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A ECONOMIA NA POLÍTICA DE ARISTÓTELES 1. A Pólis “A comunidade constituída a partir de vários povoados é a cidade (pólis1) definitiva, após atingir o ponto de uma auto-suficiência praticamente completa; assim, ao mesmo tempo em que já tem condições para assegurar a vida de seus membros, ela passa a existir também para lhes proporcionar uma vida melhor” (Aristóteles, Política, 1253a) Famílias D Povoados (Vilas) D Pólis “A comunidade formada naturalmente para as necessidades diárias é a casa” (1252b) “A primeira comunidade de várias famílias para satisfação de algo mais que as simples necessidades diárias constitui um povoado” A pólis é o estágio final da vida comunitária. Ela é, neste sentido, natural, para Aristóteles, “pois a natureza de uma coisa é o seu estágio final, porquanto o que cada coisa é quando o seu crescimento se completa nós chamamos de natureza de uma coisa, quer falemos de um homem, de um cavalo ou de uma família” (1253a) Assim, para Aristóteles, a pólis é última cronologicamente (porque é a consumação de um processo, o seu último estágio), mas primeira ontologicamente (porque é o todo, é o que dá sentido às suas partes constitutivas): “Na ordem natural a pólis tem precedência sobre a família e sobre cada um de nós individualmente, pois o todo deve necessariamente ter precedência sobre as partes; com efeito, quando todo o corpo é destruído pé e mão já não existem, a não ser de maneira equívoca, como quando se diz que a mão 1 “Essa palavra grega designa a urbe (por oposição ao campo), mas também a civilização (por oposição à natureza selvagem ou à barbárie), e finalmente, e sobretudo, a cidade, entidade comunitária autônoma, à qual algumas dezenas de milhares de habitantes têm consciência de pertencer, reconhecendo nela algo como sua ‘pátria’”. esculpida em pedra é mão, pois a mão nessas circunstâncias para nada servirá e todas as coisas são definidas por sua função e atividade” (1253a) O ser humano é por natureza um zôon politikón, um ser político: “um homem que por natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade (...), e se poderia compará-lo a uma peça isolada do jogo de gamão”. (1253a) Mas a condição de ser político é distinta da de outro animal gregário, como uma abelha: o homem é, antes de tudo, zôon logikón, um ser dotado do logos,2 que raciocina, fala, delibera: o logos tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo, e portanto também o justo e o injusto: “a característica específica do homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a pólis”. (1253a) O ser humano é essencialmente “destinado à vida em comum na pólis”, ele somente se realiza, somente se perfaz, como ser racional, na pólis. Nas palavras de Henrique Cláudio de Lima Vaz: “Ele é um zoôn politikón por ser exatamente um zoôn logikón, sendo a vida ética e a vida política artes de viver segundo a razão”.3 Veja o comentário de Manfredo Araújo de Oliveira: “O bem para o homem é o bem específico da natureza humana. A natureza de um ser só pode ser conhecida à medida que ela se atualiza. Ora, a atualização da natureza do homem é precisamente a pólis”.4 Viver humanamente é viver na pólis, pois nela o ser humano não realiza a sua vida ingenuamente, irrefletidamente, no seio de determinado ethos (costume), mas transforma-a numa vida constituída pela razão consciente de si mesma. Isso não significa destruir a tradição ou o costume vigente, mas antes, diz Oliveira, “a legitimação racional da ação humana”, que o ser humano aja “a partir da compreensão das razões que justificam tal modo de agir” (op. cit., p. 65) 2 Segundo Giovanni REALE, “o termo cobre em grego uma vastíssima gama de significados e em nenhuma língua moderna existe um exato correspondente para ele. Ele indica, fundamentalmente, o que é expressão de razão e de racionalidade (da palavra, ao discurso, ao pensamento, ao raciocínio, à relação e à proporção numérica, à definição e assim por diante). História da filosofia antiga, v. 5, p. 154. 3 Antropologia Filosófica I, p. 42. 4 Ética e sociabilidade, p. 71. Francis Wolf reflete assim essa questão em Aristóteles: os homens não vivem em cidades porque têm necessidades uns dos outros; “se os homens vivem na pólis, não o fazem somente por não poder evitá-lo; é para atingir o mais alto, o maior dos bens”.5 A pólis, diz M. A. Oliveira, recorrendo a J. Ritter, “é a sociedade que tem como conteúdo a humanidade do homem”.6 O fim, a finalidade (télos, causa final) da pólis não é apenas o viver (a vida material), mas o bem viver (a vida espiritual). 1. A economia (óikos + nómos) “São poucas as considerações de Aristóteles sobre economia, mas de grande importância, pois conhecemos muito poucos textos a respeito de problemas econômicos provenientes da antiga Grécia. Para os gregos, a economia não constitui campo isolado, que pudesse ser objeto de pesquisa de uma ciência específica; de tal modo que a economia é considerada à medida que integra a comunidade da casa e da pólis e, por essa razão, sua consideração é de ordem ético- política”.7 A organização da vida familiar tem os seguintes elementos: • As relações marido-mulher; • As relações pai-filhos; • As relações senhor-escravos. Aristóteles detém-se especialmente sobre o último: A economia deve adquirir certas propriedades (falaremos logo mais da crematística – a arte da acumulação de riquezas) e, para fazê-lo, exige instrumentos adequados, inanimados ou animados (assim, o artesão e o escravo são indispensáveis); 5 Aristóteles e a política, p. 36. 6 Ètica e sociabilidade, p.79. 7 M. A. OLIVEIRA. Ètica e sociabilidade, p. 71. Naturalidade da escravidão: a alma e o intelecto, por natureza, governam o corpo e o apetite; assim, os homens nos quais a alma e o intelecto predominam, devem governar aqueles nos quais estes não predominam; A união do senhor e do escravo serve à sua preservação recíproca: “quem pode usar o espírito para prever é naturalmente um comandante e naturalmente um senhor, e quem pode usar o seu corpo para prover é comandado e naturalmente um escravo” (1252b) CRÍTICAS À DEFESA ARISTOTÉLICA DA ESCRAVIDÃO: 9 Lógica: Desproporção entre premissas e conclusões: se o que distingue o homem do animal é o logos, basta o fato de que alguns são menos ou mais dotados dele para que se lhes modifique a essência ou a natureza? Pode, neste caso, contra a Lógica aristotélica, a qualidade derivar da quantidade? 9 Histórica: mesmo a realidade histórica pela qual ele estava condicionado não corrobora seu raciocínio: grande parte dos escravos provinham das conquistas de guerra (prisioneiros), e: a guerra pode ser injusta; o prisioneiro pode ser de um alto posto; em caso de conflito intra-helênico, pode ser um grego! Também é parte da economia a crematística, a arte de obter coisas úteis, em particular as riquezas, que pode realizar-se de três modos: a) natural: caça, pastoreio e cultivo dos campos; b) intermédio: comércio de produtos; c) não-natural: o sentido aqui é de antinatural, do que vai contra a natureza, a essência das coisas; é um desdobramento do segundo modo: o comércio com o uso do dinheiro, mas tendo-o como fim, não como meio; recorre a todos os artifícios para aumentar sem limites as riquezas. Crítica de Aristóteles a essa última forma de crematística: quem se entrega aela perde o sentido e o fim último da sã economia, que é o de satisfazer a reais necessidades, e não acumular riquezas. Esquece-se de preocupar com o bem viver (vida espiritual), preocupando-se só com o viver (bem-estar material). Por um lado, enriquecer é uma necessidade e mesmo uma função do chefe de família: “Os bens são um dos elementos constituintes da família e a arte de enriquecer (crematística) é parte da função do chefe de família (sem o mínimo necessário à existência não é possível sequer VIVER, e muito menos VIVER BEM)”. (1253b) Por outro, enriquecer não é fim em si mesmo; deve subordinar-se às necessidades da economia, da vida familiar, e esta deve subordinar-se ao fim da pólis, que não é apenas o viver, mas o bem viver: “o ramo da arte de enriquecer restrito à economia tem um limite, à medida que ganhar dinheiro não é a função da vida doméstica. Deste ponto de vista, parece necessário haver um limite a toda a riqueza, mas na realidade observamos que acontece o contrário, pois todas as pessoas engajadas em enriquecer tentam aumentar seu dinheiro ao infinito. A razão disso é a estreita afinidade entre os dois ramos da arte de enriquecer. Em ambos o instrumento é o mesmo; eles usam os mesmos bens, embora não o façam da mesma forma – fim de um é o incremento das posses, enquanto o do outro é diferente. Por isso algumas pessoas supõem que a função da economia é aumentar as posses, e estão sempre sob a impressão de que seu dever é preservar-lhes o valor em dinheiro ou aumentá-las infinitamente. A causa desse estado de espírito é o fato de a intenção dessas pessoas ser apenas viver, enão viver bem; da mesma forma que o desejo de viver é ilimitado, elas querem que os meios de satisfazê-lo também sejam ilimitados”. (1258a)
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