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Números Reais
Grupo de Matemática da Universidade Técnica de Lisboa:
António St. Aubyn, Maria Carlos Figueiredo,
Luís de Loura, Luísa Ribeiro, Francisco Viegas
Lisboa, Março de 2004
O documento presente foi obtido directamente do código TeX fornecido pelos autores com alterações de formatação e alguma revisão editorial.
A versão corrente é de 13 de Maio de 2006. A revisão deste texto do ponto de vista gráfico ainda não está completa. Novas versões poderão
ficar disponíveis no futuro a partir de http://preprint.math.ist.utl.pt/files/ppgmutlreais.pdf. O DMIST agradece ao Grupo de Matemática da UTL a
possibilidade de facultar o texto aos alunos das disciplinas introdutórias de Matemática do IST.
Na mesma série:
• Lógica matemática.
• Conjuntos.
• Números reais.
• Sucessões.
• Funções.
• Funções reais de variável real.
• Funções trigonométricas.
• Função exponencial.
• Continuidade.
• Derivadas.
Números reais
Índice
Índice 3
1 Introdução 5
2 Marcação na recta real dos números racionais 9
3 Uma pedra no meio do caminho 20
4 Uma interpretação geométrica dos números reais 28
5 Esboço de uma teoria axiomática para os números reais 57
Índice remissivo 70
Nomenclatura 72
3
Grupo de Matemática da UTL
4
Números reais
1 Introdução
Os números são a ciência do
tempo e a geometria é a ciência
do espaço.
Paráfrase de uma ideia na
Crítica da Razão Pura de
Immanuel Kant.
Frases deste género são sempre radicais — se, por um lado, podem reve-
lar relações profundas entre certos entes, por outro, fazem-no de forma
extremamente exagerada: o tempo geometrizou-se na recta e na circunfe-
rência e a geometria procurounos númerosmedidapara os seus elementos.
Mesmo nas técnicas mais rudimentares se utilizam réguas e relógios que
são instrumentos mistos.
Assim, embora o estudo dos números e da geometria se possa fazer
de forma independente, o que tem a sua virtude porque permite deter-
minar as respectivas características “puras”, não é desrazoável estudar e
complementar o nosso conhecimento sobre os números reais utilizando,
como suporte, resultados geométricos que estão ao nosso dispor. É isso
que iremos fazer, naturalmente de forma muito sucinta de início (porque
já conhecida), levantando-se depois algumas questões que, tanto pela sua
delicadeza como pela dificuldade de formalização, são pouco tratadas no
ensino secundário.
Referimos, ainda, que não é nosso objectivo uma apresentação formal
nem dos números reais nem da geometria euclidiana, porque a achamos
desajustada dos conhecimentos dos alunos e até inconveniente ao propó-
sito deste texto. Nesta perspectiva as “provas” dos resultados que se apresentam
baseiam-se, em última análise, em certas propriedades dos números e dos elementos
geométricos que consideramos ser do senso comum.
Algumas observações de natureza geométrica
Na representação dos números reais na recta real utilizamos apenas resul-
tados bem conhecidos do ensino secundário. Sobre os entes (ponto, recta,
régua, compasso, etc.) que intervêm nesses resultados, faremos, apenas,
algumas observações ingénuas.
5
Grupo de Matemática da UTL
O ponto Não foi há muito tempo queme contaram a história (verídica) de
uma criança, com não mais de 4 anos, que colocava ao pai a seguinte
dificuldade que o preocupava:
— . . . é que sabes, pai, por mais que afie o lápis apenas consigo fazer
uma bolinha e nunca um ponto.
Não foi certamente esta a frase que ele disse e muito provavelmente
também não foi a que me contaram. Mas foi isto, e não creio ter
adulterado o sentido, que me ficou e maravilhou.
Tão novo, aquele menino conseguia distinguir entre o que se podia
fazer com meios materiais (o lápis e o afia lápis) e o ente ideal que é
o ponto.
Quando falamos de um ponto entendêmo-lo no sentido que este me-
nino deu a esse termo.
A recta Quando falamos de uma recta não estamos a pensar nalgum risco
que alguém fosse fazer numa folha de papel com uma régua e um lá-
pis vulgares. Por muito afiado que esteja o lápis e por muito perfeita
e longa que seja a régua vulgar, nunca obtemos aquele ente matemá-
tico que, não só não temespessura como se prolonga indefinidamente
nos dois sentidos.
A régua A régua é um instrumento geométrico que nos serve apenas para
traçar segmentos de recta que unem dois pontos distintos. Trata-se
de uma régua não graduada, que não serve, portanto, para medir
distâncias.
Admitimos que um segmento de recta commais de um ponto, deter-
mina uma e uma só recta.
O compasso O compasso é um instrumento geométrico que nos serve
apenas para traçar arcos de circunferência. Um compasso, como o
referido, não se pode utilizar para transportar distâncias— supomos
que as hastes do compasso colapsam depois da sua utilização.
6
Números reais
A recta real
A recta real R é uma recta que supomos escolhida de uma vez por todas
e onde foram marcados dois pontos distintos que designamos por O e I.
Uma representação grosseira será
PSfrag replacements
IO
Figura 1: Recta real R.
As letrasO e I não foram escolhidas ao acaso— a letraO será a imagem
geométrica do número real zero e a letra I será a imagem geométrica do
número real um.
Como se sabe uma recta pode ser percorrida em dois sentidos distintos.
Ora, o facto de terem sido marcados dois pontos (O e I) em R, permite a
determinação, por convenção, de um sentido de percurso. Escolhemos o
sentido de percurso de O para I.
Assim a recta real tem um sentido de percurso privilegiado, o que,
dados dois pontosX e Y deR, distintos, nos permite dizer que um precede
o outro.
Escrevemos X ≺ Y sse X precede Y e é distinto de Y. Esta relação,
≺, introduzida na recta real, tem propriedades semelhantes às da relação
menor (<) no conjunto dos números reais.
Escrevemos X = Y para dizer que X e Y designam o mesmo ponto da
recta real. O símbolo � colocado entre dois pontos da recta real tem o
significado seguinte:
X � Y sse X = Y ou X ≺ Y.
São geometricamente evidentes as seguintes propriedades da relação �:
i) ∀X∈R X � X.
ii) ∀X,Y∈R X � Y ∧ Y � X ⇒ X = Y.
iii) ∀X,Y,Z∈R X � Y ∧ Y � Z ⇒ X � Z.
É igualmente evidente que
iv) Sendo X e Y dois pontos de R, é verdadeira uma e uma só das propo-
sições seguintes: X ≺ Y, X = Y, Y ≺ X.
7
Grupo de Matemática da UTL
Denotaremos por R+ o conjunto dos pontos X da recta real tais que
O ≺ X. A R+ chamaremos a semi-recta real positiva. Analogamente,
designaremos por R− o conjunto dos pontos X da recta real tais que X ≺ O
e chamaremos a R− a semi-recta real negativa.
Um breve resumo deste capítulo
Apresentaremos, agora, um breve resumo das orientações gerais deste
Capítulo.
(1) Do conjunto R dos números reais, admitimos que são bem conhecidos os
números racionais, bem como as suas propriedades elementares.
Naturalmente, supomos que é sabida a existência de números reais que
não são racionais — os chamados números irracionais cuja definição e
propriedades, por terem sido apenas ligeiramente abordadas no ensino
secundário, nos merecerão uma análise mais detalhada.
(2) Admitimos que é do conhecimento geral que os números reais têm uma repre-
sentação geométrica como pontos da recta real R, de tal forma que: a cada
número real x corresponde um e um só ponto X de R (a representação
geométrica de x), e que para cada ponto X ∈ R existe e um e um só
x ∈ R tal que X é a representação geométrica de x.
A análise desta correspondência, que se presumiu existir mas nunca
foi totalmente definida, será o fio condutor que nos guiará na revisão
que vamos fazer dos números reais, bem como dos complementos que,
necessariamente, teremos que apresentar.
(3) Assim começamos por uma apresentação sucinta da representação dos
números racionais na recta real, dedicando-nos em seguida, após um
parágrafo intermédio onde se estabelece a insuficiência dos números
racionais,à introdução dos números irracionais e a algumas das suas
propriedades, tendo sempre em vista uma perspectiva geométrica.
(4) No último parágrafo deste Capítulo faremos um esboço de uma Teoria
Axiomática para os números reais.
8
Números reais
2 Marcação na recta real dos números racionais
Dissemos atrás que são bem conhecidos os números racionais. Trata-se,
agora, de lhes dar uma representação geométrica.
Marcação dos números reais na recta real
Comecemos, então, amarcar na recta real os números naturais. O número 1
não oferece dificuldade, uma vez que já dissemos que a sua imagem geo-
métrica é o ponto I da recta real. Para marcar o número 2 basta considerar
o único ponto A ∈ R+ da intersecção com a recta real, da circunferência
de centro em I e com raio igual ao comprimento do segmento OI, como é
sugerido pela figura seguinte:
PSfrag replacements
IO A
Figura 2: A é a imagem geométrica de 2.
Para marcar o número 3 basta repetir a construção anterior, mantendo
o raio e considerando agora, como centro da circunferência, o ponto A
PSfrag replacements
IO A B
Figura 3: B é a imagem geométrica de 3.
Obtivemos, assim, o ponto B que é a imagem geométrica de 3.
Se prosseguirmos indefinidamente com este processo iremosmarcando
sucessivamente os números naturais.
Note-se que, se M é a imagem geométrica do número natural m e N é
a imagem geométrica do número natural n que se lhe segue (n = m + 1),
então o ponto P da recta real é a imagem geométrica do número natural
que se segue a n, ou seja, de n + 1.
9
Grupo de Matemática da UTL
PSfrag replacements
M NO P
Figura 4: P é a imagem geométrica de n + 1.
Assim, o processo gerador dos números naturais que (intuitivamente)
consiste em dizer que
1 é um número natural e que todos os outros se obtêm deste por
sucessivas adições da unidade
tem aqui a seguinte versão geométrica
I é a imagem geométrica de 1 e todas as outras imagens geométricas de
números naturais obtêm-se desta por sucessivas aplicações do processo
considerado na figura 4 (ao qual damos o nome de processo elementar).
Exercício 1. Seja n um número natural e designemos por N a sua imagem
geométrica. O exercício consiste em marcar1 na recta real o número n + 1,
utilizando apenas régua e compasso e tendo apenas conhecimento prévio
dos pontos O e I de R. Note-se que, para aplicar o processo elementar
(figura 4), necessitava-se do ponto M (imagem geométrica de n − 1) e que
só se dispõe agora dos pontos O, I e N.
Designaremos, como é usual, por N o conjunto dos números naturais, e
designaremos porN o conjunto das suas imagens geométricas.
Assim, o conjunto N pode ser definido como sendo o conjunto dos
pontos X ∈ R que são imagens geométricas de elementos de N. Mas,
curiosamente, o conjunto N pode também ser definido da seguinte forma: N é
o subconjunto de R que satisfaz as condições seguintes:
(i) I ∈ N .
(ii) dado X ∈ R, X pertence aN sse X = I ou pode ser obtido de I por um
conjunto finito de aplicações sucessivas do processo elementar.
1Pressupõe-se que num número de passos independente de n, caso contrário poder-
se-ia repetir a construção anterior.
10
Números reais
Esta introdução do conjuntoN é interessante, porque permite defini-lo
em termos puramente geométricos, sem fazer apelo a um conhecimento
prévio deN.
Vejamos agora qual a representação geométrica da soma de dois números
naturais. Sejamm e n dois números naturais e sejamM eN as suas (respec-
tivas) imagens geométricas. Como podemos representar geometricamente
m + n?
Comecemos por notar quem+3 é igual am+ (1+1+1) e que, portanto,
m + 3 = {[(m + 1) + 1] + 1}.
Assim, para obter m + n, basta adicionar n vezes ao número m o número
1. Desta forma, sendo M a imagem geométrica de m, para obter o ponto
P ∈ R correspondente a m + n, basta tomar o ponto M e utilizar n vezes o
processo elementar.
Como vimos atrás, não só os números naturais têm uma representação
geométrica, como a adição de dois números naturais também se pode
interpretar geometricamente. Ficou assim definida uma operação em N
(ou seja, uma aplicação de N ×N em N) que, a cada par (M,N) ∈ N × N
associa um (e um só) S ∈ N
N ×N 3 (M,N) 7→ S ∈ N
onde, sendo M a representação geométrica de m e N a representação geo-
métrica de n, S é a representação geométrica de m + n.
A fim de distinguir a adição emN da correspondente operação emN ,
designamos esta última por ⊕. Escrevemos assim
S = M ⊕N.
11
Grupo de Matemática da UTL
Como se sabe, a adição é comutativa e associativa, o que se pode expressar
da forma seguinte:
∀m,n ∈N m + n = n +m
∀m,n, p ∈N (m + n) + p = m + (n + p).
Claro que a estas propriedades da adição emN correspondem as seguintes
propriedades da operação ⊕ emN :
∀M,N ∈ N M ⊕N = N ⊕M
∀M,N,P ∈ N (M ⊕N) ⊕ P = m ⊕ (N ⊕ P).
Ora, tal como o conjuntoN podia ser introduzido sem o conhecimento
deN (ver atrás), também, como vimos, a operação⊕ pode ser definida sem
recurso à adição emN. E, o que émais, a comutatividade e associatividade
de ⊕ são geometricamente evidentes.
Para falar da multiplicação em N (ou em N) podemos seguir, passo a
passo, o que fizemos com a adição, utilizando o mesmo tipo de discurso e
só omodificando quando tal fosse necessário—o que terá forçosamente de
acontecer, uma vez que a adição e amultiplicação são operações diferentes.
Deixamos este trabalho ao cuidado do leitor.
Marcação dos números inteiros na recta real
O conjunto dos números inteiros Z surge para que se possa definir a
subtracção de um número natural m por um número natural n.
Para que se entenda a impossibilidade de definir a subtracção em N
(e, portanto, a necessidade de introdução do conjunto Z) é indispensável
saber o que é a subtracção.
Comecemos com a subtracção emN:
dados dois números naturais m e n, pretendemos que a sub-
tracção dem por n (m−n) seja o único número natural p tal que
m = n + p
Posta assim a questão, temos dois problemas a resolver:
12
Números reais
(1) (existência) dados m,n ∈ N, existirá pelo menos um p ∈ N tal que
m = n + p?
(2) (unicidade) mesmo que exista um tal p, será ele único?
Como se sabe, (1) e (2) têm resposta afirmativa sse m > n. Na sequên-
cia, utilizaremos a representação geométrica dos números naturais para
justificar a afirmação precedente.
Sejam M e N as imagens geométricas de m e n, respectivamente, e su-
ponhamos M � N (o que corresponde a m > n). Ora N obtém-se de I
utilizando (n − 1) vezes o processo elementar, o mesmo acontecendo com
M, utilizando-se, agora, o processo elementar (m− 1) vezes. Resulta daqui
que, partindo de I e depois de atingido o ponto N, alcançamos o ponto
M após um número finito de passos elementares. É também evidente que
atingido este ponto (M), quaisquer novas utilizações doprocesso elementar
nos conduzem a pontos Q �M.
Assim, sendo p o número de vezes que utilizamos o processo elementar
para, partindodeN, atingir opontoM, se temN⊕P = M eportanton+p = m
(ver figura 5).
PSfrag replacements
MI NO
Figura 5: Caso p = 3, ou seja, m = n + 3, ou ainda, m − n = 3.
Conclui-se daqui que a subtracção m − n é única em N, se m > n. Se
m = n, um argumento semelhante à prova da unicidade, mostra que a
subtracção é impossível emN.
De acordo com o que foi dito anteriormente, para calcular 7−2 basta contar
o número de processos elementares que, partindo da imagem geométrica
de 2, atingem a imagem geométrica de 7.
13
Grupo de Matemática da UTL
PSfrag replacements
IO P Q
Figura 6: P é a imagem geométrica de 2 e Q é a imagem geométrica de 7.
Assim 7 − 2 = 5. Note-se que, nesta figura 6, indicamos um sentido
de percurso do compasso (o de 2 para 7) em cada um dos processos ele-
mentares, sentido esse que foi assinalado por uma seta. Note-se ainda
que o resultado da subtracção é o número de processos elementares que se utili-
zaram para, partindode P (imagem geométrica de 2), atingir o ponto Q (imagem
geométrica de 7).
Utilizando o mesmo exemplo (7 − 2 = 5), vamos, agora, indicar um
outro processo geométrico que nos permite obter o mesmo resultado.
Neste outro processo, em vez de partirmos do ponto P, partimos do
ponto Q e utilizamos processos elementares com sentido de processo in-
verso.
Vejamos como se procede no exemplo (7 − 2 = 5) (ver figura 7). Come-
çando no pontoQ (imagem geométrica de 7), utilizamos 2 vezes o processo
elementar (com sentido de percurso inverso), o que determina um ponto
S da recta real.
PSfrag replacements
IO P QS
Figura 7: Q é a imagem geométrica de 7.
O resultado da subtracção é, então, o único natural (5) cuja imagem
geométrica é S, o que é obviamente verdadeiro neste caso. Ora esta equi-
valência dos dois processos geométricos não é uma casualidade — ela
permanece verdadeira sempre que pretendemos fazer a subtracção de m
por n, com m > n.
Embora sendo redundantes, queremos salientar que na primeira constru-
ção o resultado da subtracção é determinado pelo número de processos elementares,
enquanto que na segunda construção, o resultado da subtracção é o natural cuja
imagem geométrica é o ponto S obtido.
14
Números reais
Esta segunda ideia para obter o resultadoda subtracçãode 7por 2, não éum
mero processo alternativo. Ela contém, empotência, o processo gerador da
imagem geométrica dos números inteiros não naturais. Vejamos porquê.
Consideremos, em primeiro lugar, a subtracção de 3 por 3, que já sa-
bemos não poder ser um número natural. Ora, se utilizarmos o segundo
processo, obtemos o ponto O que corresponde ao número 0. O mesmo
aconteceria, como é fácil ver, se quiséssemos subtrairm de m (m ∈N). Isto
conduz-nos a considerar o conjuntoN0 =N∪{0} (bem comoN0 = N∪{O}),
no qual a subtracção de m por n já é sempre possível (e única) desde que
m ≥ n.
PSfrag replacements
IO
Figura 8: 3 − 3 = 0.
Consideremos, agora, a subtracção de 3 por 4. Uma aplicação auto-
mática do processo anterior (ver figura 9) conduz-nos ao ponto J a que,
naturalmente, chamamos a imagem geométrica de −1.
PSfrag replacements
IOJ
Figura 9: J é a imagem geométrica de 3 − 4.
Note-se que J, estando à mesma distância de O do que o ponto I, tem
um papel semelhante em R−, ao que I tinha em R+.
Em R+, marcavam-se os naturais por aplicações sucessivas, feitas a
partir do ponto I, do processo elementar (descrito no sentido de O para I).
Da mesma forma podemos proceder em R−, marcando os pontos que se
obtêm a partir do ponto J, por sucessivas aplicações do processo elementar
descrito, agora, no sentido deO para J—designamos tal conjunto por −N .
15
Grupo de Matemática da UTL
Encontra-se, desta forma, um conjuntoZ
Z = −N ∪ {O} ∪ N
(que é a imagem geométrica de Z), onde se encontram todas as imagens
geométricas de m − n (m,n ∈ N), quer m seja maior que n (caso em que
a imagem geométrica está em N); quer m seja igual a n (caso em que a
imagem geométrica é O); quer m seja menor que n (caso em que a imagem
geométrica está em −N).
É muito fácil, agora, determinar as construções geométricas2 que corres-
pondem às operações de adição e multiplicação no conjunto Z . Partindo
de tais construções, constata-se, sem dificuldade, que as propriedades
elementares da adição, da subtracção e da multiplicação em Z, têm um
paralelo geométrico que lhes dá um caracter de evidência.
Das quatro operações elementares (adição, subtracção, multiplicação e
divisão), falta-nos tratar a divisão.
Ora, se a impossibilidade de subtracção emN, nos “obrigou” a passar
de N para Z, o problema da divisão vai-nos conduzir à criação de um
novo conjunto de números — o conjunto Q dos números racionais. É esse
o assunto que tratamos na sequência.
Marcação dos números racionais na recta real
O conjunto dosQ surge para que se possa definir a divisão de um número
inteiro m, por outro número inteiro n distinto de zero.
Qual a razão da impossibilidade de uma boa divisão emZ? Isso resulta
da definição de divisão, que ainda não foi dada. Ora,
2Estas construções utilizam apenas o processo elementar, quer descrito no sentido de
O para I, quer descrito no sentido de O para J, com as excepções que a seguir se referem:
∀m ∈ Z m + 0 = 0 +m, ∀m ∈ Z m · 0 = 0 ·m.
16
Números reais
sendom ∈ Z e n ∈ Z \ {0}, diz-se que o número r dividem por n
sse m = nr.
Tal como no caso da subtracção temos aqui dois problemas:
(1) (existência) dadosm ∈ Z e n ∈ Z \ {0}, existirá pelo menos um r ∈ Z tal
que m = n · r?
(2) (unicidade) mesmo que exista um tal r, será ele único?
Como sabemos, só em certos casos a divisão de m ∈ Z por n ∈ Z \ {0} é
um número inteiro — tal acontece, por exemplo, quando dividimos 4 por
2, ou 15 por 3, ou 120 por 6. Mas, se pretendermos dividir 1 por 2, sabemos
que o resultado não vai ser um número inteiro.
Pensamos que, mais uma vez, uma interpretação geométrica põe em
evidência o problema e esclarece o seu processo de resolução.
Comecemos por pensar em m e n números naturais. Para se ter uma
ideia prévia do processo geométrico que a seguir apresentamos, convém
notar que se pretende que
m
n
= m · 1
n
.
Assim, introduziremos, em primeiro lugar, as imagens geométricas dos
números da forma 1n (n ∈ N), seguindo-se depois a apresentação da cons-
trução que nos permite obter a imagem geométrica de m · 1n .
A representação geométrica de 1n está relacionada com o problema de
dividir o segmento OI em n segmentos com igual comprimento. Vejamos
como o podemos fazer.
Para simplificar a exposição, vamos descrever um processo geométrico
que permite dividir o segmento OI em três partes iguais. Começamos, em
primeiro lugar, pormarcar na recta real os pontosA (imagemgeométrica de
2) e B (imagem geométrica de 3). Seguidamente (ver figura 10) considera-
se uma outra recta r, passando pelo ponto O e não coincidente com a recta
real, na qual marcamos, utilizando o compasso, os pontos I′, A′ e B′.
Tracemos agora, usando a régua, o segmento IB′ e façamos passar por I′
uma recta l paralela3 à determinada por IB′. Seja R o ponto de intersecção
da recta l com a recta real. O ponto R é a imagem geométrica de 13 , uma
3Traçar uma paralela a uma recta passando por um ponto é algo possível com régua
e compasso. Verifique! (N.E.)
17
Grupo de Matemática da UTL
PSfrag replacements
A BIO
A
�
B
�
R S
I
�
Figura 10: A é a imagem geométrica de 2, B a imagem de 3 e R a imagem de 13 .
vez que são iguais os comprimentos dos segmentos OR, RS e SI (como
facilmente se prova utilizando apenas argumentos geométricos — faça a
demonstração!).
Assim como se marcou 13 , se marcariam os números
1
2 ,
1
5 ou
1
20 . Proce-
dendo desta forma podemos ir marcando os pontos da forma 1n com n tão
grande quanto se queira.
Consideremos, agora, o problema de marcar na recta real os pontos da
forma mn , com m,n ∈ N. Trata-se, surpreendentemente, de uma questão
trivial. Quando se escolheu o ponto I como imagem geométrica de 1, tal
foi feito de forma arbitrária — qualquer outro ponto L (O ≺ L) poderia ter
sido o escolhido. Assim, fixado n ∈ N, se escolhêssemos para I o ponto L
imagem geométrica de 1n , e procedêssemos com L tal como procedíamos
com I, iríamos marcando sucessivamente os pontos da forma mn (m ∈ N).
Para uma marcação dos pontos da forma mn (com m ∈ Z \ {0} e n ∈ N)4
recorremos ao mesmo argumento e ao procedimento de marcação dos
números inteiros.
As figuras 11 e 12 ilustram o discurso anterior.
4Se m for zero a imagem geométrica de mn (n ∈N) é o ponto O.
18
Números reais
PSfrag replacements
O R P
Figura 11: Marcação de 43 . R é a imagem geométrica de
1
3 e P é a imagem
geométrica de 43 .
PSfrag replacements
O RR
�
P
Figura 12: Marcação de −52 . R é a imagem geométrica de 12 ; R′ é a imagem
geométrica de −12 ; P é aimagem geométrica de −52 .
Para obter construções geométricas correspondentes às operações algé-
bricas em Q, basta-nos notar que:
∀p, r ∈ Z ∀q, s ∈N p
q
+
r
s
=
p · s + r · q
q · s ,
∀p, r ∈ Z ∀q, s ∈N p
q
· r
s
=
p · r
q · s ,
∀p, r ∈ Z ∀q, s ∈N
p
q
r
s
=
p · s
q · r .
Para obter, por exemplo, a imagem geométrica do produto
p
q
· r
s
basta considerar o natural n (= q · s) e marcar seguidamente a imagem
geométrica de mn , onde m = p · r.
19
Grupo de Matemática da UTL
3 Uma pedra no meio do caminho5
Vimos atrás como podíamos marcar na recta real os números racionais e
quais as construções geométricas que ilustravam as operações de adição,
subtracção, multiplicação e divisão entre esses números. Como estas ope-
rações têm as propriedades desejáveis (comutatividade, associatividade,
distributividade, etc.) poderíamos pensar ter atingido o nosso objectivo,
ou seja, uma representação geométrica dos números e das operações en-
tre eles. Recordemos, contudo, que, no início deste Capítulo, tínhamos
admitido existir uma correspondência bijectiva (dada pela representação
geométrica) entre os números e os pontos da recta real. Ora, se a cada
número racional x corresponde um e um só ponto X de R, falta ver se,
dado um X ∈ R existe um e um só x racional cuja imagem geométrica seja
X.
Será esta a questão de que nos iremos ocupar, utilizando para isso um
problema de do qual daremos uma visão ingénua, que se revelará extrema-
mente significativa, e onde faremos simultaneamenteusodaspropriedades
dos números e da sua representação geométrica.
Um problema de medição
Marquemos na semi-recta positiva um ponto P e procuremos medir o
PSfrag replacements
O P
Figura 13: O ponto P na semi-recta positiva.
comprimento do segmento OP utilizando a régua (ideal).
PSfrag replacements
O
O P
I
Figura 14: Comprimento do segmento OP (neste caso 1).
Ora, como se mede um segmento, utilizando uma régua? Em primeiro
lugar fazemos coincidir o ponto O da régua com o ponto O da recta real e
5Uma pedra no meio do caminho é uma citação de um poema de Carlos Drummond de
Andrade.
20
Números reais
marcamos nesta o ponto I (que, aliás, já estava marcado). Se P ≺ I então
não conseguimos, com esta régua, determinar o comprimento de OP. Se
I coincidir com P dizemos que o comprimento de OP é 1. Se I ≺ P então
deslocamos a recta fazendo agora coincidir o ponto O da régua com o
ponto I da recta real e, mais uma vez, uma e uma só das três situações
pode acontecer:
PSfrag replacements
I
I
IO
O
O
R
P
Figura 15: Comprimento do segmento OP.
i) P ≺ R, caso em que, com esta régua, não podemos medir o compri-
mento do segmento OP;
ii) R = P, caso em que dizemos que o comprimento de OP é 2 (2 é o
número de vezes que utilizámos a régua);
iii) R ≺ P, caso em que temos de repetir o processo, deslocando de novo
a nossa régua.
Repetindo este processo concluímos que: ou a régua, após n utilizações,
faz coincidir o ponto I com o ponto P (o comprimento de OP é, então, n),
ou tal não acontece e ao fim de um certo número de utilizações o ponto I
da régua ultrapassa o ponto P da recta real.
Neste último caso podemos dizer que, com esta régua, não se consegue
medir o comprimento de OP. É o que se passa com pontos P que sejam
imagem geométrica de 1/3, ou de 5/2, ou de 33/7.
Como podemos ultrapassar esta dificuldade? A primeira ideia que nos
ocorre é a de que a nossa régua é muito pobre — apenas os pontos O e I
estavammarcados. Se utilizarmosuma réguaonde se encontremmarcados
os pontos O, I e D, sendo este último o ponto médio do segmento OI (ou
seja, a imagem geométrica de 1/2), facilmente se verifica que a imagem
geométrica de 5/2 se obtém após 5 utilizações da “sub-régua” OD. No
entanto esta régua (OD) não nos permite calcular o comprimento dos
segmentosOP, quando P designa a imagem geométrica de 1/3 ou de 33/7.
21
Grupo de Matemática da UTL
Somos assim levados a dividir o segmento OI num número cada vez
maior de partes iguais. Se o dividirmos em 3 partes podemos medir o
comprimento do segmentoOP, onde P é a imagem geométrica de 1/3, mas
não o caso em que P corresponde a 33/7. Para este último caso não basta
dividir OI em quatro, cinco pu seis partes iguais. No entanto uma divisão
em 7 partes iguais já o permite medir — bastará fazer 33 utilizações da
sub-régua correspondente.
Estas considerações levam-nos à seguinte questão:
Dado um ponto P na semi-recta positiva, existirá alguma di-
visão do segmento OI num número finito de partes iguais, tal
que uma destas partes caiba um número finito de vezes no
segmento OP?
Esta pergunta equivale à seguinte:
Será que todo o ponto X ∈ R é imagem geométrica de um
número racional?
Vamos ver que não!
Uma Consequência Importante do Teorema de Pitágoras
Considerando a recta real R e, tomando o segmento OI como cateto, cons-
truamos um triângulo rectângulo isósceles OIJ, onde IJ é o outro cateto,
como se ilustra na figura seguinte (figura 16)6.
PSfrag replacements
IO
J
Figura 16: Triângulo OIJ.
Utilizando o compasso com centro em O e raio OJ marquemos o ponto
Rde intersecção da circunferência descrita pelo compasso com a semi-recta
positiva.
6É um bom e fácil exercício construir os dois triângulos possíveis utilizando apenas
régua e compasso.
22
Números reais
PSfrag replacements
RIO
J
Figura 17: Triângulo OIJ e ponto R.
Vamos provar que não existe nenhuma divisão do segmento OI em
partes iguais tal que uma qualquer delas caiba um número m de vezes no
segmento OR, ou seja, tal que o comprimento do segmento OR se possa
escrever na forma mn , com m e n números naturais.
Designando por d o comprimento do segmento OR (que é igual ao do
segmento OJ), sabemos, pelo teorema de Pitágoras, que
d2 = 1 + 1 = 2. (1)
Queremos, então, provar que d não pode ser da forma m/n, com m e n
números naturais.
Façamos a demonstração por redução ao absurdo, ou seja, suponhamos
que d é da forma m/n (com m e n números naturais) e cheguemos a uma
contradição. Supomos, sem perca de generalidade, que m e n não são
ambos pares, porque os podemos escolher primos entre si, ou seja, sem
factores comuns.
Escrevamos então (1) na forma(m
n
)2
= 2
onde m e n são números naturais que não são ambos números pares. Resulta
daqui que
m2 = 2n2 (2)
donde se conclui quem2 é um número par. Ora, o quadrado de um natural
ímpar é ainda um número ímpar (exercício), pelo que m terá de ser um
número natural par, portanto da forma 2k, onde k é um número natural.
Mas, sendo m = 2k, segue-se de (2) que
4k2 = 2n2
donde
n2 = 2k2.
23
Grupo de Matemática da UTL
Assim, n2 é par, e, portanto, usando o mesmo raciocínio que fizemos com
m, podemos concluir que n é um número par.
Chegamos assim a uma contradição: por um lado m e n são números
naturais que não são ambos pares, e, por outro, m e n são números naturais pares.
A demonstração está então concluída — o comprimento do segmento
OR não é um número racional, o que é equivalente a dizer que o ponto R
não é imagem geométrica de qualquer número racional.
Uma História Verídica e uma Experiência Imaginária
Há já alguns anos, estando eu num café perto do Instituto onde trabalho,
dei por mim a ouvir a conversa entre dois alunos do ensino secundário. E
o que me chamou a atenção foi a seguinte pergunta que um deles fez:
— . . . mas e o que são os números irracionais?
ao qual o outro deu uma resposta lapidar:
—Olha, o
√
2 é um número irracional e parece-me que o pi tam-
bém é —mas não te preocupes porque eles são muito poucos.
Fiquei arrepiado! e só a muito custo me contive de lhes gritar:
— Vocês estão completamente enganados!
Depois, mais calmo, pensei que o erro (e é um erro tremendo) que eles
cometiam tinha a sua razão de ser. Com efeito, os números racionaisnão só
são bem conhecidos como também são usados nas mais elementares medi-
ções e transacções, bem como em todos os cálculos feitos nas calculadoras
e nos computadores.
E os números irracionais?!. . . Ora esse. . . bem. . . para esses basta ver o
trabalho que tivemos para demonstrar que d(=
√
2) é um número irracio-
nal!; e opi, como se demonstra que é irracional?!; e o número e, que também
é irracional. Até o facto de usarmos designações especiais (por exemplo pi,
e) para certos irracionais dá a sensação que eles são poucos ou raros.
Para termos algum vislumbre de como esta ideia (a de que os números
irracionais são raros) é incorrecta, consideremos a seguinte experiência
imaginária e ideal:
Suponhamos que, numa sala de aula, alguém traça no quadro um seg-
mento da recta real7 (o que, como sabemos, é impossível, e, por isso disse-
mos que se trata de uma experiência imaginária) e suponhamos também
7Segmento com mais de um ponto.
24
Números reais
que tenho na mão um ponteiro tão ideal que, se colocar a sua extremidade
no segmento de recta, determino nele um e um só ponto. Posto isto, fecho
os olhos e, com alguma (muitíssima) sorte, consigo que a extremidade do
ponteiro toque no segmento de recta.
Perguntem-me agora: o ponto que determinaste no segmento da recta
corresponde a um número racional ou a um número irracional?
A uma tal pergunta, a minha resposta é imediata: trata-se de um nú-
mero irracional.
Como posso eu ter tanta certeza de que acertei num número irracional?
É que a esperança de ter acertado num número racional é muito, muito
menor do que ganhar umbilião de biliões de vezes seguidas a sorte grande.
Quer isto dizer que, em qualquer segmento da recta real (com mais de
um ponto), quase todos os pontos correspondem a números irracionais.
Poucos são aqueles que correspondem a números racionais, embora, como
veremos já a seguir, o conjunto por eles formado seja infinito.
Este último parágrafo pode (e deve!) causar alguma confusão no leitor.
Adivinhamos a questão:
Então, se num segmento da recta real, o conjunto dos pontos
correspondentes aos números racionais é infinito, e se existem
muitos, muitos mais pontos correspondentes a números irraci-
onais, o conjunto destes deveria ser mais infinito do que o outro
infinito, o que parece não fazer sentido.
O que é espantoso é que tudo isto possa fazer sentido, se utilizarmos
definições apropriadas e úteis8. Com estas definições pode-se estabelecer
uma hierarquia entre “os infinitos” e pode-se demonstrar que “o infinito do
conjunto dos números racionais” é o “menor dos infinitos”.
Os racionais são poucos mas estão muito bem distribuídos na recta real
Dissemos atrás, sem o demonstrar, que, em qualquer segmento (com mais
de um ponto) da recta real, existe uma infinidade de elementos de Q9.
Significa isto que entre dois números reais distintos (por mais próximos
que estejam) existem sempre infinitos números racionais.
Ora isto é algo de extraordinário porque, se bem que na hierarquia dos
infinitos eles estejam em último lugar, os números racionais têm imagens
8Tão úteis que me permitem dizer que o ponto que a contem no segmento da recta
real corresponde a um número irracional.
9De forma similar às convenções já adoptadas Q designa a imagem de Q em R.
25
Grupo de Matemática da UTL
geométricas tão bem distribuídas na recta real, que, dados dois pontos A
e B distintos, com A ≺ B, existe sempre uma infinidade de pontos R ∈ Q
satisfazendo A ≺ R ≺ B.
PSfrag replacements
A BIO
Figura 18: Os pontos A e B na recta real.
Se bem que o nosso objectivo seja demonstrar tal proposição, vamos
começar por provar um resultado mais modesto e que é o seguinte:
Proposição 1. Se C ∈ R+ então existe R ∈ Q tal que O ≺ R ≺ C.
Demonstração. Se I ≺ C, tem-se R = I. Suponha-se, então, que C � I. É
geometricamente evidente que, após um número suficientemente grande
de utilizações do processo ilustrado na figura 19 se obtém um ponto P tal
que I ≺ P.PSfrag replacements
IO PC
Figura 19: Os pontos C e P na recta real.
Designemospormumnúmerodeutilizaçõesdo compassoque conduza
a um ponto P, com I ≺ P, e tomemos para R a imagem geométrica do
número racional 1m+1 .
Se R ≺ C o problema está resolvido. Se R = C basta considerar o ponto
médio do segmento OR (que é ainda a imagem geométrica de um número
racional) para obter a solução do problema. Finalmente, provemos, por
redução ao absurdo, que é impossível que se tenha C ≺ R.
Suponhamos, então, que C ≺ R. Como R é a imagem geométrica de
1
m+1 , apósm utilizações do processo ilustrado na figura, obtemos o ponto I.
Por outro lado, sendo agora o raio das circunferências o comprimento do
segmento OR (em vez do comprimento do segmento OC), resulta imedia-
tamente de C ≺ R, que o ponto S que iremos obter satisfaz a I ≺ S, donde
resulta a contradição (S = I e I ≺ S).
�
Na proposição anterior provou-se que entre O e C (C ∈ R+) existe pelo
menos um R ∈ Q. Na proposição seguinte provaremos que o mesmo
acontece em qualquer segmento AB (A,B ∈ R+, com A ≺ B).
26
Números reais
PSfrag replacements
I
O
R
P
S
C
Figura 20: Os pontos C, R e S na recta real.
Proposição 2. Sendo A e B dois pontos da semi-recta real positiva (com A ≺ B),
existe R ∈ Q tal que A ≺ R ≺ B.
Demonstração. Consideremos, então, dois pontos A e B da semi-recta real
positiva e suponhamos que A ≺ B. Designemos por C o único ponto da
semi-recta real positiva tal queOC tem comprimento igual ao deAB, como
é ilustrado na figura seguinte:
PSfrag replacements
A BCO
Figura 21: Os pontos A, B e C na recta real.
Exercício 2. Utilizando apenas régua e compasso, construa o ponto C.
Sabemos, pela proposição anterior, existir um P ∈ Q tal que O ≺ P ≺ Q.
Consideremos, agora, os pontos da recta real que se obtêm por sucessivas
aplicações ao ponto P do processo indicado na figura. Após um número
(que pode ser grande) de utilização deste processo, obtemos um ponto S
tal queA ≺ S. Designemos por n o menor número de utilizações do processo
que conduza a um ponto R, com A ≺ R, e provemos que tal ponto R não
só satisfaz a A ≺ R como também a R ≺ B.
Ora, (n − 1) vezes a utilização do processo referido conduz-nos a um
ponto L ≺ A e uma nova utilização desse processo leva-nos ao ponto R
(A ≺ R). Atendendo a que o comprimento do segmento LR é igual ao de
OP, conclui-se imediatamente que R ≺ B. �
Proposição 3. Sendo A e B dois pontos da recta real (com A ≺ B), existe R ∈ Q
tal que A ≺ R ≺ B.10
10A demonstração trata-se dum exercício geométrico simples (N. E.).
27
Grupo de Matemática da UTL
Proposição 4. Sendo A e B dois pontos da recta real (com A ≺ B), o conjunto
{R ∈ Q : A ≺ R ≺ B} é infinito.11
4 Uma interpretação geométrica dos números reais
Encontramo-nos na seguinte situação:
(i) sabemos que existe uma correspondência bijectiva (dada pela repre-
sentação geométrica) entre R e R;
(ii) sabemos, também, marcar na recta real os números racionais, mas
vimos que existem pontos de R que não são imagem geométrica de
nenhum elemento de Q;
(iii) foi-nos dito que Q é um subconjunto (infinito) de R com “poucos
elementos”, ou seja, que quase toda a recta real é formada pelas
imagens geométricas de números que não sabemos quais são (mas a
que chamamos números irracionais).
Uma vez que não sabemos definir os números irracionais (aqueles cuja
imagem geométrica não está em Q), mas acreditamos que eles preenchem
os inúmeros “buracos” da recta real, vamos aceitar que os números reais são
as suas imagens geométricas.
Assim, em vez de falarmos deQ, falamos deQ (o que corresponde a identificar
cada número racional com a sua imagem geométrica) e os restantes pontos de R
serão (aceite a identificação entre R e R) os números irracionais.
Os irracionais também estão muito bem distribuídos na recta real
Seja Y um número irracional e seja m um númeronatural maior que 1.
Designamos por m · Y o número real que se obtém de Y através de (m − 1)
utilizações do processo elementar12.
Seja W um número irracional e n ∈ N. Para definir Wn , utilizaremos o
mesmo processo que foi usado para introduzir a imagem geométrica de 1n
(ver figura 10). A figura 22 sugere o processo de construção de Wn (o ponto
Z) e evidencia que, se X = Wn , então n · X = W.
11Se fossememnúmerofinito existe um, deseignemo-lo porC, queprecede os restantes;
aplique-se a proposição anterior a A e C (N. E.).
12Naturalmente, supomos, que, se m = 1, então 1 · Y = Y. Consideramos 0 · Y = Y.
28
Números reais
PSfrag replacements
O Z A BR
A
�
B
�
W
W
�
Figura 22: Caso em que n = 3, sendo, então, Z = W3 . A ≡ 2W e B ≡ 3W.
Note que os triângulos W′OZ, A′OR e B′OW são semelhantes, o que implica
3Z = W.
Assim, sendo X um número irracional e m,n ∈N, se
mX
n
= L
tem-se
mX = nL
e, portanto,
X =
n
m
L.
Estamos, agora, em condições de provar a seguinte proposição.
Proposição 5. Se X é um número irracional, m ∈ Z \ {0} e n ∈ N, então mXn é
um número irracional.
Demonstração. Consideremos, em primeiro lugar, o caso em que m e n
são números naturais, e façamos a demonstração por redução ao absurdo.
Suponhamos, então, que
mX
n
é um número racional, que designamos por l. De
mX
n
= l
29
Grupo de Matemática da UTL
segue-se que
X =
nl
m
o que é absurdo, uma vez que, sendo l ∈ Q, se tem imediatamente, nlm ∈ Q,
o que está em contradição com o facto de X ser irracional.
O caso em que m ∈ Z \ {0} obtém-se de forma análoga, desde que se
tenha definido previamente m · X, com m inteiro não nulo. �
Resulta desta proposição que basta encontrar um número irracional X,
para provar que o conjunto por eles formado é infinito. Com efeito, todos
os números da forma
X
n
são irracionais.
Ora, nós já conhecemos um número irracional — o
√
2.
Estamos agora em condições de provarmos, para os irracionais, uma
proposição análoga àquela que mostrava que os racionais estavam muito
bem distribuídos na recta real (proposição 4).
Proposição 6. Se A e B (com A < B)13 são dois pontos da recta real, então existe
uma infinidade de pontos R ∈ R \ Q tais que A < R < B.
Demonstração. Recorde-sequeaproposição4 erao culminardeumasequên-
cia de três proposições (as proposições 1, 2 e 3), onde o resultado final ia
sendo apresentado de uma forma cada vez mais geral. A demonstração
da proposição 6 pode seguir uma via análoga. Acontece, contudo, que
as provas das proposições 2, 3 e 4 permanecem, com os ajustes naturais,
válidas nesta nova situação. Só a prova da proposição correspondente à
proposição 1 necessita de algumas (poucas) considerações suplementares,
que passaremos a apresentar.
Como a escolha de I (na recta real) foi arbitrária, a proposição 1 per-
manece verdadeira se tivermos escolhido para imagem geométrica da uni-
dade, o ponto
√
2. Leiamos, então, a proposição 1, com esta nova escolha:
Se C ∈ R+, existe um R da forma m
√
2
n
(m ∈ Z, n ∈ N), tal que
O < R < C.
Ora, a proposição 5 diz-nos que R é irracional. �
13Tendo identificado R com R, passamos a utilizar (em R) o símbolo < em vez do
símbolo ≺.
30
Números reais
As operações algébricas em R
Em Q tínhamos introduzido as operações de adição, subtracção, multi-
plicação e divisão. Temos, agora, o problema de introduzir tais operações em
R.14
Pretende-se, naturalmente, que as construções geométricas que defi-
nem as operações algébricas emR, satisfaçam às condições seguintes (que,
para simplificar a exposição se referem, apenas, à adição):
(1) devemos saber adicionar dois elementos de R;
(2) se os dois elementos a adicionar pertencerem a Q, então a nova adição
deve dar o mesmo resultado que obtínhamos anteriormente em Q;
(3) esta nova adição em R deve satisfazer, se possível, a todas as proprie-
dades que eram verdadeiras em Q.
Claro que o que se disse para a adição é também válido para as outras
operações.
Nota. Uma observação sobre o ponto (2): trata-se de uma questão de co-
erência — quando, sobre os mesmos entes, definimos, de duas formas
distintas, uma operação, cabe-nos provar que o resultado não depende das
definições dadas.
Apresentamos, agora, as construções geométricas que definem as ope-
rações de adição, subtracção, multiplicação e divisão em R. A tais cons-
truções, ilustradas por figuras, segue-se a descrição do modo como foram
obtidas. Para cada uma das construções, que não carece de prova porque se
trata de uma definição, apresenta-se o argumento que esteve na origem e
motivou a construção escolhida.
Os argumentos que apresentamos baseiam-se em resultados geométri-
cos conhecidos—os dois primeiros (sobre a adição e subtracção) relativos à
14Quando atrás tratámos da boa distribuição dos irracionais em R, já, sem o referir,
havíamos abordado tal assunto: considerámos reais da forma
mX
n
(X irracional)
o que corresponde ao produto de um racional por um irracional. No entanto o tratamento
sumário aí feito destinava-se exclusivamente a ser usadonaprovadaproposição 6 e, tendo
cumprido o seu objectivo, pode agora ser esquecido.
31
Grupo de Matemática da UTL
igualdade de triângulos, os dois seguintes (sobre amultiplicação e divisão)
relativos à semelhança de triângulos.
Referimos atrás que as construções geométricas são ilustradas por cer-
tas figuras. Em tais figuras está sempre presente uma representação (gros-
seira) da recta real, onde se encontram marcados, não só os pontos O e
I, como também os pontos X e Y que irão ser adicionados, subtraídos,
multiplicados e divididos. Para o resultado de cada uma destas operações
escolhemos a letra Z.
Em todas as figuras, além da recta real, foi escolhido um ponto P, não
pertencente aR, que determina com o pontoO, uma recta que designamos
por r.
PSfrag replacements
O IX Y
P
r
Figura 23: Recta real e recta r.
Uma figura deste tipo estará sempre presente nas definições de adição,
subtracção, multiplicação e divisão.
Adição
Comecemos por ilustrar com uma figura a adição de X com Y, que vamos
designar por Z (Z = X + Y).
Descrição do modo como foi obtido Z
(1) Faça-se passar por P uma recta paralela à recta real.
(2) Trace-se o segmento de recta XP.
32
Números reais
QPSfrag replacements
O ZX Y
P
r
Figura 24: Adição de X com Y.
(3) Faça-se passar por Y uma recta paralela à recta determinada por OP e
designe-se porQ o ponto de intersecção desta recta com a recta referida
em (1).
(4) Faça-se passar por Q uma recta paralela à recta determinada por XP.
(5) Designe-se por Z o ponto de intersecção da recta referida em (4) com a
recta real.
Nota. Observe-se que no passo (2) traçou-se o segmento XP e não o seg-
mento YP. É, no entanto, um exercício (faça-o!) provar que é indiferente
ter começado com o segmento XP ou com o segmento YP — o ponto Z
obtido seria o mesmo.
Resulta desta observação que X + Y = Y + X.
Argumento que motivou a construção
Note-se que os triângulos ∆OPX e ∆YQZ são iguais — os lados OP e YQ,
bem como os ladosXP e ZQ são iguais e os ângulos ∠OPX e ∠YQZ também
o são. Assim o comprimento do segmento OX é igual ao comprimento do
segmento YZ, o que nos conduziu a chamar a Z a soma de X com Y.
Exercício 3. Determine X + Y nos casos em que
(i) X ∈ R− e Y ∈ R−;
(ii) X ∈ R− e Y ∈ R+;
(iii) X = O e Y ∈ R+.
33
Grupo de Matemática da UTL
Subtracção
Comecemos por ilustrar com uma figura a subtracção de X por Y, que
vamos designar por Z (Z = X − Y).
PSfrag replacements
ZY XO
P Q
Figura 25: Subtracção de X por Y.
Descrição do modo como foi obtido Z
(1) Faça-se passar por P uma recta paralela à recta real.
(2) Trace-se o segmento de recta YP (note-se que se escolheu YP e nãoXP).
(3) Faça-se passar por X uma recta paralela à rectadeterminada por YP e
designe-se porQ o ponto de intersecção desta recta com a recta referida
em (1).
(4) Faça-se passar por Q uma recta paralela à recta determinada por OP.
(5) Designe-se por Z o ponto de intersecção da recta referida em (4) com a
recta real.
Argumento que motivou a construção
Note-se que os triângulos ∆OPY e ∆ZQX são iguais e que, portanto, o
comprimento do segmento OY é igual ao comprimento do segmento ZX.
Nota. Observe-se que, neste caso, não é indiferente a escolha de Y no passo
(2) — a adição é comutativa mas a subtracção não o é!
Exercício 4. Determine X − Y nos casos em que
(i) X,Y ∈ R+ e X < Y;
(ii) X,Y ∈ R+ e X = Y;
34
Números reais
(iii) X,Y ∈ R− e X < Y;
(iv) X ∈ R− e Y ∈ R+.
Que a construção geométrica apresentada está de acordo com o que
pretendemos para a subtracção, é o objectivo do exercício seguinte.
Exercício 5. Prove que Z = X − Y sse X = Z + Y.
Multiplicação
Comecemos por ilustrar com uma figura a multiplicação de X por Y, que
vamos designar por Z (Z = X · Y).
PSfrag replacements
Z YX IO
P
Q
Figura 26: Multiplicação de X por Y.
Descrição do modo como foi obtido Z
(1) Trace-se os segmentos de recta XP e IP.
(2) Faça-se passar por Y uma recta paralela à recta determinada por IP,
e designe-se por Q o ponto de intersecção desta recta com a recta
determinada por OP.
(3) Faça-se passar por Q uma recta paralela à recta determinada por XP.
(4) Designe-se por Z o ponto de intersecção da recta referida em (3) com a
recta real.
35
Grupo de Matemática da UTL
Argumento que motivou a construção
Note-se que os triângulos ∆OPX e ∆OQZ são semelhantes, pelo que15
c(OX)
c(OZ)
=
c(OP)
c(OQ)
.
Também os triângulos ∆OPI e ∆OQY são semelhantes, pelo que
c(OI)
c(OY)
=
c(OP)
c(OQ)
.
Assim
c(OX)
c(OZ)
=
c(OI)
c(OY)
,
donde
c(OX) · c(OY) = c(OZ) · c(OI),
o que se interpreta como
X · Y = Z.
Nota. Observe-se que no passo (1) da descrição domodo como foimarcado
o ponto Z, se traçou o segmento XP e não o segmento YP. É, no entanto
indiferente ter começado com o segmento XP ou com o segmento YP
— o ponto Z obtido seria o mesmo. Este resultado, a cuja prova nos
iremos referir adiante, é equivalente à comutatividade da multiplicação
(X · Y = Y · X).
Exercício 6. Determine X · Y nos casos em que
(i) X ∈ R− e Y ∈ R−;
(ii) X ∈ R− e Y ∈ R+;
(iii) X = 0 e Y ∈ R;
(iv) X = I e Y ∈ R.
Exercício 7. Considere a figura 27, onde 0 < X < Y. Utilizando resultados
relativos à semelhança de triângulos, prove que c(OZ) = c(OX) · c(OY).
15Dado um segmento AB designamos por c(AB) o comprimento desse segmento.
36
Números reais
PSfrag replacements
O ZIX
X′
Y
r
I′
Figura 27: Utilizando o compasso, marcaram-se os pontosX′ e I′. Traçou-se o
segmento de recta I′Y e fez-se passar porX′ uma recta paralela à determinada
por I′Y. Designou-se por Z o ponto de intersecção desta recta com a recta real.
Divisão
Comecemos por ilustrar com uma figura a divisão de I por Y , 0, que
vamos designar por Z (Z = IY ).
PSfrag replacements
r
Z YIO
P
Q
Figura 28: Divisão de I por Y.
Descrição do modo como foi obtido Z
(1) Trace-se os segmentos de recta YP e IP.
(2) Faça-se passar por I uma recta paralela à recta determinada por YP
e designe-se por Q o ponto de intersecção desta recta com a recta
determinada por OP.
(3) Faça-se passar por Q uma recta paralela à recta determinada por IP.
37
Grupo de Matemática da UTL
(4) Designe-se por Z o ponto de intersecção da recta referida em (3) com a
recta real.
Argumento que motivou a construção
Note-se que os triângulos ∆OQZ e ∆OPI são semelhantes, pelo que
c(OZ)
c(OI)
=
c(OQ)
c(OP)
.
Também os triângulos ∆OQI e ∆OPY são semelhantes, pelo que
c(OI)
c(OY)
=
c(OQ)
c(OP)
.
Assim
c(OZ)
c(OI)
=
c(OI)
c(OY)
,
o que se interpreta como
Z =
I
Y
.
Exercício 8. Determine IY nos casos em que
(i) O < Y < I;
(ii) Y ∈ R−.
O exercício seguinte mostra que a construção ilustrada pela figura 28
está de acordo com o que pretendemos para o inverso de um número real
distinto de zero.
Exercício 9. Prove que X = IY sse Y · X = I.
Finalmente, definimos a divisão de X por Y (X ∈ R,Y ∈ R \ {0}) por
X
Y
= X · I
Y
.
Exercício 10. Considere a figura 29, onde 0 < X < Y.
Utilizando resultados relativos à semelhança de triângulos, prove que:
(i)
c(OZ) =
c(OX)
c(OY)
.
(ii) Releia o exercício onde se encontra afigura 27 (bemcomoaobservação
que se lhe segue) e mostre que a construção ilustrada pela figura 29
conduz à noção de divisão desejada, quaisquer que sejam X ∈ R e
Y ∈ R \ {0}.
38
Números reais
PSfrag replacements
O Z IX
X′
Y
Y′
r
Figura 29: Utilizando o compasso, marcaram-se os pontosX′ eY′. Traçou-se o
segmento de recta Y′I e fez-se passar porX′ uma recta paralela à determinada
por Y′I. Designou-se por Z o ponto de intersecção desta recta com a recta real.
Algumas propriedades das operações algébricas
Proposição 7. ∀X,Y ∈ R X + Y = Y + X .
Demonstração. É o exercício proposto na nota que se segue à figura 24. �
Proposição 8. ∀X,Y,Z ∈ R X + (Y + Z) = (X + Y) + Z.
Demonstração. Considera-se a figura 30.
PSfrag replacements
O
R
X Y Y + Z = UZX + Y = T (X + Y) + Z = V
P Q S
Figura 30: Marcou-se a traço contínuo a construçãode (X+Y)+Z e a tracejado a
construção deX+ (Y+Z). Resulta destas construções queOP ‖ YQ ‖ ZR ‖ US,
PX ‖ QT, PY ‖ RU e PT ‖ RV.
Para provar a proposição faça-se, em primeiro lugar, a construção de
(X + Y) + Z. Seguidamente construa-se Y + Z. Para obter X + (Y + Z)
faça-se passar por U (= Y + Z) uma recta paralela à determinada por OP,
que intersecta a recta determinada por PQ num ponto S. Se provarmos
39
Grupo de Matemática da UTL
que, fazendo passar por S uma recta paralela à determinada por PX, ela
intersecta a recta real no ponto V, demonstrámos que X + (Y + Z) = (X +
Y) + Z. Ora, a prova desse resultado é uma consequência de serem iguais
os triângulos ∆OPT e ∆ZRV, os triângulos ∆OPY e ∆ZRY, e os triângulos
∆YQT e ∆USV. �
Proposição 9. (a) Se A e B são números reais tais que
∀X ∈ R X + A = X (3)
∀X ∈ R X + B = X (4)
então A = B.
(b)
∀X ∈ R X +O = X (5)
Demonstração. (a) diz-nos que, se existir elemento neutro da adição, ele é
único. (b) diz-nos que O é o (único) elemento neutro da adição.
Prova de (a). De (3) resulta que B+A = B e de (4) resulta que A+ B = A.
Como A + B = B + A (proposição 7), vem A = B.
Prova de (b). É um exercício (geométrico) simples. �
Proposição 10. ∀X ∈ R ∃1Y ∈ R X + Y = O.16
Demonstração. Para provar a existência, escolha-se para Y o ponto O − X
(que passaremos a designar, apenas, por−X), emostre-se queX+(−X) = O.
Para provar a unicidade, suponha-se que, dadoX ∈ R,A é um número real
satisfazendo a
X + A = O (6)
e mostremos que A = −X. Ora
A = A +O = A + (X + (−X)) = (A + X) + (−X)
= (X + A) + (−X) = O + (−X) = (−X) +O = −X.
(a primeira igualdade resulta de (5); a segunda resulta da primeira parte
desta prova; a terceira resulta da proposição 8; a quarta da proposição 7; a
quinta de (6); a sexta da proposição 7; a sétima da proposição 9). �
Proposição 11.
∀X ∈ R − (−X) = X (7)
∀X,Y ∈ R X − Y = X + (−Y) (8)
∀X,Y ∈ R − (X + Y) = (−X) − Y (9)
16∃1Y ∈ R lê-se “existe um e um só Y em R”.
40
Números reais
Demonstração. (7) e (8) Provas geométricas simples.
(9) Como −(X+Y) é o único real que adicionado a (X+Y) dá zero (propo-
sição 10), basta provar que
(X + Y) + ((−X) − Y) = O.
Ora,
(X + Y) + ((−X) − Y) = (X + Y) + ((−X) + (−Y))
= (X + (−X)) + (Y + (−Y)) = O +O = O.
(a primeira igualdade resulta de (8); a segunda resulta de um uso re-
petido da comutatividade e associatividade; a terceira da proposição
10; a quarta de (5)).
�
Proposição 12.
∀X,Y,Z ∈ R X − Y = Z ⇔X = Z + Y (10)
Demonstração. (10) já tinha sido proposto como exercício (geométrico)
quando introduzimos a subtracção emR. Esboçaremos a prova de umadas
implicações sem recorrer a argumentos geométricos. Omitiremos alguns
detalhes e aconselhamos o leitor a fazer a prova da outra implicação.
Se adicionarmos Y a ambos os membros da igualdade X − Y = Z,
obtemos
(X − Y) + Z = Z + Y.
Ora,
(X − Y) + Y = (X + (−Y)) + Y = X + (Y + (−Y)) = X.
�
Relacionaremos, agora, as operações de adição e subtracção com as
relações de ordem < e ≤. Por comodidade de escrita, introduzimos as
relações “maior” (>) e “maior ou igual” (≥), que se definem por:
∀X,Y ∈ R Y > X ⇔ X < Y;
∀X,Y ∈ R Y ≥ X ⇔ X ≤ Y.
Proposição 13.
∀X ∈ R X < O⇒ −X > O (11)
Demonstração. É um exercício (geométrico) simples. �
41
Grupo de Matemática da UTL
Proposição 14. (a) ∀X,Y ∈ R X < Y ⇔ X − Y < O.
(b) ∀X,Y ∈ R X < Y ⇔ (Y − X) ∈ R+.
Demonstração. (a) É um exercício (geométrico) simples provar que
∀X,Y ∈ R X < Y ⇒ X − Y < O.
Para provar a outra implicação, suponha que X = Y ou X < Y e mostre
que, em ambos os casos, se obtém uma contradição.
(b) Como Z ∈ R+ é equivalente a Z > O, basta provar que
∀X,Y ∈ R X − Y < O ⇔ (Y − X) ∈ R+,
o que resulta de (11), (9) e (8).
�
Proposição 15. ∀X,Y,Z ∈ R X < Y ⇒ X + Z < Y + Z.
Demonstração. Comecemos por notar que (proposição 14 (b)):
∀X,Y ∈ R X < Y ⇔ (Y − X) ∈ R+
∀X,Y,Z ∈ R X + Z < Y + Z ⇔ ((Y + Z) − (X + Z)) ∈ R+.
Assim, para provar a proposição 15, basta ver que, se (X − Y) ∈ R+, então
((Y + Z) − (X + Z)) ∈ R+.
Ora, é fácil verificar (verifique!) que
(Y + Z) − (X + Z) = (Y − X) + (Z − Z) = Y − X.
�
Nas proposições 7 a 15 provámos algumas das propriedades que se consi-
deravam desejáveis para as noções de adição e subtracção em R. Vamos,
agora, fazer o mesmo para as noções de multiplicação e divisão. Antes,
porém, é conveniente fazer algumas observações.
42
Números reais
As proposições 7 e 8 (comutatividade e associatividade da adição) são
de fácil demonstração. Ora, o mesmo não acontece com as corresponden-
tes propriedades para amultiplicação17. Por esta razão, deixámos para um
sub-parágrafo posterior as suas provas. Nas restantes proposições utiliza-
remos, quando tal for necessário, as proposições 16 e 17 (comutatividade
e associatividade da multiplicação). Se este procedimento chocar o espí-
rito cartesiano do leitor, ele pode ler as demonstrações das proposições
referidas quando quiser.
Proposição 16. ∀X,Y ∈ R X · Y = Y · X.
Proposição 17. ∀X,Y,Z ∈ R X · (Y · Z) = (X · Y) · Z.
Proposição 18. (a) Se A e B são números reais tais que
∀X ∈ R X · A = X
∀X ∈ R X · B = X
então A = B.
(b) ∀X ∈ R X · I = X.
Demonstração. (a) diz-nos que, se existir elemento neutro damultiplicação,
ele é único. (b) diz-nos que I é o (único) elemento neutro da multiplicação.
A prova de (a) é análoga à da proposição 9 (a). A prova de (b) é um
exercício (geométrico) simples. �
Proposição 19. ∀X ∈ R \ {O} ∃1Y ∈ R X · Y = I.
Demonstração. Para a existência escoha-se paraY o número real IX (que tam-
bémdesignaremos porX−1) e resolva o segundo exercício do sub-parágrafo
divisão. Para provar a unicidade adapte a correspondente demonstração
feita no proposição 10. �
Proposição 20. ∀X,Z ∈ R ∃Y ∈ R \ {O} XY = Z ⇔ X = Z · Y .
17A razão desta inesperada dificuldade resulta dos factos seguintes: A construção geo-
métrica para a multiplicação foi sugerida pelas propriedades dos triângulos semelhantes.
Ora, tais propriedades fazem intervir a multiplicação e divisão de números reais (os com-
primentos dos segmentos) pelo que não as podemos usar para justificar as proposições
que, agora, pretendemos demonstrar.
O mesmo não acontece com a construção geométrica para a adição, uma vez que
ela foi sugerida pelos casos de igualdade de triângulos, onde não é necessário nenhum
conhecimento prévio dos números reais.
43
Grupo de Matemática da UTL
Demonstração. Seja XY = Z e multipliquemos ambos os membros desta
igualdade por Y. Obtém-se
X
Y
· Y = Z · Y.
Ora,
X
Y
· Y =
(
X · I
Y
)
· Y = X ·
( I
Y
· Y
)
= X · I = X
o que demonstra uma das implicações da proposição 20. Para provar a
outra implicação, multiplique-se por IY ambos os membros da igualdade
X = Z · Y.
Obtém-se
X · I
Y
= (Z · Y) · I
Y
= Z ·
(
Y · I
Y
)
= Z · I = Z
com o que termina a prova. �
Vamos agora relacionar a multiplicação com a adição, a subtracção e a
relaçãode ordem18. O resultado que escolhemospara fazer a ligação entre a
multiplicação e a adição é, naturalmente, a propriedadedistributiva. Antes
de a provarmos, convém referir um resultado, que passamos a enunciar, e
que deixamos como exercício (geométrico) simples.
Exercício 11. A construção geométrica da adição foi feita utilizando o ponto
P, que supúnhamos fixo. Se na recta r (determinada porO eP) escolhermos
um qualquer outro ponto distinto de O, a construção correspondente feita
utilizando este ponto (em vez de P) conduz ao mesmo Z (= X + Y).
Proposição 21. ∀X,Y,Z ∈ R X · (Y + Z) = X · Y + X · Z.
Demonstração. Considere-se a figura 31.
Construção de X · (Y + Z)
(a) Constrói-se S (SY ‖ PI).
(b) Constrói-se Y + Z, usando S em vez de P.
18Na proposição 20 já relacionávamos a multiplicação com a divisão.
44
Números reais
Q
X
PSfrag replacements
ZYIO
P
S R
T
U
X · Y X · Z X · (Y + Z)Y + Z
Figura 31: Marcou-se a traço contínuo a construção deX · (Y+Z) e a tracejado
a construção de X · Y + X · Z.
(c) Constrói-se X · (Y + Z), determinando primeiro o ponto U e fazendo
seguidamente passar por U uma recta paralela a PX. Note que a recta,
paralela a PI, que passa por Y + Z e determina o ponto U, também
passa pelo pontoQ, uma vez que o segmentoQ(Y+Z) é paralelo a SY,
que é paralelo a PI.
Construção de X · Y + X · Z
Em primeiro lugar constrói-se X · Y e X · Z. Para determinar a soma de
X · Y com X · Z (onde voltamos a utilizar o ponto S em vez do ponto P),
fazemos passar por X ·Z uma recta paralela a OP e determinamos o ponto
de intersecção desta recta com a recta que passa por S e é paralela à recta
real. Se tal ponto for o ponto R o resultado está demonstrado, uma vez que
UR ‖ PX e PX é paralelo à recta determinada pelo segmento S(X · Y).
Assim, para concluirmos a demonstração, basta provar que o segmento
(X · Z)R á paralelo ao segmento OS. É o que vamos fazer.
Comecemos por ver que o triângulo ∆QUR é igual ao triângulo cujos
vértices são Z, T e X ·Z. Para tal basta ver que são iguais os segmentos TZ
eUQ (o que resulta de ser um paralelogramo, o quadrilátero de vértices T,
U, Q, Z) e que também se tem
∠UQR = ∠TZ(X · Z)
∠QUR = ∠ZT(X · Z).
45
Grupo de Matemática da UTL
Finalmente, considere-se oquadriláterodevérticesZ,Q,R, (X.Z). Como
os segmentosQR eZ(X·Z) são paralelos e iguais (o que resulta da igualdade
dos triângulos que acima considerámos), segue-se que este quadrilátero é
um paralelogramo, pelo que R(X ·Z) ‖ QZ ‖ OP, o que conclui a prova. �
A proposição seguinte é um resultado auxiliar para a demonstração da
distributividade da multiplicação relativamente à subtracção.
Proposição 22.
(a) ∀X ∈ R − X = (−I) · X,
(b) ∀X,Y ∈ R X · (−Y) = (−X) · Y = −(X · Y). (12)
Demonstração. (a) é um exercício (geométrico) simples.
(b) Primeira igualdade de (12).
X · (−Y) = X · ((−I) · Y) = (X · (−I)) · Y = ((−I) · X) · Y = (−X) · Y.
Segunda igualdade de (12).
(−X) · Y = ((−I) · X) · Y = (−I) · (X · Y) = −(X · Y).
�
Proposição 23. ∀X,Y,Z ∈ R X · (Y − Z) = X · Y − X · Z.
Demonstração.
X · (Y−Z) = X · (Y+ (−Z)) = X ·Y+X · (−Z) = X ·Y+ (−(X ·Z)) = X ·Y−X ·Z
(a primeira igualdade resulta de (8); a segunda resulta da proposição 21; a
terceira de (12); a quarta de (8)). �
Finalmente, em (13) da proposição seguinte, faremos a ligação entre a
multiplicação e a relação de ordem <.
Proposição 24.
(a)∀X,Y ∈ R+ X · Y ∈ R+ (13)
(b) ∀X,Y ∈ R ∀Z ∈ R+ X < Y ⇒ X · Z < Y · Z (14)
Demonstração. (13) É um exercício (geométrico) simples.
(14) SejamX eY pertencentes aR eZ ∈ R+. De acordo com a proposição
14 (b), queremos provar que, se
X − Y ∈ R+ (15)
46
Números reais
então
(Y · Z − X · Z) ∈ R+.
Ora, das proposições 23 e 16 resulta que
Y · Z − X · Z = (Y − X) · Z.
(14) é, então, consequência de (13), (15) e de Z ∈ R+. �
Vamos agora provar, como tínhamos prometido, as proposições 16 e 17.
Para tal necessitamos de um resultado, de natureza puramente geométrica,
provavelmente desconhecido dos leitores. Trata-se do chamado teorema
de Pascal19, cuja demonstração omitiremos.
Teorema 1 (Pascal). Sejam A, B, C e A′, B′ e C′ dois ternos de pontos sobre cada
uma de duas rectas que se intersectam num ponto U distinto de qualquer daqueles
pontos, respectivamente; se CB′ é paralelo a BC′ e CA′ paralelo a AC′, então é
também BA′ paralelo a AB′.
Consoante a disposição dos pontos de cada um dos ternos, na recta
onde se encontram, podemos obter figuras essencialmente diferentes.
PSfrag replacements
A
A′
B
B′
C
C′
U
Figura 32: O teorema de Pascal (exemplo 1).
Nas figuras 32, 33 e 34, supusemos que os pontos de cada um dos
ternos estavam na mesma semi-recta com origem em U. As três figuras
descrevem todos os casos possíveis para as semi-rectas escolhidas.
19O resultado que apresentaremos é, na realidade, um caso particular do teorema de
Pascal das secções cónicas.
47
Grupo de Matemática da UTL
PSfrag replacements
A
A′
B
B′
C
C′
U
Figura 33: O teorema de Pascal (exemplo 2).
PSfrag replacements
A
A′
B
B′
C
C′
U
Figura 34: O teorema de Pascal (exemplo 3).
Nas figuras 32, 33 e 34 deu-se ênfase gráfica aos segmentos que o
teorema de Pascal afirma serem paralelos.
Estamos agora em condições de demonstrar as proposições 16 e 17.
Proposição 25. (proposição 16) ∀X,Y ∈ R X · Y = Y · X.
Demonstração. Considere a figura 35.
Para provar que X · Y = Y · X basta mostrar que o segmento de recta
Q(X ·Y) é paralelo ao segmento PY. Ora, isso resulta do teorema de Pascal
(figura 33). �
Proposição 26. (proposição 17) ∀X,Y,Z ∈ R X · (Y · Z) = (X · Y) · Z.
Demonstração. Como já provámos a comutatividade da multiplicação,
48
Números reais
PSfrag replacements
O
R
IX YX · Y
P
Q
S
Figura 35: Marcou-se a traço contínuo a construção de X · Y e a tracejado
a construção de Y · X. Resulta destas construções que RY ‖ PI ‖ QX e
R(X · Y) ‖ PX.
basta mostrarmos que
X · (Z · Y) = Z · (X · Y). (16)
Considere a figura 36.
Constrói-se, em primeiro lugar, X ·Y e depois Z · (X ·Y). Seguidamente
construiu-se Z · Y e fez-se passar por este ponto uma paralela a PI, que
intersecta a recta determinadaporOPnopontoS. Para determinarX·(Z·Y),
fazemos passar por este ponto uma recta paralela a PX e determinamos
a sua intersecção com a recta real. Assim, para provar (16), basta-nos ver
que SV é paralelo a PX.
Considere-se o teorema de Pascal (figura 32) com
C′ = R, B′ = Q, A′ = S, A = T, B = V, C = W.
Note-se que os resultados de paralelismo incluídos na legenda da figura
36, permitem-nos justificar que as hipóteses do teorema de Pascal são
satisfeitas. Obtém-se, assim, SV ‖ QT, mas como QT ‖ PX (ver legenda da
figura 36) segue-se que SV ‖ PX, como queríamos provar. �
Radiciação e três problemas famosos
No parágrafo 3 tínhamos visto que não existia nenhum número racional
x tal que x2 fosse igual a 2. Este aparentemente pequeno problema (na
realidade enorme!) fez-nos rever as nossas concepções sobre a noção de
número. Como os números racionais não nos bastavam, identificou-se R
49
Grupo de Matemática da UTL
PSfrag replacements
O
R
IX YX · Y = T Z · Y =WZ X · (X · Y) = V
P
Q
S
Figura 36: Marcou-se a traço contínuo a construção de Z · (X ·Y) e a tracejado
a construção de X · (Z · Y). Resulta destas construções que RT ‖ PI, QW ‖ PZ,
QT ‖ PX, RV ‖ PZ e SW ‖ PI.
com R e desta identificação resultou que não só os números não racionais
eram muitos20, como também estavam muito bem distribuídos na recta
real.
Ao (único) número realX > 0 tal queX2 (= X ·X) é igual a 2, chamámos
a raiz de 2 e designámo-la por
√
2.
Veremos, agora, que, em R, é possível, não só determinar √2, como
também a raiz de qualquer número real X positivo, que designamos por√
X. Pretende-se, assim, introduzir uma operação em R+
R+ 3 X 7−→ √X ∈ R+
a que chamamos radiciação.
Comecemospor ilustrar comafigura 37 a raiz deX, que vamosdesignar
por Z (=
√
X).
A descrição do modo como foi obtido Z encontra-se na legenda da
figura 37.
20Até afirmámos que, num sentido a precisar, eles eram quase todos os números reais.
50
Números reais
PSfrag replacements
O
W
C XZ X + I = Y
Figura 37: Marcou-se na recta real os pontos X e X + I = Y e traçou-se
uma semi-circunferência que tem OY por diâmetro (C é o centro dessa semi-
circunferência). Seguidamente fez-se passar por X uma recta perpendicular à
recta real e designou-se porW o ponto de intersecção desta recta com a semi-
circunferência. Será ao comprimento deXW que chamaremos
√
X, mas, como
os números reais são pontos da recta real, devemos marcar o comprimento
deste segmento em R+. É esse o objectivo das construções seguintes que
dispensam qualquer descrição.
Argumento que motivou a construção
Designe-se por
x o comprimento de OX
y o comprimento de XW
u o comprimento de CX
v o comprimento de CW (igual ao comprimento de OC)
e considere-se o triângulo rectângulo CWX.
Como v = (x + 1)/2, tem-se(x + 1
2
)2
= y2 +
(
x − x + 1
2
)2
donde
(x + 1)2
4
= y2 +
(x − 1)2
4
pelo que
4y2 + x2 − 2x + 1 = x2 + 2x + 1
51
Grupo de Matemática da UTL
o que permite concluir que y2 = x.
Justifica-se, assim, que, ao comprimento do segmento XW (ou seja, ao
ponto Z), se chame a raiz de x.
Vimos atrás (Proposição 5) que todos os números reais da forma
r
√
2
onde r ∈ Q \ {0}, eram números irracionais. Na proposição seguinte pro-
varemos a irracionalidade de outros números reais.
Proposição 27. (1) Se p ∈ N não é um quadrado perfeito21, então √p é um
número irracional.
(2) Se p ∈N não é um quadrado perfeito, então os números reais da forma
r
√
p
onde r ∈ Q \ {0}, são números irracionais.
Demonstração. Começaremos por provar que, sendo s um número racional
positivo escrito na forma
s =
k
l
(17)
com k, l ∈N primos entre si22, então
s ∈N sse l = 1 (18)
Ora, se l = 1, então s = k e portanto s ∈ N. Reciprocamente, de (17)
conclui-se que k = s · l e, como k e l são primos entre si, tem de se ter l = 1
(l divide tanto k como l).
(1) Sendo p ∈N, vamos provar que, se √p é um número racional, então p
é um quadrado perfeito (o que é equivalente a (1)).
Ora, se
√
p é um número racional ele pode escrever-se na forma
√
p =
m
n
21Um natural p diz-se um quadrado perfeito sse existir m ∈N tal que p = m2.
22Recorde-se que dois naturais k e l se dizem primos entre si sse 1 é o único divisor
comum a k e l.
52
Números reais
com m e n primos entre si. É então fácil ver que
p =
m2
n2
e que m2 e n2 são primos entre si23. Assim, como p ∈ N, segue-se de
(18) que n2 = 1 e, portanto, que p = m2.
(2) Suponhamos que r ∈ Q \ {0} e que p não é um quadrado perfeito,
e demonstremos, por redução ao absurdo, que r · √p é um número
irracional.
Ora, se r · √p fosse um número s racional, então
√
p =
s
r
donde se concluiria que
√
p era umnúmero racional, o que está em con-
tradição com (1), uma vez que se admitiu que p não era um quadrado
perfeito.
�
Observações
(1) Evidentemente, se p (= m2) é um quadrado perfeito, então
√
p (= m)
não é irracional.
(2) Se X é um irracional positivo, então
√
X também éum número irra-
cional. Com efeito, se
√
X fosse racional ele poderia escrever-se na
forma √
X =
m
n
com m e n pertencentes aN. Assim, ter-se-ia,
X =
m2
n2
o que é absurdo, porque, então, X seria racional.
23Se m e n não têm factores comuns, o mesmo acontece com m2 e n2.
53
Grupo de Matemática da UTL
Depois de termos tratado com tanto detalhe as propriedades das operações
algébricas em R, seria de esperar que fizéssemos algo de semelhante com
a radiciação, não só por uma questão de equidade, mas também porque
foi a radiciação que nos permitiu introduzir alguns números irracionais —
primeiro o
√
2, depois os da forma r · √2 (r ∈ Q \ {0}) e, finalmente, os da
forma r · √p (r ∈ Q \ {0}; p natural, não quadrado perfeito).
Surpreendentemente, vamos começar por referir três problemas céle-
bres da antiguidade (formulados durante o século quinto antes de Cristo),
cuja resolução apenas foi feita na segunda metade do século XVIII e no
século XIX, e que achamos serem esclarecedores, tanto para as virtudes
como para as insuficiências, do método de abordagem dos números reais
que até agora descrevemos.
Esses três problemas célebres são:
(i) a quadratura do círculo;
(ii) a duplicação do cubo;
(iii) a trissecção do ângulo.
Estes são os nomes, vejamos quais os problemas.
O problema da quadratura do círculo consiste em encontrar,
utilizando apenas régua e compasso, o lado de um quadrado cuja
área seja igual à de um círculo previamente dado.
O problema da duplicação do cubo consiste em encontrar, utili-
zando apenas régua e compasso, a aresta de um cubo cuja volume
seja o dobro daquele de um cubo previamente dado.
O problema da trissecção do ângulo consiste em encontrar, uti-
lizando apenas régua e compasso, um ângulo cuja medida seja um
terço da de um ângulo previamente dado.
Estes problemas foram resolvidos, e de diversasmaneiras, pelos gregos
antigos, mas recorrendo a processos de construção que não usavam exclu-
sivamente régua e compasso — argumentos utilizando processos “mecâ-
nicos” são conhecidos desde o século V antes de Cristo.
A matemática grega antiga (dos séculos VI a.c. a III a.c.) foi fértil em
resultados e em problemas. Muitos dos problemas só foram resolvidos
durante e depois do século XVIII e bastantes ainda estão por resolver.
Entre os resolvidos encontram-se os três problemas célebres citados (que
54
Números reais
são, de longe, os mais populares), o problema dos irracionais e o problema
dos números construtíveis com régua e compasso.
Ora, no que concerne os problemas (i), (ii), (iii), o que se demonstrou
foi “a sua impossibilidade”, ou seja, que o resultado desejado em cada um
deles era impossível de obter utilizando apenas régua e compasso.
Vamos ver, na sequência, qual a importância que os problemas (i) e (ii)
(os únicos a que nos iremos referir) têm para nós.
Comecemos com o segundo problema (duplicação do cubo). Consi-
deremos um cubo cujo comprimento da aresta seja 1 (o seu volume será,
então, 1 · 1 · 1 = 1) e outro cubo cujo comprimento de aresta seja a e cujo
volume seja o dobro do do cubo precedente (ou seja, 2). Deverá, então,
ter-se a3 = 2, pelo que a é o (único) número real que, usualmente, se designa
por 3
√
2.
Assim, da impossibilidade de resolver este problema, resulta que 3
√
2
não só não é um número racional, como também não é construtível com
régua e compasso. Segue-se daqui, como facilmente se vê, que os números
da forma
r · 3√2
com r ∈ Q \ {0}, são também números irracionais que não podem ser
construídos utilizando apenas régua e compasso.
Analisemos, agora, o primeiro problema (quadratura do círculo). Con-
sideremos um círculo de raio 1 (cuja área é pi) e procuremos um quadrado
(com comprimento de lado a) tal que a sua área, a2, seja igual à área do
círculo dado. Trata-se do problema algébrico “simples”
a2 = pi
cuja única solução (evidentemente positiva, porque a é o comprimento do
lado de um quadrado) é
a =
√
pi.
Resulta da impossibilidade de resolução deste problema que anão pode
ser obtido com o uso exclusivo da régua e compasso. Daqui se segue que
o mesmo acontece com a2, pois que, se ele o fosse, tal acontecia também
com
√
a2 (note que a radiciação só utiliza régua e compasso).
Assim pi é um número real que não pode ser marcado em R utilizando
apenas régua e compasso.
As considerações anteriores evidenciam as limitações do método que
utilizámos para introduzir os números reais. Com efeito as raízes cúbicas
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Grupo de Matemática da UTL
de uma infinidade de naturais (por exemplo, todos eles da forma 2n3, com
n ∈N) não podem ser definidas pelos processos até agora usados.
É precisamente porque algo de diferente tem de ser feito que tratámos sumari-
amente a raíz quadrada.
Quanto ao número pi, note-se que a única definição que dele demos
foi a da área de um círculo com raio 1. Ora, mesmo admitindo uma ideia
intuitiva de área, tal número, quedeverá pertencer à recta real, é impossível
de marcar com os instrumentos que foram até agora utilizados.
Resumimos, agora, o estado em que nos encontramos
(1) Os números racionais (poucosmas cujo conjunto é infinito) estãomuito
bem distribuídos na recta real (Proposição 4).
(2) Todos os números racionais são construtíveis com régua e compasso.
(3) Existem números reais que não são racionais (irracionais, portanto) e
que também são construtíveis com régua e compasso. O conjunto por
eles formado é infinito, uma vez que são seus elementos todos os reais
da forma
r · √p (r ∈ Q \ {0}; p natural, não quadrado perfeito).
(4) Existem números reais não construtíveis com régua e compasso, como
pi e 3
√
2. Ora é fácil ver que todos os números da forma
r · pi ou r · 3√2 (r ∈ Q \ {0})
tambémnão são construtíveis com régua e compasso, e, uma adaptação
da prova da proposição , mostra que também eles estão muito bem
distribuídos na recta real.
(5) Obtém-se (recorrendo a (2) das observações anteriores) novos números
irracionais, utilizando a radiciação. Por exemplo, todos os números da
forma √
r · √p,
√
r · 3√2, √r · pi,
√√
r · pi, etc.
(onde r ∈ Q \ {0}, e p ∈ N não é um quadrado perfeito) são também
números irracionais.
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Números reais
Muito fizemos até agora com régua e compasso. Chegou a altura de
passarmos a outra abordagem dos números reais, que, fazendo uso desta,
nos permita dar resposta aos problemas que levantámos.
5 Esboço de uma teoria axiomática para os números reais
O parágrafo anterior termina num impasse — a régua e o compasso não
nos chegam para provarmos tudo o que pretendemos dos números reais,
identificados como pontos da recta real.
Como prosseguir? O processo que nos ocorre em primeiro lugar é
o de introduzir outros instrumentos geométricos para além da régua e
compasso. Mas quais? E quantos seriam precisos?
A estas dúvidas podemos acrescentarmais uma, que é de peso: embora
tenhamos uma melhor intuição para a geometria do que a que temos para
os números, não nos devemos esquecer que sobre os fundamentos da geo-
metria sabemos tão pouco como sobre os fundamentos dos números reais
— e o tão pouco aqui é um eufemismo: até agora sobre os fundamentos
não sabemos nada.
Foi por esta razão que logo no início da introdução dissemos que
as “provas” dos resultados que se apresentam baseiam-se, em
última análise, em certas propriedades dos números reais e dos
elementos geométricos que consideramos ser do senso comum.
Ora, numa teoria matemática (que não pode, de maneira nenhuma, dis-
pensar a intuição na sua concepção e na sua aprendizagem) não se pode
fundamentar no senso comum— utilizando o senso comum, e não come-
tendo erros grosseiros, muitos disparates se podem dizer em matemática.
Definir e demonstrar com rigor é essencial numa teoria matemática.
Os fundamentos de uma teoria matemática são a base (cuidadosamente
explicitada)

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