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O desenvolvimento do direito das águas como um ramo autônomo da ciência jurídica brasileira

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O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO DAS ÁGUAS COMO UM RAMO
AUTÔNOMO DA CIÊNCIA JURÍDICA BRASILEIRA
Revista de Direito Ambiental | vol. 51 | p. 45 | Jul / 2008
Doutrinas Essenciais de Direito Ambiental | vol. 2 | p. 157 | Mar / 2011
DTR\2008\375
Filipe Domingos Commetti
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa.
Sylvia Maria Machado Vendramini
Doutora em Direito Ambiental pela Universidade de Paris II - Panthéon Assas. Professora da
Universidade Federal de Viçosa.
Roberta Freitas Guerra
Mestre em Direito pela PUC-MG. Professora da Universidade Federal de Viçosa.
Área do Direito: Constitucional; Ambiental
Resumo: Água, elemento imprescindível a toda e qualquer forma de vida, e, em tempos hodiernos,
está se escasseando, inclusive no Brasil, país com o maior volume de recursos hídricos no planeta.
Dessa forma, a preocupação com a qualidade e a quantidade desse elemento vital apresenta-se em
ascensão, revelando a necessidade de se alçar o direito das águas ao patamar de ramo autônomo
na ciência jurídica brasileira. Para tanto, procurou-se demonstrar que o direito das águas satisfaz os
requisitos indispensáveis para se considerar a autonomia de determinado ramo do direito. São três
os requisitos: científico, normativo e didático. Apesar de preencher tais requisitos, verificou-se que o
direito das águas ainda não é considerado um ramo autônomo, mas está avançando para este viés.
Palavras-chave: Ciência jurídica - Água - Autonomia
Abstract: Water, wich is an essential element to every and any form of life, and, at current times, itŽs
become scarce, including in Brazil, wich is the country with the highest volume of water in the planet.
So, the worry with the quality and the quantity of that vital element is itself on ascendancy, revealing
the necessity of lift up the right of the waters to level of autonomy segment in the Brazilian Juridical
Science. In this way, it has been seeking to demonstrate that right of waters satisfies the
indispensables requisites for considering the autonomy of specific segment of that right. The right of
waters fulfills this requisites, however it hasn't been adjudged an autonomy segment yet, but it's
advancing to this way.
Keywords: Juridical science - Water - Autonomy
Sumário:
1.Introdução - 2.Considerações iniciais - 3.Ordem científica - 4.Ordem normativa - 5.Ordem didática -
6.Conclusão - 7.Referências bibliográficas
1. Introdução
Indispensável a toda e qualquer forma de vida, a água cobre três quartos da superfície terrestre,
sendo distribuída pelos oceanos, mares, geleiras, lençóis subterrâneos, rios, lagos, na atmosfera,
dentre outros. Apesar desta aparente abundância, somente 2,5% daquela fração correspondem à
água doce. Destes apenas 2,5%, 80% estão alocados nas calotas polares da Antártida e da
Groenlândia. As águas subterrâneas e superficiais, por sua vez, representam apenas 20% do total
de água doce disponível.1 Observa-se, dessa maneira, que a água potável não é farta e, menos
ainda, um recurso natural infinito.
Os recursos hídricos do planeta, além disso, tornam-se cada vez mais escassos devido ao
crescimento populacional que intensificou o consumo da água potável, bem como a sua degradação,
advinda de uma exploração irresponsável e excessiva pelas várias atividades humanas, o que
resultou numa diminuição sem precedentes tanto da qualidade como quantidade da água no mundo.
Neste sentido, o Instituto Internacional de Gerenciamento de Água (International Water Managment
Institute) elaborou uma pesquisa intitulada Avaliação Compreensiva do Gerenciamento de Água em
O desenvolvimento do direito das águas como um ramo
autônomo da ciência jurídica brasileira
Página 1
Agricultura, a qual foi apresentada na Semana Mundial da Água, realizada em agosto de 2006, em
Estocolmo, Suécia, e asseverou que um terço da população global padece com alguma forma de
escassez de água, escassez que pode ser tanto econômica (distribuição desigual da água) como
física (recursos hídricos insuficientes para atenderem à demanda da população).2
Além dos tempos hodiernos, cientistas afirmam que o mundo está prestes a encarar uma conjuntura
de incertezas e dificuldades em relação ao abastecimento de água. Eles prevêem que em 2025, dois
terços dos habitantes do planeta serão afetados de algum modo pela escassez hídrica, o que inclui
desidratação e, até mesmo, sujeição a moléstias como cólera ou amebíase, doenças ocasionadas
pela má qualidade da água.3
Ministros e Chefes de delegações reunidos na Declaração de Paris sobre Água e Desenvolvimento
Sustentável, ocorrida em março de 1998, enfatizaram a seguinte preocupação:
"Seriamente preocupados com a situação na qual um quarto da população mundial não tem acesso
à água potável; que mais da metade da humanidade não dispõe de saneamento adequado; que a
má qualidade da água e falta de higiene são as causas primárias de morte e doença; que a escassez
de água, enchentes e secas, pobreza, poluição, tratamento inadequado de resíduos e falta de
infra-estrutura são sérias ameaças ao desenvolvimento social e econômico, a saúde humana, a
segurança alimentar global e ao meio ambiente.
Também preocupados com o fato de que as restrições de acesso à água, em termos de quantidade
e qualidade, podem se tornar fatores limitantes ao desenvolvimento sustentável."4
A míngua de recursos hídricos faz-se presente também no Brasil, apesar de possuir 12% (179.000
m³/s ou 5.660 km³/ano) do total de água doce disponível no Globo Terrestre.5 Ou seja, embora o país
possua a maior disponibilidade hídrica do mundo, a escassez de água é iminente, sendo nítida, pois,
a importância geopolítica do Brasil nas esferas regional e global.
Dentre outros fatores que levam à escassez hídrica brasileira, aponta-se o crescimento populacional
e a ocupação irregular do solo, em conjunto com uma cultura de desperdício e de exploração que
intensificaram o consumo da água potável, bem como a sua degradação, advinda de uma
exploração insensata e descomedida pelo homem.
Em sendo assim, nota-se que à medida que determinado bem, in casu, a água, torna-se escasso,
tanto o Poder Público como a sociedade tendem a se mobilizar com o fito de reverter tal quadro de
instabilidade, aquele através da elaboração de regras e da fiscalização, enquanto esta através da
mobilização e da atuação.
Neste sentido, um pujante brocardo jurídico ubi ius, ibi societas revela que o direito não sobrevive
sem a sociedade,6 e vice-versa; isto é, o direito deve evoluir conforme os anseios e as necessidades
sociais para que possa ser eficiente e contemporâneo, e não padeça de ineficácia e impotência.
Nota-se, dessa maneira, que a autonomia do direito das águas no Brasil se justifica pela imensidão
das águas interiores e da iminente escassez deste recurso natural, sendo que as águas brasileiras
necessitam de um estudo jurídico específico e pormenorizado com relação a sua cobrança,
conservação, gerenciamento, outorga, proteção, utilização, dentre outros.
Salienta-se, ademais, que para haver a autonomia de um ramo do direito, in casu, o direito das
águas, ele deve apresentar princípios próprios e normas específicas, além de uma didática própria.7
Em sendo assim, há três ordens: a científica, a normativa e a didática; as quais serão demonstradas
e defendidas neste trabalho.
1.1 Problema
Diante o exposto, este trabalho procura demonstrar a necessidade de se alcançar o direito das
águas ao patamar de ramo autônomo da ciência jurídica brasileira, com o intento de que os recursos
hídricos do país recebam um tratamento jurídico particular.
Desta forma, pergunta-se: por que o direito das águas precisa ser um ramo autônomo da ciência
jurídica brasileira? Por que ele ainda não se tornou autônomo?
O desenvolvimento do direito das águas como um ramo
autônomo da ciência jurídica brasileira
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Numa resposta preliminar, nota-se que o Brasil possui o maior volume derecursos hídricos no
mundo, ou seja, o país detém 179.000 m³/s ou 5.660 km³/ano (12%) do total de água doce disponível
no Planeta Terra.8 Ademais, a água é um elemento imprescindível à vida de todo ser vivo e se
apresenta em iminente escassez pelo mundo, inclusive no Brasil.
Devido à imensidão do volume das águas brasileiras, necessário se torna conservá-las e protegê-las,
estabelecendo regras com relação ao seu uso e exploração. Assim, o direito, sendo uma ciência
social por excelência, deve acompanhar as necessidades sociais, especializando-se em ramos
diversos, a fim de que o conhecimento com relação a certa matéria se desenvolva.
O direito das águas tem a necessidade de se apresentar como um ramo autônomo do direito, visto
que o conhecimento deve evoluir e se aprofundar e, para tanto, é necessária a especialização.
Tal especialização, ademais, é meramente didática, haja visto que o direito deve ser considerado
como um corpo único e indivisível.
Ainda não foi erigido como um ramo autônomo, porquanto somente em tempos hodiernos o homem
vem percebendo a importância dos elementos naturais, mormente com relação às águas, elemento
imprescindível à perpetuação da vida, tanto que o primeiro documento internacional atinente à água
data de 06.05.1968: a Carta Européia da Água.
Apesar de ainda não ser um ramo autônomo, o direito das águas está caminhando para este viés,
pois satisfaz todos os elementos para que um ramo do direito seja considerado autônomo, como se
tentará comprovar no decorrer deste trabalho.
2. Considerações iniciais
Neste tópico desenvolvem-se alguns conceitos preliminares, necessários à intelecção completa
deste trabalho.
De início, é necessário ressaltar que os termos "recurso hídrico" e "água" não possuem o mesmo
significado, haja vista que este se refere ao elemento natural, sem destinação econômica alguma;
enquanto aquele considera a água como recurso natural, com destinação econômica e passível de
utilização.9 Todavia, neste trabalho são considerados ambos os termos como sinônimos, uma vez
que a diferenciação entre os termos não se torna relevante para enfrentar o tema proposto.
Vale salientar, também, que o direito das águas descende do direito ambiental. Então, pergunta-se:
por que desvinculá-lo do direito ambiental? Porque este ramo do direito se apresenta
sobrecarregado, visto que abarca muitas matérias, como água, ar, atividades nucleares, caça, crimes
ambientais, educação ambiental, engenharia genética (manipulação de material genético), Estudo de
Impacto Ambiental, fontes de energia, garimpo, ilhas, licenciamento ambiental, mar, meios
processuais de proteção ambiental, mineração, paisagem, parcelamento do solo urbano, poluição
(por resíduos sólidos, por rejeitos perigosos, por agrotóxicos), praias, sítios arqueológicos e
pré-históricos, solo, subsolo, terrenos de marinha, zoneamento ambiental, dentre outros.
A proposta de que o direito ambiental deve se apresentar como uma matéria geral, corrobora a
necessidade de se especializar, com o decorrer do tempo, o conhecimento das matérias acima
citadas, com vistas ao aprofundamento de cada uma delas. Neste trabalho, assim, defende-se a
comprovação da autonomia do direito das águas, tendo em vista o desenvolvimento da matéria
concernente aos recursos hídricos.
Ademais, com relação à autonomia de determinado ramo do direito, in casu, o direito das águas,
observa-se que tal independência não é absoluta, haja vista que os vários ramos do direito se
interligam e se interpenetram. Neste sentido Arnaldo Süssekind leciona:
"O conceito de autonomia dos diversos ramos do Direito é relativo; porquanto os diferentes setores
da ciência jurídica estão relacionados entre si, estabelecendo um nexo de interdependência que,
igualmente, configura-se no círculo maior das ciências sociais.
[...] a autonomia de cada um dos ramos da ciência jurídica é relativa; não significa independência,
mas configuração de uma das partes do todo orgânico que é o direito."10
O desenvolvimento do direito das águas como um ramo
autônomo da ciência jurídica brasileira
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Salutares tais considerações acerca da relativa independência entre os diversos ramos jurídicos,
todavia a autonomia de determinado setor das ciências jurídicas é importante para que haja uma
maior pormenorização, além de uma investigação mais apurada sobre a matéria analisada. Em
suma, a especialização é necessária a fim de que as raízes da ciência se aprofundem no solo do
conhecimento.
Salienta-se, outrossim, que devido à crescente importância conferida às águas, o direito tende a
acompanhar o progresso das aspirações da sociedade, pois a ciência jurídica é eminentemente
social.11 Em sendo assim, com o fito de alçar o direito das águas como um ramo autônomo da
ciência jurídica no Brasil, consoante leciona Ismael Marinho Falcão,12 faz-se necessário analisar e
percorrer três ordens: científica, normativa e didática.
As três ordens são estudas e desenvolvidas nos tópicos seguintes, para que, ao fim deste trabalho,
haja uma conclusão no sentido de que a autonomia do direito das águas mostra-se relevante no
contexto sócio-econômico e ambiental do Brasil.
Contudo antes de se iniciar o desenvolvimento das ordens concernentes à autonomia do direito das
águas, torna-se necessário realizar algumas ponderações a respeito do conceito e da natureza
jurídica do direito das águas, revelando desde já indícios sobre a autonomia do direito das águas.
2.1 Conceito de direito das águas
O direito das águas não vem previsto de maneira expressa em legislação alguma. Não obstante
tratar-se de um novel ramo da ciência jurídica, torna-se imprescindível a sua conceituação, com
vistas a sua melhor inteligência.
Pois bem, Cid Tomanik Pompeu conceitua o direito das águas da seguinte maneira:
"Para tratar das águas doces no direito brasileiro convém, preliminarmente, ter presente o conteúdo
da expressão direito de águas, ramo da ciência do direito, definido como: conjunto de princípios e
normas jurídicas que disciplinam o domínio, uso, aproveitamento e a preservação das águas, assim
como a defesa contra suas danosas conseqüências."13
O direito das águas é um ramo autônomo da ciência jurídica que possui princípios e institutos
peculiares, normas específicas que disciplinam as questões concernentes aos recursos hídricos,
além de possuir uma didática própria. O direito das águas, em linhas gerais, tem como escopo
salvaguardar as águas e regular a sua utilização, bem como penalizar infratores que não observam
as normas atinentes aos recursos hídricos. Ademais, tal ramo do direito tem como objeto de estudo a
água e seus institutos próprios, como a outorga dos direitos de uso dos recursos hídricos e a
cobrança pela utilização dos mesmos.
2.2 Natureza jurídica do direito das águas
Antes de analisar a natureza jurídica do direito das águas é oportuno apreciar a natureza de seu
principal objeto de estudo, qual seja a água.
Dessa forma, Aldo da Cunha Rebouças salienta que com o advento da Constituição Federal de 1988
a água foi considerada um bem público.14
Márcia Dieguez Leuzinger,15 ademais, compreende que o meio ambiente, incluindo a água, sendo
direito fundamental de terceira geração, é bem público de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, consoante estabelece o art. 225 da CF/88.
Outrossim, do caput do art. 225 da CF/88, Celso Antonio Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues
concluem que o meio ambiente, incluindo a água, sendo direito de todos, é um bem de uso comum
do povo.16
Salienta-se, também, que além de ser um bem de uso comum do povo (art. 99, I, do CC/2002 c/c art.
225, da CF/88), a água também é bem ambiental (art. 3.º, V, da Lei 6.938, de 31.08.1981 c/c art.
225, da CF/88), e, portanto, bem difuso, consoante assevera Luís Paulo Sirvinskas:
"O bem ambiental, [...], não pode ser classificado como bem público nem como bem privado (art. 98
do CC/2002), ficandonuma faixa intermediária denominada bem difuso. Difuso é o bem que pertence
O desenvolvimento do direito das águas como um ramo
autônomo da ciência jurídica brasileira
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a cada um e, ao mesmo tempo, a todos. Não há como identificar o seu titular e seu objeto é
insuscetível de divisão."17
Desse modo, a água se caracteriza por ser tanto um bem público de uso comum do povo quanto um
bem difuso, haja vista que a sociedade é diretamente interessada na destinação dada a este recurso
ambiental, assim como no gerenciamento e preservação do mesmo.
Com relação ao direito das águas, verifica-se que ele possui regras tanto na área do direito privado (
exempli gratia, direito civil), como no campo do direito público (verbi gratia, direito constitucional),
conforme será visto adiante no capítulo referente à ordem normativa.
Cid Tomanik Pompeu leciona ainda:
"A estreita vinculação das normas jurídicas relativas às águas com o ciclo hidrológico, que
praticamente desconhece limites no seu percurso, faz com que o direito de águas contenha tanto
normas tradicionalmente colocadas no campo do direito privado, como no do direito público. Suas
fontes são a legislação, a doutrina, a jurisprudência e os costumes."18
A dicotomia entre direito público e privado, todavia, está sendo relativisada em tempos hodiernos,
conforme salienta Vicente Gonçalves Araújo Júnior: "Sabe-se que essa dicotomia já não goza do
prestígio de outrora, na medida em que o direito privado está impregnado de normas de ordem
pública, e vice-versa".19
Desse modo, não seguindo os passos da ultrapassada dicotomia entre direito público e privado, o
direito das águas pode ser considerado como um direito difuso.
O direito das águas, assim como seu objeto de estudo, enquadra-se com mais precisão no âmbito
dos direitos difusos, sendo estes compreendidos quando superam os limites do indivíduo, do grupo,
e mesmo do Estado. Têm "como destinatário direto e indireto o gênero humano. O seu
asseguramento ou a sua violação atingem inarredavelmente este conjunto indeterminado de
indivíduos".20
3. Ordem científica
Neste tópico será desenvolvida a ordem científica, mediante a qual dar-se-á início à comprovação da
autonomia do direito das águas.
Pois bem, consoante leciona Ismael Marinho Falcão, a ordem científica compreende a existência de
princípios peculiares de determinado ramo do direito, além de haver institutos autônomos
concernentes ao mesmo ramo jurídico.21
Em sendo assim, este capítulo é dividido em duas grandes partes. A primeira referente ao estudo
dos princípios peculiares do direito das águas e a segunda parte destina-se à análise dos institutos
autônomos deste ramo do direito.
3.1 Princípios peculiares do direito das águas
Conforme ensina Miguel Reale, princípios são "certos enunciados lógicos admitidos como condição
ou base de validade das demais asserções que compõem dado campo do saber."22
Além disso, os princípios têm como escopo delinear a base teórica e a infra-estrutura de determinado
assunto, visto que refletem a posição social, econômica, política, ética e moral de cada época.
Assim, torna-se de fundamental importância a análise dos princípios peculiares do direito das águas
a fim de que orientem, de forma segura, a interpretação e a compreensão das normas concernentes
aos recursos hídricos.
São princípios peculiares ao direito das águas: princípio da sustentabilidade hídrica; princípio da
finitude das águas; princípio da gestão integrada; princípio do domínio público; princípio da
participação social no gerenciamento dos recursos hídricos; princípio da educação sobre a
preservação hídrica; princípio da informação sobre águas; princípio da cooperação entre os povos.
Os princípios supra citados não são estanques e isolados, visto que estão em constante diálogo
entre si. Além disso, salienta-se que tal rol é exemplificativo, haja vista que neste trabalho são
O desenvolvimento do direito das águas como um ramo
autônomo da ciência jurídica brasileira
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desenvolvidos apenas os princípios mais evidentes.
Vale ressaltar, ademais, que o estudo de cada princípio é mesclado por entendimentos doutrinários,
por normas nacionais e por documentos internacionais, oferecendo, deste modo, maior respaldo e
segurança a este trabalho.
3.1.1 Princípio da sustentabilidade hídrica
O princípio da sustentabilidade hídrica tem como escopo conciliar o dualismo existente entre o
desenvolvimento sócio-econômico-cultural e o equilíbrio hídrico, com vistas à preservação da água
doce e potável para as gerações presentes e futuras, sendo que preservar não denota tornar
intangíveis os recursos hídricos, e sim utilizá-los de maneira comedida e racional.
A dualidade acima citada, não obstante, torna-se aparente quando os indivíduos de determinada
sociedade são dotados de uma efetiva consciência de proteção hídrica, adquirida, principalmente,
com a efetiva realização da educação sobre a preservação hídrica, da informação sobre águas e da
participação social, princípios que são examinados adiante. Desse modo, serão minimizadas as
dificuldades em harmonizar um crescimento econômico qualitativo à preservação dos recursos
hídricos.
No que se refere à conservação do meio ambiente como um todo, incluindo-se as águas, Edson
Ferreira de Carvalho leciona com propriedade quanto à proximidade entre as ciências da ecologia e
da economia, como se verifica:
"A palavra ecologia tem sua origem na palavra grega 'oikos' (casa) e 'logos' (estudo) significando o
estudo do ambiente da casa. Considerando o planeta Terra como uma casa, ela abrange os
organismos vivos e objetos naturais nela contidos, bem como todos os processos funcionais que a
tornam habitável. A palavra economia tem sua origem na mesma raiz grega da palavra ecologia. O
termo 'nomia' quer dizer manejo ou gerenciamento; logo economia significa gerenciamento da casa.
Como gêmeas, as duas ciências deveriam conviver harmoniosamente, mas o que se vê é a
economia buscando dominar o meio ambiente sem respeitar as leis naturais que regulam o fluxo, o
equilíbrio e a capacidade de sustentação dos ecossistemas, que em seu conjunto formam o grande
ecossistema Terra."23
O princípio da sustentabilidade hídrica, o qual tem como fim conciliar o desenvolvimento
sócio-econômico-cultural e a preservação dos recursos hídricos, é confirmado, ainda que
indiretamente, pelo art. 170, VI, da CF/88, que assim prescreve:
"Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem
por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios:
[...]
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto
ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
[...]."24
O dispositivo constitucional supra transcrito refere-se ao desenvolvimento sustentável do meio
ambiente como um todo, estando inclusa a água, haja vista que ela é um bem ambiental sem dúvida
alguma. Desse modo, a Constituinte evidencia que as atividades econômicas devem prezar pela
proteção ambiental, a qual abarca a preservação dos recursos hídricos.
Outrossim, o art. 225, caput, da CF/88, também de maneira indireta, corrobora a sustentabilidade
hídrica dispondo que o meio ambiente, no qual estão inseridas as águas, deve ser protegido e
conservado para as gerações presentes e futuras.
A Lei 6.938, de 31.08.1981, em seu art. 4.º, I, institui como um de seus objetivos a "compatibilização
do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do
equilíbrio ecológico."25
Em sendo assim, a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), como é conhecida a Lei 6.938/81,
O desenvolvimento do direito das águas como um ramo
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assevera a sustentabilidade hídrica, uma vez que os recursoshídricos, como já se destacou,
constituem o meio ambiente.
A Lei 9.433, de 08.01.1997 (Lei de Recursos Hídricos), por seu turno, faz referência expressa sobre
a sustentabilidade hídrica como um dos objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH):
"Art. 2.º. São objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos:
I - assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de
qualidade adequados aos respectivos usos;
II - a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, incluindo o transporte aquaviário, com
vistas ao desenvolvimento sustentável;
[...]."26
O princípio da sustentabilidade hídrica, como se depreende da norma acima transcrita, visa conciliar
o desenvolvimento sócio-econômico-cultural, bem como a utilização dos recursos hídricos, com a
preservação e conservação das águas para as gerações presentes e futuras.
A respeito da matéria no âmbito internacional, salutar é a compreensão de Alexandre Kiss:
"Os instrumentos legais internacionais freqüentemente fazem referência aos 'direitos das gerações
futuras'. Com base na variedade de instrumentos, incluindo declarações e deliberações bem como
cláusulas de tratados, é possível aceitar esses direitos como sendo os que cada geração tem em
beneficiar-se e em desenvolver o patrimônio natural e cultural herdado das gerações precedentes, de
tal forma que possa ser passado às gerações futuras em circunstâncias não piores do que as
recebidas. Isso exige conservação e, onde for possível, melhoria da qualidade e da diversidade
dessa herança e, especificamente, a conservação dos recursos renováveis, dos ecossistemas e dos
processos de suporte à vida, assim como do conhecimento humano e da arte. Requer ainda que
sejam evitadas ações com conseqüências desastrosas e irreversíveis para a herança natural e
cultural, citadas em vários instrumentos internacionais."27
A Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, proclamada em junho de 1972,
referiu-se expressamente acerca da necessária conciliação entre o desenvolvimento econômico e a
preservação da natureza, incluindo-se as águas, conforme prescrevem os seguintes princípios:
"Princípio 3 - Deve ser mantida e, sempre que possível, restaurada ou melhorada a capacidade da
Terra de produzir recursos renováveis vitais;
Princípio 4 - O homem tem a responsabilidade especial de preservar e administrar judiciosamente o
patrimônio representado pela flora e fauna silvestres, bem assim o seu 'habitat', que se encontram
atualmente em grave perigo por uma combinação de fatores adversos. Em conseqüência, ao
planificar o desenvolvimento econômico, deve ser atribuída importância à conservação da natureza,
incluídas a flora e a fauna silvestres;
Princípio 5 - Os recursos não renováveis da Terra devem ser utilizados de forma a evitar o perigo do
seu esgotamento futuro e a assegurar que toda a humanidade participe dos benefícios de tal uso;
[...]
Princípio 8 - O desenvolvimento econômico e social é indispensável para assegurar ao homem um
ambiente de vida e trabalho favorável e criar, na Terra, as condições necessárias à melhoria da
qualidade de vida."28
A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, proclamada em junho de 1992,
também sobreleva a necessidade de conciliação entre o desenvolvimento econômico-social e a
conservação do meio ambiente, o qual abrange as águas. Dessa forma, vários de seus princípios
dispõe a respeito do assunto:
"Princípio 3 - O direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam
atendidas eqüitativamente as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente das gerações
presentes e futuras.
O desenvolvimento do direito das águas como um ramo
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Princípio 4 - Para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental constituirá parte
integrante do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada isoladamente deste.
Princípio 5 - Para todos os Estados e todos os indivíduos, como requisito indispensável para o
desenvolvimento sustentável, irão cooperar na tarefa essencial de erradicar a pobreza, a fim de
reduzir as disparidades de padrões de vida e melhor atender às necessidades da maioria da
população do mundo.
[..]
Princípio 8 - Para alcançar o desenvolvimento sustentável e uma qualidade de vida mais elevada
para todos, os Estados devem reduzir e eliminar os padrões insustentáveis de produção e consumo,
e promover políticas demográficas adequadas.
[...]
Princípio 12 - Os Estados devem cooperar na promoção de um sistema econômico internacional
aberto e favorável, propício ao crescimento econômico e ao desenvolvimento sustentável em todos
os países, de forma a possibilitar o tratamento mais adequado dos problemas da degradação
ambiental. As medidas de política comercial para fins ambientais não devem constituir um meio de
discriminação arbitrária ou injustificável, ou uma restrição disfarçada ao comércio internacional.
Devem ser evitadas ações unilaterais para o tratamento dos desafios internacionais fora da jurisdição
do país importador. As medidas internacionais relativas a problemas ambientais transfronteiriços ou
globais deve, na medida do possível, basear-se no consenso internacional.
[...]
Princípio 25 - A paz, o desenvolvimento e a proteção ambiental são interdependentes e indivisíveis."
29
No que se refere, especificamente, ao desenvolvimento sustentável na seara hídrica, a Declaração
Universal dos Direitos da Água de 1992, dispõe o seguinte:
"Princípio 4 - O equilíbrio e o futuro de nosso planeta dependem da preservação da água e de seus
ciclos. Estes devem permanecer intactos e funcionando normalmente para garantir a continuidade da
vida sobre a Terra. Este equilíbrio depende em particular, da preservação dos mares e oceanos, por
onde os ciclos começam.
Princípio 5 - A água não é somente herança de nossos predecessores; ela é, sobretudo, um
empréstimo aos nossos sucessores. Sua proteção constitui uma necessidade vital, assim como a
obrigação moral do homem para com as gerações presentes e futuras.
[...]
Princípio 9 - A gestão da água impõe um equilíbrio entre os imperativos de sua proteção e as
necessidades de ordem econômica, sanitária e social."30
A Declaração de Paris sobre Água e Desenvolvimento Sustentável, de março de 1998,31 por sua vez,
sublinhou que a defesa da qualidade e da quantidade dos recursos hídricos é um elemento
imprescindível para a prosperidade e estabilidade das gerações vindouras. Ademais, enfatizou a
necessidade do comprometimento político e social na gestão e defesa desse recurso natural, a fim
de garantir um satisfatório e efetivo desenvolvimento sustentável.
O desenvolvimento sustentável, como se nota, está intrinsecamente ligado ao princípio da
sustentabilidade hídrica, haja vista que "a água doce é essencial ao desenvolvimento sustentável
assim como é para a vida e que a água tem valores sociais, econômicos e ambientais que estão
interligados e são dependentes entre si".32
Vale ressaltar, outrossim, que o Projeto de Lei de Águas do Peru, de abril de 2003, inclui a
sustentabilidade hídrica como um dos princípios que regem o uso e o aproveitamento sustentável
das águas:
"Artículo 3.º. Princípios
O desenvolvimento do direito das águas como um ramo
autônomo da ciência jurídica brasileira
Página 8
Los principios que rigen el uso y aprovechamiento sostenible del agua son:
[...]
3.5 Principio de sostenibilidad
El Estado debe asegurar que el uso y aprovechamiento del recurso se efectúe en condiciones
racionales que aseguren la recuperación y regeneración de los ecosistemas involucrados, en
beneficio de las generaciones futuras."33
Como se verifica, o princípio da sustentabilidade hídrica encontra-se respaldado tanto por normas
brasileiras quanto por documentos internacionais. Assim, conciliar o desenvolvimento
sócio-econômico-cultural como equilíbrio hídrico, com vistas à preservação da água doce e potável
para as gerações presentes e futuras, torna-se imprescindível para que a qualidade de vida seja
aceitável e satisfatória.
3.1.2 Princípio da finitude das águas
É verdade que a água possui capacidade de se renovar através do ciclo hidrológico, contudo as
atividades antrópicas exploratórias da água e do meio ambiente, dificultam tal renovação,
acarretando a insuficiência e a limitação da quantidade e da qualidade dos recursos hídricos. Assim,
a água potável não é mais vista como um recurso renovável e ilimitado, mas sim um recurso
ambiental não renovável e finito. Neste sentido, lecionam com propriedade Carlos José Saldanha
Machado, Napoleão Miranda e Ana Amélia dos Santos Pinheiro:
"O processo conhecido como autodepuração das águas evitou durante algumas décadas que a
poluição dos corpos hídricos alcançasse níveis insuportáveis. Porém o crescimento da população
urbana e da industrialização, seguido do retardamento na construção de estações de tratamento de
despejos domésticos e industriais, ou mesmo o abandono das estações já construídas, resultou em
uma degradação acentuada da qualidade das águas de rios e lagoas de inúmeras localidades do
país, sobretudo, das regiões metropolitanas. É o caso da Lagoa da Tijuca, localizada na Zona Oeste
da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Ela apresenta 5 milhões de coliformes fecais por 100
milímetros de água, quando o máximo permitido é de 800 em cada 100 milímetros (Jornal do Brasil,
Coliformes, p. 8, 03.11.2001)!"34
Está abolida, pois, a mentalidade de que a água é um recurso natural abundante, infinito e
inesgotável, tanto que o legislador brasileiro, no art. 1.º, II da Lei 9.433/97, dispôs que os recursos
hídricos são exauríveis e frágeis, sendo necessária uma utilização racional para que seja possível a
conservação dos mesmos.
Verifica-se que tal assertiva apresenta-se em perfeita consonância com o Princípio 2.º da Carta
Européia da Água, de 06.05.1968, que assim dispõe: "Os recursos de águas doces não são
inesgotáveis. É indispensável preservá-los, administrá-los e, se possível, aumentá-los."35
A Declaração de Dublin sobre Água e Meio Ambiente, proclamada em janeiro 1992, em seu Princípio
1.º enaltece que "a água doce é um recurso finito e vulnerável, essencial para sustentar a vida, o
desenvolvimento e o meio ambiente."36
Além do mais, o Princípio 3.º da Declaração Universal dos Direitos da Água, de 22.03.1992,
assevera que devido à fragilidade e limitação dos recursos hídricos, estes devem ser utilizados com
racionalidade, precaução e parcimônia.37
A fim de estimular a gestão racional da água e conter a escassez deste recurso natural, atribui-se
valor econômico aos recursos hídricos, estando eles sujeitos à cobrança por serem utilizados,
consoante dispõe o Princípio 4.º da Declaração de Dublin de 1992:
"Princípio 4 - A água tem valor econômico em todos os usos competitivos e deve ser reconhecida
como um bem econômico."
No contexto deste princípio, é vital reconhecer inicialmente o direito básico de todos os seres
humanos do acesso ao abastecimento e saneamento à custos razoáveis. O erro no passado de não
reconhecer o valor econômico da água tem levado ao desperdício e usos deste recurso de forma
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destrutiva ao meio ambiente. O gerenciamento da água como bem de valor econômico é um meio
importante para atingir o uso eficiente e eqüitativo, e o incentivo à conservação e proteção dos
recursos hídricos."38
Da mesma forma, o Princípio 6.º da Declaração Universal dos Direitos da Água de 1992, reforça que
"a água não é uma doação gratuita da natureza; ela tem um valor econômico: precisa-se saber que
ela é, algumas vezes, rara e dispendiosa e que pode muito bem escassear em qualquer região do
mundo."39
Salienta-se que as finalidades de tal cobrança e os critérios para atribuição de valores vêm
expressos pelos arts. 19 usque 22 da Lei de Recursos Hídricos de 1997, sendo mais bem estudados
no tópico referente à cobrança pela utilização das águas.
A respeito deste ponto, Virgínia Amaral da Cunha Scheibe assinala o seguinte:
"[...] a escassez dos recursos hídricos perante uma demanda crescente, o caracteriza como bem de
valor econômico. Por outro lado, inegável a necessidade de resguardá-lo contra o mau uso
(degradação e excesso), garantir investimentos necessários à sua conservação e preservação. Tais
fatores ditam a necessidade de cobrança pelo seu uso, com aplicação do poluidor-pagador e do
específico princípio do usuário-pagador."40
Todavia, sendo a água um recurso natural finito, vulnerável e vital, nota-se que ela não possui
apenas valor econômico, mas também valor ambiental, cultural e social, conforme dispõe o Princípio
3.º da Declaração de Haia sobre Segurança Hídrica no Século XXI, proclamada em 22.03.2000:
"3.º Para atingir a segurança hídrica, temos de enfrentar os seguintes desafios:
[...]
Valorar a água: gerenciar a água de forma a levar em conta seu valor econômico, social, ambiental e
cultural para todos os usos, e para avançar na cobrança dos serviços de modo a refletir o custo do
fornecimento. Esta abordagem deve levar em conta a necessidade da eqüidade e as necessidades
básicas das populações pobres e vulneráveis." 41
Sentido similar foi estabelecido pelo artigo 3.2, do Projeto de Lei de Águas do Peru, de abril de 2003:
"Artículo 3.º Pricipios
Los principios que rigen el uso y aprovechamiento sostenible del água son:
[...]
3.2 Principio de valoración del agua
El agua tiene valor social, económico y ambiental, y su aprovechamiento debe basarse en el
equilibrio permanente entre éstos." 42
Assim, o princípio da finitude das águas está amparado, principalmente, por documentos de outros
países, os quais confirmam a limitação deste recurso ambiental. Tais documentos, outrossim, a fim
de efetivarem a preservação das águas potáveis estabelecem a cobrança pela utilização desses
recursos naturais, haja vista que são dotados de valor econômico, social, cultural e ambiental.
3.1.3 Princípio da gestão integrada
A gestão integrada dos recursos hídricos é aquela que leva em consideração o meio ambiente como
um todo, ou seja, considera os vários elementos do ambiente, como ar, água (atmosférica,
subterrânea, superficial), fauna, flora, solo e subsolo.
Dessa maneira, a gestão das águas deve ser realizada por bacias hidrográficas, as quais são
consideradas, segundo o art. 1.º, V da Lei de Recursos Hídricos, unidade territorial para que seja
implementada a PNRH e para que o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos
(SNGRH) atue.
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Assim, sendo a bacia hidrográfica tida como unidade territorial de gestão dos recursos hídricos
corrobora a gestão integrada das águas, devendo levar em consideração os vários elementos
ambientais.
A respeito do conceito de bacia hidrográfica, José Salatiel Rodrigues Pires, José Eduardo dos
Santos e Marco Estevan Del Prette compreendem o seguinte:
"O conceito de Bacia Hidrográfica (BH) tem sido cada vez mais expandido e utilizado como unidade
de gestão da paisagem na área de planejamento ambiental. Na perspectiva de um estudo
hidrológico, o conceito de BH envolve explicitamente o conjunto de terras drenadas por um corpo
d'água principal e seus afluentes e representa a unidade mais apropriada para o estudo qualitativo e
quantitativo do recurso água [...]."43
Eldis Camargo Neves da Cunha, por seu turno, complementa:
"Os sistemas de bacias hidrográficas fornecem um tipo de unidade mínima de ecossistema em
relação ao gerenciamento prático, o que facilita seu estudo e possibilita revelar até que ponto as
atividades humanas interferem no ciclo e nos processos que envolvem a água nos ecossistemas,iluminando os usos para assegurar que todos os brasileiros (gerações presentes e futuras) possam
usufruir desse bem de maneira a garantir a saúde física, emocional, psíquica e espiritual."44
A propósito deste assunto, Ana Cáudia Bento Graf assinala com propriedade:
"A qualidade da água funciona como um diagnóstico do estado de conservação do ambiente, visto
que, mediante a sua análise, é possível determinar o grau de erosão do solo, os lançamentos
orgânicos, a poluição por esgotos e até mesmo, a poluição atmosférica. Por esta razão, as bacias
hidrográficas têm sido usadas no mundo todo como unidades de planejamento de gestão ambiental
[...]."45
Desse modo, sendo a bacia hidrográfica unidade de administração dos recursos hídricos, o
legislador brasileiro confirma o ideário de gestão holística do meio ambiente, isto é, não considera a
água como um elemento estanque e dissociado dos outros, e sim a integração dela com os diversos
componentes da natureza, verbi gratia, ar, fauna, flora e solo. Neste sentido, Ênio Rezende de Souza
certifica:
"Gostaríamos de reforçar a interdependência e a interação entre os recursos naturais. A rigor, a
água, tanto em quantidade como em qualidade, é o resultado da interação dos recursos naturais
renováveis e não renováveis das ações antrópicas, das ações econômicas e do clima que atuam em
uma determinada bacia hidrográfica [...]."46
Ademais, a respeito de se considerar a bacia hidrográfica como unidade de gestão, Juliana Santilli
faz a seguinte ressalva:
"[...] sua aplicação prática depende de uma efetiva articulação entre representantes da União,
Estados, Distritos Federal, municípios e usuários das águas e organizações civis (de ensino,
pesquisa e dedicadas à defesa dos recursos hídricos e dos interesses coletivos), integrantes dos
Comitês de Bacia Hidrográfica criados pela nova lei."47
Isso quer dizer que para a gestão integrada lograr êxito, ela deve contar com a participação do
Estado e da sociedade, a fim de se culminar numa gestão racional e sustentável dos recursos
hídricos.
Além disso, salienta-se que a gestão por bacia hidrográfica não deve abranger somente as águas
superficiais, mas também as águas atmosféricas e subterrâneas, componentes que se integram e
são indissociáveis ao ciclo hidrológico. Tal assertiva é confirmada pela Declaração de Paris, de
21.03.1998, que indica:
"Promover a integração de todos os aspectos de desenvolvimento, gerenciamento e proteção dos
recursos hídricos, por meio de planos de desenvolvimento destinados a satisfazer as necessidades
básicas e promover alocação eficiente e eqüitativa dos recursos hídricos, a proteção de
ecossistemas e a manutenção do ciclo hidrológico."48
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Em sentido similar, a Declaração de Haia de 2000, em seu princípio 5.º, assevera:
"5.º As ações aqui mencionadas baseiam-se na gestão integrada de recursos hídricos, que inclui o
planejamento e a gestão dos recursos hídricos e do solo. Isto leva em conta fatores sociais,
econômicos e ambientais integrando a água de superfície, subterrânea e dos ecossistemas
correspondentes [...]."49
Sobre o assunto, o artigo 3.1, do Projeto de Lei de Águas do Peru, de abril de 2003, enaltece:
"Artículo 3.º Pricipios
Los principios que rigen el uso y aprovechamiento sostenible del água son:
[...]
3.1 Principio de gestión integrada
El agua es un recurso natural, vital y vulnerable que se renueva a través del ciclo hidrológico em sus
diversos estados. Requiere de una gestión integrada por cuencas hidrográficas, que contemple las
interrelaciones entre sus estados, así como la variabilidad de su cantidad y calidad en el tiempo y en
el espacio."50
A importância da gestão racional das águas subterrâneas, além disso, é exaltada por Eugene
Pleasants Odum:
"[...] um dos maiores perigos de desastre é a contaminação das águas subterrâneas e dos aqüíferos
profundos, os quais fornecem grande porcentagem da água usada nas cidades, na indústria e na
agricultura. Ao contrário das águas superficiais, as subterrâneas não podem ser purificadas depois
de poluídas, dado que não estão expostas à luz solar, à ação de correntes de água, nem a outros
processos de purificação das águas superficiais."51
Sem olvidar dos ecossistemas florestais, salienta-se que estes são de grande importância quanto à
evapotranspiração, elemento precípuo na manutenção do ciclo hidrológico e do regime de chuvas.
Quanto às águas atmosféricas ou meteóricas, verifica-se que a precipitação, na forma de chuva,
granizo ou neve, constitui um importante mecanismo natural de reposição dos recursos hídricos,52
não só das águas superficiais, mas também das subterrâneas.
Verifica-se, ademais, que o Princípio 6.º da Carta Européia da Água de 1968, considera essencial
para a conservação dos recursos hídricos a manutenção de um ecossistema florestal adequado.53
Neste sentido, Reinaldo Lorandi e Cláudio Jorge Cançado observam que:
"[...] quanto maior a densidade da cobertura vegetal, maior é a sua importância na redução da
remoção de sedimentos, no processo de escoamento superficial [...] e na conseqüente conservação
do solo. Além disso, [...] influenciam na redução dos efeitos erosivos naturais, podendo reduzir a
energia cinética da chuva, minimizando seu impacto sobre o solo [...]."54
Não se pode olvidar, ademais, dos aspectos referentes à poluição hídrica. Esta possui diversas
causas que devem ser combatidas tanto pelo Poder Público, como pela sociedade. Dentre as causas
de poluição das águas, destaca-se as de procedência natural (decomposição vegetal, erosão das
margens), as águas residuais (esgoto doméstico e industrial), as de procedência agropecuária
(excrementos de animais, pesticidas, fertilizantes), resíduos sólidos (lixo).55
Além disso, a gestão dos recursos hídricos também deve levar em consideração, exempli gratia, os
elementos concernentes ao desmatamento e à ocupação irregular do solo e sua erosão, sendo
imprescindível um prévio estudo sócio-econômico, cultural e ambiental da bacia hidrográfica, com o
fito de o gerenciamento das águas ser satisfatório e eficiente.
A gestão integrada dos recursos hídricos, desse modo, prima pela gestão das águas em conjunto
com os demais elementos do ambiente, sendo que a unidade territorial de gerenciamento mais
indicada é a bacia hidrográfica.
3.1.4 Princípio do domínio público das águas
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Corroborando a natureza jurídica atribuída às águas pela Constituição Federal de 1988, qual seja,
bem público de uso comum do povo, o art. 1.º, I, da Lei de Recursos Hídricos, estabelece que este
recurso natural é bem de domínio público e, portanto, não passível de apropriação por particulares.56
Assim, verifica-se que houve a extinção do ideário privatista em relação a todo e qualquer corpo
d'água.
Além disso, o domínio público dos recursos hídricos não significa que a União, o Distrito Federal e os
Estados Federados detenham a propriedade das águas, e sim que atuem na gestão57 e na
fiscalização desse recurso em prol do interesse público.
As águas, outrossim, não se confundem com bens dominicais, posto que estes são passíveis de
alienação, consoante o art. 101, da Lei 10.406, de 10.01.2002 (novo Código Civil). Reafirma-se que
os recursos hídricos são bens públicos de uso comum do povo, sendo, pois, inalienáveis (art. 99, I,
c/c o art. 100 da Lei 10. 406/2002).
Observa-se, ademais, que o art. 1.º, I da Lei de Recursos Hídricos, não especificou quais águas são
de domínio público, presumindo-se que este domínio ocorre sobre todo e qualquer corpo d'água.58
Sendo a água bem de domínio público, e mais, bem de uso comum do povo, corrobora-se a
necessidade de se efetivar a gestão participativa dos recursos hídricos.
3.1.5 Princípio da participaçãosocial no gerenciamento dos recursos hídricos
O princípio da participação social no gerenciamento dos recursos hídricos proclama a cooperação
entre Estado e sociedade como uma estratégia de fundamental importância para a solução dos
problemas na seara hídrica, visto que a participação dos diversos atores sociais torna mais eficiente
a formulação e execução de políticas voltadas para a conservação, defesa e recuperação das águas.
Sendo a água um bem difuso (bem público de uso comum do povo) e seu equilíbrio um interesse
transindividual, conforme estabelece o caput do art. 225 da CF/88, o indivíduo ciente de sua
responsabilidade ambiental deve contribuir administrando, defendendo e preservando os recursos
hídricos, verbi gratia, participando de audiências públicas ou, ainda, de reuniões do Comitê de Bacia
Hidrográfica (CBH). Posto isso, não só o Estado é obrigado a zelar pela sustentabilidade hídrica, as
pessoas comuns também compartilham de tal responsabilidade.
Observa-se que o presente princípio está intrinsecamente coligado com a efetivação dos princípios
da educação hídrica e da informação hídrica, posto que a participação de pessoas leigas no
gerenciamento dos recursos hídricos compromete a resolução de questões e problemas atinentes às
águas. Lado outro, os indivíduos, conscientes de seus deveres e tendo acesso a informações
precisas e atualizadas, têm condições mais favoráveis de fiscalizar, atuar e exigir seus direitos na
seara hídrica.
Cabe aqui salientar a ação das Organizações Não-Governamentais (ONG) nas questões
relacionadas ao meio ambiente, visto que, na época atual, as ONGs vêm ganhando cada vez mais
reconhecimento como agentes sociais, possuindo grande potencial na efetivação da participação
comunitária, tanto que em março de 1998 o papel de tais organizações foi considerado essencial
pela Declaração de Paris sobre Água e Desenvolvimento Sustentável.59
A Lei de Recursos Hídricos de 1997, em seu art. 1.º, VI, institui como um de seus fundamentos que
"a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder
Público, dos usuários e das comunidades."60
A Declaração de Dublin de 1992 também ressalta a relevância da participação social na
administração dos recursos hídricos em seu princípio segundo:
"Princípio 2 - Gerenciamento e desenvolvimento da água deverá ser baseado numa abordagem
participativa, envolvendo usuários, planejadores legisladores em todos os níveis.
A abordagem participativa envolve uma maior conscientização sobre a importância da água entre os
legisladores e o público em geral. Isto significa que as decisões são tomadas no menor nível possível
com participação total do público e envolvimento de usuários no planejamento e implementação de
projetos de água."61
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A questão do gerenciamento participativo dos recursos também é sublinhada pela Declaração de
Paris sobre Água e Desenvolvimento Sustentável.
Observa-se que tal declaração, no que se refere à fortificação das instituições locais ligadas à
administração das águas, além de exortar as parcerias entre as esferas pública e privada, também
salienta o envolvimento do indivíduo no processo de tomada de decisões e declara a essencialidade
das ONGs em seu papel fomentador da participação social.62
A Declaração de Haia sobre Segurança Hídrica no Século XXI, em sua terceira cláusula declarou
como um de seus desafios a necessidade de se "governar racionalmente os recursos hídricos:
assegurar uma administração competente que considere o envolvimento da população e os
interesses de todos os atores na gestão dos recursos hídricos."63
Ademais, a sexta regra, da Declaração de Haia, estabelece que:
"A Gestão integrada de recursos hídricos depende da colaboração e do estabelecimento de
parcerias em todos os níveis, desde os cidadãos até os organismos internacionais, baseados no
compromisso político, e numa ampla conscientização social, sobre a necessidade da segurança
hídrica e da gestão integrada dos recursos hídricos. Para obter a gestão integrada dos recursos
hídricos, são necessárias políticas coerentes em nível nacional, regional e internacional para superar
a fragmentação, e poder contar com instituições transparentes e com credibilidade em todos os
níveis."64
Observa-se que a cooperação entre o Estado e a sociedade na gestão das águas apresenta-se
intrinsecamente ligado aos princípios da educação e da informação hídrica, os quais serão
analisados em seguida.
Assim, para que haja uma efetiva da participação social na gestão das águas, a população deve ser
preparada através de uma plena educação sobre a preservação hídrica, além de ter acesso livre e
amplo às informações e dados pertinentes à situação dos recursos hídricos do país, sendo que o
Poder Público deve disponibilizar, estimular e facilitar o acesso da população em relação a tais
informações e dados.
3.1.6 Princípio da educação sobre preservação hídrica
O princípio ora apreciado representa um dos pilares para se efetivar a participação social na gestão
dos recursos hídricos, visto que tem como escopo imbuir o homem de uma consciência ambiental,
mormente quanto às águas.
A finalidade dessa educação sobre águas, ademais, é que se concretize um processo educacional
de estudo e aprendizagem sobre a importância da sustentabilidade hídrica para a perpetuação da
vida, haja vista que, consoante proclama o segundo princípio da Declaração Universal dos Direitos
da Água, "a água é a seiva de nosso planeta. Ela é condição essencial de vida de todo vegetal,
animal ou ser humano. Sem ela não poderíamos conceber como são a atmosfera, o clima, a
vegetação, a cultura ou a agricultura."65
Assim, em termos gerais, a educação sobre a preservação hídrica deve focar-se primeiramente no
ensino de técnicas de preservação e reconstituição dos recursos hídricos. Em seguida deve preparar
os indivíduos para que utilizem meios legais e institucionais a fim de proteger as águas através de
instrumentos jurídicos próprios como, exempli gratia, a ação popular (art. 5.º, LXIII, CF/88). Por fim,
imprescindível é a compreensão, ainda que de maneira preliminar, sobre processo de gestão dos
recursos hídricos.
Concretizando estas três fases, dotar-se-á o ser humano de uma consciência sobre a água, ou mais,
de uma consciência ambiental, haja vista que o gerenciamento das águas deve ser integrado com os
demais elementos ambientais, como ar, fauna, flora e solo. Destarte, é possível considerar a
educação sobre a preservação hídrica como um elemento catalisador do uso racional e comedido
das águas e da conservação dos recursos hídricos e do meio ambiente.
Posto isso, conforme a educação sobre as águas estimula a sociedade, esta eleva sua consciência
quanto a conservação e preservação das águas, assegurando, assim, a sustentabilidade hídrica.
O desenvolvimento do direito das águas como um ramo
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A efetivação da educação sobre a preservação hídrica, outrossim, reflete-se na utilização racional
das águas, sendo que o indivíduo será imbuído de uma consciência em questões hídricas,
auxiliando-o, dessa forma, nos processos de conservação, recuperação, defesa e administração dos
recursos hídricos.
No que se refere ao mérito da educação sobre a preservação hídrica na gestão racional dos recursos
hídricos, a Carta de Montreal sobre Água Potável e Saneamento de 1990 em seu quarto princípio
constata que a administração estritamente técnica não é satisfatória nem suficiente, sendo a
educação sobre águas uma forma de estimular a participação social nas matérias pertinentes às
águas, como se verifica:
"4. Miser sur l'éducation et la formation des populations.
Partant du constat que les solutions purement techniques ne suffisent pas à elles seules à assurer
une meilleure qualité de vie auxpopulations, il est nécessaire de prévoir avec tout projet et
programme liés à l'eau, un volet formation visant également les hommes et les femmes."66
Dessa forma, faz-se necessário a participação efetiva de homens dotados de consciência ambiental
nos programas e projetos relacionados à água, a fim de se obter uma gestão integrada satisfatória
da mesma, além da sustentabilidade hídrica.
Salienta-se, outrossim, que o princípio da educação hídrica atua como um dos pilares da
participação social no gerenciamento dos recursos hídricos, sendo o outro o princípio da informação
hídrica.
Ademais, ressalta-se que o direito à educação, abarcando a educação sobre a preservação hídrica,
está compreendido entre os direitos sociais (art. 6.º, CF/88), sendo uma garantia fundamental e
inerente às pessoas. Também é garantido pelo art. 205 da CF/88, determinando que:
"Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho."67
Do exposto, vale salientar que a educação, quando efetiva, estimula a criatividade do homem na
propositura de soluções que resolvam os problemas concernentes aos recursos hídricos.
A respeito do assunto em pauta, Maria Edith Rolla, Norma Dulce de Campos Barbosa e Vasco
Campos Torquato lecionam o seguinte:
"É indispensável que o professor leve seus alunos a conhecerem melhor e a refletirem sobre os
cuidados com a preservação e uso racional da água.
[...] sistematizar, informar e sugerir atividades que promovam um melhor conhecimento e
conseqüente crescimento do educador e do aprendiz. O facilitador deve aprofundar-se nos
conceitos, levantar questionamentos, estimular a reflexão, orientar a pesquisa de novas informações,
permitindo, assim, que o aluno descubra caminhos que o levem a aprender, a conhecer, a fazer, a
ser e a conviver como cidadão consciente."68
Com vistas à adequada valoração dos recursos hídricos pela sociedade, a educação hídrica é
exaltada no art. 4.7 do Projeto de Lei de Águas do Peru, de abril de 2003:
"Artículo 4.º Lineamientos de política
El Estado adopta los siguientes lineamientos de política que rigen el uso y aprovechamiento
sostenible del água:
[...]
4.7 Educación
El Estado promueve, a través del sistema educativo, uma adecuada valoración de lãs águas por
parte de la población."69
O desenvolvimento do direito das águas como um ramo
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Outrossim, a fim de se complementar a educação sobre a preservação hídrica, torna-se necessário
que o Poder Público, principalmente, fomente cursos e palestras, em níveis locais, com vistas ao
incremento da consciência sobre águas. Neste ponto, vale ressaltar que o livre acesso às
informações e dados relativos às águas é outro ponto basilar para a consecução de uma gestão
participativa no gerenciamento dos recursos hídricos.
Cumpre observar, além do mais, que é importante a qualificação dos profissionais tanto na execução
como para a adoção de decisões, já que há carência de pessoal qualificado (verbi gratia, educadores
e técnicos) no setor atinente à gestão dos recursos hídricos.70
Neste sentido, o Princípio 9.º da Carta Européia da Água de 1968, indica que a formação de
especialistas concernentes ao assunto é necessária à proteção das águas, isto é, "a salvaguarda da
água implica um esforço crescente de investigação, formação de especialistas e de informação
pública."71
A capacitação dos profissionais também é recomendada pela Declaração de Dublin sobre Água e
Meio Ambiente, de 31.01.1992:
"Capacitação
Todas as ações identificadas no Relatório da Conferência de Dublin exigem funcionários bem
treinados e qualificados. Países devem identificar, como parte dos planos nacionais de
desenvolvimento, necessidades de treinamento para avaliação e gestão dos recursos hídricos, e
avançar internamente, e, caso seja necessário, com a cooperação de agências técnicas, para
fornecer o treinamento necessário, e condições de trabalho que ajudem a manter os funcionários
treinados.
Governos devem avaliar a capacidade de equipar os especialistas em água e outros para
implementarem atividades abrangentes de gestão integrada dos recursos hídricos. Isto exige o
provimento de um ambiente capacitador em termos de aspectos legais e institucionais, incluindo
aqueles de gestão efetiva de demanda de água.
A conscientização é vital na estratégia participativa de gestão dos recursos hídricos. A informação,
educação e programas de comunicação de apoio devem ser parte integral do processo de
desenvolvimento."72
A educação sobre preservação hídrica, por conseguinte, revela-se imprescindível à efetivação da
participação social no gerenciamento das águas, além de indispensável à consecução da
sustentabilidade hídrica.
Passa-se à análise do princípio da informação sobre águas, tão importante quanto o princípio da
educação sobre a preservação hídrica.
3.1.7 Princípio da informação sobre águas
O princípio da informação sobre águas representa o outro pilar-mestre da efetiva participação
comunitária no gerenciamento dos recursos hídricos, uma vez que o homem somente poderá
participar ativamente e de modo satisfatório se possuir, além da educação sobre a preservação
hídrica, informações precisas e atualizadas concernente às águas.
Hodiernamente, com o super-desenvolvimento dos meios de comunicação (rádio, televisão, rede de
computadores) o princípio da informação sobre águas possui todos os meios necessários à efetiva
propagação de dados atinentes aos recursos hídricos. Basta tais meios serem utilizados com a
devida sabedoria e competência.
Mais que simplesmente apresentar dados ao homem, a informação serve de instrumento para que o
indivíduo opte por certa posição quanto a um determinado assunto, ou crie seu próprio juízo de valor
sobre a matéria informada.
A informação sobre águas, ademais, é assegurada pela Carta Magna que em seu art. 5.º, incisos XIV
e XXXIII, determina que o acesso à informação, como direito fundamental, é garantido a toda
coletividade.
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A Carta Européia da Água de 196873 tratou de forma específica a respeito da informação no âmbito
dos recursos hídricos. O princípio sétimo sugere que "os recursos hídricos devem ser inventariados."
Ademais, o princípio nono indica que "a salvaguarda da água implica um esforço crescente de
investigação, formação de especialistas e de informação pública."
Exortando a importância da informação com relação à gestão das águas, a Declaração de Paris de
1998 prescreve a seguinte necessidade:
"Melhorar o conhecimento, treinamento e troca de informações estimulando o aumento de
transferência de tecnologia e especialização; o desenvolvimento de sistemas de monitoramento e
informação relacionados aos recursos hídricos e seus múltiplos usos; e o apoio de programas de
treinamento técnico e de reforço. Simultaneamente, os pobres e as minorias; as comunidades
indígenas; os jovens; as autoridades locais; os líderes e comunidades locais; e ONGs deverão ser
capacitados a se envolverem cada vez mais no processo de tomada de decisão. As mulheres
deverão ser capacitadas para participar integralmente na definição e implementação do projeto."74
Verifica-se, do exposto, que o princípio da informação sobre águas está intimamente ligado à
efetivação da gestão participativa da sociedade no gerenciamento dos recursos hídricos.
Ademais, o art. 5.º, VI, da Lei de Recursos Hídricos, prescreve como um dos instrumentos da PNRH
o Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos (SIRH), o qual possui a finalidade precípua de
assegurar à sociedade o acesso a informações precisas e atualizadas sobre as águas do país.
O SIRH consiste numsistema de armazenamento, coleta, recuperação e tratamento de informações
sobre recursos hídricos e fatores que interferem na sua gestão (art. 25, Lei 9.433/97). Além disso, tal
sistema deve associar dados e informações concernentes às águas meteóricas, subterrâneas e
superficiais, além de outros componentes ambientais, como a flora e o solo, a fim de uma
implementação efetiva da gestão integrada dos recursos hídricos.
Ademais, os objetivos do SIRH (art. 27, Lei 9.433/97) apresentam-se em perfeita sintonia com o
princípio 7.º da Carta Européia da Água de 1968, propondo que os recursos hídricos devem ser
inventariados, a fim de se efetivar uma gestão racional e satisfatória das águas.75
Da mesma forma dispõe a Declaração de Paris de 1998, exortando que o conhecimento e a
compreensão em todos os níveis de recursos hídricos é crucial ao gerenciamento adequado e efetivo
dos mesmos.76
Ademais, quanto ao instrumento sob exame, Juliana Santilli conclui:
"[...] Trata-se de instrumento que visa incorporar definitivamente à lei o princípio da transparência e
publicidade na gestão dos recursos hídricos, indispensável a uma efetiva gestão compartilhada entre
usuários, sociedade civil e Poder Público Federal, Estadual e Municipal."77
Verifica-se, outrossim, que a organização, implantação e gerenciamento do SIRH compete à Agência
Nacional de Águas (ANA), conforme dispõe o art. 4.º, XIV, da Lei 9.984, de 17.07.2000.
3.1.8 Princípio da cooperação entre os povos
A cooperação entre os povos dá ensejo à troca de experiências entre os países a fim de que,
exempli gratia, nações que possuem um bom desempenho no gerenciamento de suas águas
apresentem suas técnicas e pesquisas aos países que ainda estão em fase inicial na administração
de seus recursos hídricos. Além da troca de informações, os povos devem atuar de modo conjunto
nas questões atinentes à gestão das águas.
No que se refere ao Brasil, é necessário que se estabeleça um trabalho de colaboração entre as
nações fronteiriças e o país, principalmente quando compartilham a mesma bacia hidrográfica, como
ocorre nas regiões hidrográficas da Amazônia, do Paraguai, do Paraná, do Atlântico Sul e do
Uruguai; ou, ainda, quando compartilham o mesmo aqüífero, in casu, o Aqüífero Guarani que se
estende pelos territórios da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai.
Observa-se que a água não reconhece fronteiras impostas pelo homem. Dessa forma, a
conservação, a proteção e a gestão dos recursos hídricos devem acontecer de forma conjunta entre
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as nações. Isto pode ser concretizado através de tratados ou acordos entre os países limítrofes,
tendo-se como exemplos o Tratado da Bacia do Prata,78 de 23.04.1969; o Tratado de Cooperação
Amazônica,79 de 03.07.1978; e o Acordo do Rio Paraná,80 de 19.10.1979.
Destaca-se que a cooperação entre os povos é um dos princípios que norteiam o Brasil em suas
relações internacionais, conforme o art. 4.º, IX, da CF/88.
Quanto à cooperação internacional referente às águas, a Carta Européia da Água de 1968, em seu
Princípio 12, consagrou que os recursos hídricos não possuem fronteiras, posto que é um recurso
natural comum e tem de ser, pois, objeto de cooperação entre os povos.81
Exortando à cooperação internacional, a Declaração de Paris sobre Água e Desenvolvimento
Sustentável de 1998 dispõe que tal princípio é imprescindível na consecução de seus objetivos em
níveis nacional, regional e mundial. Ademais, declara ser indispensável que os países possuam uma
visão compartilhada das águas transfronteiriças a fim de proteger, desenvolver e administrar de
modo satisfatório e racional este recurso natural.82
A Declaração de Haia sobre Segurança Hídrica no Século XXI, por seu turno, institui como um de
seus desafios impulsionar a partilha das águas através da colaboração e da criação de uma gestão
conjunta entre os países que possuem recursos hídricos limítrofes e transfronteiriços.83
O princípio da cooperação entre os povos foi disciplinado pelo primeiro artigo do Tratado da Bacia do
Prata, de 23.04.1969, promulgado pelo Brasil através do Dec. 67.084, de 19.08.1970, da seguinte
maneira:
"Art. 1.º. As partes contratantes convêm em conjugar esforços com o objeto de promover o
desenvolvimento harmônico e a integração física da Bacia do Prata e de suas áreas de influência
direta e ponderável.
Parágrafo único - Para tal fim promoverão, no âmbito da Bacia, a identificação de áreas de interesse
comum e a realização de estudos, programas e obras, bem como a formulação de entendimentos
operativos ou instrumentos jurídicos que estimem necessários e que propendam:
a. À facilitação e assistência em matéria de navegação;
b. À utilização racional do recurso água, especialmente através da regularização dos cursos d'água e
seu aproveitamento múltiplo e eqüitativo;
c. À preservação e ao fomento da vida animal e vegetal;
d. Ao aperfeiçoamento das interconexões rodoviárias, ferroviárias, fluviais, aéreas, elétricas e de
telecomunicações;
e. À complementação regional mediante a promoção e estabelecimento de indústrias de interesse
para o desenvolvimento da Bacia;
f. À complementação econômica de áreas limítrofes;
g. À cooperação mútua em matéria de educação, saúde e luta contra as enfermidades;
h. À promoção de outros projetos de interesse comum e em especial daqueles que se relacionam
com o inventário, avaliação e o aproveitamento dos recursos naturais da área;
i. Ao conhecimento integral da Bacia do Prata."84
O Tratado de Cooperação Amazônica de 1978 traz em seu arcabouço artigos que dispõem a
respeito da cooperação dos países limítrofes da Bacia Amazônica, como se verifica:
"Art. 1.º. As Partes Contratantes convêm em realizar esforços e ações conjuntas a fim de promover o
desenvolvimento harmônico de seus respectivos territórios amazônicos, de modo a que essas ações
conjuntas produzam resultados eqüitativos e mutuamente proveitosos, assim como para a
preservação do meio ambiente e a conservação e utilização racional dos recursos naturais desses
territórios.
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Parágrafo único: Para tal fim, trocarão informações e concertarão acordos e entendimentos
operativos, assim como os instrumentos jurídicos pertinentes que permitam o cumprimento das
finalidades do presente Tratado.
[...]
Art. 5.º. Tendo em vista a importância e multiplicidade de funções que os rios amazônicos
desempenham no processo de desenvolvimento econômico e social da região, as Partes
Contratantes procurarão envidar esforços com vistas à utilização racional dos recursos hídricos."85
O Acordo do Rio Paraná de 1979 em sua quarta cláusula dispõe que as tomadas de decisão, com
relação ao rio Paraná, devem ser caracterizadas pelo espírito da boa vizinhança e cooperação na
busca de soluções entre as partes (Argentina, Brasil e Paraguai), de modo que haja uma
convergência recíproca de interesses:
"Art. 4.º. The deliberations were characterized by a spirit of good neighborliness and cooperation in
search of a solution which represents, for the three parties, the effective convergence of interests and
the attainment of reciprocal benefits." 86
O princípio da cooperação entre os povos constitui o âmago da gestão conjunta entre os países.
Destacam-se dois pontos: a) conjunção de esforços entre países que compartilham a mesma bacia
hidrográfica, a fim de realizarem uma gestão integrada e satisfatória de suas águas; b) troca de
experiências entre os mais diversos países no que se refere à gestão de seus recursos hídricos para
que haja um incremento do intercâmbio de informações.
Entende-se por cooperação, a colaboração, o auxílio, o trabalho conjunto. Assim, visto a iminente
escassez da água potável no âmbito global, de fundamental importância é a coligaçãodos países a
fim de compartilharem, ou até mesmo criarem, técnicas mais eficientes de gerenciamento dos
recursos hídricos. Ademais, consoante leciona Rubens Harry Born, a cooperação entre os países
não deve se restringir à gestão conjunta das bacias hidrográficas limítrofes, mas também entre
países não fronteiriços, a fim de que a troca de experiências e tecnologias para a administração dos
recursos hídricos contribua para a luta contra a poluição.87
3.2 Institutos autônomos do direito das águas
Além de princípios, o direito das águas possui institutos autônomos que o diferencia dos demais
ramos do direito.
Numa enumeração não taxativa, os seguintes institutos, próprios do direito das águas, podem ser
verificados: Política Nacional de Recursos Hídricos, Sistema Nacional de Gerenciamento de
Recursos Hídricos, Planos de Recursos Hídricos, enquadramento dos corpos de água em classes,
outorga dos direitos de uso dos recursos hídricos, cobrança pelo uso das águas, Sistema de
Informações sobre Recursos Hídricos, Comitês de Bacia Hidrográfica.
Embora sejam muitos os institutos peculiares ao direito das águas, nesse trabalho são estudados
apenas dois, devido à relevância dos mesmos. São eles: a outorga dos direitos de uso dos recursos
hídricos e a cobrança pela utilização das águas.
3.2.1 Outorga dos direitos de uso das águas
A outorga de direito de uso das águas é caracterizado por ser ato administrativo através do qual a
autoridade outorgante (Poder Público) permite ao outorgado (interessado) utilizar os recursos
hídricos, por tempo determinado, nas condições e nos termos expressos do correspondente ato
(artigo 1.º, Resolução CNRH 16, de 08.05.2001).88
Maria Luiza Machado Granziera acrescenta:
"A outorga de direito de uso da água [...] é o instrumento através do qual o Poder Público atribui ao
interessado, público ou privado, o direito de utilizar privativamente o recurso hídrico. Esse
instrumento de gestão tem assumido uma importância cada vez maior, à medida que a situação dos
recursos hídricos, de poluição e escassez requer um controle maior por parte da União e dos
Estados."89
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O regime de outorga de direitos da utilização das águas possui dois objetivos, quais sejam, garantir o
controle da qualidade e da quantidade do uso dos recursos hídricos, e assegurar o exercício
concreto dos direitos à acessibilidade de tais recursos naturais (art. 11, Lei 9.433/97).
Outrossim, a Lei de Recursos Hídricos, de maneira taxativa, estabelece em seu art. 12 quais os usos
estão submetidos à obrigatoriedade da outorga pelo Poder Público.
De maneira reservada, o parágrafo primeiro do mesmo dispositivo, discrimina quais usos não
dependem da outorga pelo Poder Público, não sendo, assim, submetidos à cobrança pela utilização
dos recursos hídricos. São eles: utilização da água destinada à saciar as necessidades de pequenos
núcleos rurais; captações, derivações e lançamentos insignificantes; e as acumulações
insignificantes de água.
Salienta-se, além disso, que os critérios utilizados para considerar um volume de água como
insignificante serão determinados pelos planos de recursos hídricos, aprovados pelos respectivos
CBHs ou, não existindo estes, pela autoridade outorgante (artigo 5.º, parágrafo único, da Resolução
CNRH 16, de 08.05.2001).
Ademais, conforme o art. 13 da Lei de Recursos Hídricos, a outorga deve observar os múltiplos usos
dos recursos hídricos segundo a classe na qual o corpo d'água se enquadra, bem como
subordinar-se às prioridades de uso definidas nos Planos de Recursos Hídricos (art. 7.º, VIII, Lei
9.433/97), os quais são elaborados pelas Agências de Águas (art. 44, X, Lei 9.433/97) e aprovados
pelo CBH (art. 38, III, Lei 9.433/97). Além disso, a outorga deve ter como escopo, quando for o caso,
a manutenção de condições apropriadas ao transporte aquaviário, o qual é disciplinado pela Lei
9.432, de 08.01.1997.90
Compete ao Poder Executivo Federal, aos Estados Federados e ao Distrito Federal efetivar a
outorga através de ato da respectiva autoridade competente, sendo que é facultado ao Poder
Executivo Federal delegar aos Estados Federados e ao Distrito Federal a competência para
conceder a outorga de direito do uso de corpo d'água de domínio da União (art. 14, § 1.º da Lei
9.433/97 c/c art. 20 da CF/88).
Salienta-se que a autoridade competente para realizar a outorga dos cursos d'água de domínio da
União é a ANA (arts. 4.º, IV; 5.º usque 8.º; Lei 9.984, de 17.07.2000).
Quanto aos recursos hídricos de domínio dos Estados Federados, o órgão que possuirá competência
na realização da outorga é estabelecido pelas respectivas leis estaduais de recursos hídricos.
A suspensão da outorga prevista no art. 15 da Lei de Recursos Hídricos, outrossim, deve pautar-se
no princípio da motivação, demonstrando o liame causal entre o fato e tal suspensão, além de esta
não suscitar direito à indenização ao outorgado.91
O prazo de utilização das águas concedido pelo regime de outorga é de no máximo trinta e cinco
anos, sendo passível de renovação (art. 16 da Lei 9.433/97). Esta norma revogou o art. 43 do Código
de Águas de 1934, o qual estabelecia um prazo máximo de trinta anos às concessões ou
autorizações.
Ressalva-se, ademais, que a outorga alude apenas ao mero direito de uso das águas, e não à sua
alienação (art. 18 da Lei 9.433/97 c/c artigo 1.º, § 1.º, da Resolução CNRH 16, de 08.05.2001). Tanto
que a Constituição de 1988 considerou todos os corpos d'água como bens de uso comum do povo,
sendo, por conseguinte, inalienáveis.
3.2.2 Cobrança pela utilização das águas
Preliminarmente, salienta-se que a cobrança refere-se à água como matéria-prima, em seu estado
bruto, não traz à baila, pois, custos de tratamento ou de distribuição.
Quanto à natureza jurídica dessa cobrança, compreende-se que não é imposto, nem taxa, nem
contribuição de melhoria, e sim um preço público que internaliza os custos da proteção ambiental.92
Não possuindo natureza tributária, a cobrança pela utilização da água detém, pois, caráter
extrafiscal.93
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Além disso, consoante leciona Maria Luiza Machado Granzieira,94 a cobrança pela utilização dos
recursos hídricos pauta-se nos princípios do usuário-pagador e usuário-poluidor. O primeiro é
compreendido como o pagamento efetuado pelo usuário quanto ao direito de uso da água (art. 4.º,
Lei 6.938, de 31.08.1981). Já o princípio do usuário-poluidor, corrobora o ideário de que o poluidor
não deve apenas desembolsar um valor pecuniário pelo dano que causou, mas também recuperar a
área degradada (arts. 111 e 112, Código de Águas de 1934; art. 4.º, Lei 6.938/81 e art. 225, § 3.º,
CF/88).
Outrossim, a cobrança pelo uso das águas, conforme o art. 19 da Lei de Águas, possui as seguintes
finalidades:
# o reconhecimento da água como bem econômico, demonstrando ao usuário uma indicação do seu
real valor (arts. 1.º, II; 19, I; Lei 9.433/97 c/c o art. 4.º, VII; Lei 6.938/81);
# o estimulo à racionalização do uso dos recursos hídricos (art. 19, II; Lei 9.433/97 c/c o art. 2.º, II;
4.º, VII; Lei 6.938/81)
# a arrecadação de recursos, visando ao financiamento de programas e intervenções previstos nos
Planos de Recursos Hídricos.
Verifica-se, pois, que a cobrança pela utilização dos recursos hídricos não é compreendida como fim,
mas como meio de conservação e preservação das águas, pelo qual o uso da água se tornará mais
eficiente, racional e sustentável.
Neste aspecto, Aldo da Cunha Rebouças verifica que:
"[...] tanto o Banco Mundial quanto as Nações Unidas, estabelecem que o princípio da cobrança pelo
direito de uso da água, poderia ser uma medida indutora do seu uso mais racional, de combate aos
desperdícios e degradação da sua qualidade, cujos níveis alcançados nunca

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