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Geografia: Ensino & Pesquisa, Santa Maria, v. 1 4, n. 1 , p. 85- 93, 2010 ISSN01031538 EVOLUÇÃO DA CARTOGRAFIA NO ENSINO DAGEOGRAFIA: UM OLHAR SOBRE OS CAMINHOS PERCORRIDOS¹ CARTOGRAPHY DEVELOPMENT IN GEOGRAPHY TEACHING: A GLANCE ON THE TRAVELED ROADS ¹ Artigo apresentado no 5º Seminário de Mestrado em Geografia- UFSM. Santa Maria, novembro de 2009 ² Mestranda do Programa de Pós Graduação em Geografia- UFSM. ³ Orientador, Prof. Dr do Programa de Pós Graduação em Geografia- UFSM. RESUMO A Cartografia, através da representação dos elementos espaciais, contribui para que os alunos aprendam a analisar o cotidiano geograficamente e a construir uma consciência espacial dos fatos e fenômenos, das relações sociais, culturais e políticas, a partir do senso comum, de conhecimentos socialmente produzidos ou grupos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem. Porém, torna-se necessário que o professor de Geografia, em seu âmbito escolar, inicie o estudo da alfabetização cartográfica através do espaço vivido dos alunos. Nesse sentido, esse artigo tem como objetivo a elucidação teórica da evolução da Cartografia na perspectiva da Geografia Escolar. Palavras Chaves: Geografia, Cartografia, Alfabetização Cartográfica. ABSTRACT Cartography, through the representation of spatial elements has contributed for students to learn how to analyze the quotidian geographically and to build up a spatial awareness of the fact and phenomena, social, cultural, and political relationships. It happens within the common sense and social produced knowledge or groups involved in the teaching learning process. However, it is necessary that the geography teacher, in the school environment, starts the study of cartographic through the space lived by the students, as well as the elements internalized through subjectivity. Thus, the following paper aimed to theoretically elucidate the evolution of cartography in the perspective of the Humanist/Scholar Geography. Keywords: Geography, Cartography, Cartography Literacy. SILVA, Vanessa Oliveira da ² CASSOL, Roberto ³ 86 Geografia: Ensino & Pesquisa ISSN 01031538 INTRODUÇÃO A ciência geográfica, em seu âmbito escolar, tem como objetivo trabalhar com os alunos a ‘leitura do mundo’ através da relação sociedade-natureza, sendo ele um produto histórico transformado ao longo do tempo. Fazer a leitura do mundo demanda uma série de fatores e isso só se torna possível quando proporcionamos momentos e condições onde o educando entenda essa relação através do seu espaço vivido. Deve-se então trabalhar com diferentes linguagens como forma de elaborar observações, registros, descrições e representações de aspectos da natureza, da paisagem e da cultura, o que proporcionará para o aluno um maior desenvolvimento da capacidade de análise, da consciência de seu papel no lugar e no mundo, tornando-o apto para exercitar a cidadania. O aluno pode contar com o auxílio dos mapas para que esse processo ocorra. Nesse sentido, a Cartografia permite fazer da localização e da espacialidade, referências para a leitura da paisagem e de seus movimentos. A Cartografia e sua linguagem devem ser estudadas desde o início da escolaridade, necessitando de uma alfabetização cartográfica, não apenas para o aluno aprender amanusear a ferramenta básica da Cartografia, os mapas, mas também desenvolver capacidades relativas à representação do espaço e a sua decodificação. Esse processo ocorre através do reconhecimento do seu entorno, iniciando com o espaço vivido até chegar a um nível de abstração. A Cartografia é responsável por um conhecimento que vem desenvolvendo-se desde os mais remotos tempos; nela é possível sintetizar as informações, conhecimentos e maneiras de trabalhar com a linguagem cartográfica. Na escola, esse procedimento ocorre por meio de situações através das quais os alunos percebam que a linguagem cartográfica é um sistema de símbolos que envolvem a proporcionalidade, uso de signos ordenados e técnicas de projeções. (FRANCISCHETTI, 2001 , p.10) Com base nesses pressupostos, o objetivo deste artigo é o de realizar um resgate teórico, cuja temática aborda a relação entre o saber acadêmico baseado na evolução da ciência geográfica e da Cartografia, para com o espaço escolar. Num primeiro momento será realizado um resgate da historicidade da ciência geográfica retomando momentos e condições que propiciaram o seu desenvolvimento, bem como seu principal meio de representação, a Cartografia. Em seguida, serão apresentadas as linhas seguidas pela Cartografia moderna associada aos movimentos de renovação da Geografia e por fim, serão abordadas as questões teóricas e metodológicas que embasaram o desenvolvimento de estudos da alfabetização cartográfica. EVOLUÇÃO DA CARTOGRAFIA E GEOGRAFIA: CAMINHOS PERCORRIDOS Desde os tempos antigos o homem busca localizar-se no espaço terrestre, fixar territórios, estabelecer limites, descobrir caminhos, entre outras atividades. A sua forma de reprodução e transmissão do conhecimento era feita através de desenhos ou da comunicação oral. Muitos registros comprovam que os mais diferentes povos e culturas nos legaram mapas e, a partir da análise dos mesmos, percebem-se as diferentes técnicas e materiais utilizados, a influência da religiosidade e, principalmente, a sua ligação com o poder e diferentes ideologias. Segundo Joly (1990), os mapas transmitem certa visão do planeta, inserem-se num determinado sistema de conhecimento e representam certa visão de mundo. Duarte (2002), afirma que os mapas eram muito rudimentares e confeccionados com as técnicas e materiais disponíveis. Mas era o começo de uma caminhada do que hoje conhecemos como Cartografia. Na concepção de Oliveira (1988 apud CASSOL, 1998), o desenvolvimento da Cartografia decorreu principalmente das grandes navegações oceânicas e em particular pela contribuição fornecida pela Escola de Sagres (formação de pilotos e cartógrafos, aperfeiçoamento das caravelas, do astrolábio e das cartas de navegação). Entretanto, o impulso definitivo ao desenvolvimento da Cartografia iniciou-se a partir de 1569, com a criação da projeção cilíndrica de Mercator, onde foi possível planificar, através de medidas matemáticas, o globo terrestre. A partir desse momento, os mapas não eram somente meras figuras representativas, mas sim, materializavam as novas descobertas, a evolução do conhecimento, a ciência e a técnica. Dos avanços decorrentes dos mapeamentos, a Cartografia passa a ter uma ligação direta com a ciência geográfica, isso se justifica, Uma vez que a Geografia é uma ciência que se preocupa com a organização do espaço, para ela o mapa é utilizado tanto para a investigação quanto para a 87 Geografia: Ensino & Pesquisa ISSN 01031538 constatação de seus dados. ACartografia e a Geografia e outras disciplinas como a geologia, biologia caminham paralelamente para que as informações colhidas sejam representadas de forma sistemática e, assim, se possa ter a compreensão “espacial” do fenômeno (ALMEIDA; PASSINI, 2002, p. 16). Segundo Castrogiovanni (2007), a Geografia ao longo de sua trajetória, foi se desvencilhando da filosofia, arte, da literatura, da emoção, da imaginação e se aproximando da objetividade do método de pensar científico. Suas bases epistemológicas foram pontuais e descontínuas. Ao longo da história, poucos geógrafos sentiram a necessidade de realizar uma densa reflexão sobre as bases teórico- metodológicas da Geografia, mas esse movimento toma sentido a partir da segundametade do século passado. É importante ressaltar que a Geografia inicia seus princípios conceituais e as idéias na antiguidade, com ascontribuições dos filósofos gregos, pautados nas observações, relatos e descrições de forma empírica e para com os conhecimentos matemáticos, importantes para a cartografia. O processo de sistematização ocorreu tardiamente, somente no século XVIII, pois pensar a Geografia como um conhecimento autônomo, particular, demandava certo número de condições históricas, que somente nesta época estarão suficientemente estruturadas. O conhecimento da extensão real do planeta, da geometria paramedir o espaço terrestre e o aprimoramento das técnicas da Cartografia, caracterizava-se em ser os instrumentos por excelência do Geógrafo, foram fatos determinantes para a sua estruturação como ciência. Na perspectiva de Moraes (1986), era necessário haver possibilidade de representação dos fenômenos observados e da localização dos territórios. Assim, a representação gráfica de modo padronizado e preciso, tornava-se um requisito da reflexão geográfica, além de ser fundamental para a navegação orientar-se, para poder calcular rotas e a localização correta dos portos. A Geografia, assim como as demais ciências, foi influenciada pelas transformações sociais, pois neste período histórico buscava-se um maior rigor científico e metodológico. Sendo a Geografia uma ciência de forma sistematizada, tem-se o surgimento da denominada Escola Tradicional que adotou uma postura reducionista 4 - mecanicista 5 . A sistematização da Geografia, sua colocação como ciência autônoma, foi em desdobramento das transformações profundas operadas na vida social, pela emergência do modo de produção capitalista. E mais, a Geografia foi, na verdade, um instrumento da etapa final deste processo de consolidação do capitalismo em determinados países da Europa. (MORAES, 1999, p.41 ) A Escola Tradicional caracteriza-se pelo período em que a ciência geográfica se consolida e se define baseada nas concepções de uma ciência em contato com a natureza e a humanidade. Estas concepções definem o caráter dual dessa ciência (física x humana), com método geral e regional. Dentre os principais autores teóricos que contribuíram para o seu desenvolvimento destacam-se os “fundadores” Ritter, Humboldt, Brun, e os modernos La Blache, Ratzel, Brunhes. Desde 1870, quando a Geografia tornou-se uma disciplina institucionalizada nas universidades européias, o ensino damesma esteve ligado, num primeiro momento, a necessidade pedagógica de construir a noção de pátria, ou o sentimento de nacionalidade. Os principais estudos da Geografia escolar estavam voltados para as questões físicas, as diferenciações das áreas e estudos regionais, pautadas sempre na análise descritiva. O uso dos mapas nas escolas e instituições superiores foi empregado para fins meramente ilustrativos e de localização. Por um longo período, os mapas elaborados com um maior rigor técnico de representação visavam apenas a definição dos contornos das novas terras descobertas, a representação topográfica, a orientação e a localização. Nesse período vários mapas editados em Atlas foram produzidos. O desenvolvimento da ciência geográfica propiciou para que novas formas de representação começassem a surgir, dentre elas os mapeamentos temáticos que visavam planificar dados qualitativos e quantitativos de um território estudado, como por exemplo, mapas geológicos, climáticos, de vegetação, entre outros. Esse fato contribuiu pra que a Geografia e a Cartografia se tornassem autônomas e aparentemente se separassem. CARTOGRAFIAMODERNA A Geografia e a Cartografia fundamentam-se no reconhecimento dos ‘movimentos’ e da reorganização do espaço como reflexo das relações de produção do pós- guerra. A sociedade moderna passa a ser caracterizada por novas formas produtivas que exigem um conteúdo importante de ciência e técnica, assim como de 4 Significa reduzir o fenômeno em suas partes constitutivas, analisando-as independentemente uma das outras. Castrogiovanni (2007, p.36) 5 Relação Sociedade/ Natureza. Busca entender os fenômenos a partir das relações de causa e efeito (CASTROGIOVANNI, loc. Sit.). 88 Geografia: Ensino & Pesquisa ISSN 01031538 informações amplamente veiculadas pelos novos meios de comunicação. Na verdade, basta que tenha mudado a tecnologia para que a estrutura social também mude e, com ambas, a própria teoria. Uma mudança de paradigma corresponde a uma mudança completa na visão do mundo, que o novo paradigma deve representar. Em verdade, não é a nossa visão do mundo que mudou; o que mudou foi o próprio mundo. A história humana é marcada por saltos quantitativos e qualitativos, que significam uma nova combinação de técnicas, uma nova combinação de forças produtivas e, em conseqüência, um novo quadro para as relações sociais (SANTOS, 1978, p. 159). Os desenvolvimentos da evolução da sociedade e da ciência geraram diferenças epistemológicas na Geografia onde é retomado o positivismo, pautado na necessidade de se fazer uma ciência moderna, propiciando a criação de uma nova escola denominada Geografia Quantitativa ou Nova Geografia, e em contraponto, prioriza-se o avanço do marxismo e da preocupação com os problemas sociais emergentes. Após a Segunda Guerra Mundial, na década de 50 e 60, iniciam-se publicações de autores criando uma nova corrente no pensamento geográfico, denominada Geografia Quantitativa. Conforme Camargo; Reis Junior (2007, p. 93) analisam, a partir desse momento declarações passaram a ser comuns, solicitando a quantificação e a matematização em áreas de interesse da Geografia, atacando, por conseguinte, os sistemas explicativos de até então. Os trabalhos de campo foram dando lugar a um outro tipo de manipulação de informações, extraídas agora por meio de técnicas mais sofisticadas e em laboratório. Das técnicas utilizadas por essa escola, destaca-se a quantificação dos dados, criação de modelos, os Sistema de Informações Geográficas (SIG), e em específico as que contribuem para o armazenamento de dados, facilitando as pesquisas geográficas. Também há neste momento, em nível internacional, a estruturação da Cartografia como campo específico do conhecimento requerendo para si o domínio de todas as etapas do processo cartográfico, desde a confecção até o estudo dos usos do mapa (GIRARDI, 2000, p.42). Duarte (2002) afirma que durante o 20° Congresso Internacional de Geografia, realizado em Londres em 1964, a Associação Cartográfica Internacional definiu a Cartografia como o conjunto de estudos e das operações científicas, artísticas e técnicas que intervêm a partir dos resultados de observação direta ou da exploração de uma documentação, em vista da elaboração e do estabelecimento de mapas, planos e outros meios de expressão, bem como sua utilização. Esse evento pode ser citado como o marco inicial para o estabelecimento da Cartografia como uma área independente e, a partir de então, vários estudos são realizados tanto para a produção técnica, quanto para as formas de comunicação cartográfica. Com o desenvolvimento da informática, a ciência cartográfica passa a se dedicar à automação do desenho, ou seja, significa dizer que a Cartografia analógica das técnicas manuais passa a apoiar-se softwares e hardwares cada vez mais sofisticados integrando as bases de informação alfa-numérica com a informação gráfica de determinado espaço, através dos Sistemas de Informação Geogrfáficas (SIGs) e o Sensoriamento Remoto, correspondendo à Cartografia digital. Loch (2006) coaduna-se com essas reflexões quando ressalta que a Cartografia digital popularizou-se através da disponibilização automática de métodos de mapeamentos e, mais recentemente,a possibilidade de interatividade do cartógrafo/usuário com os dados para a visualização instantânea na forma de mapas. Após a retomada histórica, deve-se salientar que o desenvolvimento tecnológico causou um grande impacto e tornou-se de extrema importância como ferramentas para os estudos da ciência geográfica e principalmente para o desenvolvimento da Cartografia. No caso das atividades de mapeamento, observa-se que os processos convencionais foram profundamente alterados pelas novas técnicas de trabalho. Realizavam- se, portanto, levantamentos in loco e elaboravam-se representações gráficas sob a forma de desenhos, estabelecendo um fluxo paisagem ? representação mental ? representação gráfica. Atualmente, este conjunto de procedimentos passa pela aquisição digital de dados (imagens orbitais, medições, etc.), pelo processamento em computador e pela impressão gráfica final, estabelecendo um fluxo paisagem ? modelo digital/representação mental ? modelo digital/representação gráfica. (SOUZA, 2003, p. 67) Novas linhas teóricas de estudos surgem: a Cartografia Digital, Comunicação da Informação Cartográfica, Modelização Cartográfica, Semiologia Gráfica e Cartografia da Cognição, commaior sofisticação tecnológica, porém com menor vinculação a um método geográfico, conforme observa-se na Figura 1. Em seu âmbito escolar, o ensino da Geografia priorizou as análises positivistas, como o estudo da Terra, seus aspectos físicos, culturais, econômicos e políticos. O mapa passa a ser trabalhado como figura ilustrativa nos livros didáticos, para fins de memorização e localização dos lugares através dos conteúdos ensinados. 89 Geografia: Ensino & Pesquisa ISSN 01031538 A partir da segunda metade do século XX surgem diferentes movimentos. Entre tais movimentos há aquele que foi denominado de Geografia Critica. “Ela adere ao materialismo histórico como paradigma e incorpora a dialética como método de análise espacial” (CASTROGIOVANNI, 2007, p. 39). Umas das principais contribuições teóricas é a nova visão sobre o espaço geográfico, sendo ele um espaço relativo com a conotação de totalidade com o sujeito sendo parte integrante da (re) construção e (re) organização do espaço geográfico. No ano de 1978 a Geografia crítica tem como marco inicial no Brasil, o Encontro Nacional de Geógrafos Brasileiros, realizados em Fortaleza, onde ocorreram discussões inovadoras para o estudo com mudanças de métodos e teorias. Apesar das contribuições de Milton Santos quando enfatiza da importância da tecnologia para a Geografia (meio técnico-científico-informacional), nesse período criticou-se o uso exacerbado das técnicas, o que ocasionou a negligência do uso dos mapas como técnica de análise espacial, considerando-o como mero recurso para o registro desse espaço estático e absoluto. Porém, neste mesmo período destacaram-se autores como Bertin, Joly, Martinelli, que contribuíram significativamente para uma mudança paradigmática na Cartografia a qual passou a ser definida não somente como ciência e técnica, mas como uma arte. (...) a fim de representar um território real em um plano, a Cartografia utiliza-se da arte e da ciência. A arte facilita a inserção e a visualização das informações, enquanto que a ciência é a responsável pela coleta, pela análise e pela justificativa da inserção dessas informações, assim como pelos cálculos técnicos necessários para que a representação tenha o mínimo possível de distorções do real. (PISSINATI; ARCHELA, 2007, p. 175) A partir de então, observou-se um maior desenvolvimento da Cartografia temática abordada como um instrumento de expressão dos resultados adquiridos pela Geografia. Sua preocupação é a elaboração e uso de mapeamentos temáticos abrangendo a coleta, análise a interpretação e representação das informações sobre uma carta base. A Cartografia Temática possui importância fundamental, pois permite representar as formas e processos que moldam o espaço geográfico. Na utilização dos mapas estimula-se uma operação mental; há uma interação entre o mapa, como mero produto do concreto e os processos mentais do usuário. Esse processo não se limita somente à percepção imediata dos estímulos, envolve também a memória, a reflexão, a motivação e a atenção. (MARTINELLI, 1991 , p.38) Joly (1990, p.74), considera que o objetivo dos mapas temáticos é o de fornecer, com o auxilio dos símbolos qualitativos e/ou quantitativos dispostos sobre uma base de referencia, geralmente extraída dos mapas topográficos ou dos mapas e conjunto, uma representação convencional dos fenômenos localizáveis de qualquer natureza e de suas correlações. Em meio acadêmico, as teorias e os conceitos da Geografia crítica tiveram uma grande aceitação e disseminação, porém, merecem destaque as palavras de Kaercher (2002) quando afirma que a concepção de Geografia crítica não chegou às escolas, ou chegou muito pouco, muitas vezes só trocando ‘rótulos e slogans’, mas continuando a produzir verdades cristalizadas e, o que é pior, mantendo a Geografia como algo chato e distante do cotidiano dos alunos. O mapa, como recurso didático continua sendo pouco usado em sala de aula, e quando ocorre, restringe-se somente ao uso do livro didático. Figura 1 : Linhas teóricas. Fonte: Girardi (2000). Org.: Silva, V. O. da, 2009. 90 Geografia: Ensino & Pesquisa ISSN 01031538 GEOGRAFIA HUMANISTA E A ALFABETIZAÇÃO CARTOGRÁFICA Apesar do desenvolvimento da Cartografia, enquanto ciência e técnica, ao longo das escolas da Geografia, uma metodologia de ensino para trabalhar com o mapa como recurso didático só irá se desenvolver na Geografia Humanista. Porém, torna-se necessário contextualizar essa tendência geográfica. Iniciaremos com os relatos e experiências apresentadas durante o I Colóquio Brasileiro de História do Pensamento Geográfico, por Lívia de Oliveira (2008, p.3) quando afirma que A valorização das ciências exatas, o exagero, e abuso da quantificação, e as cegas e conflitantes ideologias nos desembarcaram em ‘um admirável mundo novo’, que não temos soluções até o momento e estamos perplexos com esta realidade que é muito mais real, do que virtual. A nossa crise é moral, perdemos os valores e, todavia, não equacionamos ainda, como enfrentar essa vicissitude que nos apresenta neste século. Essa reflexão justifica o retorno ao humanismo que teve início também após a Segunda Guerra, e está se fundamentando na ciência geográfica, apesar de suas diversas correntes de pensamento. Nessa tendência, o espaço é considerado como um resultado concreto de um processo histórico, possuindo uma dimensão real e física, ou uma construção simbólica que associa sentidos e idéias, passando a ser visto sob diferentes ângulos: dos valores, da alienação, da ‘distância existencial’, do comportamento e do mundo vivido. (GOMES, 1996) O enfoque humanista não se contenta em estudar o homem que raciocina, mas também este que experimenta sentimentos, que reage, que cria. Toda divisão rígida entre o mundo objetivo, exterior e o mundo subjetivo, interior é rejeitada já que o mundo encontra sua coerência nos conceitos organizadores e que ele constitui uma extensão de nossa consciência; estando o sujeito implicado no processo de conhecimento, não pode haver separação entre fatos e valores. Descrever e compreender, insistindo sobre a empatia com os homens, tais são os objetivos principais da Geografia humanista (MESQUITA, 1994, p.95) A Geografia humanista está pautada em questões epistemológicas, psicológicas, entológicas e fenomenológicas, entendendo que o sujeito apresenta em suas estruturas subjetividades quese constrói ao longo do tempo, que se apresentam antes mesmo da interpretação dos signos e que retêm, em sua essência um ritmo próprio, ligado principalmente a origem do conhecimento de cada um. Nessa corrente, o método de estudo parte da reflexão, da observação e da experiência, pautados na fenomenologia, uma abordagem filosófica, influenciando o pensamento de alguns geógrafos que incorporam em seus estudos a dimensão psicológica. Fenomenologia é a descrição de todos os fenômenos ou essências que aparecem à consciência e que são constituídas pela própria consciência, isto é, são as significações de todas as realidades, sejam estas, naturais, materiais, ideais ou culturais (SUERTEGARAY, 2005, p. 30). Esses estudos tiveram início nos Estados Unidos, a partir dos anos 1960, quando os geógrafos Yi-Fu Tuan, Anne Buttimer, Davi Lowenthal, David Ley, Edward Relph, entre outros, passaram a publicar e refletir de uma nova maneira sobre as relações humanas com o meio ambiente. No Brasil, iniciaram no final dos anos 70 e início da década de 80, com os estudos pioneiros de percepção do meio ambiente e da Cartografia Escolar, sendo precursora Lívia de Oliveira, que elaborou tese sobre o estudo metodológico e cognitivo do mapa tendo como embasamento teórico os estudos de Jean Piaget sobre o desenvolvimento psicogenético na infância. A partir desse estudo, crescem no Brasil pesquisas sobre o desenvolvimento da representação gráfica e cartográfica na criança. Essas reflexões abrangem a área educacional, pois como preconiza Castrogiovanni (2006), o ensino de Geografia conjuga o conhecimento temático, no caso a alfabetização cartográfica, com a prática pedagógica. Esta por sua vez está ancorada em pressupostos epidemiológicos convergentes, e uma das questões centrais é como se constrói o conhecimento, conforme observamos na Figura 2. A Cartografia escolar e a alfabetização cartográfica partem de uma proposta de transição didática da Cartografia básica e temática para usuários das diferentes modalidades de ensino, em que se aborde o mapa do ponto de vistametodológico e cognitivo. Almeida; Passini (2002) consideram que se devem propor situações onde os alunos vivenciem as funções do cartógrafo e do geógrafo, caminho este necessário para o aluno transitar entre a fase mais elementar para o processo mais avançado, tornando-se um leitor de mapas eficiente. 91 Geografia: Ensino & Pesquisa ISSN 01031538 Uma metodologia do mapa não pode se prender unicamente ao processo perceptivo; também é preciso compreender e explicar o processo representativo, ou seja, é necessário que o mapa, que é uma representação espacial, seja abordado de um ângulo que se permita explicar a percepção e a representação da realidade geográfica como parte de um conjunto maior, que é o próprio pensamento do sujeito. O processo de mapear não pode ser desenvolver isoladamente, mas deve, sim, ser solidário com todo desenvolvimento mental do indivíduo. (OLIVEIRA, 2008, p.17) De acordo com a concepção de Souza; Katuta (2001), para ler mapas é necessário que se desenvolva a habilidade de codificação através de uma série de conceitos, informações, dados, categorias de análise e, o mais importante, uma lógica de entendimento do mundo ou estrutura de pensamento, para que se possa entender determinadas realidades contraditórias. Assim é papel fundamental da escola e do professor de Geografia preparar o aluno para compreender a organização espacial da sociedade, o que exige o conhecimento das técnicas e instrumentos necessários à representação gráfica. Entendendo que o conhecimento e o comportamento são resultados de processos de construções subjetivas, a alfabetização deve ser subjetiva, ou seja, ela só se torna efetiva no momento em que forem garantidos contextos que possibilitem a busca pela compreensão das subjetividades que a leitura do mundo e a representação dele requerem do aluno (FIGURA3). Figura 2: Cartografia escolar Fonte: Almeida (2007) Org.: Silva, V. O. da, 2009. Figura 3: Da Geografia à representação do espaço geográfico Fonte: Almeida (2007) Org.: Silva, V. O. da, 2009. 92 Geografia: Ensino & Pesquisa ISSN 01031538 Aalfabetização cartográfica deve ser entendida através da noção do espaço que o aluno constrói, ou seja, para que o aluno possa dar significados aos significantes deve viver o papel de codificador antes de ser decodificador, considerando os aspectos da função simbólica, o conhecimento da utilização do símbolo e vivenciar ou abstrair o espaço a ser representado. Na representação cartográfica, trabalha-se com a articulação entre conteúdo e forma, utilizando-se da linguagem cartográfica para que se construam conhecimentos, conceitos e valores. Os conceitos cartográficos baseiam-se na percepção visual, nos sistemas onde os sinais acumulam significados, tornando mais acessíveis os dados nela contidos, possibilitando atingir uma de suas finalidades básicas, com meio de comunicação. (FRANCISCHETT, 2001 , p. 7) Porém, deve-se ter claro que o uso desse meio de comunicação deve ser subordinado a um tema de estudo ou a um determinado fenômeno. (Souza; Katuta, 2000) Ler mapas, portanto, significa dominar o sistema semiótico, a linguagem cartográfica. E preparar o aluno para essa leitura deve passar por preocupações metodológicas tão sérias quanto a de ensinar a ler e a escrever, contar e fazer cálculos matemáticos. (ALMEIDA; PASSINI, 1989, p.15) Neste sentido, o processo de alfabetização cartográfica deve iniciar a partir da realidade e percepção própria do aluno, estando o professor atento para as capacidades de cada idade e sua experiências pessoais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Desde que surgiu como ciência, e ao longo dos anos, durante a escola tradicional e no período denominado renovação da Geografia, em que há a divisão entre as duas escolas, a Nova Geografia e Geografia Crítica, e até mesmo na Geografia Humanista, há intensa utilização da Cartografia, mas de forma bastante diferenciada. Atualmente a Cartografia pode ser entendida como uma linguagem visual submetida às leis fisiológicas da percepção da imagem, pois exprime através do emprego de signos a comunicação com outrem. Os elementos representados cartograficamente, constituem-se numa forma dialógica, onde o mapeador transmite no mapa, através de um modelo conceitual, as relações espaciais ocorridas no mundo real. Neste sentido, trabalhar com a Cartografia e a alfabetização cartográfica demanda o conhecimento das questões epistemológicas, da visão da realidade, que parte tanto do mapeador, quanto do usuário do mapa. Esta deve ser a questão central do professor, além da busca permanente por aliar a teoria e a prática. Para que o aluno consiga obter uma boa alfabetização cartográfica, três aspectos devem ser considerados: a) símbolos cartográficos: devem ser transmitidos para o aluno através do alfabeto cartográfico, ou seja, os signos e cores representados por meio do ponto, da linha e da área. b) o conhecimento da utilização do símbolo: o aluno deve transpor/representar elementos por ele observados através da percepção da realidade. Por exemplo, minha casa (ponto), a escola (ponto), o caminho percorrido de casa até a escola (linha), o bairro (área), a montanha (ponto), a estrada (linha) e a lagoa (área). Nesse processo, cabe ao professor contextualizar as noções básicas da alfabetização cartográfica, como visão oblíqua, visão vertical, imagem tridimensional e a imagem bidimensional, a construção da noção de legenda, a proporção de escala, a lateralidade, referências e a orientação espacial. c) vivenciar e abstrair oespaço a ser representado: o professor deve trabalhar de acordo com o nível de desenvolvimento cognitivo do aluno, baseado em seus conhecimentos previamente adquiridos, e sua visão de mundo. Essa etapa perpassa pela questão teórica e metodológica adotada pelo professor. A partir de situações em que compartilhem e explicitem seus conhecimentos, o professor pode criar outras, nas quais os alunos esquematizem e ampliem suas idéias de distância, direção e orientação. Para isso, nada melhor que aproveitar as experiências práticas dos alunos que dominam e vivenciam essas situações em seu cotidiano. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Rosângela Doin de (Org.). Cartografia Escolar. 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