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Ano V, nº 19 AULA SOBRE KANT — GONZÁLEZ PORTA 245 UMA AULA SOBRE KANT* Mario Ariel González Porta ** Resumo: O presente artigo procura proporcionar ao público em geral uma idéia sumária da filosofia Kantiana outorgando para isto atenção especial ao problema que a mesma pretende solucionar. Palavras-chave: Kant, filosofia, Kantiano Abstract: This article aims at offering the general public a brief notion of Kant’s philosophy, concentring on the problem it intends to solve. Key words: Kant, philosophy, Kantian 1. INTRODUÇÃO Para quem não se dedicou a um estudo sistemático da filosofia e, contudo, tem um interesse por esta disciplina, ela se apresenta como um conjunto desconexo de temas e de opiniões. A impressão de um certo caos é inevitável. Mas esta impressão é falsa. Para entendermos porque está errada, precisamos começar a observar que a filosofia possui problemas e é a unidade dinâmica interna destes problemas que está na base da multiplicidade e mudança de temas e de opiniões. Para entender filosofia ou, mais concretamente, um filósofo em particular, devemos começar pela pergunta: qual é o seu problema e, eventualmente, por que o coloca desta forma? Logo em seguida temos que prestar atenção no que ele diz, tomando as suas palavras como a solução argumentada que ele oferece ao seu problema. Nas seguintes considerações dedicar-me-ei, prioritariamente, a tentar explicar qual é o problema Kantiano. Num segundo momento direi alguma coisa sobre a solução desse problema. 2. O PROBLEMA CRÍTICO O problema Kantiano é constituído de fato por vários problemas articulados e, como veremos, possui uma clara unidade interna. Este problema tem uma dimensão teórica e uma prática, ou seja, uma dimensão epistemológica e uma ética. Chamo a atenção sobre a unidade da pergunta kantiana e, ao mesmo tempo, sobre sua dupla dimensão essencial. Inicialmente me ocuparei com a questão teórica; em seguida, com a questão prática. Isto não obedece a uma ordem de importâncias ou de prioridades. 2.1. O problema teórico Se o problema kantiano tem um duplo aspecto, teórico e prático, no campo teórico há também uma dupla dimensão. Este é um dado absolutamente essencial se * Palestra oferecida no marco do curso de Introdução à Filosofia Moderna e Contemporânea do COGEAE da PUC-SP em 16/09/1999. Data de recebimento para publicação: 22/09/99. ** Doutor pela Westfálische Wilhelms Universität-Münster, Pós- Doutorado (Deutsche Forschungsgemeinschaft), Professor da Pós- Graduação da PUC- SP, Coordenador de Pós-Graduação do Centro de Pesquisa da USJT. queremos compreender a Crítica da razão pura adequadamente. Entender esta obra é, em boa medida, entender a ligação interna necessária que há entre duas questões que, a princípio, podem ser formuladas independentemente: 1. A primeira questão diz: A metafísica é possível como ciência? 2. A segunda questão: como são possíveis a física e a matemática como ciências? 2.1.1. A questão das ciências física e matemática Vou começar pela última questão. A ciência é para Kant a geometria euclidiana e a mecânica newtoniana. Isto pode parecer óbvio, mas não é. Para entendê-lo, é necessário saber algumas coisas. 1. Na primeira metade do século XVIII existiam na Alemanha duas físicas, a de Descartes e a de Leibniz. A discussão entre elas caracterizou o momento científico, não conseguindo nenhuma delas se impor definitivamente sobre a outra. A física de Newton aparece como uma nova e poderosa concorrente que as desloca, embora com lutas e fortes resistências. O desenvolvimento intelectual de Kant coincide com este processo. Kant inicia sua formação em física através do contato com as polêmicas entre cartesianos e leibnizianos para, em seguida, aderir progressivamente a Newton, numa época prematura para a situação intelectual na Alemanha. 2. As físicas de Descartes e de Leibniz são diferentes em várias questões essenciais. Entretanto, importa não ignorar que, no marco destas diferenças, elas têm três pontos básicos em comum: a. Em primeiro lugar, Descartes e Leibniz (e em geral todos os racionalistas) compartilham uma idéia de ciência que tem suas raízes na antigüidade clássica e, segundo a qual, a ciência é conhecimento universal e necessário. Para usar algumas formulações que não são exatamente idênticas, mas que confluem para o núcleo essencial da necessidade, digamos que ciência é o conhecimento pelas causas, ou pelas razões, ou de natureza demonstrativa; ou que não é o mero 246 conhecimento do que, senão do porquê, ou que não é simplesmente descrever, senão explicar; não é propriamente investigar os fatos estabelecendo verdades em relação a eles, mas sim demonstrar estas verdades. b. Em segundo lugar, tanto Descartes quanto Leibniz, trabalham naquele projeto comum da ciência moderna, de matematizar o universo, vinculando estreitamente suas físicas com suas respectivas metafísicas. Se suas físicas são diferentes é, em boa medida, porque as metafísicas, a serviço das quais se encontram, são diferentes. c. Em terceiro lugar, tanto Descartes quanto Leibniz fundamentam suas físicas em suas metafísicas. Dado que ciência é conhecimento necessário, tanto Descartes quanto Leibniz vinculam a necessidade que caracteriza suas físicas, como ciência, a suas metafísicas. 3. Kant, inicialmente interessado pelas polêmicas entre os físicos cartesianos e leibnizianos, acaba adotando a física de Newton, sem, no entanto, abandonar a idéia de ciência como conhecimento universal e necessário, na qual se havia formado. Kant aceita a física newtoniana, mas a interpreta através da idéia racionalista de ciência. Isto é decisivo: para Kant a física newtoniana é algo mais do que mera generalização de dados empíricos, uma descrição matemática feliz e convincente dos fenômenos que poderia, eventualmente, ser corrigida no futuro: ela é um conhecimento que implica um caráter universal e necessário. Para Kant existem dois tipos de conhecimento. Chamamos conhecimento empírico aquele que se funda na experiência. Entendemos por experiência um conhecimento proporcionado pelos sentidos. Se eu dissesse agora que a parede é branca, isto seria um conhecimento empírico, pois a verdade desta minha afirmação está suficientemente fundada nos dados que os sentidos me proporcionam. Para saber se o que eu digo é verdade, a única coisa a ser feita é olhar para a parede. Chamamos conhecimento a priori aquele conhecimento que não se funda na experiência, ou melhor, que não pode ser suficientemente fundado na experiência. Observem que, a princípio, a noção de a priori é definida de um modo puramente negativo: conhecimento a priori é aquele que não é empírico. Ora, a experiência é incapaz de fundar o conhecimento universal e necessário. Ela pode eventualmente dizer como são as coisas, mas não dizer porque, necessariamente, elas são assim e não de outro modo; ela pode, de outra maneira, eventualmente dizer como as coisas foram até agora, mas não que sejam assim sempre. Conseqüentemente, se há um conhecimento que tenha estas qualidades de necessário e universal então ele não pode ser empírico e, em conseqüência, é, por oposição, a priori. Se pensarmos em todos os elementos apontados até agora, chegarmos a uma interessante conclusão que é, realmente, para Kant, um ponto de partida: a) se a mecânica newtoniana é ciência, b) e ciência é conhecimento universal e necessário, c) a mecânica newtoniana é conhecimento universal e necessário. d) Não obstante, conhecimento universal e necessário não pode ser jamais empírico, mas a priori, e) Conseqüentemente, se a mecânica newtoniana é possível como ciência, então o conhecimento a priori é possível. 2.1.2. A questão da metafísica Se o primeiro elemento do problema kantiano é a física, o segundo será a metafísica. Mas o queé a metafísica para Kant? É basicamente a metafísica racionalista. Vocês já ouviram falar de uma das maiores expressões deste movimento: Descartes; e já sabem que numa obra que tem por título, justamente, Meditações Metafísicas, ele se propõe a resolver definitivamente questões tais como a existência de Deus ou a imaterialidade da alma humana. Basicamente a mesma coisa tentam Leibniz, Spinoza e todos os outros autores racionalistas do período. Questões como as anteriores não podem ser solucionadas pela experiência, pois objetos como esses mencionados não podem ser percebidos pelos sentidos. A metafísica apresenta pois questões que excedem os limites da experiência e que não podem ser resolvidas por esta. Agora vocês se recordam que Descartes queria provar determinadas verdades, ou seja, queria demonstrá-las, isto é, queria conhecê-las por meio de puros raciocínios. A metafísica pretende pois ser conhecimento puramente racional, ou seja, conhecimento por meio da Razão pura. Os racionalistas consideram que a metafísica é possível como ciência, isto é, que é possível conhecer por meio da razão pura, verdades que transcendem toda experiência possível. Muitos de vocês duvidam do fato de que questões como as mencionadas possam ser conhecidas e, muito menos, demonstradas, mas eu gostaria que vocês entendessem porque homens inteligentes dos séculos XVII e XVIII pensavam o contrário, porque homens inteligentes acreditavam que estas questões eram suscetíveis de tratamento cientifico, podendo ser respondidas demonstrativamente. A confiança que eles tinham na cientificidade da metafísica era produto da confiança que eles tinham na razão. Agora, a confiança que eles tinham na razão era produto da confiança que eles tinham na matemática. A matemática ocupava um lugar privilegiado no saber da época. Ela era modelo de solidez e rigor. Suas verdades são em si mesmas evidentes ou demonstradas com evidência a partir de verdades evidentes. Porém: em que se baseiam as matemáticas? Na experiência? Nada disto. Quando o matemático demonstra seus teoremas apóia-se unicamente na razão. Mas, se nas matemáticas a razão consegue produzir conhecimentos a partir de si Ano V, nº 19 SISTEMA GEOCÊNTRICO — LOPES & LOPES 247 mesma por que ela não poderia fazer o mesmo na metafísica? Se a razão não precisa da experiência nas matemáticas, por que precisaria dela na metafísica? Sabemos que conhecimento a priori é conhecimento não-empírico. Em conseqüência, um conhecimento puramente racional, que não se funda em experiência alguma, é um conhecimento a priori. Aquilo que o racionalismo pretendia com a metafísica, ou seja, conhecer a realidade última do universo através da razão pura, não era diferente daquilo que anteriormente chamamos conhecimento a priori. A possibilidade da metafísica como ciência depende então da possibilidade do conhecimento a priori por meio da razão pura. 2.1.3. A relação entre os dois problemas Chegamos, pois, à seguinte conclusão: tanto a mecânica newtoniana quanto a metafísica racionalista pretendem obter conhecimento a priori. Não obstante esta semelhança, existe uma diferença não menos decisiva: nesta tarefa a mecânica newtoniana dá-se muito bem, enquanto a metafísica dá-se muito mal. A mecânica newtoniana consegue construir um conjunto de conhecimento que é aceito por todos e confirmado pelos fatos conhecidos. A metafísica, pelo contrário, é, como diz Kant, uma eterna arena de disputas, não existindo uma única tese que seja unanimemente aceita nem uma única demonstração que não seja questionada. A pergunta que se segue é: por que esta diferença? Por que o conhecimento a priori é possível na mecânica newtoniana e não na metafísica? Por que pode haver algo na mecânica newtoniana que não pode haver na metafísica? Imaginem agora que, de repente, começa a chover de um lado da Cardoso de Almeida e não do outro. Alguém poderia se perguntar pela razão desta diferença, ou seja, por que chove do lado esquerdo e não do lado direito da Cardoso de Almeida? A pergunta que Kant se faz é similar a esta, ou melhor, é produto de uma perplexidade similar. Chamo a atenção sobre uma forma falsa de “compreender” a KrV e que, não obstante, é muito difundida. Segundo esta interpretação, que comete o erro capital de não ver que a física é parte essencial do problema, Kant afirma que a metafísica não é possível como ciência porque trata de questões que não podem ser respondidas pela experiência. Isto, em certa medida, é certo. Mas não é certo que se a metafísica não é possível como ciência, porque transcende os limites da experiência, a física seja possível como ciência porque está baseada unicamente na experiência. Se Kant tivesse pensado que a física newtoniana se baseava unicamente na experiência, não haveria a necessidade de escrever uma "Crítica da razão pura''. Se Kant tivesse pensado que a metafísica não fosse possível como ciência, simplesmente porque transcende os limites da experiência, não teria sido Kant e sim mais um empirista. O verdadeiro problema é a diferença na situação da física e da metafísica em relação à possibilidade do conhecimento a priori, o fato de que num caso somos capazes e, no outro, não somos capazes de produzir conhecimento a priori. 2.1.4. Como são possíveis juízos sintéticos a priori? Sabemos que conhecimento a priori é um tipo de conhecimento que envolve necessidade. O problema de fundar a possibilidade do conhecimento está, basicamente, em fundar esta necessidade. Mas em que a priori consiste esta necessidade? O que significa necessário? Alguns contemporâneos de Kant fizeram esta pergunta e conseguiram responder de um modo muito preciso o que era necessidade lógico-formal. Para entender a resposta temos que levar em consideração algumas definições: a. Uma contradição se produz quando afirmo e nego a mesma coisa, ou seja, digo . “A é não A” ou “Chove e não chove” b. O princípio de contradição é um princípio clássico da lógica que diz: nada pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob a mesma relação, ou seja, um juízo não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo. c. Algo é possível quando não implica contradição. d. Algo é impossível quando implica contradição. e. Algo é necessário quando sua negação é impossível ou implica contradição. O enunciado: “Um triângulo tem três lados" é logicamente necessário porque se eu o nego, ou seja, digo: “Um triângulo não tem três lados”, produzo uma contradição, ou seja, afirmo e nego algo, isto é, dado que "figuras de três lados” é propriamente a definição de triângulo, digo “Uma figura que tem três lados não tem três lados” ou seja: “A é não A”. A lógica não faz outra coisa que explicitar a legalidade da razão. Os princípios lógicos não são outros que os princípios da razão pura, sendo o de contradição um dos fundamentais. Apoiando-me, pois, exclusivamente, na razão pura posso fundar conhecimento necessário do ponto de vista lógico-formal, ou seja, produzir um certo tipo de conhecimento a priori. Este conhecimento a priori, não obstante, não é suficiente para fundar nem a metafísica, por um lado, nem a física e a matemática, por outro. Sabemos que a razão fracassa no seu empenho em produzir conhecimento a priori na metafísica. Agora sabemos o porquê: porque o conhecimento que a metafísica pretende obter pela razão pura não é um conhecimento necessário do ponto de vista lógico-formal, o único que a razão pode fundar. Se a ciência físico- matemática tem êxito, isto só pode acontecer porque, de algum modo, ela é capaz de um conhecimento necessário, que não se funda na razão pura. Nosso problema começou quando observamos que um conhecimento que pretendesse ser necessário não poderia ser fundado na experiência Até aí poderíamos dizer: não se funda na experiência, mas funda-se na lógica. Mas o que acontece quando um conhecimento é necessário e, em conseqüência, não pode ser fundadona experiência e, não obstante, possui uma necessidade de tal natureza que tampouco pode ser fundado no princípio da contradição? Kant formula esta pergunta do seguinte modo: Como são possíveis juízos sintéticos a priori? 248 Perguntar “Como são possíveis juízos sintéticos a priori?” é perguntar como são possíveis juízos que, enquanto a priori, são necessários, mas que enquanto são sintéticos não são logicamente necessários. O problema teórico de Kant é basicamente explicar a fonte de uma necessidade que não é lógico-formal, ou seja, que não se baseia no princípio da contradição, mas é uma necessidade sintética. É importante mostrar esta situação com alguns detalhes, pelo menos, em relação à mecânica newtoniana. Ela, segundo Kant, pressupõe conhecimentos a priori que, no entanto, não são logicamente necessários. Para entender isto temos que recordar alguns fatos e sermos informados de outros. 1. A ciência físico-matemática procura reduzir o universo a um sistema de leis. Esta foi a grande herança da mecânica newtoniana. 2. Mas o significado científico de uma lei não é outro que o estabelecimento de uma relação universal e necessária entre dois ou mais fenômenos. 3. Esta universalidade e necessidade da relação entre os fenômenos é afirmada pelo princípio causal, o qual diz: tudo o que acontece tem uma causa. 4. A legalidade da natureza pressupõe o princípio causal. 5. Mas, pelo menos a partir de Hume, os filósofos sabem que o princípio causal não pode ser demonstrado através do princípio de contradição, ou seja, sua negação não contém uma impossibilidade lógica, isto é, ele não é logicamente necessário. 6. E então? Em que ele se funda, já que não podemos prescindi-lo da mecânica e, por outro lado, não podemos fundá-lo na razão? Sintetizemos o resultado alcançado até agora e formulemos o problema kantiano através de três perguntas que estão ordenadas num grau crescente de precisão: 1. Por que a física e a matemática são possíveis como ciências e a metafísica não? 2. Por que é possível o conhecimento a priori na física e na matemática e não na metafísica? 3. Por que é possível a necessidade sintética na física e na matemática e não na metafísica? Esta última formulação exige ainda uma observação. O conhecimento a priori é o conhecimento universal e necessário. Não obstante, na formulação 3 só falamos da necessidade. Digamos então, mais precisamente, que a pergunta kantiana é: 4. Por que é possível necessidade sintética de caráter universal na física e na matemática e não na metafísica? 2.1.5. As antinomias A metafísica pretende obter conhecimento a priori e não consegue ou, o que é o mesmo, a razão pura não consegue outra coisa que fundar uma necessidade lógico-formal. Mas esta é apenas uma parte da história. Se para Kant a metafísica não é possível como ciência, ele não tem dúvida alguma de que as questões que ela levanta são importantes e, inclusive, muito mais importantes que as da física. Se os corpos caem a 9,8 ou 9,9 metros por segundo nada muda, mas muda muito se existe ou não existe Deus, ou se existe ou não existe uma alma imaterial e imortal. Mas as questões colocadas pela metafísica não são para Kant unicamente relevantes, elas são necessárias, elas são questões que a razão, por um lado, não pode responder mas que, por outro, não pode deixar de se colocar. A razão é basicamente a capacidade de buscar razões, ou seja, de buscar porquês. Nisto consiste sua tarefa própria e específica. É justamente cumprindo esta tarefa, perguntando-se o porquê do porquê, do porquê ou, como diz Kant, a condição de cada condicionado, que a razão se vê impulsionada a colocar-se a idéia do incondicionado ou absoluto. É deste absoluto que pretende tratar a metafísica. É através da pergunta por uma causa, da causa, da causa, que nós somos levados, por exemplo, à idéia de uma causa última do universo, ou à idéia de Deus ou ainda à idéia de um substrato último de todos os fenômenos psíquicos ou da alma enquanto substância. Mas estas questões são não só relevantes, necessárias e insolúveis. A situação é ainda mais trágica: A razão, ao tentar respondê-las, ao intentar conhecer o absoluto, termina caindo em contradição consigo mesma. A razão chega, e isto acontece justamente na metafísica, à situação em que consegue demonstrar coisas contraditórias ou, como diz Kant, produz antinomias. Se todo o capital do qual a razão dispõe está concentrado no princípio de contradição, pareceria que ela nem sequer conseguiria assegurar este patrimônio. Isto coloca uma dúvida, de princípio, sobre a razão. Já vimos que o êxito da ciência físico-matemática nos obriga a perguntar pela causa do fracasso da metafísica. Agora, como se já não bastasse ter que explicar a possibilidade do conhecimento a priori na física, há aqui outro importante motivo pelo qual não podemos nos limitar a constatar que a metafísica não é possível como ciência e, simplesmente, deixá-la de lado; temos que entender o motivo. Talvez compreendamos melhor a gravidade da situação se tomarmos conhecimento de pelo menos uma dessas contradições, a saber, entre a liberdade e o determinismo. A tese diz: há uma causa livre. A antítese afirma: toda causa é causada. Sem causalidade, como já vimos, não há lei e, em conseqüência, tampouco ciência. Porém, sem liberdade não há ética. 2.2. O problema prático Já anunciamos que o problema kantiano tinha uma dimensão teórica e uma prática. Na realidade, a preocupação fundamental de Kant é a prática, a ética. Nem sempre foi assim. Em seus primeiros anos de academia, Kant não era outra coisa que um jovem arrogante, que Ano V, nº 19 SISTEMA GEOCÊNTRICO — LOPES & LOPES 249 estava mais preocupado em mostrar-se genial, superando os outros que em estabelecer alguma verdade relevante de forma sólida. Mas a leitura de Rousseau o tirou da sua postura inicial. Kant estava interessado em fundar uma ética. O problema de uma fundamentação da ética consiste em responder a perguntas do tipo: O que devo fazer e, mais radicalmente, por que devo? Trata-se pois, em última instância, de fundamentar a objetividade do dever, isto é, sua universalidade e sua necessidade. Só que, como já sabemos, universalidade e necessidade não podem ser fundadas empiricamente. A experiência pode me dizer como de fato os homens se comportam, mas nunca pode me dizer que eles devem se comportar assim. Logo, se é possível universalidade e necessidade na esfera ética esta só pode ser fundada de um modo não empírico, ou seja, a priori. A noção de a priori e o problema de sua possibilidade, que haviam desempenhado um papel decisivo no campo teórico, voltam a aparecer em um lugar central da ética. Agora sabemos que a razão é, ao menos em sua pretensão, uma faculdade de conhecer a priori. Por conseguinte, a tarefa de uma fundamentação a priori da ética assume em Kant a forma de uma fundamentação racional. Observem que é a segunda vez que nos vemos obrigados a falar da Razão em Kant. No primeiro caso nós a tratamos no contexto da metafísica. Agora nós a tratamos no contexto da ética. Isto poderia dar talvez a idéia errônea de que há algo similar a duas razões: uma teórica e a outra prática. Mas Kant não duvida da unidade da razão, muito menos de seu destino prático originário. Se a noção de a priori está presente, de modo central e decisivo, tanto no campo teórico quanto no prático, a situação da razão em relação à mesma é diferente em cada caso. No campo teórico, a razão, ao buscar a condição do condicionado, se via remetida à idéia de um absoluto o qual não podia determinar sem contradição. Devemos, pois, renunciar a um absoluto? De maneira alguma. O incondicionado que a razão alcançava, mas não podia determinar sem contradição no campo teórico, se impõe como um dado, como um fato irredutível no prático: é o absoluto do dever. A consciência do dever é um Faktum da razão.Eu me conheço como ser racional em primeira linha, porque eu me conheço como ser ético. Não pode haver dúvida alguma de que devo. Mas, novamente, por que devo? Qual é a fonte desta necessidade do dever? 3. O CAMINHO DA SOLUÇÃO Se na apresentação do problema kantiano fomos do campo teórico para o prático, na apresentação de sua solução temos que seguir a ordem inversa, indo do campo prático ao teórico. Fazendo assim, não obedecemos unicamente aos motivos da exposição, mas também à ordem cronológica e sistemática. 3.1. A solução do problema prático Por que devo? Tenho certeza de que vocês já se fizeram esta pergunta e, se não a fizeram a seus pais, pelo menos foram confrontados alguma vez com ela através de seus filhos. Talvez alguns de vocês tenham dado, em tais situações, respostas do tipo: “Porque sim” ou “Porque eu digo". Há outras respostas que não são menos comuns na vida cotidiana e que aparecem com igual assiduidade no pensamento filosófico, por exemplo, “Porque Deus quer assim”. É Deus quem determina o que é bom e o que é mau. No lugar de Deus, poderíamos colocar alguma outra coisa. O importante é que as respostas dadas à pergunta "por que devo?" ao longo da história da filosofia, de uma forma ou de outra, tendiam a colocar o princípio daquilo que devo fazer e querer em algo externo a mim. A resposta que Kant dará se encontra em uma outra direção. Ela diz: “devo” - porque sou um ser racional. Eu não preciso perguntar a ninguém o que devo nem tampouco porque devo, mas sim devo perguntar unicamente a mim em tanto ser racional. A fonte última do Dever não é outra coisa que a Razão. A moralidade é a auto legislação de um ser racional. A razão, enquanto razão prática, dita a sua própria lei. Ela não toma esta lei de nenhuma instância transcendente a ela, mas apenas de si mesma. A razão é, pois, a verdadeira fonte da objetividade prática. Porém o que acabo de dizer, é, meramente, uma parte da resposta, ainda que seja uma parte fundamental. Se a razão é a fonte das leis práticas, uma lei não é em si mesma um imperativo; ela não disse: “tu deves”. Admitindo, pois, que a razão seja a fonte da legalidade prática, ainda resta compreender porque essa legalidade se apresenta na forma do imperativo, ou seja, na forma de um “tu deves”. A resposta kantiana é, ao mesmo tempo conseqüente e surpreendente: na realidade, eu não “devo” porque sou um ser racional, mas sim porque, sendo um ser racional, não sou um ser total ou exclusivamente racional, mas também sensível. Um ser absolutamente racional, seguiria a lei ética de um modo espontâneo. Esta legalidade não seria para ele um Dever. Mas, para um ser que não é absolutamente racional, ou seja, que entra em contradição com a razão, a lei adquire o caráter de um imperativo. As noções da razão prática, da legalidade, da vontade, da autonomia e da liberdade estão no pensamento kantiano, intimamente vinculadas através de múltiplas relações recíprocas. O conceito de liberdade tem um sentido político, que é o mais conhecido, e um sentido metafísico. Em seu sentido metafísico, a forma mais usual de conceber este conceito é entender a liberdade como um livre arbítrio ou como a faculdade de fazer ou não fazer uma coisa. Agora, para entender Kant, é importante não ignorar a relação essencial que ele estabelece entre liberdade e legalidade. O ser livre não é aquele que age sem lei alguma,. mas aquele que impõe a si mesmo a sua própria lei. Fica claro que um ser livre é um ser racional e vice-versa. A vontade é um modo de causalidade próprio dos seres racionais. A liberdade é uma propriedade da vontade. O que é livre, ou não, é a vontade. A vontade é livre quando se autodetermina. Uma vontade livre é uma vontade autônoma. Vontade livre e vontade submetida às leis morais são, para Kant, a mesma coisa. A lei moral não é outra coisa que a legalidade de uma vontade livre. 250 Um ser racional é um ser ético e livre. Se eu sou um ser ético, então sou um ser livre. A verdadeira fonte do meu conhecimento da liberdade é a eticidade. Aquela liberdade, que se encontrava ameaçada no campo teórico, recebe a sua plena legitimação no prático; se devo, posso. 3.2. A solução do problema teórico A idéia da autolegislação ou espontaneidade, decisiva para Kant no campo prático, está também na base do caminho da solução do problema teórico. A virada que Kant opera na história da filosofia, tanto no campo ético quanto no campo teórico, remete a um ponto comum. Assim como os filósofos tinham fundado o bem e o mal numa instância transcendente, como por exemplo em Deus, também fizeram algo similar com nossa possibilidade de conhecer o universo. Assim como antes de Kant, a fundamentação da ética era teológica e/ou metafísica, também o era a fundamentação do conhecimento. Sem entrar em detalhes, pensem em Descartes que, num momento decisivo da sua filosofia, para descartar a hipótese do gênio maligno, apelou para a veracidade divina. Esta forma de proceder não é uma debilidade de momento, mas uma manifestação de um modo de pensamento que aborda o problema do fundamento último, remetendo à transcendência. Também na física de Descartes está presente este modo de proceder. A necessidade das suas leis era fundamentada pela metafísica e, em última instância, por Deus. Porém, assim como na ética, Kant não baseia o Dever em Deus ou em qualquer instância transcendente, mas na própria razão, ou seja, no sujeito prático, ele funda a possibilidade do conhecimento a priori no próprio sujeito cognoscente. A idéia chave, que orienta a solução do problema colocado na "Crítica da razão pura", é ilustrada por Kant através de uma comparação com Copérnico, que é denominada, pelo próprio Kant, inversão copernicana. Recordemos primeiramente qual foi a realização de Copérnico. Copérnico, não conseguindo explicar o movimento observável dos planetas, a partir do pressuposto de que a Terra estava no centro e o Sol girava em torno dela, inverteu a relação e colocou o Sol no centro e a Terra girando em torno dele. Do mesmo modo, disse Kant, se partirmos da suposição que o sujeito, no ato de conhecer, é totalmente passivo e limita-se a receber um objeto dado, que existe em si mesmo e é independente do ato de ser conhecido, então é impossível explicar como o conhecimento a priori é possível. Como pode um sujeito saber algo acerca de um objeto que é absolutamente independente dele? Voltando para a metáfora: se partirmos da suposição que o sujeito gira ao redor do objeto, então o conhecimento a priori não é possível. Pelo contrário, se o conhecimento a priori é possível, então devemos inverter o esquema e colocar o sujeito no centro, fazendo o objeto girar em torno. Deixando agora de lado a metáfora: a única forma de explicar a possibilidade do conhecimento a priori é admitir que o sujeito não é passivo no conhecimento do objeto, que não é meramente determinado por este, mas que é ativo, que ele, de alguma forma, pelo menos em parte, colabora na sua constituição. O princípio básico, que rege a explicação da possibilidade do conhecimento a priori, é que o sujeito só pode conhecer a priori aquilo que ele "produz" ou que depende de algum modo dele. Se isto é certo, então está claro que ele não pode conhecer a priori aquilo que ele não produz ou que não dependa dele. Dito de outra forma: o sujeito só pode conhecer a priori aquilo que, de uma forma ou de outra, depende do seu conhecimento e não ao contrário, aquilo que existe de forma absolutamente independente do seu conhecimento. Para exprimir em termos kantianos: o sujeito pode conhecer a priori unicamente os fenômenos, mas não as coisas em si. Uma coisa é a realidade tal como ela é e outra coisa é o modo como ela aparece diante de mim enquanto sujeito cognoscente. A realidade, tal como é em si mesma, é incognoscível. O que posso conhecer dela é o modo como ela aparece. O modo do seu aparecimento dependeránão só dela, mas de mim também. Sobre o que foi dito estamos agora em condições de entender porque o conhecimento a priori era possível na física e não na metafísica, ou seja, porque enquanto a física se ocupa unicamente com os fenômenos, a metafísica pretende ocupar-se com as coisas em si, com o absoluto. É a partir daí que podemos entender a origem das contradições da razão consigo mesma na metafísica: a razão cai em contradições porque, ao introduzir a idéia de incondicionado na análise regressiva das condições, trata o que é, tão somente, um fenômeno como se fosse uma coisa em si. A distinção entre fenômeno e coisa em si, que serve para explicar a idéia do conhecimento a priori, nos presta, também, um serviço inestimável na dissolução das contradições da razão consigo mesma na metafísica, o que dá uma prova indireta, porém decisiva da sua correção. Demos um grande passo adiante, ao dizer que o único conhecimento a priori é o dos fenômenos. A idéia de que só podemos conhecer a priori aquilo que, de certa forma, depende de nós, porque o produzimos, é intuitivamente satisfatória. Mas ela não resolve todos os nossos problemas. Conhecimento a priori é conhecimento universal e necessário. Dizer que existe conhecimento a priori do fenômeno é dizer que o conhecimento universal e necessário do fenômeno é possível ou que é possível necessidade e universalidade no fenômeno ou, mais precisamente, nas relações entre os fenômenos. Mas como? Já sabemos que esta necessidade não é a necessidade que nos ensina a lógica. E então? Levando o problema da “Crítica da razão pura” à sua menor dimensão, ele consiste na fundamentação de uma necessidade sintética de caráter universal. Agora, sabemos que a essa necessidade sintética de caráter universal estão submetidos os fenômenos (e só eles). O próximo passo de Kant será deduzir esta necessidade universal, a que os fenômenos estão submetidos, de uma outra necessidade, que lhes é inerente, meramente pelo fato de serem fenômenos. O fenômeno não existe em si, mas tão só para mim. Fenômenos não são outra coisa que minhas representações. Mas minhas representações, enquanto minhas, só existem na medida em que eu, de alguma forma, sou consciente delas ou, pelo menos, posso Ano V, nº 19 SISTEMA GEOCÊNTRICO — LOPES & LOPES 251 ser consciente delas. Eu devo poder ser consciente de todas as minhas representações, ou, como diz Kant: O eu penso deve poder acompanhar todas as minhas representações, porque do contrário não seriam minhas. Este princípio tem o nome pomposo de princípio da unidade originariamente sintética da apercepção. A idéia que está em sua base é, porém, muito simples: para que algo possa ser minha representação, eu tenho, pelo menos, que poder ser consciente sobre esse algo. Toda representação ou, o que é basicamente o mesmo, todo fenômeno está submetido a uma condição necessária, a saber, a condição de que eu posso ser consciente dele. A jogada de mestre de Kant consistirá em mostrar que, da relação necessária que todo fenômeno tem com uma consciência única, segue-se uma relação necessária entre os fenômenos. Kant denomina dedução transcendental o argumento que efetua esta demonstração. A dedução transcendental consiste basicamente em derivar uma necessidade de outra necessidade. A possibilidade de reunir todas as representações numa consciência é necessária e, ao mesmo tempo, universal. É aqui, pois, onde encontramos a origem última da necessidade e da universalidade, que estava na base da idéia de conhecimento a priori. 3.3. Coincidências e diferenças entre as soluções das questões práticas e teóricas Podemos observar uma identidade básica entre a fundamentação da moralidade e a fundamentação do conhecimento. Em ambos os casos, esta fundamentação não apela a um fator transcendente como, por exemplo, Deus e, em conseqüência, em ambos os casos ela não é metafísica. Num caso, a fundamentação leva à razão; no outro, leva ao princípio da unidade necessária da consciência. Não obstante, existe uma importante diferença. Esta fundamentação leva a uma necessidade de caráter estritamente intelectual no caso da ética, enquanto que leva a uma necessidade de caráter fenomênico no caso da ciência. Por isso, no primeiro caso, o conhecimento que obtenho vale para todo ser racional, por isso, no outro, o conhecimento que obtenho vale unicamente para um ser racional que, como eu, seja finito, ou seja, sensível. 4. O LUGAR DE KANT NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA Para terminar, gostaria de apresentar uma consideração de caráter geral que, não obstante, tem um grande poder ordenador. Eu distinguiria na história da filosofia, no que se refere à filosofia teórica, três grandes períodos; se deixarmos de lado o terceiro, que corresponde à filosofia contemporânea e com a qual vocês se ocuparão posteriormente, temos que: 1. Num primeiro momento, a pergunta essencial dos filósofos é pelo mundo, a disciplina filosófica fundamental é a metafísica e o conceito chave é o conceito de Ser. 2. Num segundo momento, os filósofos passam a perguntar por nosso conhecimento do mundo. A epistemologia, ou teoria do conhecimento, torna-se a disciplina filosófica fundamental e o conceito chave o de verdade. Em geral, os filósofos antigos e medievais devem ser considerados como pertencentes ao primeiro período, os modernos, como pertencentes ao segundo. Descartes é, sem dúvida, uma figura chave na virada do primeiro para o segundo período, ainda que, em certo sentido, permaneça no meio do caminho. É em Kant que encontramos, sem dúvida, a mais pura expressão deste segundo período. Mas a filosofia, desde suas origens, preocupa-se também com a praxis, com o modo pelo qual devemos nos conduzir, se levarmos isto em conta, então teremos que introduzir uma correção básica em nosso esquema geral. É certo que, no primeiro período, a disciplina fundamental, é a metafísica e, o conceito fundamental o de ser. Mas em vez de dizer que no segundo período a disciplina fundamental é a teoria do conhecimento e, o conceito fundamental, é o de verdade, diremos que a disciplina fundamental passa a ser a teoria da objetividade e o conceito fundamental, o conceito de validez. A verdadeira dimensão da virada introduzida por Kant na história da filosofia está justamente em tornar a filosofia teoria da objetividade no sentido indicado. Se no primeiro momento a filosofia se ocupa de modo prioritário com o objeto, num segundo momento ela se ocupa de modo prioritário com a objetividade ou, mais precisamente, com a fundamentação de aspirações de objetividade, isto é, de validade universal. Uma outra forma de expressar o dito poderia ser: com Kant, a filosofia torna-se filosofia transcendental. * * * * *
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