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Incluir para excluir * Alfredo Veiga-Neto ** Dab es den Menschen so scheint, ist ihr Kriterium dafür, dab es so ist.1(Wittgenstein, 1977, p.72) Em recente artigo que escrevi para o número especial da revista Proposições sobre "Educação Especial: exclusão/inclusão", da Universidade de Campinas\u2014UNICAMP, discuti algumas das dificuldades e ambigüidades que enfrentam as políticas que pretendem fazer a inclusão escolar dos anormais, justamente em decorrência, tais dificuldades, da própria construção moderna da normalidade (Veiga-Neto, 2001). Incorporando boa parte do que já havia feito, retomo agora, neste capítulo, aquela discussão. O que há de novo aqui se concentra sobretudo na primeira metade deste texto; com isso, pretendo tanto colocar minha discussão num âmbito mais abrangente quanto matizar algumas questões que, talvez, não tivessem ficado suficientemente claras naquele artigo anterior. Em todo caso, aqui meu objetivo continua modesto: o que segue ainda não passa de alguns apontamentos sobre as atuais assim chamadas políticas de inclusão dos anormais, feitos a partir dos estudos foucaultianos que venho desenvolvendo nos últimos anos. De início, quero deixar claro que, na esteira das contribuições de Michel Foucault, estou usando a palavra anormais para designar esses cada vez mais variados e numerosos grupos que a Modernidade vem, incansável e incessantemente, inventando e multiplicando: os sindrômicos, deficientes, monstros e psicopatas (em todas as suas variadas tipologias), os surdos, os cegos, os aleijados, os rebeldes, os pouco inteligentes, os estranhos, os GLS 2 , os "outros", os miseráveis, o refugo enfim. Assim, sob essa denominação genérica \u2014os anormais\u2014, abrigam-se diferentes identidades flutuantes cujos significados se estabelecem discursivamente em processos que, no campo dos Estudos Culturais, se costuma denominar políticas de identidade. Trata-se de processos que estão sempre atravessados por relações de poder, de cuja dinâmica decorre justamente o caráter instável e flutuante dessas e quaisquer outras identidades culturais. Nesse ponto, os anormais não são uma exceção. Assim, o que é crucial entender é que os anormais não são, em si ou ontologicamente, isso ou aquilo; nem mesmo eles se instituem em função do que se poderia chamar de desvio natural em relação a alguma suposta essência normal. Seguindo o segundo Wittgenstein, isso equivale a dizer que, ao invés de buscar uma suposta correlação entre os significados de alguma identidade anormal e um objeto normal \u2014na ilusão de poder, a partir daí, estabelecer o que é mesmo esse anormal\u2014, o que interessa é examinar os significados deanormal a partir dos usos que se faz dessa expressão. Mas não se trata tão somente de fazer uma análise denotacionista, de cunho lingüístico, fenomenológico, mas sim de, abandonando qualquer pretensão de encontrar alguma relação entre linguagem e mundo, empreender uma análise genealógica dessas expressões e dos jogos de linguagem e de poder em que elas assumem os significados que têm. Como explica Ewald (1993, p.87), "saber como se efetua a partilha entre o normal e o anormal constitui todo um problema. Compreende-se que ela nunca exprimirá uma lei da Natureza; tão só pode formular a pura relação do grupo consigo mesmo". Se nos parecem duras as palavras com que é designado aquele variado elenco de "tipos" \u2014e tantos outros quanto mais continuarem se ampliando e refinando os saberes sobre a diversidade humana 3\u2014, é justamente porque as práticas de identificação e classificação estão implicadas com tão poderosas relações de poder que a assimetria que delas resulta parece não se encaixar com alguns dos nossos ideais iluministas. Se nos incomoda até mesmo a palavra anormal é porque sabemos \u2014ou, pelo menos, "sentimos"\u2014 que o seu sentido moderno gestou-se por sucessivos deslocamentos a partir de outros tipos situados em outras práticas e estratos discursivos \u2014como os monstros, os masturbadores e os incorrigíveis (Foucault, 1999b)\u2014, e às custas de oposições, exclusões e violência. Voltarei a esse ponto, mais adiante. E pode ser, também, que a palavra incomode aqueles que, explícita ou implicitamente, colocam ao abrigo dela até mesmo essa crescente massa humana dos sem-emprego, dos sem-teto, dos sem-terra, dos sem-cidadania, dos sem-nada. Nesse caso, tenho argumentado que o deslocamento que referi acima está sendo, hoje em dia, levado adiante: de um plano cuja ênfase incidia sobre a morfologia e a conduta (dos corpos), para um plano cuja ênfase agora se dá sobre a economia e a privação (de determinados estratos populacionais). Em outras palavras: ainda que os critérios da partilhanormal\u2014anormal emerjam da "pura relação do grupo consigo mesmo", as marcas da anormalidade vêm sendo procuradas, ao longo da Modernidade, em cada corpo para que, depois, a cada corpo se atribua um lugar nas intrincadas grades das classificações dos desvios, das patologias, das deficiências, das qualidades, das virtudes, dos vícios. O que agora me parece ser uma novidade é a inversão que a lógica do neoliberalismo vem operando nesse processo. A saber, a atribuição de uma marca \u2014agora, construída a partir de critérios fundamentalmente econômicos, como capacidade de consumir, avaliada tanto pelo poder financeiro quanto pela competência/expertise para fazer as melhores escolhas (Veiga- Neto, 2000b)\u2014 não propriamente a um corpo, mas a toda uma fração social para que, depois, se diga que qualquer corpo dessa fração é normal ou anormal pelo simples fato de pertencer a tal fração. Isso equivale a dizer que o critério de entrada não é mais o corpo (em sua morfologia e comportamento); o critério de entrada pode ser, também, o grupo social ao qual esse corpo é visto como indissoluvelmente ligado. Não é difícil notar o quão forte é o poder envolvido nesses processos. Correlativamente, também não é difícil notar o quanto parece estar se ampliando o conceito e o uso da norma como estratégia de dominação. Como sabemos, frente aos incômodos que palavras como normal e anormalidade podem nos causar, são possíveis algumas alternativas. Uma delas consiste na pura e simples negação abstrata 4 dos anormais (no plano epistemológico), da qual resultam as práticas de exclusão mais explícitas e radicais (no plano material). Trata- se de práticas que têm no racismo o seu ponto imediato de convergência, se entendermos por racismo não apenas a rejeição do diferente mas, também, a obsessão pela diferença, entendida como aquilo que contamina a pretensa pureza, a suposta ordem, a presumida perfeição do mundo. A diferença pensada como uma mancha no mundo, na medida em que os diferentes teimam em não se manterem dentro dos limites nítidos, precisos, com os quais o Iluminismo sonhou geometrizar o mundo. A diferença entendida como aquilo que, sendo desviante e instável, estranho e efêmero, não se submete à repetição mas recoloca, a todo momento, o risco do caos, o perigo da queda, impedindo que o sujeito moderno se apazigúe no refúgio eterno de uma prometida maioridade. Uma outra alternativa consiste no recurso à proteção lingüística dada por algumas figuras de retórica, entre as quais temos bons exemplos nas perífrases do tipo "aqueles que necessitam de cuidados ou atendimentos especiais" e nos eufemismos do tipo "portadores de deficiências 5 ". Lembro que uma parcela dos discursos em prol do politicamente correto adota essa saída, como se quisesse expiar uma culpa, passando por cima dessa questão \u2014fazendo dela uma questão apenas técnica ou, quanto muito, epistemológica\u2014, e jogando para debaixo do tapete a violência que se põe em movimento nessas práticas. Uma terceira