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BIOENERGÉTICA E O EXERCÍCIO FÍSICO INTRODUÇÃO O exercício físico requer o trabalho mecânico da musculatura esquelética. Toda forma de trabalho, por menor que seja, exige o gasto de energia. O organismo humano faz uso da energia contida nas moléculas de trifosfato de adenosina (ATP), chamadas também de “moeda energética das células”. Todas as vias metabólicas produtoras de energia extraem a energia contida nas ligações químicas dos nutrientes, como glicose, ácidos graxos e aminoácidos, armazenando-a nas ligações de alta energia entre os fosfatos da molécula de ATP. Todavia, o ATP não é uma forma de estocagem de energia, mas uma fonte energética para uso imediato (dura no máximo 2 segundos). Por isso, as células precisam de formas distintas para repor as moléculas de ATP, suprindo as diversas demandas energéticas celulares. Os Sistemas Energéticos são o nome das combinações distintas de vias metabólicas que ressintetizam ATP. São eles: 1. Sistema fosfogênico ou sistema anaeróbico aláctico. 2. Sistema anaeróbico oxidativo ou sistema anaeróbico láctico. 3. Sistema aeróbico oxidativo. É importante ressaltar, desde já, que os sistemas energéticos não aproveitam toda a energia contida nos seus respectivos substratos. A maior parte da energia química contida nas ligações dos substratos é perdida na forma de calor, algo em torno de 75%. Logo, o aproveitamento energético, por exemplo, do sistema aeróbico oxidativo gira em torno de 25%. Esse baixo aproveitamento deve-se a uma ineficiência intrínseca da cadeia transportadora de elétrons localizada nas cristas mitocondriais. SISTEMA FOSFOGÊNICO As fibras musculares da musculatura esquelética apresentam uma concentração baixa de ATP, a qual consegue sustentar a contração muscular por até 2 segundos. Como são poucas as atividades que duram apenas dois segundos, o organismo deve apresentar mecanismos para ressíntese desse ATP. O sistema fosfogênico é, portanto, a primeira forma que uma fibra muscular apresenta para ressintetizar o ATP consumido com a contração muscular que dura mais do que 3 segundos. No sarcoplasma (citosol das células musculares) estão presentes as moléculas de fosfocreatina ou creatina-P. O consumo de ATP com a contração muscular envolve a formação de ADP e Pi. Por sua vez, a ressíntese de ATP compreende a transferência do fosfato da molécula de creatina-P para a molécula de ADP (figura 1). Essa reação de transferência do fosfato é catalisada pela enzima creatina cinase. Figura 1. Esse sistema energético consegue sustentar a contração muscular por um período de tempo limitado, que leva cerca de 10 segundos. Porém, embora sua capacidade de geração de energia seja limitada, ele consegue fornecer muita energia em curto intervalo de tempo (cerca de 50 kcal/min), apresentando uma alta potência. Isso explica o uso predominante desse sistema em exercícios físicos de alta intensidade e curta duração, como levantamento de pesos e uma corrida de 100 metros. SISTEMA ANAERÓBICO OXIDATIVO Uma atividade física que dure entre 10 e 90 segundos já necessita de outra forma de geração de ATP. O sistema anaeróbico oxidativo é responsável por isso. No caso, esse sistema faz uso de um via metabólica mais complexa, que compreende pelo menos 11 reações químicas: a fermentação láctica. A fermentação láctica inicia-se com a glicólise (rota de EMBDEN-MEYERHOF – FIGURA 2), uma via metabólica que ocorre no citosol das células musculares. Essa via compreende a conversão de glicose em duas moléculas de ácido pirúvico. O saldo energético dessa via é de 2 moléculas de ATP e há também formação de duas moléculas de NADH. Essas moléculas de NADH são reoxidadas a NAD+ na reação de conversão do piruvato em ácido lático, a qual é catalisada pela enzima lactato desidrogenase. Assim, o NAD+ pode ser reutilizado pelas reações da glicólise. Essa via não requer oxigênio, sendo anaeróbia e também oxida apenas parcialmente a molécula de glicose, o que justifica seu baixo saldo de energia. A figura 3 mostra a reação enzimática final da fermentação láctica que caracteriza o sistema anaeróbico oxidativo. Figura 2. Figura 3. O sistema anaeróbico láctico envolve mais reações químicas do que o sistema fosfogênico e, por esse motivo, gera menos ATP por unidade de tempo do que o sistema fosfogênico. Mesmo assim, o seu potencial gerador de energia é alto, quando comparado com as o sistema aeróbico oxidativo que será falado adiante, por isso, dizemos que esse sistema também apresenta alta potência (fornece cerca de 30 Kcal/min). Como todo sistema de alta potência, sua capacidade é baixa, mantendo a formação de ATP por curto período de tempo. Os motivos para limitação desse sistema não guardam relação com o estoque limitado de substratos (por exemplo, o sistema fosfogênico é limitado, pois os estoques de creatina-P são baixos na célula), mas com a formação do ácido láctico. O ácido láctico, no meio aquoso do citosol das células musculares, forma íons H+ e lactato. Os íons H+ participam de dois mecanismos que tem relação com a limitação do sistema. Macanismo 1: A participação do H+ na fadiga da fibra muscular. Acredita-se que o baixo pH de uma fibra muscular resulta na redução da afinidade da troponina pelos íons cálcio e dos filamentos de actina pelos de miosina, impedindo, portanto, o processo de contração muscular, o que leva à falência funcional dos miócitos. Mecanismo 2: O H+ atua como modulador alostérico negativo da enzima fosfofrutocinase I, que é responsável por uma das reações da glicólise. O excesso de H+, proveniente da própria intensificação da fermentação láctica leva à repressão da via, justamente por reduzir a atividade da enzima. Por fim, pode-se dizer que o sistema anaeróbico oxidativo apresenta alta potência e baixa capacidade e é utilizado predominantemente em exercícios físicos de alta intensidade e curta duração. Como exemplo, tem-se uma competição de 400 metros nado Crawl. SISTEMA AERÓBICO OXIDATIVO O sistema aeróbico oxidativo apresenta baixa potência (fornece 12 Kcal/min) quando comparado aos dois sistemas anteriores, mas a sua capacidade é quase ilimitada. A baixa potência apresenta relação com a complexidade das vias metabólicas que se integram para gerar ATP, enquanto a alta capacidade deve-se (1) a diversidade de substratos energéticos que esse sistema pode utilizar e (2) ao seu saldo energético elevado por molécula de substrato. Os substratos utilizados são a glicose, os ácidos graxos, os aminoácidos e os corpos cetônicos. De acordo com o substrato usado pelo sistema, algumas vias metabólicas podem ser distintas, mas todas convergem para o ciclo de Krebs e, na sequência, para a cadeira transportadora de elétrons acoplada à fosforilação oxidativa. A imagem 4 ilustra o sistema em questão e a diversidade de substratos que ele pode usar, assim como as vias pelas quais ele sintetiza ATP. Figura 4. Adaptada de Berne & Levy Fisiologia. 6ª edição, 2009. Elsevier. A baixa potência desse sistema e sua alta capacidade o tornam fundamental nos exercícios de longa duração e baixa intensidade, como uma maratona. USO DOS SISTEMAS ENERGÉTICOS DURANTE O EXERCÍCIO Durante uma sessão de exercício físico, o músculo esquelético faz uso dos três sistemas energéticos para a ressíntese de ATP. Todavia, geralmente um dos sistemas energéticos contribui mais para a geração de ATP do que os demais, o que depende, em última análise, de dois fatores: a INTENSIDADE e a DURAÇÃO do exercício. Para o melhor entendimento de como esses dois fatores influenciam no uso dos sistemas produtores de ATP, temos queter em mente as informações abaixo. De acordo com a intensidade e a duração do exercício, as contrações musculares decorrem do trabalho mecânico predominante de um tipo de fibra. Como já descrito, o músculo esquelético é constituído por uma combinação das fibras musculares do tipo I e do tipo II. As fibras vermelhas contribuem mais significativamente para a tensão muscular total nas variedades dinâmicas de exercício, nas quais a intensidade é baixa e a duração mais longa do que a dos exercícios estáticos. Neste caso, o perfil funcional das fibras do tipo I, as quais apresentam baixa potência e alta capacidade, consegue atender muito bem a necessidade do tipo de exercício. Enquanto isso, têm-se as fibras brancas, que apresentam alta potência e baixa capacidade. Em vista do seu perfil funcional, são recrutadas em exercícios que requerem elevada tensão muscular, mas que são de curta duração. O tipo de fibra muscular mais recrutado durante uma sessão de exercício determina o sistema energético que mais contribui para a biossíntese de ATP. Para um determinado tipo de exercício, o sistema energético que mais contribuirá para a geração de energia será aquele presente no tipo de fibra muscular mais recrutado. No exercício de alta intensidade e curta duração, como são as fibras brancas que mais se contraem, os sistemas energéticos que mais contribuem para a geração de ATP são o fosfogênico e o anaeróbico láctico. Enquanto isso, para as variedades de exercício de longa duração e baixa intensidade, o sistema aeróbico oxidativo é que mais contribui para a produção de energia, uma vez que as fibras vermelhas são as que mais de contraem. Como já dito, um tipo de exercício envolve o uso predominante de um sistema energético para a produção de ATP. No entanto, é importante entender que os outros sistemas, embora tendo papel secundário, também agem concomitamente com o sistema protagonista, independente da intensidade e da duração do exercício. Um exemplo clássico é a importância do sistema aeróbico oxidativo nos intervalos de sessões de levantamento de peso, que fazem uso primordial do sistema fosfogênico. Durante a execução do movimento para levantamento de peso, as reservas de creatina-P são esgotadas, o que impediria a continuidade do exercício. Contudo, durante o repouso entre as séries do exercício, o sistema aeróbico oxidativo sintetiza ATP, o qual é usado para repor os estoques de cretina-P. Assim, mediante um repouso de poucos minutos, um novo levantamento poderá ser executado em seguida, já que o sistema fosfogênico foi regenerado. USO DOS SUBSTRATOS ENERGÉTICOS Durante o exercicio, os sistemas energéticos usam tipos específicos de substratos. Os sistemas anaeróbicos aláctico e láctico usam, respectivamente, a creatina-P e a glicose, como fontes de energia. Essa baixa variedade no uso de substratos é, em parte, um dos fatores que limita a capacidade desses dois sistemas. O sistema aeróbico oxidativo, como já dito, utiliza ampla variedade de substratos energéticos. Todavia, dependendo da duração do exercício e intensidade, haverá variação do uso do substrato. Inicialmente, um exercício físico tem a glicose como o principal recurso energético (após o esgotamento do ATP livre e creatina-P). Tanto as fibras musculares vermelhas, quanto as brancas usam a glicose proveniente das reservas de glicogênio hepáticas e do próprio músculo. Com o prolongamento do exercício, as fibras brancas, as quais utilizam apenas glicose para produção de energia, entram em falência. As fibras vermelhas permanecem produzindo energia, pois apresentam alta capacidade. A produção de ATP por essas fibras dá-se pelo sistema aeróbico oxidativo, que utiliza, a priori, maior proporção de glicose do que de ácidos graxos. Como o avançar do exercício, os níveis de hormônios como adrenalina, cortisol e glucagon se elevam na corrente sanguínea, e os de insulina caem. A relação de concentração desses hormônios potencializa a lipólise no tecido adiposo (figura 5) e a β-oxidação nas células musculares esqueléticas. Figura 5. Com a intensificação da lipólise, há maior oferta ácidos graxos para as fibras vermelhas em atividade. A β-oxidação intensificada, por consequência, oxida esse excesso de ácidos graxos que chegam ao músculo, produzindo muito acetil-CoA. O acetil-CoA une-se ao oxalacetato mitocondrial e forma citrato pela ação da enzima citrato sintase. Isso resulta no aumento dos níveis de citrato nas células musculares vermelhas. Essa molécula é um modulador alostérico negativo da fosfofrutocinase I. Como consequência, a glicólise reduz sua intensidade, e os ácidos graxos passam, com uma longa duração de exercício, a serem os principais recursos energéticos (figura 6). Essa mudança no consumo de substratos é interessante para a célula muscular, pois (1) os ácidos graxos provêm de reservas de gordura abundantes no tecido adiposo, (2) geram muito mais ATP do que a glicose, (3) poupam a glicose sanguínea para uso exclusivo de tecidos que dependem da glicose (encéfalo, hemácias, córnea, etc.) e (4) poupam o glicogênio muscular, prevenindo a fadiga das fibras vermelhas. Figura 6. Adaptada de Berne & Levy Fisiologia. 6ª edição, 2009. Elsevier. O uso dos substratos energéticos também muda com a intensidade do exercício. Exercícios de alta intensidade e curta duração usam principalmente a glicose como fonte energética, pois há participação das fibras musculares do tipo II, que oxidam a glicose parcialmente na ausência de oxigênio. A redução da intensidade de exercício e o prolongamento do mesmo envolvem o uso das fibras do tipo I, que logo se adaptam ao uso de ácidos graxos. Portanto, veja que, um indivíduo que começa a se exercitar em alta intensidade, consumirá principalmente glicose. Quando o mesmo indivíduo continua a se exercitar por minutos a horas, reduzindo a intensidade do exercício, ele passa a usar, principalmente, os ácidos graxos como fonte energética. Essa mudança do uso de substratos com mudança da intensidade do exercício denomina-se de efeito crossover e é representada no gráfico abaixo. Figura 7. Na figura 7, a intensidade de exercício é representada pela porcentagem do VO2 máximo. Lembre-se que o VO2 máximo é um representativo da capacidade aeróbica máxima de um indivíduo, ou seja, a sua eficiência no fornecimento de oxigênio aos tecidos em atividade durante o exercício. Outros fatores, além dos já explicados, justificam a preferência das fibras musculares do tipo I pelos ácidos graxos em detrimento da glicose, quando o exercício se prolonga. Certamente, esses fatores tem relação direta com a repressão da glicólise e uma intensificação da β-oxidação. Como dito, a ação adrenérgica aumentada durante o exercício, por conta do aumento do tônus simpático, e a redução dos níveis circulantes de insulina são potentes estímulos para a β-oxidação mitocondrial. O estímulo adrenérgico, sobre as fibras musculares, desencadeia duas importantes vias de sinalização. Uma delas tem participação da proteína Gs, que ao ativar adenilato ciclase via subunidade α, eleva os níveis citosólicos de AMPc. Como importante segundo mensageiro, o AMPc ativa a proteinocinase dependente de AMPc (PKA). A PKA fosforila muitas enzimas da célula, como a acetil-CoA carboxilase, responsável pela conversão de acetil-CoA mais íon bicarbonato em malonil-CoA (figura 8). O malonil-CoA é um inibidor alostérico negativo da enzima carnitina acetiltransferase I (CAT-I). Portanto, quando em elevada concentração, o malonil-CoA é um fator limitante da entrada de ácidos graxos na mitocôndria e da β- oxidação. No caso da ação adrenérgica, os níveis de malonil-CoA caem na célula, o quepropicia a entrada de ácidos graxos na mitocôndria, e isso é um potente estímulo à oxidação dessas moléculas (figura 8). Figura 8. A completa oxidação de ácidos graxos na célula gera grandes quantidades de ATP. Os altos níveis de ATP indicam riqueza energética para a célula. A baixa razão ADP/ATP é um forte efeito inibidor da enzima fosfofrutocinase I, a qual reduz sua atividade. Acredita-se que tal enzima seja a principal responsável pela velocidade da glicólise. Independente das controvérsias a esse respeito, ela é etapa limitante da via, em virtude se sua regulação alostérica. Por isso, sua menor atividade resulta em repressão da via, poupando glicose. Isso explica porque a fibra vermelha passa a usar menos glicose em exercícios de longa duração. Outra via de sinalização importante envolve a ativação da proteína Gq. A subunidade α dessa proteína ativa a enzima fosfolipase C (PLC), a qual converte PiP2 em IP3 e DAG. O IP3, assim como o AMPc, é um segundo mensageiro. Essa molécula liga-se aos canais de cálcio dependentes de ligante na membrana do retículo endoplasmático liso, um importante reservatório de cálcio intracelular. Assim, o íon cálcio flui para o citosol, elevando, transitoriamente a sua concentração. O cálcio liberado terá, pelo menos, 3 funções importantes na célula muscular. A primeira dessas funções envolve a contração muscular. O cálcio liga-se à subunidade C das moléculas de troponina, deslocando o complexo troponina e tropomiosina. Esse deslocamento do complexo proteico deixa o sítio de ligação da miosina na actina exposto. A miosina, então, quando hidrolisa o ATP, modifica sua conformação, ligando-se à actina e torcendo sua cabeça, tracionando o filamento fino de actina e, definitivamente, encurtando o sarcômero. Isso resulta na contração da fibra muscular. A segunda função do cálcio se dá em conjunto com a molécula de DAG. Esses dois segundos mensageiros intracelulares ativam a proteinocinase C (PKC). A PKC ativada pode, então, fosforilar outras enzimas da célula muscular envolvidas no metabolismo energético, principalmente aquelas que participam das vias produtoras de energia. A terceira função do cálcio na fibra muscular diz respeito ao seu potente efeito alostérico. O cálcio é um potente modulador alostérico positivo da enzima isocitrato desidrogenase e do complexo α-cetoglutarato desidrogenase. Desse modo, esse íon potencializa o poder oxidativo do ciclo de Krebs, levando à produção mais eficiente de ATP. CONSIDERAÇÕES FINAIS A homeostase energética durante o exercício decorre da capacidade do organismo de produzir ATP de modo que atenda às demandas aumentadas da musculatura esquelética em atividade. Isso só se torna possível em decorrência do grande número de vias metabólicas integradas (os sistemas energéticos) que trabalham juntas a cada instante. Para fins didáticos, os dois fatores mais importantes na escolha do sistema energético protagonista são a intensidade e a duração do exercício. RESUMO DOS SISTEMAS ENERGÉTICO
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