na qual os homens não prefiram mais riqueza a menos riqueza, mais bens a menos bens etc., não poderemos utilizar os modelos desenvolvidos pelos neoinstitucionalistas (e pelos neoclássicos, porque os neoinstitucionalistas nada mais são do que uma vertente do pensamento neoclássico). Pois para estes, a base da troca é a percepção humana de que é sempre melhor cooperar com os outros. Somente assim aconteceria a troca econômica. Já dissemos, mas voltamos a frisar que esta assunção da “neutralidade” da troca não é aceita por muitos autores; nesse sentido ver, por exemplo, a brilhante análise de Michel Aglietta e André Orléan: A Violência da Moeda.68 Ora, pressupor racionalidade econômica em todo e qualquer comportamento humano e afirmar que a irracionalidade econômica é apenas uma exceção que confirma a regra é ignorar a natureza de nossa espécie. Somos condicionados por um sem número de regras e valores que não são econômicos, sejam esses valores éticos, morais, religiosos ou de qualquer outra espécie. A História da Humanidade retrata uma vasta gama de momentos do mais puro comportamento “irracional”. Recomendamos, por exemplo, uma consulta ao trabalho de Barbara Tuchman, A Marcha da Insensatez, no qual a autora retrata uma série de momentos na história no qual o comportamento de determinadas sociedades pode ter sido tudo, menos “racional-econômico”69. Ou ainda, veja-se Uma Breve História da Especulação Financeira, de John Kenneth Galbraith70: nesse trabalho, o economista norte-americano retrata vários booms especulativos, no qual o valor de uso do ativo ou o retorno obtido pouco importava. Certo, um economista neoinstitucional ainda poderia tentar salvar a face, restringindo a hipótese do comportamento racional-econômico aos especialistas, a pessoas treinadas para avaliar investimentos. Neste caso, seria interessante consultar um livro assaz interessante: a narrativa feita por John Kenneth Galbraith do colapso da bolsa de valores de Nova York ocorrido em 1929. O leitor que consultar esse interessante trabalho verá como profissionais atuando em mercados essencialmente formados por gente com bons conhecimentos de economia também podem apresentar as reações mais estapafúrdias.71 Nesse livro, aliás, Galbraith mostra como mesmo Irving Fisher, um economista cuja reputação de excelência profissional transcendeu sua própria vida,72 poderia errar (mesmo sendo um sujeito treinado para ser “racional-econômico”): 68 AGLIETTA & ORLÉAN (1982) discordam frontalmente da hipótese da neutralidade da troca, pois não vêem a troca como uma transação entre iguais. Para esses autores, há sempre uma questão de poder envolvida na troca econômica. Daí falarem na “violência” da moeda. 69 Ver TUCHMAN (1984). 70 Ver GALBRAITH (1990). 71 Ver GALBRAITH (1988) 72 Uma amostra do prestígio de Fisher é dada por ALLEN (1977): Fisher foi conselheiro econômico de cinco presidentes norte-americanos (Theodore Roosevelt, William Howard Taft, Thomas Woodrow Wilson, Warren Harding e Herbert Clark Hoover). Ademais, trocou correspondência sobre assuntos econômicos com Franklin Delano Roosevelt. Mas, como assinala BLAUG (1992a), sua insistência em afirmar que o colapso da Bolsa de Valores em 1929 era passageiro diminuiu consideravelmente seu prestígio entre seus contemporâneos. Isto, todavia, 15 “No outono de 1929, o Professor Irving Fisher, da Universidade de Yale, externou sua imortal apreciação: ‘As cotações das ações chegaram àquilo que parece constituir um nível permanentemente alto.’”[Sem o grifo no original.]73 Finalmente, um autor neoinstitucional poderia argumentar que não se trata de procurar racionalidade econômica em mercados intrinsecamente instáveis, como os mercados de títulos mobiliários, ou esperar encontrar alguma racionalidade em políticas públicas. Mas, ainda assim, restaria o consumidor racional: aquele que têm seus gostos e preferências definidos ao longo de uma curva de preferência. Este consumidor sim, seria capaz de tomar decisões “racional- econômicas”. Mesmo esse consumidor não é tão racional, caso contrário inexisitiram pesquisas de marketing. Pois se todos temos comportamento homogêneo, por que um gerente de marketing precisa pesquisar os gostos ou o como as pessoas decidem qual produto comprar? Philip Kotler e Gary Armstrong proveêm-nos com um interessante exemplo da “irracionalidade-econômica” dos consumidores: o consumo de automóveis de luxo. Segundo aqueles autores, um Porsche é “um carro que possuímos para nos proporcionar prazer, não apenas utilizarmos. Os compradores de Porsche não são impelidos por fatos, mas por sentimentos.”74 Assim, quando a empresa alemã lançou produtos mais baratos, houve uma queda na venda dos produtos mais caros. Por quê? Afinal de contas, os Porsches mais caros continuavam a ser os mesmos veículos, dirigidos ao mesmo público de antes. Portanto, se os consumidores fossem “racionais-econômicos” não haveria motivo para deixarem de comprar os Porsches mais caros. E no entanto, eles assim procederam. Porque não se tratavam de consumidores racionais, no sentido dado pelos economistas ortodoxos à esta expressão. Segundo Kotler e Armstrong, o fato é que os compradores de Porsches caros compravam também uma imagem de exclusividade. Daí esses autores concluírem que: “compreender os compradores de Porsches é uma tarefa fundamental, mas difícil.(...) [Esses compradores] são impelidos por motivações complexas e sutis. Seu comportamento tem como base valores e atitudes profundamente arraigados, uma visão do mundo e do lugar que ocupam no mesmo, o que pensam a respeito de si próprios e o que desejam que outros pensem deles, racionalidade e bom senso e caprichos e impulsos.”75 Ou seja, os consumidores de automóveis Porsche seguem um conjunto de normas sociais, que dificilmente poderiam ser chamadas de “racionais-econômicas”. Se os consumidores agissem de forma “racional-econômica”, não haveria sentido de as empresas realizarem estudos de segmentação de mercado. Pois o que através da segmentação se procura é um conjunto de consumidores que reajam de forma o mais semelhante possível aos esforços de marketing da empresa. O que os teóricos neoinstitucionalistas ignoram é que “a figura do consumidor, único e absoluto, tal como é concebida no centro das atividades de marketing, revela-se uma abstração, um ente ideal, uma construção conceitual que pode apenas expressar de forma simplificadora o conjunto de infinitosnão invalida seu lugar na História do Pensamento Econômico, que é certo e indiscutível; não por outro motivo a equação quantitativa da moeda é também conhecida como “equação de Fisher”. 73 GALBRAITH (1988), pg. 63. 74 KOTLER & ARMSTRONG (1991), pg. 79. 75 Idem, pg. 80. 16 elementos diversos, existentes no mundo real. No mercado, onde a especificidade adquire muitas formas, o que se pode encontrar são consumidores. Diferentes entre si em maior ou menor grau, com preferências, motivos, gostos, razões e outras acidentalidades, mais, em alguns casos, ou menos em outros, assemelhadas e/ou dessemelhadas, cada uma de cada outra.”76 [Sem os grifos, no original.] Reparemos no fato de que o professor Celso Grisi têm uma posição contrária à de Gary Becker, pois reconhece que os consumidores agem de forma diferente entre si e não podem ser considerados um ente abstrato único, o “consumidor” de comportamento sempre racional- econômico. Se esse modelo de imaginar o comportamento do consumidor fosse correto, as empresas não investiriam em pesquisas e técnicas de segmentação, que reconhecem em seus modelos a existência de múltiplos consumidores, dotados de comportamentos e motivações distintos. O fato é que a hipótese do homem racional-econômico é tão disparatada que não pode ser levada a sério por qualquer cientista social medianamente bem informado sobre o mundo real. Certo, quando um economista neoclássico ou monetarista ou neoinstitucionalista se depara com esse argumento, saca logo a famosa observação feita por Milton Friedman: o realismo das hipóteses não é importante.77 Ora, imaginemos o seguinte modelo de funcionamento da economia brasileira, construído a partir das seguintes hipóteses: 1) todos os brasileiros recebem o mesmo salário por hora de trabalho e 2) todos os brasileiros consomem as mesmas quantidades de bens, sendo que estes bens são da mesma marca e tem o mesmo tamanho de embalagem. Daí poderemos concluir que a disparidade de renda entre as famílias brasileiras se dá porque alguns trabalham mais do que outros e porque alguns têm mais filhos (que não trabalham e portanto, não geram renda, mas consomem) do que outros. Logo, a nossa recomendação de política econômica visando combater a concentração de renda seria: 1) o governo proibiria os mais pobres de ter filhos e 2) o governo fixaria um limite máximo para o número de horas trabalhadas/mês por trabalhador, impedindo os mais ricos de continuarem a perceber uma renda maior. Convenhamos, é possível imaginar disparate maior do que este? Sim, é. James M. Buchanan pretende explicar a formação de uma sociedade abstraindo a história. Para Buchanan, podemos começar nosso modelo com dois indivíduos, “A” e “B”. Depois, bastaria acrescentar “n” indivíduos ao modelo...78 Melhor ficarmos com Patrício Meller, que critica esse excesso de abstração da seguinte forma: “Hoje em dia [1987], os modelos abstratos abundam na economia. Assim sendo, ante a objeção de que um determinado modelo teórico utilizado (...) não reflete o que se observa na realidade, a resposta tradicional é que é uma sobre-simplificação que só se faz com o propósito de facilitar e permitir o uso e aplicação do instrumental básico. Assim, uma vez pronto o modelo, ir-se-á relaxando alguns dos pressupostos iniciais e introduzindo-se complexidades maiores do mundo real. Mas a verdade é que se os sucessivos modelos passam a ser mais elaborados, eles retêm a estrutura e implicações do modelo básico inicial. Em seguida, a evolução que se observa é uma espécie de 76 GRISI (1986), pg. 11. 77 Ver a afirmação de Karl Brunner, citando Friedman: “o realismo das suposições não oferece resposta alguma a questões relativas ao status cognitivo de uma dada hipótese.” (KLAMER, 1983, pg. 206). 78 Ver BUCHANAN (1975), pg. 27 e seguintes. 17 sofisticação cada vez maior do modelo inicial de seus derivados, até que se chega a uma espécie de fascinação com o instrumental matemático formal; a estas alturas, já nada faz recordar quais eram as perguntas econômicas básicas que originaram a análise. E, assim, a teoria se move na direção de resolver puzzles que surgem da aplicação do instrumental matemático formal; tais puzzles têm um interesse puramente lógico- abstrato.”79 Parece-nos que é exatamente essa a atitude dos neoinstitucionalistas: escondem-se na resolução de puzzles lógicos, ao invés de tentarem resolver problemas do mundo real. Ou alguém realmente acredita, como Buchanan parece fazer, que é possível explicar uma sociedade complexa como a brasileira através de um modelo com “dois indivíduos, A e B, que consomem dois bens, X e Y”?80 Não que sejamos ingênuos metodologicamente: é óbvio que um modelo não é a realidade; é apenas a realidade reduzida a seus pontos fundamentais na opinião do pesquisador. A explicação científica reside justamente na diferença entre o modelo e a realidade. Porém, quanto maior a diferença entre o modelo e a realidade, maior a gama de possíveis explicações da realidade. Ou seja, menor o conteúdo explicativo do modelo. Um modelo que parte da idéia de equilíbrio,81 de racionalidade etc. é tão distinto da realidade que torna muito difícil sua utilização prática. Restaria então uma última defesa do homem econômico: este seria um “tipo ideal” weberiano. Esta é certamente uma defesa segura. Porém, peca em um ponto: o tipo ideal weberiano não é um ente isolado. Em uma pesquisa devemos utilizar vários tipos ideais: a realidade estará em algum ponto entre os vários tipos. Ao basear seu modelo em um único tipo ideal — o homem racional — , os neoinstitucionalistas fazem apenas sociologia de terceira categoria.82 O próprio Max Weber já nos mostrou que podemos encontrar tipos ideais na teoria 79 MELLER (1987), pg. 85. 80 Aliás, para Buchanan, também a psicologia é algo simples: segundo o economista norte-americano, todo sujeito tem um “equilíbrio interior”: “Each man would attain a personal behavior equilibrium, as determined by the interaction among his utility function, his basic or inherent capacities to convert input into output, and the natural environmental setting that confronts.” (BUCHANAN, 1975, pg. 55). Assim, para Buchanan, qualquer sujeito “desequilibrado” é aquele cuja vida não está no ponto de tangência entre sua curva de utilidade pessoal e sua função de produção. 81 Pensar em “equilíbrio” ou em “tendência ao equilíbrio” quando do estudo de uma economia também é absurdamente irreal. Como não é nosso objetivo discutir os equívocos no uso do conceito de equilíbrio, remetemos o leitor ao capítulo “Uma introdução aos conceitos de dinâmica econômica”, em POSSAS (1987). Nesse capítulo, o professor Mario Possas afirma que devemos rejeitar a própria noção de equilíbrio em economia (ver pp. 22 e seguintes). 82 Em verdade, haveria ainda uma “ultíssima” defesa do uso da racionalidade econômica como ponto de partida para a teorização em economia. Para tanto, os neoinstitucionalistas deveriam usar a separação feita por Vilfredo Pareto (apud Bhatty, 1954): o comportamento racional seria o campo de estudo da economia, o irracional, da sociologia. Porém tal defesa somente poderia ser proposta por um neoclássico, posto que Pareto é um dos fundadores da ortodoxia econômica. Outrossim, tal linha de argumentação iria no sentido oposto do institucionalismo, pois este “movimento” teórico tenta se desfazer dos pressupostos neoclássicos e agregar conhecimentos de outras ciências sociais nos modelos teóricos econômicos. 18 econômica: “Semejantes construcciones típico-ideales se dan, por ejemplo, en los conceptos y leyes de la teoría económica pura. Exponen cómo se desarrollaría una formaespecial de conducta humana, si lo hiciera con todo rigor con arreglo al fin, sin perturbación alguna de errores y afectos, y de estar orientada de un modo unívoco por un sólo fin (el económico). Pero la acción real sólo en casos raros (Bolsa), y eso de manera aproximada, transcurre tal como se fue construida en el tipo ideal (respecto a la finalidad de tales construcciones).”83 [Sem os grifos, no original.] E como se dá a construção desse tipo ideal? Segundo Pereira (1983) (e obviamente seguindo Max Weber), “como investigadores, realizamos duas seleções, ambas culturalmente condicionadas. Em primeiro lugar, a partir de certos ‘pontos de vista’, consideramos uns fenômenos mais significativos do que outros. Em segundo, usando outras princípios, também valorativos, selecionamos as características desses fenômenos que integraremos num tipo ideal.” 84 [Sem os grifos, no original.] Finalmente, o uso do tipo ideal parte do princípio de que “pelo menos dois tipos [ideais] teriam que ser construídos para que o estudo do fenômeno em questão fosse cientificamente significativo.” 85 Outro ponto na construção e utilização do tipo ideal, é bom enfatizar, é que este não precisa ser necessariamente racional econômico (nos moldes neoclássicos)86. Pode muito bem ser “irracional-econômico”. Daí podermos dizer, acompanhando Weber, que “a ação social real, normalmente, se desenvolve com escassa ou nenhuma consciência do sentido por parte dos agentes participantes. Eles antes ‘sentem’ do que ‘sabem’.” 87 Disto podemos concluir que, ainda que o tipo ideal “homem racional-econômico” fosse um bom tipo a ser utilizado, ainda assim teríamos um modelo capenga, posto que nenhum modelo poderia ser baseado em um único tipo ideal.88 Note-se, ademais, que Weber utilzou em suas análises o tipo ideal “racional-econômico” em suas análises. Todavia, o fez com ressalvas, situando-o historicamente, utilizando para analisar problemas específicos e qualificando de que 83 WEBER (1922), pg. 9. 84 PEREIRA (1983) , pp. 146-147. 85 Idem, pg. 147. 86 Racional, para Weber, é apenas e tão somente a utilização do melhor meio, dados os conhecimentos do sujeito, na consecução de um determinado fim (WEBER, 1922, pp. 64-68 e PEREIRA, 1993). Logo, podemos falar em racionalidade religiosa, política, econômica etc. Os neoclássicos costumam atribuir racionalidade aos fins (no que parecem ser seguidos pelos neoinstitucionalistas): desta forma, qualquer ação humana que não persiga um fim econômico é “irracional”. Porém, analisar se uma política econômica é “racional-econômica” ou não seria um erro primário em ciência social, pois neste caso, embora os meios utilizados sejam econômicos, os fins são políticos. Qualquer política econômica deve obedecer, primariamente, a racionalidade política, ainda que a maioria dos economistas tenha dificuldade em reconhecer isto, como nos mostra GALBRAITH (1979b, pg. 19 e seguintes). 87 PEREIRA (1983), pg. 149. 88 Como diz Donald MacRae em seu As Idéias de Weber: “Weber sustenta que qualquer explicação basicamente unicausal de todos os acontecimentos na sociedade deve ser falsa.” [MaCRAE, 1974, pg. 63] Basear toda a explicação em único tipo ideal, como fazem neoclássicos e seus primos neoinstitucionalistas, é um erro metodológico, portanto. 19 tipo de racionalidade estava tratando (formal e/ou substantiva, sendo que podemos identificar a racionalidade formal weberiana com a tradicional racionalidade usada pelos economistas neoclássicos).89 Porém, evitemos ainda a ingenuidade: tais construções teóricas prestam-se a determinados fins: o principal é provar que o livre mercado capitalista sempre oferece a melhor alocação para os fatores. Certo, mas a melhor alocação pode não ser o interesse da sociedade (ou da maioria dos cidadãos ou ainda dos grupos que efetivamente detém o poder90). E neste ponto faz-se fundamental a hipótese do homem racional-econômico: todos desejamos a melhor alocação. Assim, quem se interpuser no destino da economia capitalista de atingir o mercado de concorrência perfeita estará impedindo o desejo da sociedade. Essa forma de transformar os ganhos de um grupo específico em uma suposta vantagem social é um fenômeno comum na história da humanidade. Como diz John Kenneth Galbraith: “Há, contudo, algumas lições em um âmbito maior que perduram. Dessas, a mais completamente invariante é o fato de pessoas e comunidades favorecidas em suas condições econômicas, sociais e políticas atribuírem virtude social e durabilidade àquilo que elas próprias usufruem. Essa atitude prevalece mesmo diante de evidências irrefutáveis em contrário. As crenças dos privilegiados passam a servir então à causa de prolongar o contentamento, e as idéias econômicas e políticas são similarmente adaptadas. Existe um sôfrego mercado político para tudo aquilo que agrada e tranqüiliza. Não são poucos os interessados em servir a este mercado e em colher as recompensas resultantes em dinheiro e aplauso.”91 Os modelos neoclássicos e os de seus primos neoinstitucionalistas são, pois, modelos teleológicos: suas premissas já incorporam o resultado final da análise. Essa forma de analisar a vida econômica não é honesta cientificamente, pois como nos ensina Knut Wicksell: “Apenas uma coisa é indigna para o cientista: deturpar ou dissimular a verdade (...) ou apoiar-se em crenças infundadas e otimistas de que o desenvolvimento econômico tende por si só à maior satisfação possível para todos.”92, 93 89 Ver HANSEN (1964). 90 Embora não seja nosso objetivo tratar dessa questão, é importante ressaltar que para a economia tradicional (ortodoxa) a questão do poder inexiste: a troca é feita por iguais. Para uma posição absolutamente contrária, ver AGLIETTA & ORLÉAN (1982). Em última instância, a alocação ótima seria um maná obtido no livre mercado, jamais imposto por algum poder monopolista ou não-econômico. 91 GALBRAITH (1992), pg. 1. 92 WICKSELL (1911), pg. 15. 93 Ao longo desta seção concentramo-nos nas implicações metodológicas da hipótese de “racionalidade econômica” no estudo do comportamento do consumidor, basicamente. Todavia, é possível mostrar o absurdo dessa hipótese no estudo de outros campos da economia. Para mostrar que as verdadeiras motivações dos trabalhadores podem passar ao largo de simples ganhos pecuniários, ver o clássico estudo de Elton Mayo sobre as operárias em Hawthorne: Problemas humanos de una civilización industrial — trataremos deste ponto na seção 3.4 O trabalhador é avesso ao risco? — Para mostrar como muitas vezes o lucro não é a motivação primeira em uma empresa, ver COLLINS & PORRAS (1995). Ainda neste ponto, mas mostrando um aspecto completamente diferente da questão (como uma burocracia empresarial pode tornar-se disfuncional), ver CARROLL (1993). Não nos estenderemos mais sobre as várias implicações da hipótese de “racionalidade econômica” apenas por uma questão de espaço. 20 3. Alguns exemplos de como funciona a “Nova Economia Institucional” Como dissemos no início, definir a escola da “Nova Economia Instituciona” é tarefa difícil (com o que concordamos com Elinor Ostrom94). Assim, muitos dos que se julgam neoinstitucionalistas não aceitariam nossas críticas feitas acima. Argüiriam que estamos ultra- simplificando os argumentos de vários expoentes dessa escola.95 Como exemplo, os neoinstitucionalistas poderiam citar Ronald Coase e Oliver Williamson, dois dos mais respeitados neoinstitucionalistas. Ambos não seriam ardorosos defensores dos métodos neoclássicos e jamais assinariam embaixo da hipótese de absoluta racionalidade econômica. Portanto, não seriam atingidos pelas nossas críticas. É, pois,mister tratá-los em separado, apontando as eventuais falhas de seus trabalhos e, mais importante, ressaltando a ligação direta de seus trabalhos com a teoria econômica ortodoxa (neoclássica) e seu distanciamento da escola geroinstitucionalista. Após nossos comentários sobre os trabalhos de Coase e Williamson, abordaremos um exemplo da “metodologia” utilizada pelos neoinstitucionalistas, bem como alguns trabalhos sobre a “teoria da agência” (agency theory), uma espécie de teoria neoclássica aplicada nas relações de trabalho, notadamente entre propretário e empregados e entre acionistas e executivos de empresas de sociedade anônima. 3.1. A natureza da firma revisitada O trabalho que deu fama e prestígio a Ronald Coase é um artigo escrito em 1937, intitulado “The Nature of the Firm”.96, 97 Nesse trabalho, Coase se propõe uma questão interessante: por que as firmas existem? A resposta é simples e geraria toda uma gama de trabalhos em economia98 e, eventualmente, em ciência política:99 as firmas existem para otimizar os custos de transação existentes em uma economia. Em outras palavras, quando é mais barato realizar determinadas operações no mercado, a firma compra esses bens e serviços no mercado. Quando é mais barato produzir (ou contratar) esses bens e serviços internamente, a firma assim procede. Tudo se resumiria, pois, a uma questão de custos. As “instituições” entrariam na análise de Coase apenas através da questão dos contratos ¾ estes teriam suas formas e seus limites definidos pelas instituições existentes na sociedade. Podemos ver no trabalho de Ronald Coase um problema interessante: o que é novo, assim o é apenas para os teóricos neoclássicos. E o que é importante, já era conhecido de economistas não seguidores da ortodoxia. Senão, vejamos. 94 Ver OSTROM (1986). 95 Por exemplo, ver AULT & EKELUND (1988). 96 Ver COASE (1937 e 1987). 97 Sobre a importância desse trabalho, ver WILLIAMSON (1985, “Prólogo” e cap. 1) e WILLIAMSON (1993). 98 Segundo WILLIAMSON (1993). 99 Idem, ibidem. 21 À luz da teoria neoclássica, discutir a natureza da firma e seus limites é, sem dúvida, um avanço digno de nota. Com este seu trabalho, Coase certamente torna as firmas neoclássicas mais realistas, pois em sua análise não precisamos supor que cada firma produz um único produto ou que atua em um mercado de concorrência perfeita (ou em condições de “concorrência monopolista”, para usar o jargão neoclássico). A firma deixaria de ser apenas uma função de produção, com sua delimitação bem definida. Porém, vejamos a questão de outra forma: o capital, muito mais do que otimizar custos, busca reproduzir-se de forma ampliada.100 Em outros termos, o que define a forma do capital (se físico ou financeiro) é a possibilidade de obtenção de uma maior mais-valia. Portanto, à luz da teoria econômica marxista, a questão do tamanho da firma simplesmente não se coloca em moldes semelhantes aos da teoria neoclássica. Isto têm origem na teoria do valor: como os neoclássicos amarraram-se ao valor-utilidade (ou valor de uso) e não fazem distinção entre valor de uso e valor de troca, estão presos a uma simples análise de custos. Mas, se tornarmos nossa análise mais complexa e adotarmos a distinção entre valor de uso e valor de troca, o tamanho da firma ou mesmo sua existência deixará de ser uma questão relevante.101 Isto porque é na teoria do valor que está a raiz das diferenças entre os neoclássicos e as outras escolas de pensamento econômico. Se assumimos a diferença entre valor de uso e valor de troca, estamos reconhecendo que o principal papel do capital é reproduzir de forma ampliada o seu valor de troca; disto decorre que o sistema não tende, a princípio, à máxima eficiência como um todo. Se utilizamos apenas a noção de valor de uso (como idêntico ao valor de troca), então assumimos que o sistema econômico como um todo tende à eficência: as trocas são baseadas exclusivamente na melhoria da satisfação dos agentes envolvidos, e estes agentes são racionais. Logo, o sistema econômico tende a ser eficiente como um todo. ¾ Ronald Coase não poderia realizar esta distinção, pois está preso aos moldes neoclássicos ¾ aliás, porque sua formação como cientista social é precária, ele mesmo nos diz em um de seus trabalhos.102 Outro ponto digno de nota é essa preocupação em entender por que as firmas existem. Coase alega que as firmas existem para otimizar os custos de transação. É uma questão que implica em uma hipótese subjacente: a de que, no capitalismo, tudo se encaminha para a otimização da alocação dos fatores de produção. Sem essa hipótese subjacente, a explicação de Coase torna-se desprovida de sentido. Agora, suponhamos que a firma é uma instituição social: como vimos, uma instituição social deve ter uma função, sem a qual deixaria de existir. Portanto, uma firma pode existir por outros motivos que não os meramente econômicos: estatais deficitárias existem e certamente têm uma função em economia, mesmo que não seja a otimização do uso dos fatores ou a redução dos custos de transação. Ademais, as firmas capitalistas não surgiram por geração espontânea: são fruto da História. Que tenham características em comum, isto se deve apenas ao fato de serem firmas capitalistas. Daí podermos 100 Obviamente, embora estejamos tornando “o capital” e “a firma” sujeitos em nossas orações, isto não significa que estejamos atribuindo vontade própria a categorias científicas. Estamos apenas simplificando as construções verbais, em prol de um melhor entendimento do problema por parte dos leitores. 101 Ver MARX (1867). 102 Ver COASE (1987). 22 dizer que Ronald Coase segue o manual neoclássico de explicações a-históricas para fenômenos notadamente históricos. Se estudamos as firmas de um determinado país, constataremos que, muitas vezes seu tamanho e sua forma são determinados por fatores extra-econômicos (lembremo-nos dos “monopólios reais” existentes à época do mercantilismo).103 Finalmente, uma última nota: quando Coase discorre sobre os tamanhos das firmas, afirma que : “First, as a firm gets larger, there may be decreasing returns to the entrepreneur function, that is, the costs of organizing additional transactions within the firm may rise. Naturally, a point must be reached where the costs of organizing an extra transaction within the firm are equal to the costs of organizing by another entrepreneur. Secondly, it may be that as the transactions wich are organized increase, the entrepreneur fails to make the best use of the factors of production.”104 Aqui, Coase aparentemente ignora a existência de um conceito antigo, a chamada “deseconomia de escala” marshalliana. Não é novidade, pois, a forma como é explicado o tamanho da firma em um mercado capitalista. Ademais, como Coase afirma que os custos de transação internos à firma “podem aumentar” (may rise), esse uso do condicional abre uma brecha para a inclusão da tecnologia. Se as tecnologias modernas, notadamente a de informação, diminuírem esses custos, pode não haver a tal deseconomia de escala e uma firma pode crescer muito mais do que em uma situação de tecnologia constante. Aqui, uma vez mais, é preciso lembrar que segundo a teoria marxista do valor, pouco importa o tamanho da firma; a questão é a reprodução ampliada do capital. Finalmente, na última parte do seu artigo, Ronald Coase105 descreve as relações de trabalho, citando um trabalho do sr. Batt. Talvez seja novidade para os neoclássicos, mas há muito os marxistas (e provavelmente os geroinstitucionalistas) sabem que ao trabalhador resta apenas vender sua força de trabalho ao capitalista. O uso que será feito dessa
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