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• Intimidade versus Interesse Público: a Problemática dos Arquivos Célia Leite Costa Pelo fim da época dita augusta, os romanos puseram-se a considerar a vida pública como uma pura obrigação fOlmaJ. (m) A vida pública tornou-se moribunda em Roma, e no domínio privado procurou-se 11m novo foco para as energias afetivas. Ocorre que, desde o século XIX, os ocidentais se assemelbam a estes romanos do Império; também perderam o seu espaço público. Não possuem mais ágora onde debater os negócios da cidade. Não possuem mais coffee houses, ou clubs, onde comentar as últimas novas. As ruas e praças são meros lugares de passagem, trilhados pela "multidão solitária"; passamos pelo desconhecido, mas já não o encontramos. (R. Sennet) O trecho de Sennett, citado por Lebrun (1983: 255), remete à velha dicotomia público/privado, presente no Ocidente desde a Antiguidade. Preten demos siruar a discussão sobre esses pólos antagônicos no mundo contem porâneo, observando particularmente as repercussões dessa polaridade na prática arquivística. Cronologicamente, interessa-nos acompanhar a evolução desse • 189 190 estudos históricos. 1998 - 21 binômio a panir do século XVIII, quando começa a se formar a idéia de construção de um espaço público, separado do privado, como uma conseqüência do Estado burguês em fOI mação. Isso não significa dizer que o conceito de público, por oposição e em complemento ao privado, tenha surgido pela primeira vez na história da humanidade no século das Luzes. Ao contrário: a idéia é antiga e os relatos e estudos que se tem dapolis grega constituem mais uma "prova" do resgate feito pelos modernos da experiência da Grécia clássica. Contudo, o conceito antigo de público, enquanto espaço onde os homens se expressavam livremente através de palavras e atos, não encontra uma corres pondência direta na era moderna. Público hoje está muito mais próximo da idéia de social e de coletivo do que da idéia intrinsecamente política atribuída pelos gregos, que excluíam de sua definição tudo o que se relacionasse às necessidades vitais (ArendI, 1981: 46). O novo sentido atribuído ao público resultou de um processo lento para o qual contribuiu, como nos lembra Hannah Arendt, o alargamento da esfera do privado, que gradativamente passou a abarcar atividades antes próprias da esfera pública, como por exemplo a elaboração das leis e a administração da justiça. Esse fenômeno iniciou-se provavelmente no final do período romano e atingiu sua plenitude na Idade Média, em função da ampliação do domínio do senhor feudal, muito maior do que o do chefe de família na Antiguidade. A transferência de todas as atividades humanas para o domínio do privado aniquilou a esfera política e transfollllOu o sentido anterior de bem comum (Arendt, 1981: 44). Na modernidade, na medida em que a economia deixa de ser um assunto doméstico e começa a ser regida pelo mercado, as relações econômicas passam a ter uma imponância pública, exigindo um espaço próprio. A esfera pública, nos moldes do século XVIII, surgirá em decorrência de uma opinião pública que se fOlma a partir das conversas nos clubes e cafés, de início em tomo dos assuntos domésticos e das anes. Aos poucos os negócios públicos e a política se impõem. Inicialmente restrita aos círculos burgueses e intelectuais, a esfera pública estende-se, no século XIX, às massas urbanas, que pressionam no sentido de exigir maior participação nos assuntos de interesse social, tais como ensino gratuito, sufrágio universal etc., imprimindo ao espaço público um caráter mais social (Lebrun, 1983: 250-252). A ampliação pelmanente dessa esfera social, abrangendo atividades antes próprias dos domínios do público e do privado, e a interpenetração desses domínios, resultam na dificuldade em estabelecer os limites entre essas duas esferas e na fragilização do público, enquanto espaço reservado aos grandes temas da política. O público aproxima-se do social, enquanto o privado restringe-se ao círculo da intimidade (Arendt, 1981: 47-48). Intimidade versus Interesse Público , E exatamente contra a exacerbação do social que começa a se desenvolver, em fms do século XVIII, com os românticos, a preocupação com a privacidade. O século XIX será caracteristicamente marcado pelo retomo ao privado; mas não mais o privado no sentido doméstico greco-romano, ou mesmo medieval. A crescente valorização do indivíduo e do intimismo, que tem em Jean Jacques Rousseau seu primeiro grande teórico, imprimirá à nova concepção jurídica do privado características especiais. A tônica será dada agora à busca da subjetivi dade, do intimismo, do singular, da identidade pessoal. A nova dicotomia que se instala será então entre o privado, visto da perspectiva do subjetivo, e o social, nesse momento já identificado com a comunidade nacional. Ao lado da busca da identidade pessoal há também, nesse momento, uma grande preocupação com a recuperação do passado visando a construir uma identidade nacional. Nesse contexto, o documento escrito, antes privilégio dos sábios, monges e reis, e que a partir do século XVI era utilizado como instrumento de legitimação do Estado, passa a ter um novo significado, sendo utilizado como testemunho da história (Le Goff, 1984: 95-96). Esse novo sentido que a ciência histórica imprime ao documento dará uma nova dimensão aos arquivos - a dimensão histórica, que ultrapassará a sua natureza jurídica. Públicos ou privados, pouco importa, os arquivos interessam porque são históri cos (Camargo, 1988: 63). Herdeiros do pensamento oitocentista, estamos presos ainda hoje às contradições entre o público e o privado. Se, por uma lado, continuamos a assistir ao esfacelamento do espaço público, enquanto arena destinada ao debate político das grandes causas, por outro, o contínuo alargamento da esfera social e a exacerbação do privado fazem proliferar os direitos da sociedade e do indivíduo. O espaço das liberdades públicas e o interesse pelo bem comum, retomados no século XVIII, começam a ser substituídos pelos interesses sociais dos grupos, classes, associações e partidos políticos, entre outros, próprios da sociedade moderna. Essa contradição repercute na realidade dos arquivos públicos e pri vados, tanto no que diz respeito à sua conservação quanto no tocante ao acesso às infOImações neles contidas. Desde o surgimento dos Estados nacionais, a preservação do patrimônio documental da nação foi, na maioria dos países, prioritariamente uma tarefa do Estado. Apesar do enfoque histórico dado ao documento pela disciplina histórica a partir do século XIX, eram sobretudo as razões administrativas que deteIlJlinavam a interferência do poder público nos arquivos. Isso significa dizer que, para além do papel que os arquivos passaram a desempenhar na construção da memória e na escrita da história, o fornecimento de provas jurídicas necessárias à consolidação e legitimação do novo Estado continuava sendo a função primordial dos arquivos públicos. Ainda hoje a 191 192 estudos históricos. 1 998 - 21 utilização dos documentos públicos pela administração do Estado ou pelo ci dadão, para fins probatórios, pelmanece como função fundamental dos arquivos. Com relação ao acesso aos documentos, os arquivos de Estado cujo modelo vigorou até o [mal do século XVIII eram secretos e existiam exclusi vamente para servir à administração monárquica, particulatmente aos reis. A Revolução Francesa iniciou uma nova era para os arquivos com a criação dos Arquivos Nacionais e a noção do arquivo a serviço do cidadão. Isso significa dizer que, além do caráter nacional do Arquivo, uma outra inovação iria marcar a , arquivística francesa - a substituição do segredo de Estado pelo princípio da publicidade. A abertura dos arquivos ao público, determinadapela Lei Messidor, ano 11 (decreto de 1794), representou um primeiro passo no sentido de se considerar a infollIlação como um direito civil (Bauthier, 1961: 1121-1266, e Duchein, 1992: 67-80). Durante o século XIX os historiadores, inspirados no modelo francês de arquivo, começaram a pressionar os depósitos centrais de arquivos no sentido de torná-los acessíveis à investigação. Dessa forma, às funçóes já existentes - a de uso administrativo e a de portador da memória da nação -, os historiadores acrescentaram uma nova função aos arquivos, a de fonte para a história, pensada como disciplina autônoma, regulada por princípios (Costa, 1997: 22-23). Apesar das pressões no sentido de liberar à consulta os documentos públicos, os progres sos foram lentos. Países como França, Inglatella, Bélgica e Itália, mesmo ad mitindo o acesso aos arquivos, impunham muitas restrições e fixavam prazos longos para a abertura dos documentos ao historiador e ao público em geral. Só após a Segunda Guerra, com a emergência do direito à inflJlmação na Declaração Universal dos Direitos Humanos,l em 1948, o acesso aos arquivos passou a ser regulado por legislação específica, deixando de ser prioritariamente privilégio dos historiadores. O direito à informação é, portanto, um dos mais novos direitos do homem. Consiste em poder receber informações e difundi-las sem restrições, e também na possibilidade de opinar e de se exprimir livremente. Como se pode observar, tal direito está vinculado à liberdade de opinião e expressão, que integra as liberdades públicas tao caras à Grécia antiga e que foi posteriormente restaurada pela ilustraçao. Dar acesso à infOlmação signífica tornar público, transparente, visível, algo antes obscuro, secreto ou simplesmente ignorado pela coletividade. Nesse sentido, o direito à informação é fundamental ao exercício das liberdade públicas e ao pleno desenvolvimento dos sistemas políticos democráticos (Lafer: 1988). Acompanhando o embate entre o público e o privado, o tema dos direitos humanos e da cidadania surge no Ocidente como uma demanda da burgnesia (e de seus filósofos) em face dos privilégios das monarquias Oelin, 1996: 17). Ao longo dos séculos XVIII e XIX esses direitos foram se firmando na jurisprudên- Intimidade versus Interesse Público cia e na legislação. Por essa razão, antes mesmo de ser incluído na Declaração Universal dos Direitos Humanos, ou seja, antes de integrar a legislação interna cional, o direito à informação já constava na Constituição sueca de 1766, no decreto revolucionário francês de 1794 e na legislação de vários outros países. No Brasil, esse direito é hoje garantido constitucionalmente, além de aparecer em outros textos legais.2 Se considerarmos o direito à informação como um correlato do direito de liberdade de expressão, poderemos inclusive inferir que ele estava implícito na Constituição Política do Império, que determinava que todos poderiam comunicar os seus pensamentos por palavras e escritos e publicá-los na imprensa, sem dependência de censura, desde que respondessem, perante a lei, pelos abusos que cometessem no exercício desse direito.3 A legitimidade e a universalidade do direito à infOlmação não impedem que ele sofra restrições de outros direitos igualmente importantes para o in divíduo e para a sociedade, como por exemplo o respeito à vida privada e a garantia da soberania do país (um dos aspectos do segredo de Estado). O direito ao respeito à vida privada é o limite na um à liberdade de informação. Integra um conjunto de "direitos da personalidade" considerados intransmissíveis e irre nunciáveis,4 e que englobam o direito à vida e à integridade fisica, o direito ao nome, à honra e à imagem, à liberdade de ir e vir e à inviolabilidade do domicílio, além dos direitos autorais (Dotti, 1980: 22-23). Existem várias classificações de direitos privados adotadas pelos autores que trabalham com essa questão. Uma das mais abrangentes, utilizada pelo Bureau de Droit Civil Général, do Ministério da Justiça francês, enumera oito categorias de direitos relativos à vida privada, cujo sigilo deve ser respeitado: vida sentimental, conjugal e familiar; direito ao nome; à saúde, incluindo informações sobre a causa da morte; eventos familiares; emoções; lazer; opiniões políticas, filosóficas e religiosas; e patrimônio (Hunaud, 1996). Do ponto de vista legal, os direitos privados começam a surgir a panir de meados do século XVIII, mas a existência de uma jurisprudência internacional atesta a preocupação com alguns desses direitos desde o século XlV, tendo sido o primeiro caso localizado na Inglaterra em 1348.5 Existe uma enorme variação na enunciação desse direito, na legislação dos diversos países, devida à própria dificuldade em determinar o conteúdo da noção de vida privada. Na legislação brasileira, observa-se a presença dos direitos à vida privada em todas as consti tuições do período republicano. Mesmo a Constituição do Império, no seu já citado artigo 179, do título VIII, esboça a formulação desses direitos quando se refere à inviolabilidade dos direitos civis e políticos do cidadão brasileiro, incluindo entre eles a liberdade de expressão, a segurança individual e a pro priedade. 193 194 estudos históricos. 1 998 - 21 Mais recentemente, a partir dos acontecimentos relacionados à violação da privacidade ocorridos durante a Segunda Guerra, de forte repercussão mundial, um novo tipo de direito da personalidade surgiu na legislação de diversos países e também na legislação internacional. Trata-se do direito à intimi dade da vida privada, que emergiu como um desdobramento do direito à privaci dade e que diz respeito ao recôndito mais íntimo do indivíduo. O direito à intimidade está previsto hoje na Declaração dos Direitos Humanos, no Pacto da ONU sobre direitos civis e políticos, na Convenção Européia de 1950 e na Convenção Americana de 1969. Na realidade, o direito à intimidade vem se constituindo desde o século XIX, também através da jurisprudência. A partir do final do século passado, muitos pronunciamentos judiciais atestam o reconhe cimento desse novo direito. Mas foi novamente a França quem primeiro circuns creveu o direito à intimidade a uma esfera mais restrita da vida privada, referida diretamente aos sentimentos pessoais e na qual ninguém pode penetrar sem consentimento (Dotti, 1980: 65-68). A referência explícita à intimidade da vida privada na legislação brasileira aparece, pela primeira vez, na Constituição de 1988,6 que considera invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Essa referência é confmnada na Lei nO 8.159/91, a Lei de Arquivos, e no Decreto nO 2.134/97, que estabelecem, inclusive, um prazo máximo de 100 anos de sigilo para os documentos cujo conteúdo informativo diga respeito à intimidade das pessoas. A esfera da intimidade, diz Hannah Arendt, é regida pelo princípio da exclusividade. Esse princípio não se confunde com o da diferenciação, que marca a diferença entre os indivíduos, própria da esfera privada, e que seopôe ao público enquanto espaço do coletivo. A intimidade é a esfera que comanda as escolhas , pessoais e que não segue nenhum padrão objetivo. E exatamente a intimidade enquanto esfera do exclusivo que a autora sugere como limite ao direito à informação, através da ponderação de que o que constitui a vida íntima das pessoas não é de interesse público. A intimidade não exige publicidade, porque não envolve direito de terceiros. E por ser exclusiva, sente-se lesada quando é divulgada ou invadida sem autorização (Lafer, 1988: 267-268). Assim como a vida privada e a intimidade são os principais limites à liberdade de informação, o inverso também é verdadeiro. No confronto entre esses dois direitos, contudo, não se deve perder de vista o interesse público, que,especificamente no que diz respeito aos arquivos, se traduz na demanda de informaçôes e na necessidade de difundi-las em função do exercício pleno da democracia e da pesquisa científica. Por se referir à coletividade, o interesse público ultrapassa o horizonte temporal limitado da vida dos indivíduos, con siderados na sua singularidade (Lafer, 1988: 236). Tal assertiva, entretanto, não justifica a invasão e o desrespeito à privacidade e à intimidade das pessoas. Intimidade versus Interesse Público Exatamente por entender que a vida privada e a vida pública penencem a mundos diferentes, Hannah Arendt ressalta a "diferença entre aquilo que pode e deve ser mostrado - o visível - e aquilo que pode e deve ser ocultado" (Lafer, 1988: 261), sem prejuízo do direito à informação. Na realidade, por ser muito tênue a linha divisória entre a liberdade de infollnação e o respeito à intimidade, toma-se quase impossível estabelecer a priori qual dos dois direitos deve prevalecer, indicando o bom senso que, na maioria das vezes, as soluções devem ser buscadas no exame de cada caso. Penso, contudo, que sempre que a infollnação seja necessária ao exercício do bem comum, o interesse público deve prevalecer. Além de ser cerceado pelas questões relativas à intimidade, o direito à informação encontra, como já foi dito, nas prerrogativas da segurança do Estado outra limitação significativa. Entretanto, com as pressões cada vez maiores no sentido de assegurar a transparência administrativa dos poderes públicos, existe hoje, em nível internacional, uma forte tendência em favor do acesso às infor mações de arquivos. A polêmica sobre essa questão tem gerado efeitos positivos, que podem ser observados nas mudanças ocorridas nas legislações especificas de diversos países. Na França, por exemplo, o governo criou uma missao intelminis terial encarregada de estudar O assunto, que propôs mudanças urgentes e signi ficativas na legislação sobre o acesso, no sentido de fixar prazos mais cunos para a liberação de documentos, sob a justificativa de que "o segredo de Estado envelhece rapidamente" (Braibant, 1996). Algumas observações finais sobre a realidade dos arquivos brasileiros. No Brasil, o acesso às informações de arquivo sempre foi uma questão compli cada, apesar da liberdade de informação constar de dispositivos constitucionais desde o Império. O Arquivo Público do Império, criado em 1838, liberava os seus documentos apenas para uso do governo ou para pessoas indicadas diretamente pelo imperador. A política de sigilo, imposta à Colônia por Ponugal e adotada posteriormente pelos imperadores brasileiros, transformou o Arquivo Público em uma instituição guardiã do segredo de Estado, constituindo-se na antítese dos arquivos nacionais europeus, engajados na construção da consciência histórica, característica do século XIX (Costa, 1997: 118). O período republicano foi mais democrático, apesar dos interregnos de obscurantismo e de censura. Além de as constituições republicanas assegurarem o direito à informação, o acesso aos documentos de arquivo foi gradativamente institucionalizado, ou seja, regulado por nOImas internas às instituições deten toras de acervos arquivísticos. Mesmo assim, a precariedade dessas instituições dificultava enormemente o trabalho dos pesquisadores. O fato de não possuir leis específicas regulamentando as condições e os prazos para a consulta dos docu mentos, deixava a critério dos diretores de instituições ou responsáveis pelos acervos a decisão de tomar ou não os documentos disponíveis. O acesso à 195 196 estudos históricos. 1 998 - 21 informação só terá de fato respaldo legal no Brasil com a Constituição de 1988, que especifica esse acesso em vários itens do texto e, posteriormente, com a Lei de Arquivos, sancionada em janeiro de 1991, 153 anos após a criação do Arquivo Nacional. , N a prática, conrudo, as soluções não são imediatas. E preciso, em primeiro lugar, transformar a mentalidade do sigilo, que predomina ainda hoje nas . . . - , - ' . IDStlrulçoes e orgaos governamentais, e que certamente tem suas ongens nas estrururas patrimonialistas herdadas de Portugal. Essa concepção de "segredo de Estado", indicativa de uma estrutura de Estado centralizada e burocrática, impediu a implementação de uma política de arquivos, seja no nível de recolhi mento sistemático dos documentos pelo Arquivo Nacional, seja no nível de uma política de acesso. O atraso secular em termos de uma legislação específica para arquivos no Brasil explica, por exemplo, a fragmentação e a perda total ou parcial de fundos que deveriam integrar O patrimõnio documental brasileiro (Costa, , 1997: 181). E preciso, portanto, criar uma nova mentalidade com relação à importância e à utilização das informações provenientes de documentos de • arqUIvos. Por outro lado, faz-se necessária uma ampla divulgação, nos meios acadêmicos e na sociedade em geral, dos instrumentos legais relativos ao acesso arualmente disponíveis. Com a criação do Conselho Nacional de Arquivos - Conarq, órgão vinculado ao Ministério da Justiça e que· integra, na sua com posição, representantes das entidades governamentais e de instiruições culturais vinculadas à pesquisa, esse trabalho foi timidamente iniciado. No que tange aos arquivos privados, isto é, àqueles que não resultam das atividades geradas na esfera pública, o binômio público/ privado se expressa não só através do conflito entre a intimidade e o interesse público, mas, mais ainda entre esse último e a propriedade privada, assegurada na Constituição em vigor. A Lei de Arquivos brasileira instituiu, no seu capítulo lII, a figura jurídica da "classificação de arquivos privados como de interesse público e social", a exemplo de outros países como França, Canadá, Itália e Espanha. A intervenção do Estado decorrente do ato c1assificatório não elimina os direitos de propriedade que o titular do arquivo ou seus herdeiros possuem sobre os documentos, mas lhe faculta o direito de controle sobre o arquivo, em nome do interesse público. Tal dispositivo implica sobrerudo a obrigatoriedade da parte do pro prietário ou detentor do arquivo de preservar os documentos considerados relevantes para a história do país ficando, nesse sentido, proibida a sua destruição, perda ou exportação. Convém ainda lembrar que, em alguns países, inclusive no Brasil, a legislação prevê o direito de preferência do Estado nos casos de alienação por venda. Intimidade versus Interesse Público Os arquivos privados classificados como de interesse público, apesar de continuarem a ser bens privados, integram o patrimônio cultural da nação. Essa contradição, aparentemente de difícil solução, tem que ser pensada a partir da idéia do interesse público que, por ser comum a toda sociedade, se sobrepõe aos interesses individuais. No caso da propriedade privada, o exercício desse direito possui limite igualmente previsto no texto constitucional brasileiro, qual seja, sua função social ou sua utilidade pública. Por outro lado, a classificação pelo poder público de um arquivo privado como de interesse público e social não assegura o acesso a esse arquivo. A rigor, porse tratar de um bem privado, a liberação à consulta pública desses documentos é da competência exclusiva de seus proprietários. Cabe ao Estado, entretanto, definir políticas de incentivo à pesquisa por meio de dispositivos legais que estimulem os proprietários de arquivos a facultar o acesso aos seus documentos. A lei finlandesa, por exemplo, prevê apoio financeiro, destinado à preservação, aos proprietários que se dispuserem a liberar seus arquivos aos pesquisadores. Na verdade, se a classificação do arquivo tem por base a sua relevância para a pesquisa histórica e o desenvolvimento da ciência, nada mais justo que garantir o acessoaos seus documentos. Todavia, não se pode esquecer que, por retratarem a vida privada de seus titulares, os arquivos privados são por excelência detentores de informações sobre a intimidade das pessoas. Dentro dessa categoria, os arquivos pessoais, panicularmente os de homens públicos, são os mais atingidos pelo conflito entre o público e o privado - de um lado, os direitos individuais à propriedade privada e à proteção da intimidade; do outro, os direitos da comu nidade representados pelo interesse público e a liberdade de informação (Garcia, 1997: 9). O pleno exercício da cidadania consistirá, exatamente, em garantir a transparência e a visibilidade, sem abrir mão do respeito à privacidade e à vida reservada dos sentimentos. Por último, gostaria de ressaltar a importância crescente dos arquivos privados para a pesquisa do cotidiano, tendência predominante hoje na história americana e européia, paniculli..l1l1ente na França. Esse novo olhar da história, enfocando sentimentos, hábitos e comportamentos, vem elegendo de uma forma especial documentos como diários íntimos, anotações, correspondência pessoal etc., encontrados nos arquivos de escritores, artistas e políticos, entre outros. A publicação desse tipo de fonte, isoladamente ou em série (caso, por exemplo, da correspondência), tem sido amplamente utilizada pelos historiadores para incen tivar o debate e a compreensão de temas, personagens e épocas, a partir de novos enfoques metodológicos, para os quais a contribuição da antropologia, da teoria literária, da sociologia e da ciência política têm sido fundamental. No Brasil, essa tendência para o estudo do cotidiano também começa a tomar fôlego, existindo já alguns trabalhos que merecem ser citados, como por 197 198 estudos históricos. 1998 - 21 exemplo, a Hist6ria da vida privada no Brasil,7 com dois volumes já nas livrarias. Sendo a pesquisa histórica uma atividade que visa ao bem comum e ao interesse público, sempre maiores do que os interesses individuais e singulares, torna-se um imperativo preservar e facultar à consulta as fontes privadas, sem que com isso se tenha que ultrapassar as fronteiras da intimidade. Notas 1. Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 19: "Todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito a não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, infonnações e idéias por qualquer meio de expressão." 2. Como por exemplo a Lei de Imprensa de 1967 e a Lei nO 8.159/91, que define a Referências bibliográficas ARENDT,H. 1981.A condição humana. São Paulo, Forense/Salamandra/Edusp. BRAlBANT, G. 1996. Les archives en France. Rappon au prémier-ministre. Paris, La Documentation Française. (Collection des Rappons Ofliciels) BAUTHIER, R. H. 1961. "Les Archives". In: EHistoíre et ses méthodes, sous la direction de Charles Samaran. Paris, Gallimard, p. 1121-1166. (Encyc1opédie de La Pléiade) CAMARGO, A. M. 1985. O público e o privado: cuntribuição para o debate em tomo da caracterização de documentos e arquivos. São Paulo, s.ed., 12f. política nacional de arquivos públicos e privados. 3. Constituição Política do Império, art. 179, item 4. 4. Exceção feita aos direitos do autor, cuja transmissão aos herdeiros é prevista por lei. Ver Dotti , 1980: 25. 5. Trata-se de 11m caso de invasão de domicílio. Ver Hunaud, 1996: 44. 6. Constiruição da República de 1988, art. 5°, inciso X. 7. História da vida privada no Brasil, v. I e 2. São Paulo, Cia das Letras, 1997. __ � 1993. "Informação, documento e arquivo: o acesso em questão". Boletim. Associação dos Arquivistas Brasileiros/Núc1eo Regional de São Paulo, n° 11, p. 1-12, março/ago. COSTA,C.M. L.1997.Memória e administração: o Arquivo Público do Impérib e a ronsolidação da Estada brasileiro. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tese de doutorado. DOTT I, R. A. 1980. Proteção da vida privada e liberdade de informação (possibilidades e limites). São Paulo, Revista dos Tribunais. DUCHEIN, M. 1992. "Chistoire des archives européennes et l'évolution du métier d'archiviste en Europe". In: Erudes d'archivistique: 1957-1992. Paris, Association des Archivistes Français, p.81-84. GARCIA, M. M. M. 1997. Os documentos pessoais no espaço público. Trabalho apresentado no Seminário sobre Arquivos Pessoais. Rio de J aneira/São Paulo, 17-21 novo HURTAUD,M. H.I997.Laproleclionde la vie privé - note sur J'arricle 9 du Gode Civil. Paris. JELIN, E1isabeth. 1996. "Cidadania e aJteridade: o reconhecimento da pluralidade", Revista do Patrimônio Hislórico e Arrístico Nac ionol. Rio de Jane.iro, n° 24, p. 15-26. Intimidade versus Interesse Público LAFER, C. 1988. A recorulrUfão dos direitos humanos - um diálogo com o pensamento de Hannah Arendl. São Paulo, Cia das Letras. LEBRUN, G. 1983. Passeios ao léu. Ensaios. São Paulo, Brasiliense. PalavrasMchave: público/privado; direito à informação; direito à privacidade; intimidade; interesse público; arquivos pessoais; acesso. (Recebido para publicação em abril de J 998) 199
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