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(...) O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida. Machado de Assis (Esaú e Jacó) Do olhar atento do leitor Os livros são estruturas escritas definidas por seus escritores os quais, durante a execução de seu trabalho, imaginam a seqüência de fatos que deverão nortear (permear) o desenrolar da história, com um fim delineado para seus personagens. Isso faz com que pensem e reflitam uma conduta, uma visão de mundo para esses seres vivos- imaginários cuidadosamente criados. Visão de mundo que, de acordo com o objetivo do livro, leva o leitor a fazer parte da história que ora ler, já que este poderá com certeza se identificar na ‘trama’. Ou fazê-lo pensar sobre realidades que nem sempre estão à mercê das reflexões cotidianas, seja por falta de tempo, ou devido aos mecanismos envoltos nas leis da sobrevivência, ou ainda por motivos alheios à discussão ora pretendida. No entanto, às vezes, nem sempre conseguimos entender de imediato as idéias que estão presentes no livro. Lemos, relemos, ‘mastigamos vírgulas e engolimos pontos’ na tentativa de retermos o melhor da história contida ali no papel. Até que começamos a não gostar do texto, e dizemos então que o livro é muito ruim, a linguagem é difícil, não-tem-coisa-com-coisa, em fim, é fatigante. E, no meio a esse ‘fogo cruzado de xingamentos’, apenas os que dizem que quando começam a ler só guardam o livro quando do final da leitura, assim o fazem, contrariando os que falam que não têm ‘saco’ para continuar lendo tamanha baboseira. O Apanhador no Campo de Centeio é um desses livros que, estando nós menos afortunados da atenção ou do espírito do leitor dedicado, poderemos correr o risco de achá-lo insignificante em suas linhas, e provavelmente duvidaremos da importância de um livro que tem como principal protagonista um jovem adolescente que sua melhor ação que sabe fazer é reclamar da vida: vê o mundo como ‘uma droga’ (expressão usada em toda a extensão do livro), com pessoas de um perfil insuportável: “e o tal do Ackley encarnava em mim oitenta e cinco vezes por dia”, repletas de cretinices e esquisitices: “era um sujeito um bocado esquisito”; e esse personagem principal que logo no início do texto já começa a “botar suas mangas pra fora” (ditado pupular): Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde eu nasci, como passei a porcaria (grifo nosso) da minha infância, o que meus pais faziam antes que eu nascesse, e toda essa lenga-lenga (grifo nosso) tipo David Copperfield, mas, para dizer a verdade, não estou com vontade de falar sobre isso. (O Apanhador no Campo de Centeio, p. 7) nos dizeres de hoje, um‘aborrecente’ (palavra que, caso esteja em algum dicionário, denota um significado bem popular: “tu é chato, hein, meu” – estrutura esta despadronizada da norma culta da língua, mas com sua significação bem desenhada). Se fizermos a leitura de O Apanhador no Campo de Centeio tal como descrito acima, certamente estaremos fazendo uma leitura do ponto de vista da decodificação, sem atermos às entrelinhas do texto, aos pormenores do ‘pano de fundo’. Nessa ótica, o leitor faz o que chamam de leitura superficial, descompromissada com qualquer visão crítica e, inegavelmente, não faz parte daqueles leitores seletos descritos na epígrafe, segundo Machado de Assis. E como é mais fácil pertencer ao grupo dos que possuem apenas um estômago no cérebro, e daí a dificuldade de ‘digerir o texto’ é bem maior, às vezes é necessário uma ajudazinha da professora da disciplina, que lembra aos alunos para lerem o texto com outros olhos, os de quem enxerga além da superfície textual - e para isso teremos que pedir emprestado mais um órgão dos leitores de 4 estômagos no cérebro. Do livro O apanhador no Campo de Centeio é um livro escrito em primeira pessoa, que traz um narrador como personagem principal da história. Por meio de uma linguagem coloquial – vista por muitos leitores (leia-se alunos) como uma linguagem chula, devido à freqüência de expressões como ‘no duro’; ‘chato pra chuchu’; ‘grande merda’ ‘filho da puta’, ele vai descrevendo fatos que lhe aconteceram durante o período em que estudava numa instituição de ensino denominada Colégio Pencey. Contudo, acreditamos que a linguagem tal qual se apresenta no livro, faz parte de uma nova concepção da escrita literária, do modernismo, no qual “os escritores buscavam uma linguagem mais simples, espontânea, e para isso faziam uso de versos livres (na poesia) e de períodos curtos (na prosa), e ainda um vocabulário simplificado”1. Da mensagem do texto O livro traz, em sua idéia central, uma visão geral da condição humana. Do que é ou do que seria para o jovem Caulfield, viver em sociedade. É certo que o texto não enreda uma discussão direta sobre o tema (e aí mais um empecilho à compreensão do objetivo do livro por meio de uma leitura menos detalhada ou, sem um empurrãozinho de uma epígrafe e de um olhar atento da professora), ele deixa o leitor livre para que consiga enxergar-se integrante dessa sociedade que, na visão do narrador, é uma instituição hipócrita, com todas as suas subdivisões, na qual pode ser encontrada gente como o personagem Ossenburger, um homem que enriqueceu como agente funerário, que cobrava cinco dólares por cada pessoa morta, e que se dizia uma criatura muito religiosa, que em seus momentos estava sempre rezando a Jesus, até mesmo no trânsito – no entanto, “pelo jeito, ele provavelmente enfiava os cadáveres num saco e jogava tudo no rio”. (p. 19). Ou como os colegas de quarto descritos, como o tal do Ackley, mostrado como o aluno mais imundo da escola, com modos de higiene e de comportamento social de forma alguma recomendável: O tempo todo que morou no quarto ao lado do meu, nunca o vi escovar os dentes nem uma única vez. Os dentes dele estavam sempre meio esverdeados, parecia até que já tinham criado musgo, e dava novo vê-lo no refeitório, com a boca cheia de purê de batatas, ervilha ou coisa que o valha. 1 FARACO & Moura, Carlos Emilio, Francisco Matos. Literatura brasileira. 8 ed. São Paulo: Ática, 1998. A verdade é que se poderia citar todos os personagens descritos pelo narrador da estória, salvo se quisesse mais subsídios capazes de embasar a abordagem pretendida por este trabalho, e o que encontraríamos seria uma legião de seres que são, na verdade, um pouquinho de nós, portanto, seria um dispendioso trabalho, já que é mais fácil olhar-se a si mesmo (com toda a redundância da sentença) e assim visualizá-los em nós. Pois quem é que na vida não conhece um Ackley ou um Ossenburger, ou quem é que nunca já se comportou como um deles? Quanto ao jovem Holden Caulfield, vê-se que ele pouco está se lixando para um ‘sistema de valores’, no sentido de ter que se apegar a algum, todavia ele parece conhecer tal sistema de valores quando ele, por meio das narrativas (diga-se aparentemente despretensiosas), critica certos modos e trejeitos de componentes dessa sociedade, que à luz dos olhares condena as aberrações viciosas alheias mas que, no apagar das luzes, ou, na linguagem de Caulfield, ‘por debaixo dos panos’, ela (a sociedade) é composta por todos os tipos que se imaginem existir. O jovem Caulfield, então, é mais do que um “típico adolescente” – tendo-se para a adolescência o significado de a “idade da vida compreendida entre a puberdade e a idade adulta”2 – período no qual os jovens passam por transformações tanto físicas quanto comportamentais, desenvolvendo, em geral, insatisfações em relação a tudo e a todos que o cercam, o quejá foi denominado acima de fase do aborrecente – ele ilustra, mostra a nós próprios a nossa realidade dentro de um sistema de valores considerados por nós mesmos como o normal e aceitável e que, diga-se de passagem, visivelmente incontestável, invisivelmente percebido em suas falhas. Quanto à suposta loucura de Holden... certo pensador disse: “de louco todos nós temos um pouco”. O que interessa, quando se vive em sociedade, é controlar a loucura para que se possa tirar para si os bons frutos que é a vida social por ventura possa oferecer. O que parece existir é que o jovem Caulfield desempenha o papel daqueles poucos (ou muitos, quem sabe?) que não conseguem essa façanha. Deveria ser aconselhado, então? Loucos não precisam de conselhos e, lembrando mais uma dessas frases: “se conselho fosse bom não se dava, se vendia” (frase do povão). E mais ainda, em se tratando dele, que nos fez refletir sobre aspectos outros, postos aquém dos assuntos 2 Koogan/Houaiss, Abrahao, Antônio. Enciclopédia e dicionário Ilustrado. Rio de Janeiro: Edições Delta, 1995. tidos como relevantes, mas que certamente, ao fim de mais uma leitura do livro, percebe-se quão crítico ele é em sua loucura. Do título da obra Um aspecto curioso no livro é a sensação que o leitor sente durante a leitura quanto ao título. Procura-se um elo entre o enredo e o título e não se encontra (em se tratando de uma leitura do ponto de vista da decodificação). Assim, o leitor pergunta-se: “qual a razão do escritor ter escolhido esse título, se até o momento o personagem não pegou um ônibus ou um carro (sabe-se lá) e não foi trabalhar numa fazenda (já que é essa a idéia que se tem quando se lê o título na capa do livro)?” Até que Holden, em diálogo com Phoebe (sua irmã), na revelação do que ‘loucamente’ gostaria de ser, nos dá a condição para que possamos fazer a nossa própria dedução (dedução sim, se considerarmos o seguinte aspecto: para cada leitor, uma leitura única), quanto ao título da obra: (...) fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto – quer dizer – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo (grifo nosso). Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. So isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice. Para este trabalho, o fragmento do livro acima citado é ponto crucial para que se possa entender tanto o título quanto o texto como um todo. Vejamos, o que se poderia fazer num campo de centeio? Certamente chegaremos à conclusão de que se poderia cultivar e colher alguma coisa trabalhada na terra, já que, tal como descrito por Koogan (p. 180), centeio é um “cereal (...) geralmente cultivado nas regiões frias, nas montanhas e nos terrenos pobres (...)”. Mas é claro que não se trata disso. Caulfield, sem duvida alguma, não deseja ser um agricultor ou um roceiro de fazenda (não nas intenções do autor), ele prefere “agarrar todo mundo que vai cair no abismo”. E que abismo, senão o da vida em sociedade tal como narrado por ele? É razoável preferir, então, que em lugar de salvar supostas crianças no campo de centeio, leiamos ‘cuidar para que as crianças não se tornem adultos como nós e assim venham a cometer todos os erros e pecados que cometemos em nosso convívio social, e não se transformem em mais um Ossenburger, ou um Ackley, ou um Stradlater, ou um Maurice, ou numa Sally da vida’. Não que as crianças não devam crescer, não é nada disso. Elas devem crescer diferentes de todos os adultos tais como descritos por Holden. Assim fazendo, imaginariamente as crianças além de salvarem-se a si mesmas, estão dando condições para que o próprio personagem se salve, já que finalmente encontrou alguma coisa que ache digna para ser feita. Uma observação quanto ao livro (abra-se um parêntese no trabalho), é que ele remete (ou leva a lembrança) ao livro de Graciliano Ramos – Angústia – onde existe um personagem tão intranqüilo quanto Holden, e que, em meio à sua loucura, faz o leitor refletir a respeito sobre determinados dogmas sociais: Certos lugares que me davam prazer tornaram- se odiosos. Passo adiante de uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição. Graciliano Ramos (Angústia) Aqui também se vê o descontentamento com a sociedade da época retratada nas lembranças do personagem Luís. É também um tipo louco, tal como Holden – já que ser diferente é ser acometido de uma espécie de loucura. Mas que, sem dúvidas algumas, enriquece a obra por sua capacidade de reflexão. Ora, mas não é sobre um livro de Graciliano Ramos que este trabalho está sendo realizado, por tanto, feche-se o parêntese. Ainda no que se referem aos adultos descritos por Holden, esses são o que a sociedade lhes determina que sejam. Talvez daí a fuga dele para o suposto campo de centeio, com a intenção, quem sabe, de fugir daquele meio que considera doentio e que, certamente, será mais um de seus viventes participantes e constituintes.
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