Buscar

a logica do galinheiro - heleith saffioti

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 10 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 10 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 10 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU A LÓGICA DO GALINHEIRO
Heleieth I. B. Saffioti
DO GALINHEIRO
Um galinheiro sempre se organiza hierarquicamente, isto é, há nele uma "ordem das bicadas". Essa hierarquia garantirá sempre o maior poder para o galo. Pensando-se em um galinheiro com dez galinhas e um galo, a "ordem das bicadas" não apenas permite ao galo a posse sexual de todas as galinhas, como também lhe assegura o direito de bicá-las todas, isto é, praticar violência.
Uma das galinhas, a número 1, ou a “favorita”, como se diz quando se trata de um harém (um homem e várias mulheres), é bicada pelo galo, mas desfruta do direito de bicar as outras nove. A número 2 é bicada pelo galo e pela galinha número 1, podendo bicar as outras oito. A número 3 é bicada pelo galo e pelas galinhas números 1 e 2, bicando as demais, e assim sucessivamente. A galinha número 10, a última, é a que mais sofre, pois é bicada pelo galo e por todas as demais galinhas, não podendo bicar nenhuma. Assim, a hierarquia começa no galo e termina na 10ª galinha. O galo é o mais poderoso, detendo as galinhas de número 1 ao 9 diferentes parcelas de poder, estando a 10ª excluída dessa possibilidade. A última na hierarquia poderia até ser comparada com as pessoas que moram nos ruas, não tendo o que comer nem direito algum. Trata-se dos excluídos do mercado do desenvolvimento, enfim, excluídos dos direitos humanos mais elementares.
Dessa forma, um galinheiro é estruturado segundo uma escala de poder. No exemplo figurado foi estabelecida uma "ordem das bicadas", que pode ser muito duradoura, mas que pode, também, sofrer transformações. Se for introduzido um novo galo nesse terreiro, o galo número 1 fará tudo para manter seu poder no território. Os dois galos podem brigar até que um deles morra. Nesse caso, o sobrevivente torna-se "dono" do terreiro, dominando todas as galinhas. Mas pode ocorrer um empate na luta, quando, então, os galos dividem em dois o território original. Cada galo manda em um deles.
O terreiro dos galos corresponde a um espaço físico mais as galinhas sob seu domínio, e não pode ser invadido pelo outro galo. Caso isso aconteça, trava-se novamente uma luta entre ambos, a fim de se redefinirem os limites do terreiro de cada um. O território de cada galo é demarcado geograficamente. Desse modo, não se estabelece um vínculo entre as galinhas e o galo, mas entre este e as galinhas de seu terreiro. Se uma galinha fugir, o galo não a segue, pois ela deixa de pertencer ao território dele.
Esse fato permite a verificação de uma grande diferença entre os galináceos e os seres humanos: quando há uma separação, o homem - muitas vezes inconformado com a perda de sua amada ou de seu objeto de dominação - passa a perseguir a mulher, ameaçando-a de morte, caso ela não concorde em restabelecer a relação marital e, não raro, comete esse homicídio. Isso significa que, embora o casamento formal tenha sido desfeito, a relação continua existindo para o homem, pelo menos simbolicamente. A grande diferença entre o galinheiro e a sociedade, entre os animais e o ser humano, reside na capacidade humana de simbolizar. Por construir cultura, elemento ausente nas sociedades animais, o ser humano atribui significado a suas ações e às dos outros, assim como aos objetos e aos fatos. Em virtude disso, o macho da espécie humana estabelece não apenas seu território geográfico, mas também um território simbólico no qual reina soberano sobre mulheres, crianças, adolescentes e idosos. O homem é socialmente poderoso, e essas outras categorias são frágeis. Isso é fruto do processo cultural de simbolização.
AS SOCIEDADES HUMANAS E SEUS TERRITÓRIOS SIMBÓLICOS
Os seres humanos também organizam a sociedade hierarquicamente. Em virtude disso pode-se dizer que também há uma "ordem das bicadas" socialmente construída, isto é, convencional, não-natural. Sua construção é muito mais complexa do que a existente entre os galináceos. Nas sociedades humanas não há um único eixo de hierarquização, como no galinheiro. Socialmente, são construídas várias gramáticas (conjunto de regras) para reger o comportamento de homens e mulheres, de brancos e negros, de ricos e pobres, de crianças, adultos e velhos, das pessoas consideradas normais e daquelas rotuladas como loucas etc. As três gramáticas principais são:
1. A gramática sexual ou de gênero, que regula as relações entre homens e mulheres, as relações entre homens e as relações entre mulheres, especificando as condutas socialmente aceitáveis quanto ao sexo. O gênero é uma construção social que define o ser mulher e o ser homem. É das noções de mulher e de homem que nascem as normas que permitem a transformação de um bebê em um ser feminino ou masculino. O sexo anatômico constitui uma referência estatística, mas nada impede que um bebê com genitália de fêmea seja educado como homem e vice-versa.
2. A de raça/etnia, que define as relações, por exemplo, entre brancos e negros, determinando que estes obedeçam àqueles. Brancos e negros pertencem a raças diferentes, que são socialmente hierarquizadas. Os negros que vieram da África para o Brasil pertencem a etnias distintas. Nesse caso, há várias etnias existentes no interior da raça negra. Mas pode ocorrer o oposto. Por exemplo, os judeus constituem uma etnia, no seio da qual há brancos de olhos claros e negros de cabelo carapinha.
3. A de classe social, cujas leis exigem comportamentos distintos dos pobres e dos ricos. Estes, para se manterem no poder, precisam dominar/explorar os pobres. O processo de dominação/exploração faz parte integrante da divisão da sociedade em classes. A reprodução biológica e social se dá segundo a classe, isto é, a classe dos ricos se reproduz enquanto classe rica, a dos pobres, enquanto classe pobre.
Dentre as outras gramáticas, que poderiam ser chamadas de secundárias, está a de idade, que rege as relações entre crianças, adolescentes e idosos, de um lado, e adultos, de outro. Ao adulto, a sociedade confere poderem suas relações com menores de 18 anos, e também com as pessoas que, em razão de sua idade avançada, são excluídas do processo decisório.
Uma grande diferença entre as três primeiras gramáticas principais e esta, secundária, que regula as relações entre distintas gerações reside no fato de que o adulto domina apenas transitoriamente menores e idosos. Da mesma maneira como já foi criança e adolescente e, portanto, dominado por adultos, ficará velho e, conseqüentemente, submisso àqueles em quem mandou, que já deixaram de ser menores. Dada sua transitoriedade, a dominação dos adultos sobre pessoas de outras faixas etárias é aqui considerada secundária. Todavia, ela tem sua importância e deve ser levada em conta num trabalho que focaliza a violência doméstica.
Embora não seja fácil, é possível pensar em uma única "ordem das bicadas", combinando-se os quatro eixos normatizadores aqui especificados. As pessoas mais poderosas são aquelas situadas no topo das quatro hierarquias: homens brancos, ricos e adultos. Em segundo e terceiro lugares vêm ou homens negros, sem muito poder econômico e adultos, ou mulheres brancas, economicamente remediadas e adultas. Essas duas categorias não ocupam lugares fixos; trocam de posição de acordo com as circunstâncias. Em quarto lugar vêm as mulheres negras, pobres, geralmente, e adultas. Em quinto, vêm os menores de idade, que devem obedecer aos adultos. Dentre estes há ainda outra hierarquia: os meninos dominam as meninas. Essa dominação se torna mais aguda quando o garoto é branco e a garota, negra.
Assim, considerando apenas uma hierarquia, integrada por quatro escalas de poder, ou resultante de quatro gramáticas sociais, conclui-se que, na fase adulta da vida, a mulher negra viria em último lugar; considerando todas as hierarquias, conclui-se que, sobre a menina negra, pesariam as mais agudas discriminações. Fazer um esforço para refletir conjuntamente sobre todas as hierarquias é extremamente importante para se analisarem as relações de violência doméstica e no seio dafamília.
VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR
A família é constituída por parentes consangüíneos e/ou afins: consangüíneos são aqueles que têm o mesmo sangue; afins são os que se tornam parentes pela via do casamento. Quando uma mulher e um homem se casam, ambos ganham cunhados, sogros, sobrinhos, primos, seus parentes por afinidade. Atualmente, sobretudo nas grandes cidades, as famílias tendem a ser nucleares, ou seja, a se compor do casal e de seus filhos. As famílias extensas, que reúnem em um mesmo domicílio três gerações e/ou parentes colaterais, têm sofrido acentuada redução. Há, por conseguinte, no mínimo, duas noções de família: a que reúne parentes em um mesmo domicílio, geralmente a família nuclear, mas eventualmente a extensa; e a família em sentido amplo, isto é, o grupo de parentesco, ocupando vários domicílios.
A família é um grupo de reprodução biológica e social. Não basta que os casais tenham seus filhos. É preciso cria-los, ensinando-os a desempenhar os papéis sociais específicos de cada idade, de cada gênero (masculino/feminino), de cada raça/etnia, de cada classe social. Esse processo, que se chama socialização, obedece a várias gramáticas, além das que estão sendo consideradas aqui. Socializar significa cuidar com afeto, mas também reprimir. Assim, na família não se desenvolve somente o amor, mas também o ódio. A sociedade brasileira permite que se apliquem castigos físicos moderados aos filhos. Todavia, há pais e mães que extrapolam esses limites, espancando duramente as crianças, abusando sexualmente delas (em geral, os agressores são homens) e até matando-as. Há, dessa forma, uma violência intrafamiliar, que se desenrola entre parentes.
Embora esses parentes não precisem necessariamente viver no mesmo domicílio para que se caracterize a violência em família, a probabilidade de ocorrências violentas é maior quando eles habitam sob o mesmo teto, convivendo cotidianamente. O parentesco é determinado por convenções sociais. Isso significa que ele se insere no terreno simbólico: a cada pessoa se atribui uma posição num esquema de significados, que é o parentesco.
A família costuma ser chefiada pelo homem. No Brasil, a mulher desempenha a função de chefe em cerca de um quinto das famílias. Constituem número pequeno as famílias chefiadas por mulher que são biparen tais, isto é, com mãe e pai presentes. A maioria é mono-parental, estando presente só a mulher. Os números se invertem quando se trata de família chefiada por homem: a maioria é biparental, tendo mãe e pai. Pesquisa realizada em 1990 pelo Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE) revelou que 17,3 por cento das famílias da região metropolitana de São Paulo são chefiadas por mulheres. Deste total, 66,2 por cento são monoparentais. Atingem 82,7 por cento as famílias chefiadas por homens, mas deste total tão-somente 1,2 por cento são monoparentais. Isso significa que, em geral, quando o homem chefia a família, dispõe de ampla retaguarda: ou a mulher trabalha fora, ajudando no orçamento doméstico, ou cuida da casa e dos filhos, ou ainda desempenha as duas jornadas de trabalho. No caso da maioria das famílias com chefia feminina, a mulher deve ser também o "homem da casa", na medida em que está sozinha com os filhos. Como as mulheres ganham, em média, a metade do que recebem os homens, as famílias chefiadas por mulheres são, em geral, as mais pobres.
Quando o homem é o chefe da família, é também, de fato, seu amo e senhor, mandando e desmandando na mulher e nos filhos. É muito alta a freqüência de relações violentas entre o chefe da família e sua mulher e filhos, crianças e adolescentes. Obviamente, o homem, por ter mais força física, e também por ter sua agressividade estimulada e aplaudida pela sociedade, sai vitorioso nas brigas familiares.
Não apenas o homem pratica violência intrafamiliar. Sobretudo em sua ausência, a mulher se torna todo-poderosa em relação a seus filhos, cometendo numerosos atos de violência contra as crianças. Na ausência do chefe da família, a mulher assume seu lugar, apropriando-se do poder que cabe àquele, para desempenhar a tarefa de socializar a geração mais jovem, atribuída, na esmagadora maioria das sociedades, às mães.
Ainda que a mulher perpetre violências contra seus filhos, o homem é o maior agressor físico, pois suas vítimas não são somente seus filhos, mas também sua mulher. Quanto às agressões sexuais, em cada cem ocorrências tão-somente de uma a três são cometidas por mulheres.
A mãe, ainda que puna fisicamente os seus filhos, ameaça-os, quase sempre, com a autoridade/violência paterna, porquanto é o pai o detentor reconhecido do maior poder. Mesmo que a mãe não bata na criança é freqüente a presença da ameaça, expressa na frase: "Quando seu pai chegar, contarei tudo para ele". Essa ameaça, expressa verbalmente para intimidar as crianças, paira também sobre a mulher. Embora as leis brasileiras proíbam o marido-pai de infligir maus-tratos a sua esposa/companheira e a seus filhos, os homens desfrutam de fato desse poder, na medida em que quase nunca são punidos. Em decorrência de sua menor força física e da tolerância da sociedade em relação à violência masculina, a mulher tende a se especializar na violência verbal. Há mulheres capazes de torturar emocionalmente seus maridos/companheiros, todos os dias, usando sua língua afiada. Essa atitude não impede que a mulher responda á violência física do homem com outra violência física; isso ocorre com certa freqüência. Todavia, exceto em casos excepcionais, a mulher sai perdedora. A idéia que se deseja firmar aqui é a de que não existe vítima passiva. Esta sempre reage, seja física, seja verbalmente.
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Esse tipo de violência é possível graças ao estabelecimento de um território físico e de um território simbólico, nos quais o homem detém praticamente domínio total. Seu território geográfico é constituído pelo espaço do domicílio. Todas as pessoas que vivem sob o mesmo teto, vinculadas ou não por laços de parentesco ao chefe do local, devem-lhe obediência. Desta sorte, não se trata, para o homem, de ter subjugados apenas mulher, filhos e outros parentes que eventualmente morem no mesmo domicílio. Agregados de forma geral devem obediência àquele senhor. Mais do que isso, até pessoas assalariadas estão sujeitas a essa condição. É o caso da empregada doméstica que, contratada para realizar os serviços da casa, é, muitas vezes, obrigada a prestar favores sexuais ao chefe do domicílio.
Se a violência doméstica extrapola, por um lado, os limites do grupo familiar, por outro, também extravasa o espaço da residência. Não é raro que o marido vá esperar sua mulher quando ela sai do trabalho para lhe aplicar um exemplar castigo, surrando-a diante de seus colegas. Assaltos sexuais do pai contra a filha podem perdurar mesmo depois do afastamento da garota de seu domicílio, se ele conseguir driblar a vigilância e obter acesso a ela.
A violência doméstica, portanto, não se limita à família, nem às quatro paredes do domicílio. Entretanto, a maioria das ocorrências de violência doméstica ou se dá no domicílio da vítima, ou no da vítima e do agressor. Em número não desprezível de casos, depois de sofrer vários espancamentos por parte do marido/companheiro, a mulher decide separar-se dele, passando a residir em outra casa. Numerosas vezes, o marido continua importunando a ex-mulher. É grande a probabilidade de isso ocorrer quando a mulher vive só ou com seus filhos. Todavia, quando ela encontra um novo marido/ companheiro, a situação muda. Se o ex-marido quiser reconquista-la, terá de enfrentar o senhor de um novo território. Assim, fica claro que a posse/propriedade das mulheres pelos homens é regulamentada por estes e não por aquelas. Os limites nas relações humanas, no eixo do gênero, são fixados por homens, não por mulheres, Eis por que a maioria dos agressores é constituída de homens e a maioria das vítimas, de mulheres, quer a violência seja física, quer seja sexual.
Não custa assinalar que há violências cometidasno interior do domicílio que não constituem nem violência intrafamiliar nem doméstica. É o caso, par exemplo, de assalta com morte e/ou agressão sexual praticado por estranhos na residência da vítima.
A SITUAÇÃO BRASILEIRA
Para violência física existem dados globais sobre o país. Um suplemento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1988, Participação Político-social - Justiça e Vitimização (FIBGE - Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Rio de Janeiro, 1990), traz dados organizados de modo a permitir a formação de uma idéia bastante clara do fenômeno da violência intrafamiliar e da violência doméstica. Quase dois terços (65,8 por cento) das vítimas de violência física de parentes são mulheres, sendo homens apenas 34,2 por cento. As cifras invertem-se quando se examinam os dados para agressores conhecidos, mas não-parentes: 66,6 por cento das vítimas são homens e tão-somente 33,4 por cento, mulheres. As vítimas comparecem praticamente com as mesmas cifras quando se trata de agressores desconhecidos: 65,3 por cento de homens e 34,7 por cento de mulheres.
Para mulheres, a família é um grupo muito perigoso. Não obstante essa verificação, continua-se a ensinar às crianças em geral, e às mulheres em especial, o temor dos desconhecidos e a confiança irrestrita nos parentes. Na verdade, não somente para mulheres, mas também para crianças, o inimigo está dentro de casa. Dentre as mulheres vítimas de parentes, 82,0 por cento são, muito provavelmente, espancadas por seus maridos/companheiros (a rigor, cônjuges não são parentes, mas tudo indica que foram considerados como tais), pois têm entre 18 e 49 anos, fase da vida em que, em geral, estão casadas. A partir dos 50 anos, quando é grande a probabilidade de as mulheres estarem separadas ou viúvas, seu comparecimento como vítimas de agressões físicas cometidas por parentes cai para 5,3 por cento.
Embora nem todos os agressores sejam homens, seguramente a maioria o é. Pode-se afirmar, portanto, que o homem é mais possessivo como marido do que como pai, uma vez que as vítimas femininas entre 0 e 9 anos de idade de agressões físicas praticadas por parentes alcançam apenas 2,8 por cento do total, e as situadas na faixa de 10 a 17 anos não atingem um décimo (9,9 por cento).
Essa afirmação, contudo, deriva exclusivamente da apreciação dos dados relativos à violência física, já que a criança, sobretudo a menina, é alvo freqüente das investidas sexuais de parentes. Esses dados sobre agressores parentes referem-se, evidentemente, à violência intrafamiliar.
Conforme o local da ocorrência pode-se ultrapassar a família imediata e penetrar na violência doméstica, embora parte dessa violência não possa ser identificada, por ter acontecido em via pública ou prédio comercial. Sendo o bar um local de freqüência eminentemente masculina, 87,0 por cento das vítimas de violência física nesses estabelecimentos comerciais são homens. Fenômeno semelhante ocorre na via pública: 68,0 por cento das vítimas são homens. Na residência, porém, 63,0 por cento das vítimas de agressão física são mulheres. Isso mostra que a mulher é a grande vítima também desse tipo de violência, ainda bastante invisível.
VIOLENCIA FÍSICA
Dados o caráter sagrado da família e o incontestável poder do marido/pai, as pessoas costumam calar-se diante da violência intrafamiliar e da violência doméstica. A própria mulher, quando vítima, costuma atribuir a perda de controle do marido à bebida alcoólica e/ou ao estresse provocado por uma condição do momento, como, por exemplo, o desemprego. Se é verdade que o estresse precipita situações de violência, o álcool constitui mais pretexto do que causa de espancamentos e assassinatos de mulheres e/ou crianças. Rigorosamente, o alcoolismo não responde pela violência, mesmo porque um número imenso de homens pratica violência de gênero (contra a mulher) quando estão sóbrios. Mais do que isso, sabem calcular o tipo de violência que mais atinge a mulher. Há mulheres que jamais sofreram alguma violência em seus corpos e que nem por isso ter seus direitos humanos violados. Há homens que não tocam o corpo da mulher para castigá-la, mas que cortam em pedacinhos suas roupas, ou destroem seus documentos, ou ainda quebram tolos os seus objetos de maquiagem. Em qualquer dos casos, ë a própria identidade da mulher que está pendo agredida.
Esse fenômeno afeta negativamente a saúde mental e orgânica da mulher. Muitas, dentre as que tiveram esse tipo de vivência, separaram-se há muitos anos de seus maridos/companheiros e continuam a apresentar saúde precária. A violência deixa, portanto, seqüelas mais ou menos graves, muitas das quais incuráveis. Além disso, a violência é um comportamento aprendido. Crianças vítimas de violência apresentam maior probabilidade de se tornar adultos violentos que as não-vítimas.
VIOLÊNCIA SEXUAL
A violência sexual é também um fenômeno muito freqüente. Não se dispõe de dados globais sobre o país. Pesquisas mais restritas revelam que o alvo preferencial dos agressores sexuais não são os/as adolescentes, mas as crianças entre 7 e 10 anos de idade. A maioria esmagadora das vítimas é de meninas, mas nem mesmo os meninos escapam a esse tipo de violência.
Em São Paulo, a freqüência da vitimização sexual de garotos em família está, a julgar pelas poucas investigações realizadas, entre 5,0 e 7,0 por cento. Ou seja, as vítimas, entre 93,0 e 95,0 por cento, são meninas. Nesses casos, os maiores criminosos são os pais biológicos, sendo que, em segundo lugar, mas muito atrás, vêm os padrastos. Ocupando posições menos expressivas, vêm outros parentes, como tio, avô, cunhado, primo, irmão. Os pais são mesmo os maiores praticantes de agressão sexual, compondo 71,5 por cento do total dos abusos, seguidos pelos padrastos, com 1 1,1 por cento (Heleieth I. B. Saffioti, Circuito fechado: abuso sexual incestuoso, 1995).
Aparentemente, as crianças são as grandes vítimas do abuso sexual. Entretanto, é preciso ter cuidado ao refletir sobre esse assunto. O Código Penal brasileiro não considera o estupro no interior do casamento. Tampouco proíbe que, no casamento, esse ato seja considerado crime. Seria interessante que as mulheres estupradas pelos maridos denunciassem esse tipo de violência, a fim de se iniciar um processo que poderia resultar na codificação dessa agressão como crime. Na França, as feministas conseguiram, em 1980, criminalizar - passando a se considerar estupro - a relação sexual ocorrida contra a vontade da esposa.
No Brasil continua vigente o chamado débito conjugal, que significa o dever de manter relações sexuais com o cônjuge. Ainda que essa obrigação exista, no Código Civil, para ambos os cônjuges, na prática só constitui um dever para a mulher. Presas a esse conceito, as mulheres cumprem seu dever, mesmo quando não estão a fim de ter uma relação sexual. Podem até se sentir violentadas, mas se submetem ao marido para evitar que ele procure uma outra mulher. Como a infidelidade conjugal masculina é amplamente tolerada, "o marido procura na rua aquilo que não tem em casa".
DESFAZENDO EQUÍVOCOS
Há uma idéia muito difundida de que só pessoas pobres e sem cultura são capazes de praticar violências - sejam físicas, sexuais ou emocionais - contra outras com quem coabitam ou até mesmo contra membros de sua própria família. Trata-se de puro preconceito contra pobres e pouco instruídos. As violências aqui comentadas são praticadas em todas as classes sociais, em todas as raças/etnias, nos países de cultura ocidental assim como nos de cultura oriental, nos industrializados como também nos não-industrializados, em todos os continentes da Terra.
Como os costumes variam segundo o país, há formas de violência específicas de uma cultura. Por exemplo, embora seja proibido por lei, persiste o sati, costume indiano segundo o qual a viúva deve se imolar (morrer queimada) na mesma pira onde foi cremado o corpo de seu marido. Na África é muito comum se praticarem mutilações sexuais nas mulheres,como:
1. a clìteridectomia, que consiste na ablação do clitóris;
2. a infibulação, operação de sutura dos grandes lábios da vulva, de forma a se deixar apenas um pequeno orifício para a passagem do sangue menstrual.
Nos dois casos, a mulher é privada do prazer sexual: quando seu clitóris é extirpado, ela perde uma importante fonte de prazer; com a infibulação, cada relação sexual passa a ser um martírio, para não mencionar o parto, que exigirá nova sutura. Além disso, a mulher infibulada está constantemente exposta a infecções das vias urinárias, uma vez que, para esconder o clitóris, acaba-se transformando a vulva em uma bolsa retentora de urina, líquido que contém toxinas.
No Brasil, não se mutilam sexualmente as mulheres, mas pratica um verdadeiro crime contra elas, esterilizando-as. Existe até uma demanda da ligadura de trompas por parte de milhões de brasileiras que, desejando ter menos filhos, recorrem a essa intervenção cirúrgica, ignorando suas conseqüências para a saúde e seu caráter irreversível. Muitas dessas mulheres separam-se de seus maridos/companheiros e reconstituem suas vidas com outros parceiros. Voltam a desejar procriar, descobrindo, então, que estão definitivamente estéreis. Como se observa, há várias formas de se mutilar um ser humano.
QUEM SÃO OS ALGOZES?
Uma maneira simples de as pessoas "resolverem" esse intrincado problema consiste em afirmar que os homens violentos são doentes mentais, alcoólatras, perturbados. Quem diz isso está, ao mesmo tempo, afirmando que em sua família não há violência, que é só a família dos outros que enfrenta essa vergonha. Como a família é considerada um ninho de afeto, as pessoas sentem‑se envergonhadas de admitir, mesmo para amigos, que um membro de sua família pratica violências. Assim, qualquer que seja a modalidade de violência, geralmente se forma em torno dela uma conspiração do silêncio. Ninguém fala sobre o assunto.
A partir de 1985, quando se começou a criar e implantar as Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), muitas mulheres vêm encontrando coragem para denunciar seja a violência masculina praticada contra elas, seja aquela cometida contra crianças e adolescentes. Muitas das que denunciam seus maridos/companheiros à polícia, todavia, voltam à DDM para solicitar a retirada da queixa. É difícil compreender esse vai-e-vem da mulher. A violência intrafamiliar e a doméstica ocorrem no seio de uma relação afetiva. Por essa razão, misturam-se amor e ódio. A mulher denuncia o marido por tê-la espancado ou abusado sexualmente de uma filha, mas, gostando dele, acaba encontrando uma desculpa para sua conduta, e decide pedir que não se abra inquérito policial.
Nem sempre, contudo, o motivo é esse. Muitas vezes, o marido, tomando conhecimento da apresentação de queixa à DDM por parte da mulher, ameaças de morte, caso não o obedeça sustando o inquérito. Incapaz de manter a si própria e a seus filhos, a mulher cede às pressões do marido. É raro ocorrer um ato unilateral de violência. Quando acontece, envolve pessoas estranhas. Conhecidos, parentes e pessoas que coabitam desenvolvem certos tipos de relações que comportam violência. Dessa forma, a violência é recíproca, embora os prejuízos sejam muito maiores para as categorias socialmente mais fracas: mulheres, crianças e adolescentes. Mesmo uma criança sexualmente vitimizada por seu pai aprende maneiras de agredi-lo. A chantagem é, nesses casos, muito comum.
Por meio dela a criança obtém vantagens secundárias. Tais vantagens, porém, saem muito caras para a criança, que conviverá o resto da vida com a experiência traumática.
Muitos estudiosos tentaram traçar um perfil do espancados, do homicida e do agressor sexual de mulheres, crianças e adolescentes. 0 fracasso tem sido total. Apenas 4,0 por cento dos agressores sexuais apresentam história psiquiátrica, sendo só 2,0 por cento doentes mentais. Do ponto de vista da sociologia, não faz sentido procurar características individuais nos perpetradores de violência, se as causas de sua conduta são sociais. Efetivamente, quase todos eles trabalham para ganhar o sustento da família, crêem em Deus, praticando, muitas vezes, uma religião, mantêm relações sociais normais com seus colegas de trabalho e amigos, muitos sendo considerados acima de qualquer suspeita.
Os algozes podem, dessa maneira, estar em qualquer o classe social, em qualquer raça/etnia, em qualquer profissão, participar de qualquer credo religioso, pertencer a qualquer partido político, a qualquer clube etc. A estrutura da sociedade, formada pelas hierarquias comentadas mais atrás, torna cada um e todos os homens potencialmente violentos. A conversão da agressividade em agressão pode ser desencadeada por fatos os mais banais e corriqueiros. 0 sentimento de posse/propriedade que a sociedade alimenta no homem, em relação a sua mulher e a sua prole, e a impunidade da maioria esmagadora desses criminosos explica amplamente a generalização da violência masculina contra mulheres, crianças e adolescentes. Quando se trata de mulher agressora, já se indicou que ela desempenhava a função do patriarca, a quem é reconhecido o direito de submeter os socialmente mais fracos.
Os idosos também constituem uma categoria social frágil, muitas vezes vítima de abandono e maus tratos por parte de seus parentes adultos, homens e mulheres. A legislação brasileira obriga os filhos a amparar os pais na velhice, garantindo-lhes o sustento. No entanto, os asilos estão cheios de pessoas idosas enjeitadas pelos próprios filhos e/ou outros parentes.
CONCLUSÕES
Sem a valorização das categorias socialmente frágeis, as soluções serão sempre precárias. Mas é preciso que se tomem medidas para remediar o mal no plano imediato. As delegacias de polícia especializadas no atendimento desses segmentos da população (mulheres e idosos) têm prestado relevantes serviços à sociedade brasileira ao visibilizarem problema de tamanha gravidade. Só isso, contudo, não basta. Como pode uma DDM insistir na instauração de inquérito contra um homem que praticou o crime de lesão corporal contra sua mulher se ela está ameaçada de morte por ele e não há abrigos para acolher mulheres vítimas de violência? Falta, pois, infra​estrutura de apoio às DDM. Além disso, é preciso dar formação quanto a relações entre homens e mulheres aos profissionais que lidam com pessoas em situação de violência intrafamiliar e/ou doméstica. Não somente a polícia deve ter qualificação, mas também os profissionais da saúde, da educação, enfim todos os que lidam diretamente com o fenômeno analisado.
Na verdade, trata-se de um fenômeno que requer a mobilização de toda a sociedade. Exatamente pelo fato de a violência intrafamiliar e a doméstica estarem escondidas, de não estarem expostas, como a violência cometida no espaço público, seu combate exige um sem-número de soldados. Cada cidadã (o) é um desses numerosos soldados, cuja tarefa fundamental consiste em zelar pela harmonia das relações familiares e domiciliares e, mais amplamente, pela harmonia de todas as relações humanas.
Heleieth I. B. Saffioti - Bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela USP, aposentada como professora titular de Sociologia da Universidade Estadual Paulista. Atualmente é professora de Sociologia na pós-graduação da PUC-SP e pesquisadora da UFRJ, tendo escrito vários livros e mais de cem artigos, publicados no Brasil e no exterior. Tem participado de congressos nacionais e internacionais, e orientado dissertações de mestrado e teses de doutorado.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU A LÓGICA DO GALINHEIRO. In: Kupstas, Márcia (org.). Violência em Debate. São Paulo: Moderna, 1997. p. 39-57.

Outros materiais