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A problematica dos Arquivos

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• 
Intimidade versus Interesse Público: 
a Problemática dos Arquivos 
Célia Leite Costa 
Pelo fim da época dita augusta, os romanos puseram-se a considerar 
a vida pública como uma pura obrigação fOlmaJ. (m) 
A vida pública tornou-se moribunda em Roma, e no domínio privado 
procurou-se 11m novo foco para as energias afetivas. 
Ocorre que, desde o século XIX, os ocidentais se assemelbam 
a estes romanos do Império; também perderam o seu espaço público. 
Não possuem mais ágora onde debater os negócios da cidade. 
Não possuem mais coffee houses, ou clubs, onde comentar as últimas novas. 
As ruas e praças são meros lugares de passagem, trilhados pela "multidão 
solitária"; passamos pelo desconhecido, mas já não o encontramos. 
(R. Sennet) 
O trecho de Sennett, citado por Lebrun (1983: 255), remete à velha 
dicotomia público/privado, presente no Ocidente desde a Antiguidade. Preten­
demos siruar a discussão sobre esses pólos antagônicos no mundo contem­
porâneo, observando particularmente as repercussões dessa polaridade na prática 
arquivística. Cronologicamente, interessa-nos acompanhar a evolução desse 
• 
189 
190 
estudos históricos. 1998 - 21 
binômio a panir do século XVIII, quando começa a se formar a idéia de 
construção de um espaço público, separado do privado, como uma conseqüência 
do Estado burguês em fOI mação. Isso não significa dizer que o conceito de 
público, por oposição e em complemento ao privado, tenha surgido pela primeira 
vez na história da humanidade no século das Luzes. Ao contrário: a idéia é antiga 
e os relatos e estudos que se tem dapolis grega constituem mais uma "prova" do 
resgate feito pelos modernos da experiência da Grécia clássica. 
Contudo, o conceito antigo de público, enquanto espaço onde os homens 
se expressavam livremente através de palavras e atos, não encontra uma corres­
pondência direta na era moderna. Público hoje está muito mais próximo da idéia 
de social e de coletivo do que da idéia intrinsecamente política atribuída pelos 
gregos, que excluíam de sua definição tudo o que se relacionasse às necessidades 
vitais (ArendI, 1981: 46). 
O novo sentido atribuído ao público resultou de um processo lento para 
o qual contribuiu, como nos lembra Hannah Arendt, o alargamento da esfera do 
privado, que gradativamente passou a abarcar atividades antes próprias da esfera 
pública, como por exemplo a elaboração das leis e a administração da justiça. Esse 
fenômeno iniciou-se provavelmente no final do período romano e atingiu sua 
plenitude na Idade Média, em função da ampliação do domínio do senhor feudal, 
muito maior do que o do chefe de família na Antiguidade. A transferência de 
todas as atividades humanas para o domínio do privado aniquilou a esfera política 
e transfollllOu o sentido anterior de bem comum (Arendt, 1981: 44). 
Na modernidade, na medida em que a economia deixa de ser um assunto 
doméstico e começa a ser regida pelo mercado, as relações econômicas passam a 
ter uma imponância pública, exigindo um espaço próprio. A esfera pública, nos 
moldes do século XVIII, surgirá em decorrência de uma opinião pública que se 
fOlma a partir das conversas nos clubes e cafés, de início em tomo dos assuntos 
domésticos e das anes. Aos poucos os negócios públicos e a política se impõem. 
Inicialmente restrita aos círculos burgueses e intelectuais, a esfera pública 
estende-se, no século XIX, às massas urbanas, que pressionam no sentido de 
exigir maior participação nos assuntos de interesse social, tais como ensino 
gratuito, sufrágio universal etc., imprimindo ao espaço público um caráter mais 
social (Lebrun, 1983: 250-252). 
A ampliação pelmanente dessa esfera social, abrangendo atividades 
antes próprias dos domínios do público e do privado, e a interpenetração desses 
domínios, resultam na dificuldade em estabelecer os limites entre essas duas 
esferas e na fragilização do público, enquanto espaço reservado aos grandes temas 
da política. O público aproxima-se do social, enquanto o privado restringe-se ao 
círculo da intimidade (Arendt, 1981: 47-48). 
Intimidade versus Interesse Público 
, 
E exatamente contra a exacerbação do social que começa a se desenvolver, 
em fms do século XVIII, com os românticos, a preocupação com a privacidade. 
O século XIX será caracteristicamente marcado pelo retomo ao privado; mas não 
mais o privado no sentido doméstico greco-romano, ou mesmo medieval. A 
crescente valorização do indivíduo e do intimismo, que tem em Jean Jacques 
Rousseau seu primeiro grande teórico, imprimirá à nova concepção jurídica do 
privado características especiais. A tônica será dada agora à busca da subjetivi­
dade, do intimismo, do singular, da identidade pessoal. 
A nova dicotomia que se instala será então entre o privado, visto da 
perspectiva do subjetivo, e o social, nesse momento já identificado com a 
comunidade nacional. Ao lado da busca da identidade pessoal há também, nesse 
momento, uma grande preocupação com a recuperação do passado visando a 
construir uma identidade nacional. Nesse contexto, o documento escrito, antes 
privilégio dos sábios, monges e reis, e que a partir do século XVI era utilizado 
como instrumento de legitimação do Estado, passa a ter um novo significado, 
sendo utilizado como testemunho da história (Le Goff, 1984: 95-96). Esse novo 
sentido que a ciência histórica imprime ao documento dará uma nova dimensão 
aos arquivos - a dimensão histórica, que ultrapassará a sua natureza jurídica. 
Públicos ou privados, pouco importa, os arquivos interessam porque são históri­
cos (Camargo, 1988: 63). 
Herdeiros do pensamento oitocentista, estamos presos ainda hoje às 
contradições entre o público e o privado. Se, por uma lado, continuamos a assistir 
ao esfacelamento do espaço público, enquanto arena destinada ao debate político 
das grandes causas, por outro, o contínuo alargamento da esfera social e a 
exacerbação do privado fazem proliferar os direitos da sociedade e do indivíduo. 
O espaço das liberdades públicas e o interesse pelo bem comum, retomados no 
século XVIII, começam a ser substituídos pelos interesses sociais dos grupos, 
classes, associações e partidos políticos, entre outros, próprios da sociedade 
moderna. 
Essa contradição repercute na realidade dos arquivos públicos e pri­
vados, tanto no que diz respeito à sua conservação quanto no tocante ao acesso 
às infOImações neles contidas. Desde o surgimento dos Estados nacionais, a 
preservação do patrimônio documental da nação foi, na maioria dos países, 
prioritariamente uma tarefa do Estado. Apesar do enfoque histórico dado ao 
documento pela disciplina histórica a partir do século XIX, eram sobretudo as 
razões administrativas que deteIlJlinavam a interferência do poder público nos 
arquivos. Isso significa dizer que, para além do papel que os arquivos passaram 
a desempenhar na construção da memória e na escrita da história, o fornecimento 
de provas jurídicas necessárias à consolidação e legitimação do novo Estado 
continuava sendo a função primordial dos arquivos públicos. Ainda hoje a 
191 
192 
estudos históricos. 1 998 - 21 
utilização dos documentos públicos pela administração do Estado ou pelo ci­
dadão, para fins probatórios, pelmanece como função fundamental dos arquivos. 
Com relação ao acesso aos documentos, os arquivos de Estado cujo 
modelo vigorou até o [mal do século XVIII eram secretos e existiam exclusi­
vamente para servir à administração monárquica, particulatmente aos reis. A 
Revolução Francesa iniciou uma nova era para os arquivos com a criação dos 
Arquivos Nacionais e a noção do arquivo a serviço do cidadão. Isso significa dizer 
que, além do caráter nacional do Arquivo, uma outra inovação iria marcar a 
, 
arquivística francesa - a substituição do segredo de Estado pelo princípio da 
publicidade. A abertura dos arquivos ao público, determinadapela Lei Messidor, 
ano 11 (decreto de 1794), representou um primeiro passo no sentido de se 
considerar a infollIlação como um direito civil (Bauthier, 1961: 1121-1266, e 
Duchein, 1992: 67-80). 
Durante o século XIX os historiadores, inspirados no modelo francês de 
arquivo, começaram a pressionar os depósitos centrais de arquivos no sentido de 
torná-los acessíveis à investigação. Dessa forma, às funçóes já existentes - a de 
uso administrativo e a de portador da memória da nação -, os historiadores 
acrescentaram uma nova função aos arquivos, a de fonte para a história, pensada 
como disciplina autônoma, regulada por princípios (Costa, 1997: 22-23). Apesar 
das pressões no sentido de liberar à consulta os documentos públicos, os progres­
sos foram lentos. Países como França, Inglatella, Bélgica e Itália, mesmo ad­
mitindo o acesso aos arquivos, impunham muitas restrições e fixavam prazos 
longos para a abertura dos documentos ao historiador e ao público em geral. 
Só após a Segunda Guerra, com a emergência do direito à inflJlmação na 
Declaração Universal dos Direitos Humanos,l em 1948, o acesso aos arquivos 
passou a ser regulado por legislação específica, deixando de ser prioritariamente 
privilégio dos historiadores. O direito à informação é, portanto, um dos mais 
novos direitos do homem. Consiste em poder receber informações e difundi-las 
sem restrições, e também na possibilidade de opinar e de se exprimir livremente. 
Como se pode observar, tal direito está vinculado à liberdade de opinião e 
expressão, que integra as liberdades públicas tao caras à Grécia antiga e que foi 
posteriormente restaurada pela ilustraçao. Dar acesso à infOlmação signífica 
tornar público, transparente, visível, algo antes obscuro, secreto ou simplesmente 
ignorado pela coletividade. Nesse sentido, o direito à informação é fundamental 
ao exercício das liberdade públicas e ao pleno desenvolvimento dos sistemas 
políticos democráticos (Lafer: 1988). 
Acompanhando o embate entre o público e o privado, o tema dos direitos 
humanos e da cidadania surge no Ocidente como uma demanda da burgnesia (e 
de seus filósofos) em face dos privilégios das monarquias Oelin, 1996: 17). Ao 
longo dos séculos XVIII e XIX esses direitos foram se firmando na jurisprudên-
Intimidade versus Interesse Público 
cia e na legislação. Por essa razão, antes mesmo de ser incluído na Declaração 
Universal dos Direitos Humanos, ou seja, antes de integrar a legislação interna­
cional, o direito à informação já constava na Constituição sueca de 1766, no 
decreto revolucionário francês de 1794 e na legislação de vários outros países. No 
Brasil, esse direito é hoje garantido constitucionalmente, além de aparecer em 
outros textos legais.2 Se considerarmos o direito à informação como um correlato 
do direito de liberdade de expressão, poderemos inclusive inferir que ele estava 
implícito na Constituição Política do Império, que determinava que todos 
poderiam comunicar os seus pensamentos por palavras e escritos e publicá-los 
na imprensa, sem dependência de censura, desde que respondessem, perante a 
lei, pelos abusos que cometessem no exercício desse direito.3 
A legitimidade e a universalidade do direito à infOlmação não impedem 
que ele sofra restrições de outros direitos igualmente importantes para o in­
divíduo e para a sociedade, como por exemplo o respeito à vida privada e a 
garantia da soberania do país (um dos aspectos do segredo de Estado). O direito 
ao respeito à vida privada é o limite na um à liberdade de informação. Integra um 
conjunto de "direitos da personalidade" considerados intransmissíveis e irre­
nunciáveis,4 e que englobam o direito à vida e à integridade fisica, o direito ao 
nome, à honra e à imagem, à liberdade de ir e vir e à inviolabilidade do domicílio, 
além dos direitos autorais (Dotti, 1980: 22-23). 
Existem várias classificações de direitos privados adotadas pelos autores 
que trabalham com essa questão. Uma das mais abrangentes, utilizada pelo 
Bureau de Droit Civil Général, do Ministério da Justiça francês, enumera oito 
categorias de direitos relativos à vida privada, cujo sigilo deve ser respeitado: vida 
sentimental, conjugal e familiar; direito ao nome; à saúde, incluindo informações 
sobre a causa da morte; eventos familiares; emoções; lazer; opiniões políticas, 
filosóficas e religiosas; e patrimônio (Hunaud, 1996). 
Do ponto de vista legal, os direitos privados começam a surgir a panir 
de meados do século XVIII, mas a existência de uma jurisprudência internacional 
atesta a preocupação com alguns desses direitos desde o século XlV, tendo sido 
o primeiro caso localizado na Inglaterra em 1348.5 Existe uma enorme variação 
na enunciação desse direito, na legislação dos diversos países, devida à própria 
dificuldade em determinar o conteúdo da noção de vida privada. Na legislação 
brasileira, observa-se a presença dos direitos à vida privada em todas as consti­
tuições do período republicano. Mesmo a Constituição do Império, no seu já 
citado artigo 179, do título VIII, esboça a formulação desses direitos quando se 
refere à inviolabilidade dos direitos civis e políticos do cidadão brasileiro, 
incluindo entre eles a liberdade de expressão, a segurança individual e a pro­
priedade. 
193 
194 
estudos históricos. 1 998 - 21 
Mais recentemente, a partir dos acontecimentos relacionados à violação 
da privacidade ocorridos durante a Segunda Guerra, de forte repercussão 
mundial, um novo tipo de direito da personalidade surgiu na legislação de 
diversos países e também na legislação internacional. Trata-se do direito à intimi­
dade da vida privada, que emergiu como um desdobramento do direito à privaci­
dade e que diz respeito ao recôndito mais íntimo do indivíduo. O direito à 
intimidade está previsto hoje na Declaração dos Direitos Humanos, no Pacto da 
ONU sobre direitos civis e políticos, na Convenção Européia de 1950 e na 
Convenção Americana de 1969. Na realidade, o direito à intimidade vem se 
constituindo desde o século XIX, também através da jurisprudência. A partir do 
final do século passado, muitos pronunciamentos judiciais atestam o reconhe­
cimento desse novo direito. Mas foi novamente a França quem primeiro circuns­
creveu o direito à intimidade a uma esfera mais restrita da vida privada, referida 
diretamente aos sentimentos pessoais e na qual ninguém pode penetrar sem 
consentimento (Dotti, 1980: 65-68). A referência explícita à intimidade da vida 
privada na legislação brasileira aparece, pela primeira vez, na Constituição de 
1988,6 que considera invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem 
das pessoas. Essa referência é confmnada na Lei nO 8.159/91, a Lei de Arquivos, 
e no Decreto nO 2.134/97, que estabelecem, inclusive, um prazo máximo de 100 
anos de sigilo para os documentos cujo conteúdo informativo diga respeito à 
intimidade das pessoas. 
A esfera da intimidade, diz Hannah Arendt, é regida pelo princípio da 
exclusividade. Esse princípio não se confunde com o da diferenciação, que marca 
a diferença entre os indivíduos, própria da esfera privada, e que seopôe ao público 
enquanto espaço do coletivo. A intimidade é a esfera que comanda as escolhas 
, 
pessoais e que não segue nenhum padrão objetivo. E exatamente a intimidade 
enquanto esfera do exclusivo que a autora sugere como limite ao direito à 
informação, através da ponderação de que o que constitui a vida íntima das 
pessoas não é de interesse público. A intimidade não exige publicidade, porque não 
envolve direito de terceiros. E por ser exclusiva, sente-se lesada quando é 
divulgada ou invadida sem autorização (Lafer, 1988: 267-268). 
Assim como a vida privada e a intimidade são os principais limites à 
liberdade de informação, o inverso também é verdadeiro. No confronto entre 
esses dois direitos, contudo, não se deve perder de vista o interesse público, que,especificamente no que diz respeito aos arquivos, se traduz na demanda de 
informaçôes e na necessidade de difundi-las em função do exercício pleno da 
democracia e da pesquisa científica. Por se referir à coletividade, o interesse 
público ultrapassa o horizonte temporal limitado da vida dos indivíduos, con­
siderados na sua singularidade (Lafer, 1988: 236). Tal assertiva, entretanto, não 
justifica a invasão e o desrespeito à privacidade e à intimidade das pessoas. 
Intimidade versus Interesse Público 
Exatamente por entender que a vida privada e a vida pública penencem a mundos 
diferentes, Hannah Arendt ressalta a "diferença entre aquilo que pode e deve ser 
mostrado - o visível - e aquilo que pode e deve ser ocultado" (Lafer, 1988: 261), 
sem prejuízo do direito à informação. Na realidade, por ser muito tênue a linha 
divisória entre a liberdade de infollnação e o respeito à intimidade, toma-se quase 
impossível estabelecer a priori qual dos dois direitos deve prevalecer, indicando 
o bom senso que, na maioria das vezes, as soluções devem ser buscadas no exame 
de cada caso. Penso, contudo, que sempre que a infollnação seja necessária ao 
exercício do bem comum, o interesse público deve prevalecer. 
Além de ser cerceado pelas questões relativas à intimidade, o direito à 
informação encontra, como já foi dito, nas prerrogativas da segurança do Estado 
outra limitação significativa. Entretanto, com as pressões cada vez maiores no 
sentido de assegurar a transparência administrativa dos poderes públicos, existe 
hoje, em nível internacional, uma forte tendência em favor do acesso às infor­
mações de arquivos. A polêmica sobre essa questão tem gerado efeitos positivos, 
que podem ser observados nas mudanças ocorridas nas legislações especificas de 
diversos países. Na França, por exemplo, o governo criou uma missao intelminis­
terial encarregada de estudar O assunto, que propôs mudanças urgentes e signi­
ficativas na legislação sobre o acesso, no sentido de fixar prazos mais cunos para 
a liberação de documentos, sob a justificativa de que "o segredo de Estado 
envelhece rapidamente" (Braibant, 1996). 
Algumas observações finais sobre a realidade dos arquivos brasileiros. 
No Brasil, o acesso às informações de arquivo sempre foi uma questão compli­
cada, apesar da liberdade de informação constar de dispositivos constitucionais 
desde o Império. O Arquivo Público do Império, criado em 1838, liberava os seus 
documentos apenas para uso do governo ou para pessoas indicadas diretamente 
pelo imperador. A política de sigilo, imposta à Colônia por Ponugal e adotada 
posteriormente pelos imperadores brasileiros, transformou o Arquivo Público 
em uma instituição guardiã do segredo de Estado, constituindo-se na antítese 
dos arquivos nacionais europeus, engajados na construção da consciência 
histórica, característica do século XIX (Costa, 1997: 118). 
O período republicano foi mais democrático, apesar dos interregnos de 
obscurantismo e de censura. Além de as constituições republicanas assegurarem 
o direito à informação, o acesso aos documentos de arquivo foi gradativamente 
institucionalizado, ou seja, regulado por nOImas internas às instituições deten­
toras de acervos arquivísticos. Mesmo assim, a precariedade dessas instituições 
dificultava enormemente o trabalho dos pesquisadores. O fato de não possuir leis 
específicas regulamentando as condições e os prazos para a consulta dos docu­
mentos, deixava a critério dos diretores de instituições ou responsáveis pelos 
acervos a decisão de tomar ou não os documentos disponíveis. O acesso à 
195 
196 
estudos históricos. 1 998 - 21 
informação só terá de fato respaldo legal no Brasil com a Constituição de 1988, 
que especifica esse acesso em vários itens do texto e, posteriormente, com a Lei 
de Arquivos, sancionada em janeiro de 1991, 153 anos após a criação do Arquivo 
Nacional. 
, 
N a prática, conrudo, as soluções não são imediatas. E preciso, em 
primeiro lugar, transformar a mentalidade do sigilo, que predomina ainda hoje nas 
. . . - , - ' 
. IDStlrulçoes e orgaos governamentais, e que certamente tem suas ongens nas 
estrururas patrimonialistas herdadas de Portugal. Essa concepção de "segredo de 
Estado", indicativa de uma estrutura de Estado centralizada e burocrática, 
impediu a implementação de uma política de arquivos, seja no nível de recolhi­
mento sistemático dos documentos pelo Arquivo Nacional, seja no nível de uma 
política de acesso. O atraso secular em termos de uma legislação específica para 
arquivos no Brasil explica, por exemplo, a fragmentação e a perda total ou parcial 
de fundos que deveriam integrar O patrimõnio documental brasileiro (Costa, 
, 
1997: 181). E preciso, portanto, criar uma nova mentalidade com relação à 
importância e à utilização das informações provenientes de documentos de 
• arqUIvos. 
Por outro lado, faz-se necessária uma ampla divulgação, nos meios 
acadêmicos e na sociedade em geral, dos instrumentos legais relativos ao acesso 
arualmente disponíveis. Com a criação do Conselho Nacional de Arquivos -
Conarq, órgão vinculado ao Ministério da Justiça e que· integra, na sua com­
posição, representantes das entidades governamentais e de instiruições culturais 
vinculadas à pesquisa, esse trabalho foi timidamente iniciado. 
No que tange aos arquivos privados, isto é, àqueles que não resultam das 
atividades geradas na esfera pública, o binômio público/ privado se expressa não 
só através do conflito entre a intimidade e o interesse público, mas, mais ainda 
entre esse último e a propriedade privada, assegurada na Constituição em vigor. 
A Lei de Arquivos brasileira instituiu, no seu capítulo lII, a figura 
jurídica da "classificação de arquivos privados como de interesse público e 
social", a exemplo de outros países como França, Canadá, Itália e Espanha. A 
intervenção do Estado decorrente do ato c1assificatório não elimina os direitos 
de propriedade que o titular do arquivo ou seus herdeiros possuem sobre os 
documentos, mas lhe faculta o direito de controle sobre o arquivo, em nome do 
interesse público. 
Tal dispositivo implica sobrerudo a obrigatoriedade da parte do pro­
prietário ou detentor do arquivo de preservar os documentos considerados 
relevantes para a história do país ficando, nesse sentido, proibida a sua destruição, 
perda ou exportação. Convém ainda lembrar que, em alguns países, inclusive no 
Brasil, a legislação prevê o direito de preferência do Estado nos casos de alienação 
por venda. 
Intimidade versus Interesse Público 
Os arquivos privados classificados como de interesse público, apesar de 
continuarem a ser bens privados, integram o patrimônio cultural da nação. Essa 
contradição, aparentemente de difícil solução, tem que ser pensada a partir da 
idéia do interesse público que, por ser comum a toda sociedade, se sobrepõe aos 
interesses individuais. No caso da propriedade privada, o exercício desse direito 
possui limite igualmente previsto no texto constitucional brasileiro, qual seja, 
sua função social ou sua utilidade pública. 
Por outro lado, a classificação pelo poder público de um arquivo privado 
como de interesse público e social não assegura o acesso a esse arquivo. A rigor, 
porse tratar de um bem privado, a liberação à consulta pública desses documentos 
é da competência exclusiva de seus proprietários. Cabe ao Estado, entretanto, 
definir políticas de incentivo à pesquisa por meio de dispositivos legais que 
estimulem os proprietários de arquivos a facultar o acesso aos seus documentos. 
A lei finlandesa, por exemplo, prevê apoio financeiro, destinado à preservação, 
aos proprietários que se dispuserem a liberar seus arquivos aos pesquisadores. Na 
verdade, se a classificação do arquivo tem por base a sua relevância para a pesquisa 
histórica e o desenvolvimento da ciência, nada mais justo que garantir o acessoaos seus documentos. Todavia, não se pode esquecer que, por retratarem a vida 
privada de seus titulares, os arquivos privados são por excelência detentores de 
informações sobre a intimidade das pessoas. Dentro dessa categoria, os arquivos 
pessoais, panicularmente os de homens públicos, são os mais atingidos pelo 
conflito entre o público e o privado - de um lado, os direitos individuais à 
propriedade privada e à proteção da intimidade; do outro, os direitos da comu­
nidade representados pelo interesse público e a liberdade de informação (Garcia, 
1997: 9). O pleno exercício da cidadania consistirá, exatamente, em garantir a 
transparência e a visibilidade, sem abrir mão do respeito à privacidade e à vida 
reservada dos sentimentos. 
Por último, gostaria de ressaltar a importância crescente dos arquivos 
privados para a pesquisa do cotidiano, tendência predominante hoje na história 
americana e européia, paniculli..l1l1ente na França. Esse novo olhar da história, 
enfocando sentimentos, hábitos e comportamentos, vem elegendo de uma forma 
especial documentos como diários íntimos, anotações, correspondência pessoal 
etc., encontrados nos arquivos de escritores, artistas e políticos, entre outros. A 
publicação desse tipo de fonte, isoladamente ou em série (caso, por exemplo, da 
correspondência), tem sido amplamente utilizada pelos historiadores para incen­
tivar o debate e a compreensão de temas, personagens e épocas, a partir de novos 
enfoques metodológicos, para os quais a contribuição da antropologia, da teoria 
literária, da sociologia e da ciência política têm sido fundamental. 
No Brasil, essa tendência para o estudo do cotidiano também começa a 
tomar fôlego, existindo já alguns trabalhos que merecem ser citados, como por 
197 
198 
estudos históricos. 1998 - 21 
exemplo, a Hist6ria da vida privada no Brasil,7 com dois volumes já nas livrarias. 
Sendo a pesquisa histórica uma atividade que visa ao bem comum e ao interesse 
público, sempre maiores do que os interesses individuais e singulares, torna-se 
um imperativo preservar e facultar à consulta as fontes privadas, sem que com 
isso se tenha que ultrapassar as fronteiras da intimidade. 
Notas 
1. Declaração Universal dos Direitos 
Humanos, art. 19: "Todo indivíduo tem 
direito à liberdade de opinião e de 
expressão, o que implica o direito a não 
ser inquietado pelas suas opiniões e o de 
procurar, receber e difundir, sem 
consideração de fronteiras, infonnações e 
idéias por qualquer meio de expressão." 
2. Como por exemplo a Lei de Imprensa 
de 1967 e a Lei nO 8.159/91, que define a 
Referências bibliográficas 
ARENDT,H. 1981.A condição humana. 
São Paulo, Forense/Salamandra/Edusp. 
BRAlBANT, G. 1996. Les archives en 
France. Rappon au prémier-ministre. 
Paris, La Documentation Française. 
(Collection des Rappons Ofliciels) 
BAUTHIER, R. H. 1961. "Les Archives". 
In: EHistoíre et ses méthodes, sous la 
direction de Charles Samaran. Paris, 
Gallimard, p. 1121-1166. 
(Encyc1opédie de La Pléiade) 
CAMARGO, A. M. 1985. O público e o 
privado: cuntribuição para o debate em 
tomo da caracterização de documentos e 
arquivos. São Paulo, s.ed., 12f. 
política nacional de arquivos públicos e 
privados. 
3. Constituição Política do Império, 
art. 179, item 4. 
4. Exceção feita aos direitos do autor, cuja 
transmissão aos herdeiros é prevista por 
lei. Ver Dotti , 1980: 25. 
5. Trata-se de 11m caso de invasão de 
domicílio. Ver Hunaud, 1996: 44. 
6. Constiruição da República de 1988, 
art. 5°, inciso X. 
7. História da vida privada no Brasil, 
v. I e 2. São Paulo, Cia das Letras, 1997. 
__ � 1993. "Informação, documento e 
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(Recebido para publicação em 
abril de J 998) 
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