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CAPÍTULO 1 Introdução ao Estudo da Retórica e Oratória A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: � Compreender a concepção da retórica e sua finalidade, identificando suas funções e características. � Identificar as fontes da retórica grega e a discussão com perspectiva platônica. � Analisar as relações interpessoais e reconhecer as diferentes definições de retórica e oratória. 10 Oratória e Retórica 11 Introdução ao Estudo da Retórica e Oratória Capítulo 1 Contextualização O contexto do estudo da oratória e da retórica no mundo contemporâneo é bastante amplo. Nesta disciplina queremos enfatizar a construção e exposição dos argumentos para que possamos transmitir uma mensagem de qualidade. Vejamos como se considerava a arte retórica na antiguidade. Havia-se deixado de lado, até aqui, um ponto importante sobre o escopo da arte retórica. Por vezes, a retórica foi e ainda é apresentada como a arte de proferir discursos eloquentes. De fato, muitos são os que associam uma boa retórica a um discurso bem elaborado, destacado por diversos recursos de linguagem, enfim, ornamentado. Essa definição guarda correspondência com os primeiros discursos dos sofistas – portanto, anteriores ao aparecimento do tratado de Aristóteles sobre a retórica – mas que atingiu destaque e refinamento com a obra de Isócrates (436-338 a.C.), hábil e longevo retor, que se destacou pelo seu programa de ensino baseado nas artes humanas, predominantemente literárias (o Paideia). Isócrates se destacou por atacar tanto os que praticavam e ensinavam a dialética erística (aqueles que se propunham às disputas, a partir de posições antagônicas de mundo, objetivando chegar a uma pretensão de descoberta, a qual refletiria as formas particulares da leitura da natureza e/ ou que fossem capazes de chegar a uma verdade) quanto os sofistas, que ensinavam a arte dos discursos políticos aos nobres. Isócrates não acreditava que, da dialética erística, pudesse emergir um conhecimento diferente dos demais, ou que o simples fato de se arrebatar o maior número possível de seguidores fosse um medidor da correção de um dado conhecimento. Tampouco, poder-se-ia fazer qualquer juízo positivo da arte dos sofistas de ensinar discursos políticos mecanicamente, já que as condições para a descoberta da Verdade jamais teriam ali algum papel a desempenhar (GILL, 1994 apud VIEIRA, 2012, p. 8). Estudar oratória e retórica pode parecer um tanto distante da realidade em que estamos inseridos, mas se observarmos o cotidiano, perceberemos que estamos permeados de argumentos retóricos, apresentando cada qual um tipo de oratória. A você, estudante desta disciplina, convidamos para seguir conosco neste caminho de descobertas. Conceito de Retórica e Oratória A retórica no conhecimento humano, especificamente na filosofia, é uma forma de expressão de exposição de ideias utilizada pelos sofistas. Segundo este grupo de pensadores gregos da antiguidade, não existe uma verdade, o que há é apenas uma boa forma de argumentar ou uma forma ruim de argumentar. 12 Oratória e Retórica Ao iniciarmos a discussão sobre a retórica, queremos expor quais são suas características fundamentais e como estas características se relacionam com o modo com o qual nos expressamos. A vitalidade dos estudos retóricos até os nossos dias foi o que levou à organização de um curso que levantasse os principais problemas com que a Retórica se tem havido ao longo de sua história, cheia de pontos altos, mas também de crises e questionamentos. A bem dizer, é esta mesma dialética que está no bojo de sua própria natureza, que implica em controvérsia, discussão e, consequentemente, em influência e formação de opinião. De fato, a Retórica tem sido colocada à prova pelos mesmos princípios que a norteiam internamente e que fazem com que ela refloresça sempre: aceitação da mudança, o respeito à alteridade, a consideração da língua como lugar de confronto das subjetividades. Partindo-se do princípio de que a argumentatividade está presente em toda e qualquer atividade discursiva, tem-se também como básico o fato de que argumentar significa considerar o outro como capaz de reagir e de interagir diante das propostas e teses que lhe são apresentadas. Equivale, portanto, a conferir-lhe status e a qualificá-lo para o exercício da discussão e do entendimento, através do diálogo. Na verdade, o envolvimento não é unilateral, tendo-se uma verdadeira arena em que os interesses se entrechocam, quando o clima é de negociação, e em que prevalece o anseio de influência e de poder (MOSCA, 2001, p. 16). Quando falamos do movimento sofista da filosofia grega antiga, apontamos para alguns autores deste período que representam muito bem a figura de um retórico. Nesse sentido, merece destaque o filósofo Górgias, que muito bem definiu o não ser. Podemos citar ainda o filósofo Protágoras de Abdera, que com seu pensamento defendeu o relativismo na Antiguidade. A nossa discussão sobre a retórica e o papel da oratória na formulação e na exposição de argumentos passará necessariamente por Platão e Aristóteles. Estes dois filósofos da Antiguidade escreveram textos que detalham muito bem a arte retórica ou do bem dizer, se assim quisermos. De acordo com estes dois filósofos e com os sofistas, devemos estar atentos para a boa formulação retórica de um argumento e a boa oratória de exposição do mesmo. Na disciplina de Oratória e Retórica queremos lembrar a você, estudante, que a forma de bem dizer as palavras ou a boa formulação de um discurso é fundamental para que possamos entender, expor e transmitir uma mensagem. Podemos observar isso na discussão da Antiguidade desenvolvida por Sócrates. Platão, ao expor e escrever as ideias socráticas, nos passa a mensagem de que Sócrates foi um homem comprometido com a moral e com a verdade. Já alguns sofistas, como Sófocles, apresentam Sócrates como amigo dos sofistas e Na disciplina de Oratória e Retórica queremos lembrar a você, estudante, que a forma de bem dizer as palavras ou a boa formulação de um discurso é fundamental para que possamos entender, expor e transmitir uma mensagem. 13 Introdução ao Estudo da Retórica e Oratória Capítulo 1 um retórico. Isso significa que o modo como apresentamos uma ideia ou expomos um pensamento produz um determinado efeito naquele que ouve. O surgimento da Retórica na Grécia antiga prende-se à luta reivindicatória de defesa de terras na Sicília, que haviam caído em poder de usurpadores. Esse caráter prático, aliado à eficácia, esteve sempre presente nas finalidades da Retórica e é o que modernamente a situa junto à Pragmática. De fato, para se decidir em que medida um discurso visa persuadir e como o faz, há que levar em conta as características fundamentais da situação em que ele se dá e as relações de intersubjetividade dos interlocutores. Os efeitos perseguidos pelos discursos persuasivos são produtos não de um simples ato ilocutório, como também de elementos extraídos da força ilocucionária da situação. Cabe ainda lembrar que o ato de informar não existe em estado puro e serve antes a convencer e persuadir do que por si próprio. Assim é que discursos que se têm como informativos, tais como o científico e o jornalístico, são o exemplo disso, uma vez que existem em função de determinada finalidade prática a ser atingida. Por esse motivo, coloca-se em questão a tradicional divisão das modalidades dos gêneros jornalísticos em informativos, interpretativos e opinativos, que, na realidade, serve apenas para balizar a práxis jornalística, quando não mesmo para despistar um leitor desavisado (MOSCA, 2001, p. 26).Segundo Platão, a retórica é uma técnica indispensável para quem quisesse governar a cidade, porque quem rege deve saber falar e dominar a exposição de um argumento. Essa capacidade do governante impediria a manipulação e o controle por outros membros do governo. Contudo, Platão coloca a retórica abaixo da filosofia, e no diálogo Górgias expõe que o bem falar é uma arte de convencimento independentemente do conteúdo, e por isso está abaixo do conhecimento verdadeiro e rigoroso que é o filosófico. Podemos entender que esta discussão é muito importante para as pessoas que desejam lidar com o público em geral, pois há sempre uma escolha a ser feita quando falamos aos outros: devemos falar bem e transmitir aquilo que os interlocutores querem, sem se preocupar com a verdade, ou falamos bem e transmitimos a verdade quer agrade ou não aos interlocutores. Este dilema aparece toda vez que precisamos estabelecer um diálogo ou expressar uma ideia em público. Neste sentido, o estudante de Oratória e Retórica precisa conhecer os tipos, formas e métodos empregados pela retórica para formular um argumento, e da oratória para expor o mesmo. Outro filósofo já citado, Aristóteles, desenvolveu uma teoria acerca do que seria a retórica. De acordo com ele, a retórica é uma arte empírica e cotidiana. Neste sentido, precisamos almejar a verdade quando nos dedicamos a um discurso. Neste aspecto a retórica não é pura transmissão da verdade através da oratória, ela envolve diferentes aspectos do ser humano, de sua personalidade e 14 Oratória e Retórica ambiente. Para Aristóteles, devemos considerar a personalidade do ouvinte para expor um pensamento, pois se tivermos uma boa técnica, poderemos transmitir a mensagem que queremos com mais facilidade. Além disso, Aristóteles desenvolveu profundamente as características e a forma de refutação e confirmação de um argumento. Seguindo essa linha de raciocínio, podemos concluir que Aristóteles quis estabelecer uma clara finalidade ao empregarmos a retórica. Ela serve tanto ao indivíduo que quer discutir assuntos morais, quanto ao orador que quer falar de seus pensamentos na cidade. Em outras palavras, a retórica deve ser útil ao cidadão. Segundo Aristóteles, devemos organizar nosso modo de pensar e se expressar de maneira a permitir que sejamos claros em nossas ideias. Neste sentido, a retórica contribui para aperfeiçoar a qualidade, e a oratória é a exposição de um argumento. Aristóteles foi o primeiro a desenvolver uma organização detalhada desta ferramenta do saber humano. Inicialmente precisamos entender que todos nós fazemos uso da retórica e da oratória, pois são formas de nos expressarmos. Para Aristóteles, convencer o outro é a essência de toda discussão sobre retórica. Ao estabelecer formas de comportamento para o orador, modelos de raciocínio, tipos de premissas e a divisão desta ferramenta, o filósofo classifica e padroniza a retórica. A divisão apresentada por Aristóteles é exórdio, construção, refutação e epílogo. Em alguns momentos o filósofo coloca a narração após o exórdio. Ao contrapor a dialética com a retórica, Aristóteles configurou a ela elementos e características que estavam dispersos. Após a elaboração aristotélica, a retórica e a oratória foram desenvolvidas por diferentes grupos de pensadores. Mencionamos aqui os estoicos, os empíricos e a tradição romana de filósofo. Diógenes, filósofo estoico grego, entendia que a retórica dialética é parte da lógica, neste sentido, retórica significa bem falar e dialética é a arte de bem raciocinar. Isso significa que a retórica é a invenção de argumentos e desdobra-se em oratória quando expressamos esses em palavras ou discursos organizados a um grupo de ouvintes. Para este grupo de filósofos, a retórica se ocupa da forma de um argumento, enquanto que a dialética deve se ater à veracidade ou à falsidade de um argumento. Retórica significa bem falar e dialética é a arte de bem raciocinar. 15 Introdução ao Estudo da Retórica e Oratória Capítulo 1 O grupo de pensadores empíricos pode ser representado pelo epicurismo, que entende a retórica como argumentos possíveis derivados de signos. Segundo este, o método utilizado é a conjetura. Dito de outro modo, a retórica é uma ciência que se opõe às ciências exatas, isto é, para bem falarmos e bem construirmos um argumento, devemos seguir regras que provêm da experiência, como o objetivo de considerar vários graus de probabilidade. De acordo com esses filósofos, devemos considerar que para bem expressarmos nossas ideias devemos tomar cuidado nos argumentos emotivos e, ao mesmo tempo, não cairmos no simplismo do cotidiano. Por exemplo, em debates com amigos geralmente usamos lágrimas e dramas para convencer o outro. Entre os romanos destacamos Cícero, que entendia a retórica e a oratória como algo fruto de muito conhecimento filosófico, artístico e da ciência. Para ele, sem o saber aprofundado, a retórica se transforma em pura e simples maneira de verbalismo (Verborum volubilidas Inanes at que inridenda est (Cicero, de oratóre, I, 17). Para ser um bom orador, devemos conhecer todos os grandes problemas filosóficos, científicos e artísticos. Devemos pensar com sabedoria e é nisto que a retórica consiste para Cícero. O sábio consegue desenvolver bem a arte retórica se ater-se aos grandes problemas sem negligenciar as grandes questões. Cícero entende que a técnica da retórica deve produzir não só belos textos e belas oratórias, mas também sábios justos. Depois de apresentarmos alguns aspectos de pensadores da retórica antiga, passamos agora a expor algumas características do desenvolvimento da retórica no período chamado de Idade Média. Neste período o Trivium, a partir do século IX, constituiu a fonte para estruturar as chamadas artes liberais, nesta época a retórica era entendida como arte do discurso. Destacamos que a constituição dos argumentos não era puramente literária, havia uma preocupação com todas as áreas de conhecimento para expor e defender os argumentos. O desenvolvimento da retórica medieval encontrou amparo em grandes teólogos e filósofos. Destacamos Santo Agostinho ao recuperar a tradição platônica articulando as suas ideias com a de Cícero e outros retóricos romanos. Retomou também a tradição aristotélica da lógica para discutir os grandes problemas nesta área de conhecimento. 16 Oratória e Retórica No movimento renascentista percebemos uma reelaboração dos problemas retóricos baseados na eloquência ou no bem falar, remetendo à iluminação do intelecto, satisfação da imaginação, desencadear as paixões e, por último, evocar a vontade. Este processo culminou na completa distinção entre filosofia e retórica. Se em Platão e Aristóteles, filosofia, oratória e retórica caminham juntas no início da modernidade, elas se separaram, constituindo campos de saber distintos dentro de um espaço geral de conhecimento. Para explicarmos de maneira detalhada o que é retórica evocamos o pensador Reboul, que define o termo: retórica é “a arte de persuadir pelo discurso. Por discurso entendemos toda a produção verbal, escrita ou oral constituída por uma frase ou uma sequência de frases, que tenha começo e fim e apresente certa ordem de sentido. De fato, um discurso incoerente, feito por um bêbado ou por um louco, são vários discursos tomados por um só” (REBOUL, 2004, p. 14). Para este autor, só podemos chamar de retóricos aqueles discursos que querem persuadir os ouvintes. Citamos alguns exemplos: “pleito advocatício, alocução, política, sermão, folheto, cartaz de publicidade, panfleto, fábula, petição, ensaio, tratado de filosofia, de teologia ou de ciências humanas. Acrescenta-se a isso o trama e o romance deste de que de tese e o poema satírico ou laudatório“(REBOUL, 2004, p. 14). De acordo com Reboul (2004), a retórica sempre procura persuadir seus interlocutores pela oratória de algo. Neste sentido, queremos fazer uma distinção entre convencer alguém a crer em nós e convencer alguém a fazer algo. Do ponto de vista estritamente retórico, queremos deixar claro que convencer o outro a acreditar em nós é o núcleo da retórica enquanto arte de persuasão. Neste aspecto, levar alguém a fazer algo já é um passo além. Pascal (apud Reboul, 2004) destaca que podemos usar elementos, como o dinheiro, para persuadir os outros de que nossa causa é justa, mas isso não é um convencimento retórico, pois os argumentos não foram contrapostos e não houve sequer uma argumentação. Lembremos que a técnica retórica é ambígua, pois pode representar uma habilidade espontânea ou uma capacidade adquirida. Se considerarmos a retórica espontânea como forma de convencimento dos outros, precisamos entender que De acordo com Reboul (2004), a retórica sempre procura persuadir seus interlocutores pela oratória de algo. 17 Introdução ao Estudo da Retórica e Oratória Capítulo 1 sem a técnica adquirida, com o tempo não conseguiremos ter êxito em nossa tarefa. Segundo Reboul, “o verdadeiro orador é um artista no sentido de descobrir argumentos mais eficazes do que se esperava, figuras de que ninguém teria ideia e que se mostram ajudadas; artistas cujos desempenhos não são programáveis e que só se fazem sentir posteriormente” (REBOUL, 2004, p. 16). Neste sentido, a constituição de um argumento retórico e a expressão deste por um orador dependem da escolha que este fizer. Tudo isso implica em considerar a finalidade da retórica. Queremos convencer ou enganar? Como vimos, a persuasão é a forma de convencer a todo custo um interlocutor utilizando os modelos de argumentos disponíveis. Persuadir não é a mesma coisa que enganar. Existe uma sutil diferença, mas que é substancial, enganar implica em usar argumentos falsos e persuadir é convencer utilizando os argumentos disponíveis. Para começarmos a responder a este questionamento, explicaremos o que significa a arte da persuasão. Eis, pois, a mais antiga definição de retórica que conhecemos, ou seja, a arte de persuadir. Neste sentido, vale lembrar que é importante distinguir o que é argumentação e oratória. A competência racional dos argumentos pode ser dividida em duas partes: os que são componentes silogísticos e os que se apoiam em exemplos. Neste sentido vale lembrar que, para Aristóteles, a competência afetiva de um argumento é mais eficiente que o silogismo. Isso significa que um silogismo, encadeamento lógico de raciocínios, é destinado a um grupo técnico de ouvintes, por exemplo, um júri, enquanto que um exemplo argumentativo se destina ao grande público. Segundo Reboul (2004), no que tange à afetividade, podemos distinguir o caráter do ethos, em português caráter ético do orador, que procura convencer os interlocutores, e o pathos, em português a paixão ou compaixão gerada pelo discurso, cujo orador pode tirar proveito caso perceba como reage seu público. 18 Oratória e Retórica Podemos entender que o modo persuasivo de um discurso se compõe de duas partes: o argumentativo e o oratório. Assim, quando um orador se expressa, ele está no modo oratório, neste sentido, metáforas e hipérboles constituem artifícios retóricos, e são argumentativas quando condensam um argumento. Hermenêutica Passaremos agora ao modelo hermenêutico. Quando expressamos um discurso, ele nunca está só, sempre está em diálogo com outros oradores, se antepõe a este e dialoga com os mesmos. Para convencer um interlocutor é preciso entender o argumento do outro antepondo-o e persuadindo-o de modo a atingir o objetivo. Este processo só é possível por causa da possibilidade de interpretação que possuímos. Neste sentido, a arte de interpretar textos, chamada de hermenêutica, é fundamental ao orador que quer ser compreendido. Heurística Outra característica é a heurística, que significa encontrar algo remetendo ao grego euro, ou eureka, ambas indicando a capacidade de descoberta do ser humano. Não nos referimos diretamente à ciência, falamos do ponto de vista da pergunta sobre qualquer assunto. Neste aspecto a heurística contribui para o confronto de ideias, na demonstração delas e na descoberta de coisas que não sabemos. Ainda merece menção a função pedagógica da retórica, que constitui um caminho que engloba várias áreas de saber. De acordo com Reboul (2004, p. 22): [...] no fim do século XIX a retórica foi abolida do ensino francês e o próprio termo foi riscado dos programas. Todavia, como em geral acontece no ensino, em se apagando a palavra não se suprimiu a coisa. A retórica permaneceu, só que desarticulada, privada de sua unidade interna e de sua coerência; em todo caso, os professores, quase sempre sem saber, fazem retórica. Assim, a função pedagógica da retórica e o estilo das construções verbais permaneceram, mesmo que com dificuldades. Neste sentido, entendemos que para bem dizer precisamos também aprender a ser, visto que aqueles que formulam frases equivocadas e sem sentido falam de si e de seu próprio estado confuso da existência. 19 Introdução ao Estudo da Retórica e Oratória Capítulo 1 Para Que Serve a Retórica? Você, aluno de Oratória e Retórica, pode se aprofundar no significado e na serventia da retórica se observar o seu cotidiano. A retórica e a oratória podem servir a diferentes fins. Destacamos alguns: servem para persuadir interlocutores em debates filosóficos, religiosos, acadêmicos ou em outros ambientes sociais. Na filosofia costumamos entender a retórica como o modo de formular bons argumentos, para posteriormente, pela oratória, expô-los de modo a convencer a maior parte dos sujeitos que quisermos. Na religião costuma-se usar a oratória para desenvolver argumentos e convencer os fiéis daquelas verdades eternas reveladas nas escrituras. Assim, os religiosos utilizam a retórica com a finalidade de explicar as questões controversas e, consequentemente, elucidar as dificuldades dos fiéis. Já os acadêmicos utilizam métodos de retórica para convencer seus pares de suas habilidades e qualidades para conseguirem títulos, promoções e debater ideias no âmbito da conjetura intelectual. Destacamos ainda o uso da retórica e oratória no meio social, no cotidiano das nossas existências, falamos da família, do círculo de amigos e da convivência em nossos locais de trabalho. Algumas pessoas pensam que argumentar é apenas expor os seus preconceitos de uma forma nova. É por isso que muita gente considera que argumentar é desagradável e inútil, confundindo argumentar com discutir. Dizemos por vezes que discutir é uma espécie de luta verbal. Contudo, argumentar não é nada disso. [...] «argumentar» quer dizer oferecer um conjunto de razões a favor de uma conclusão ou oferecer dados favoráveis a uma conclusão. [...] argumentar não é apenas a afirmação de determinado ponto de vista, nem uma discussão. Os argumentos são tentativas de sustentar certos pontos de vista com razões. Neste sentido, os argumentos não são inúteis; na verdade, são essenciais. Os argumentos são essenciais, em primeiro lugar, porque constituem uma forma de tentarmos descobrir quais os melhores pontos de vista. Nem todos os pontos de vista são iguais. Algumas conclusões podem ser defendidas com boas razões e outras com razões menos boas. No entanto, não sabemos, na maioria das vezes, quais são as melhores conclusões. Precisamos, por isso, apresentar argumentos para sustentar diferentes conclusões e, depois, avaliar tais argumentos para ver se são realmente bons. Neste sentido, um argumento é uma forma de investigação. Alguns filósofose ativistas argumentaram, por exemplo, que criar animais só para produzir carne causa um sofrimento imenso aos animais e que, portanto, é injustificado e imoral. Será que têm razão? Não podemos decidir consultando os nossos preconceitos. Estão envolvidas muitas questões. Por exemplo; temos obrigações morais para com outras espécies ou o sofrimento humano é o único realmente mau? Podem os seres humanos viver realmente bem sem carne? Alguns vegetarianos vivem até idades muito avançadas. Será que este fato mostra que as dietas vegetarianas são mais saudáveis? Ou será irrelevante, 20 Oratória e Retórica tendo em conta que alguns não vegetarianos também vivem até idades muito avançadas? (É melhor perguntarmos se há uma percentagem mais elevada de vegetarianos que vivem até idades avançadas). Terão as pessoas mais saudáveis tendência para se tornarem vegetarianas, ao contrário das outras? Todas estas questões têm de ser apreciadas cuidadosamente, e as respostas não são a partida óbvia (WESTON, 1996, p. 5). A arte retórica e a oratória são elementos do ser humano que bem utilizados podem produzir resultados plausíveis no que se refere à arguição e exposição de ideias. A finalidade da retórica e da oratória consiste, justamente, na tentativa do convencimento alheio para podermos transmitir um pensamento, uma convicção ou um projeto. Este método de persuasão pode ser usado com a finalidade de promover o desenvolvimento do ser humano em suas várias especificidades ou pode servir para enganar, ludibriar e prejudicar outras pessoas. Na tentativa de suprimir os perigos do mau uso da retórica e da oratória, Platão e Aristóteles, cada qual ao seu modo, procuraram estabelecer critérios ou maneiras para evitarmos destruir a existência alheia. Platão, no diálogo Górgias, inquiriu o mesmo sobre a implicação moral de determinadas posturas retóricas. Assim, a arte da persuasão não é um vale-tudo, mas um conjunto organizado de regras para bem expormos as questões que queremos discutir. Aristóteles defendeu uma separação entre retórica e oratória para que ficasse claro qual estilo de argumentação o indivíduo estava praticando. Deste modo, a retórica serviria para desenvolvermos raciocínios claros e silogísticos sobre um assunto específico, enquanto que a oratória serviria para expormos poesias e formas literárias de estilo próprio. Assim, conforme aponta Platão no diálogo Górgias, devemos considerar em que consiste e para que serve a arte retórica. A finalidade da retórica e da oratória consiste, justamente, na tentativa do convencimento alheio para podermos transmitir um pensamento, uma convicção ou um projeto. A QUE SE REFERE UM DISCURSO – TRECHO DE PLATÃO Sócrates — Então, diz a respeito de quê. A que classe de coisas se referem os discursos de que se vale a retórica? Górgias — Aos negócios humanos, Sócrates, e os mais importantes. Sócrates — Mas isso, Górgias, também é ambíguo e nada preciso. Creio que já ouviste os comensais entoar nos banquetes aquela cantilena em que fazem a enumeração dos bens e dizer que 21 Introdução ao Estudo da Retórica e Oratória Capítulo 1 o melhor bem é a saúde; o segundo, ser belo; e o terceiro, conforme se exprime o poeta da cantilena, enriquecer sem fraude. Górgias — Já ouvi; mas, a que vem isso? Sócrates — É que poderias ser assaltado agora mesmo pelos profissionais dessas coisas elogiadas pelo autor da cantilena, a saber, o médico, o pedótriba e o economista, e falasse em primeiro lugar o médico: Sócrates, Górgias te engana; não é sua arte que se ocupa com o melhor bem para os homens, porém a minha. E se eu lhe perguntasse: Quem és, para falares dessa maneira? Sem dúvida responderia que era médico. Queres dizer com isso que o produto de tua arte é o melhor dos bens? Como poderia, Sócrates, deixar de sê-lo, se se trata da saúde? Haverá maior bem para os homens do que a saúde? E se, depois dele, por sua vez, falasse o pedótriba: Muito me admiraria, também, Sócrates, se Górgias pudesse mostrar algum bem da sua arte maior do que eu da minha. A esse, do meu lado, eu perguntara: Quem és, homem, e com que te ocupas? Sou professor de ginástica, me diria, e minha atividade consiste em deixar os homens com o corpo belo e robusto. Depois do pedótriba, falaria o economista, quero crer, num tom depreciativo para os dois primeiros: Considera bem, Sócrates, se podes encontrar algum bem maior do que a riqueza, tanto na atividade de Górgias como na de quem quer que seja. Como! Decerto lhe perguntáramos: és fabricante de riqueza? Responderia que sim. Quem és, então? Sou economista. E achas que para os homens o maior bem seja a riqueza? Voltaríamos a falar-lhe. Como não! me responderia. No entanto, lhe diríamos, o nosso Górgias sustenta que a arte dele produz um bem muito mais importante do que a tua. É fora de dúvida que, a seguir, ele me perguntaria: Que espécie de bem é esse? Górgias que o diga. Ora bem, Górgias; imagina que tanto ele como eu te formulamos essa pergunta, e responde-nos em que consiste o que dizes ser para os homens o maior bem de que sejas o autor. Górgias — Que é, de fato, o maior bem, Sócrates, e a causa não apenas de deixar livres os homens em suas próprias pessoas, como também de torná-los aptos para dominar os outros em suas respectivas cidades. Sócrates — Que queres dizer com isso? Górgias — O fato de, por meio da palavra, poder convencer os juízes no tribunal, os senadores no conselho e os cidadãos nas 22 Oratória e Retórica assembleias ou em toda e qualquer reunião política. Com semelhante poder, farás do médico teu escravo, e do pedótriba teu escravo, tornando-se manifesto que o tal economista não acumula riqueza para si próprio, mas para ti, que sabes. Fonte: Platão (2005, p. 6-7). A serventia do pensamento retórico e da oratória também varia conforme o repertório do sujeito que se dispõe a praticar tal arte. Se considerarmos um sujeito de aptidões variadas e qualidades profissionais e acadêmicas bem desenvolvidas, a arte de argumentar bem pode servir para diversos momentos da sua existência. Por outro lado, se considerarmos um sujeito que possui restrições intelectuais e profissionais, não poderemos concluir a mesma coisa. Lembremos que não estamos falando de condições sociais, nos referimos ao interesse profissional e acadêmico de cada indivíduo. Por isso a retórica serve a diversos fins, dependendo, como já disseram os filósofos relativistas gregos, do contexto em que está inserida. Conforme aponta Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas”, a retórica e a oratória são artes distintas que servem conforme a conveniência humana. Este modo de pensar é atual e está presente em nosso cotidiano porque queremos desenvolver nossas habilidades e não nos preocupamos com os problemas alheios. Não é de hoje a presença da retórica entre nós no cotidiano. Na Antiguidade observamos argumentações públicas, debates e relações costumeiras do dia a dia que envolviam argumentos ou explicitações. No período chamado de Idade Média a retórica foi usada como método de interpretação dos textos sagrados, seguindo a tradição platônica em Agostinho, e aristotélica em Tomás de Aquino. A apropriação desta arte no pensamento medieval cedeu devido à necessidade de impor e apresentar o meio de interpretação dos textos sagrados, visto que a comunidade estava imersa na visão de mundo do catolicismo. 23 Introdução ao Estudo da Retórica e Oratória Capítulo 1 Ao retomarem as ideias platônicas, os exegetas do período chamado primeira Idade Média, até o século IX, desenvolveram métodos e sugestões de interpretação fundados na ideia de convencimento alheio. Configura-se neste período uma grande ênfasena retórica argumentativa, que quer persuadir o outro sobre uma verdade que está sendo transmitida. Já os seguidores da tradição aristotélica desenvolveram uma retórica e uma oratória mais sofisticadas, com diferentes gêneros e estruturas formais. Tomás de Aquino desenvolveu todo o seu pensamento teológico utilizando o princípio da refutação de provas fundado por Aristóteles, bem como seguiu a divisão proposta por Aristóteles. Percebemos neste período que a retórica e a oratória encontram-se submersas em meio a toda a discussão teológica e o seu desenvolvimento ocorreu nos debates e pregações dentro das igrejas. Este processo, comumente chamado de adoção da retórica pela cristandade, remonta ao livro da criação, pois é no livro dos Gêneses, 2,17 que Deus faz uma pregação: “porque no dia em que comeres do fruto proibido certamente morrerás”, isso significa que também o Criador utilizou de argumentos retóricos para explicar a sua criação para suas criaturas. Assim, a retórica e a oratória, no período chamado de medieval, estão embebidas por conteúdos religiosos. Verificamos pregações por todo esse período, desde Agostinho (354-430 d.C.) até o século XV. Esse período é claramente marcado pela eloquência, fervor e tentativa de persuasão que resultou na expansão do modelo de religião por grande parte do mundo conhecido. Podemos atribuir a retórica da predicação a Agostinho e organização do Trivium, grupo de textos que deve ser lido para entender e discutir um assunto com propriedade, como constituintes da estrutura da retórica. Também os seguidores de Aristóteles desencadearam classificações e tipificações para os estudos bíblicos. A principal mudança que esses fizeram foi adaptar o princípio do verossímil transformando de uma possibilidade para uma verdade última e dogmas. Merece destaque o teólogo Isidoro (560-636), que dividiu a retórica em: exórdio, narração, argumentação e, por último, conclusão. Esta divisão didática da retórica serve para fins de entendimento da interpretação dos diferentes pensadores sobre o problema da separação das partes da retórica. Muitos são os autores que nesta época configuraram uma retórica cristã. O que podemos entender é que há uma imensa variedade de soluções para problemas teológicos apresentados durante a chamada Idade Média. Assim, percebemos que a adoção de princípios platônico-aristotélicos configurou por volta do século XIII a retórica comumente usada nos sermões. Essa nova oratória servia muito bem para convencer os corações dos fiéis e lhes trazer o conforto 24 Oratória e Retórica religioso. Neste período se incluíram fábulas ou pequenas histórias durante o sermão para que os fiéis, geralmente leigos, pudessem compreender as escrituras de maneira mais viva e objetiva. A função desta formulação retórica pode ser resumida em três partes: 1) ler o texto; 2) discutir o texto; e 3) fazer uma pregação. Esta divisão serve até nossos dias para todos aqueles que frequentarem a disciplina de Oratória e Retórica em uma faculdade de Teologia. Os sermões mais elaborados ocorriam nas universidades medievais, mas nas igrejas, especialmente nos finais de semana, podíamos observar pregações com organização e estrutura retórica. Um exemplo é o estudo bíblico, em que se pode utilizar deste método retórico para se aprofundar no entendimento das camadas do texto. Neste sentido, a retórica clássica se expandiu na chamada Idade Média e configurou um imenso campo de discussão que outrora estava restrito à Grécia ou a Roma. A serventia da retórica se justifica por três aspectos. Veja a seguir: 1. Transmitir uma mensagem: nesta perspectiva a retórica serve aos indivíduos para podermos formular argumentos que expressam nossas ideias de modo que os demais consigam entendê-las. 2. Persuadir os interlocutores: neste quesito a retórica praticamente não se modificou desde Platão, em seu diálogo Górgias é que se encontra esta definição. 3. Finalidade: este aspecto pode ser encontrado em Aristóteles, que com sua classificação entendia que um discurso deve ter um propósito, um fim, portanto ela serve àquilo que tivermos como fim. A retórica em nosso meio serve a diversas finalidades, mas nem sempre percebemos. Quando temos uma enfermidade e consultamos um médico, temos que convencê-lo, através de palavras e explicações, de que sofremos de uma moléstia. Caso nossa moléstia não seja aparente, então fica ainda mais difícil, pois ele precisa acreditar nos argumentos retóricos que nós propusemos para que continue a consulta e nos traga uma solução para a moléstia. Este exemplo deixa claro como a retórica e a oratória estão presentes em nosso meio sem ao menos percebermos, por isso sua finalidade vai além da produção e configuração de discursos, argumentos e debates. Se considerarmos a retórica como parte do nosso meio, perceberemos a importância do estudo e da dedicação a tal arte do bem falar, proporcionando aos interlocutores, e a nós, maior qualidade e eficácia na transmissão de ideias. A serventia da retórica se justifica por três aspectos: 1. Transmitir uma mensagem. 2. Persuadir os interlocutores. 3. Finalidade. 25 Introdução ao Estudo da Retórica e Oratória Capítulo 1 Se retomarmos o pensamento da retórica clássica, isto é, da Antiguidade, notaremos que quando organizamos um raciocínio, conforme aponta Aristóteles, estamos organizando também nossas próprias ideias, visto que, em geral, nós temos ideias desarticuladas, e é pelo exercício da retórica que conseguimos contrapor ideias e contribuímos para o método dialético que opõe verdades. Deste modo, retirarmos algo provisório para montarmos nosso raciocínio. Sob esta ótica, precisamos entender o que são silogismos. Aristóteles explica que silogismos retóricos e dialéticos são os que existem em nossa mente sob diferentes assuntos, contudo um silogismo organizado deve passar pelo crivo específico da razão, do contrário serão somente ideias desconexas. Os raciocínios silogísticos, antes de qualquer coisa, devem versar sobre algum assunto particular, distinguindo-se lugares, espécies, gêneros e formas. Para entendermos isto, precisamos saber quais são os gêneros da retórica, segundo Aristóteles. Este assunto é um dos constituintes mais importantes da arte retórica, de modo que os elementos que compõem o gênero retórico são: 1) O orador; 2) o assunto; 3) o ouvinte. Sem estes elementos não se faz a arte retórica, portanto o orador deve expor o seu discurso, precisa estar atento ao seu assunto, e os interlocutores precisam ouvir e, por conseguinte, saber distinguir as diversas finalidades de um discurso. Características da Arte de Falar Bem As características para desenvolvermos uma boa retórica e uma boa oratória podem ser resumidas em três aspectos fundamentais: 1) conteúdo do discurso; 2) forma do discurso; 3) objetivo do discurso. • No primeiro elemento, denominado conteúdo do discurso, o orador deve estar atento à formulação retórica dos argumentos. Neste sentido, o conteúdo deve abranger aquilo a que ele se propõe e expor sem dificuldades e correções ou ambiguidades. • A segunda característica é a forma do discurso, que deve deixar claro se os argumentos retóricos elencados pelo orador são narrativos, metafóricos, parábolas ou explicações científicas, como silogismos lógicos. Isto significa que antes de começarmos um discurso e expor a forma que iremos usar, pode ser falada qual é a forma ou durante a apresentação expor esta forma. • A terceira característica de uma boa formulação retórica é o objetivo de um discurso. Devemos considerar para quem falamos e o que queremos falar sobre um determinado assunto para conseguirmos transmitir a mensagem a qual nos propomos. 26 Oratória e Retórica Dito isso,seguimos a esteira dos passos iniciais da retórica inaugurada pelos sofistas na Grécia antiga para entendermos como esse discurso persuasivo pode nos ajudar no cotidiano. É no pensamento sofístico que encontramos esboço de gramática, formas de prosa, tanto ornada como erudita. Segundo esses filósofos, não há transmissão da possibilidade da verdade em um debate, isto é, completamente contrário ao ideal socrático, que sempre está em busca de uma verdade. Esses pensadores desenvolveram características que a partir do Kairós, tempo oportuno, possibilitaram entender que uma discussão sempre está tentando evitar a fuga das coisas, ela se agarra à oportunidade de uma réplica, eis que há elementos substanciais para formulação posterior da retórica aristotélica. Os sofistas constituíram o fundamento da retórica ocidental, sob a ideia da controvérsia entre as diferentes verdades contrapostas nas discussões. O mundo desses filósofos sofistas não tem realidade objetiva, muito menos verdade, para eles a única coisa viável é o discurso, ou seja, a retórica. Neste sentido, dizer que um discurso é verdadeiro ou verossímil é só um artifício retórico para calar a boca de alguém. A retórica inaugurada pelos sofistas não está abaixo do saber, seu objetivo é o poder; em outras palavras, os sofistas como pedagogos podem ser entendidos como aqueles que ensinam “a governar bem suas casas e suas cidades” (REBOUL, 2004, p. 10). Isso significa que o que importa é servir o poder. Sob esta perspectiva, podemos entender que a retórica satisfez à necessidade técnica jurídica, bem como a prova literária à filosofia e ao ensino na Grécia antiga. Isócrates, pensador grego, desenvolveu uma retórica que abrange esses aspectos mencionados. Em sua longa vida de 99 anos, Isócrates (436- 338 a.C.) libertou a retórica da sofística grega, ele contribuiu para desenvolver e ampliar as características da arte retórica. Após sofrer um processo fiscal que lhe custou a casa, tendo ele escrito sua própria defesa, resolveu publicar o texto intitulado “A troca”, foi assim que aos 80 anos de idade tornou-se um grande professor de retórica. Seu método de ensino partia da reflexão dos alunos, com os quais ele sentava e discutia as questões, corrigindo em conjunto os problemas de seus discursos e argumentos. Segundo ele, não são todas as pessoas que podem praticar a boa oratória, deve haver algumas condições para que o sujeito possa desenvolver esta arte. Para ele, é necessário aptidão natural, prática constante e ensino sistemático para que se configure um bom orador. Há uma clara discordância entre ele e os 27 Introdução ao Estudo da Retórica e Oratória Capítulo 1 sofistas, pois para Isócrates não se pode criar um bom orador, apenas se pode aperfeiçoar alguém com aptidão para tal arte. De acordo com Reboul, Isócrates queria um modelo de retórica “sóbria, clara, precisa, isenta de termos raros, de neologismos, de metáforas brilhantes, de ritmos marcados, mas sutilmente bela e profundamente harmoniosa” (REBOUL, 2004, p. 11). Isso implica em diferenciar-se da postura sofista que era submissa ao poder e ignorava o saber. Isócrates afirma que a retórica deve seguir uma causa honesta e nobre. Para ele, as pessoas são livres para bem usar os artifícios retóricos, mas devemos estar preocupados com a formação moral e literária dos oradores para que estes não caiam no acaso, logo estaremos ensinando um estilo de vida e um modo de governar os excessos de nossa existência. Segundo ele, o que nos distingue dos animais é a palavra, e essa característica deve ser usada para o bom desenvolvimento entre os humanos. Neste sentido, é a língua e a cultura humana que podem nos fazer renunciar às guerras. A retórica é um instrumento que se bem usado propicia ao orador uma condição de linguagem e arguição persuasiva frente aos seus interlocutores. O orador pode falar de virtudes, paixões e outros assuntos com qualidade e precisão, caso saiba estruturar o seu discurso. A razão de ser da retórica, que constitui uma das suas principais características, é justamente o fato de ela querer convencer alguém, logo, ela aborda elementos que são comuns e sobre os quais pesa mais de uma possibilidade. O orador deve saber formular silogismos, que são raciocínios lógicos, sobre as provas empíricas que ele escolher. Um bom silogismo deve conter premissas plausíveis, sendo que não pode haver confusão entre as partes descritas. Um bom orador estabelece as características mais prováveis para um acontecimento, seu raciocínio sempre considera probabilidades e não descarta sob nenhum aspecto as possibilidades que existem. Ele deve considerar todas as situações viáveis, e por eliminação e contradição, sustentar aquela que melhor se constituir como elemento fundamental e demonstrável. Para entendermos como se configurou a retórica moderna, devemos entender como se deu o processo de assimilação durante o período medieval, pois este período herdou todo o modo de argumentar da Antiguidade Clássica. De acordo com Costa (2008): Diretamente herdeira da Retórica clássica, a Retórica medieval desenvolveu seu manancial a partir basicamente de três fontes: a Retórica a Herênio, a Doutrina oratória (Institutio oratória, de Quintiliano [35-95]) e a tradição cristã (desde São Jerônimo [340-420] até Santo Agostinho [354-430]). 28 Oratória e Retórica Um dos manuais de Retórica mais estimados na Idade Média foi a Retórica a Herênio (Rethorica ad Herennium), texto então atribuído a Cícero (106-43 a.C.), mas, na verdade, de autor desconhecido. Escrito no século I antes de Cristo, em meio à crise da República romana, o tratado não deixava de destacar as técnicas para se obter a docilidade e a benevolência dos ouvintes – como é típico dos tópicos da Retórica –, mas as fundamentava no conceito de justiça e, especialmente, na diferença entre o bem e o mal, como se depreende nessa passagem: Convém que todo o discurso daqueles que sustentam um parecer tenha a utilidade como meta, de modo que o plano inteiro de seu discurso venha a contemplá-la. No debate político a utilidade divide-se em duas partes: a segura e a honesta [...] A matéria honesta divide-se em reto e louvável. Reto é o que se faz com virtude e dever. Subdivide-se em prudência, justiça, coragem e modéstia. Prudência é a destreza que pode, com certo método, discernir o bem e o mal [...]. Esse sólido alicerce ético exposto na Retórica a Herênio tem, por sua vez, raiz em Aristóteles (384-322 a.C.). Em sua Retórica, o Estagirita sustentou as bases filosóficas da virtude, da justiça, do bem e da verdade como alicerces da verdadeira Retórica: [...] os homens têm uma inclinação natural para a verdade e a maior parte das vezes alcançam-na. E, por isso, ser capaz de discernir sobre o plausível é ser igualmente capaz de discernir sobre a verdade. [...] Mas a retórica é útil porque a verdade e a justiça são por natureza mais fortes que os seus contrários. De sorte que se os juízos se não fizerem como convém, a verdade e a justiça serão necessariamente vencidas pelos seus contrários, e isso é digno de censura (COSTA, 2008, p. 31). Essa assimilação da retórica no período medieval permitiu que ela fosse adotada para o âmbito religioso. As exegeses e sermões começaram a conter elementos da forma grega de argumentar. Depois de algum tempo já havia sistemas estruturados de interpretação dos textos que permitiam análises e explicações detalhadas das escrituras sagradas. Um bom argumento deve conter raciocínios irrefutáveis, pois, do contrário, não chegaremos a uma conclusão viável. Entre as características da retórica, gostaríamos de fazer uma pequena distinção entre a função teológica e a função filosófica da retórica. Para a filosofia, a retórica deve elucidar argumentosfilosóficos e o conteúdo de seus conceitos, permitindo ao público e ao estudante desta arte uma compreensão clara e distinta acerca dos problemas da filosofia. Na filosofia, a arte da persuasão deve servir à elucidação dos grandes problemas teóricos e para exposição de argumentos para formular um debate entre diferentes ideais. Os primeiros manuais de retórica publicados por Córax e Tísias, por volta do século V a.C., formularam os elementos para tais exposições. Já Górgias (483-380 a.C.) valorizou o significado da palavra como fundadora, pois para este é a palavra que comanda um exército, faz um porto ou determina 29 Introdução ao Estudo da Retórica e Oratória Capítulo 1 a natureza de um Estado. Durante este período, inúmeras caracterizações diferenciaram a retórica, mas em geral todas concordam que uma boa retórica proporcionará uma possibilidade de se formar um orador. Neste sentido, distinguimos a característica da retórica de formular discursos da oratória que definimos pela arte de se expressar em público. Na teologia a retórica e a oratória assumiram características de eloquência nos sermões e nos debates teológicos. Destacamos que os principais motivos desta formulação remetem à tentativa de converter os infiéis e produzir uma interpretação bíblica. De modo resumido, podemos dizer que os modos de persuasão ajudam os indivíduos em um debate para que estes possam formular pela retórica e expor pela oratória as suas verdades. Se na Idade Média o Trivium e o Quadrivium eram as constituintes da formação humana, na Modernidade percebemos uma pulverização destas artes e uma constante divisão que gerou uma técnica distinta do conteúdo da retórica. Os significados de Trivium e Quadrivium são, respectivamente: Os três caminhos que levam ao homem a eloquência: 1) gramática; 2) retórica; 3) lógica; Quadrivium: Os quatro caminhos para a sabedoria do homem, que são: 1) aritmética; 2) música; 3) geometria; 4) astronomia. Neste sentido, se na Antiguidade e na Idade Média, retórica e oratória se articulavam e completavam-se formando uma área de saber, na Idade Moderna ocorreu o processo de tecnificação, que resultou em uma retórica específica para profissão. Embora a Retórica de Aristóteles tenha sido pouco lida, o fato é que a tradição grega contrária aos sofistas elevou a Retórica à categoria de valor. Mesmo Platão (c. 429-347 a.C.), tão avesso à Retórica em sua República ideal, fez Sócrates afirmar que ela, para deixar de ser uma adulação, deveria estar a serviço da filosofia da educação, como “arte de guiar a alma por meio de raciocínios (Fedro, 261a) para se chegar à verdade, à justiça e ao bem”. Assim, desde a filosofia de Platão, a verdadeira finalidade da Retórica não deveria ser o ato de agradar aos homens, como defendiam os sofistas, mas agradar a Deus (Fedro, 273e). 30 Oratória e Retórica Em outras palavras, a tradição clássica grega legou aos romanos a noção de que a verdadeira Retórica deveria estar a serviço da ética, e que o verdadeiro estadista e o verdadeiro retórico deveriam escolher bem suas palavras e praticar suas ações com o intuito de infundir a justiça nas almas dos cidadãos, fazendo com que neles reinassem a prudência, a moderação, e, sobretudo, desaparecesse o destempero: todas as energias do Estado e do indivíduo deveriam, portanto, dedicar-se à busca do bem, não à satisfação dos desejos. Esses pressupostos estão muito presentes em Quintiliano, afamadíssimo professor de Retórica do primeiro século de nossa era. Ao escrever sua obra-prima em 95 d.C., a Doutrina oratória, este romano- espanhol de Calahorra não teve qualquer receio em seguir a tradição de Catão (234-149 a.C.) e definir, em seu Livro XII, o orador ideal como um homem perito na arte do bem dizer, mas, sobretudo, um homem bom (“vir bonus, dicendi peritus”), particularmente por seus costumes. Todo esse manancial ético clássico que norteou a Retórica foi generosamente sorvido pela tradição cristã, especialmente através de São Jerônimo (c. 340-420) e Santo Agostinho (354-430), que a retransmitiram aos medievais (Jerônimo através de suas cartas e Agostinho em suas Confissões). Isidoro de Sevilha (560-636), por fim, fortaleceu a ponte entre os dois mundos, e dedicou um livro de suas Etimologias (Livro II) à Retórica e à Dialética. Nele, o bispo realizou uma importante compilação de excertos e circunscreveu a Retórica ao discurso forense, sem, contudo, abandonar seu cariz ético: “Retórica é a ciência do bem dizer nos assuntos civis, com a eloquência própria para persuadir o justo e o bom”. Sua obra foi muito difundida e consultada ao longo de toda a Idade Média. A partir de então, o estudo da Retórica ficou restrito ao universo monástico, ou seja, tanto educandos quanto educadores, salvo raríssimas exceções, não a colocavam em prática. Isso só ocorreria a partir do século XI, quando a Retórica passou a ser utilizada na composição de cartas e documentos, e tornou-se uma epistolografia: era o nascimento da ars dictaminis (ou dictandi). E foi dessa época a defesa acadêmica da Retórica feita por Gilberto de la Porrée e João de Salisbury contra os cornificianos (COSTA, 2008, p. 32). Essa fragmentação da retórica após o século XVII (Idade Moderna), conforme aponta Reboul (2004), Introdução à Retórica, praticamente fez desaparecer do meio acadêmico a disciplina de Retórica. Depois da metade do século XX a retórica se recuperou gradativamente, mas o processo começou pelo âmbito do marketing. Aos poucos, e de fora para dentro, o debate sobre a retórica recomeçou, e em nossos dias já temos algumas instituições de Ensino Superior que retomaram essa disciplina, contudo no ensino básico simplesmente se ignora o papel da retórica e da oratória. Retórica e Oratória em Nosso Meio Passamos agora a discutir um pouco o problema da retórica em nosso meio para entendermos que ela não é uma coisa distante e sem sentido, que foi esquecida por ser sem utilidade. Para Duran (2009, p. 9): 31 Introdução ao Estudo da Retórica e Oratória Capítulo 1 Três autores estiveram diretamente empenhados no estudo da retórica e da eloquência no Brasil do século XIX: Roberto de Oliveira Brandão, com seus estudos sobre os manuais de retórica e poética brasileiros do século XIX (1972), Roberto Acízelo de Souza, com o livro O Império da Eloquência: Retórica e Poética no Brasil Oitocentista (1999), e Eduardo Vieira Martins, com a Fonte subterrânea (2005). Roberto de Oliveira Brandão selecionou os manuais e compêndios de retórica e poética, publicados ao longo do século XIX, como seus objetos de estudo. Sua preocupação foi definir qual estrutura textual se oferecia nesses livros para a literatura nacional. Em trabalhos posteriores, como no texto Os manuais de retórica brasileiros do século XIX (1988), o autor apresentou avanços acerca dessa temática, abordando a função e a permanência da retórica e da eloquência na educação nacional. Roberto Acízelo de Souza, por sua vez, estudou a retórica e a poética por meio dos planos de ensino da segunda metade do século XIX no Colégio Pedro II. Souza esforçou-se ainda por comprovar a continuidade do uso da disciplina no cotidiano do carioca letrado, tendo em vista algumas orações da época e as práticas educativas de então. Eduardo Vieira Martins delimitou seus estudos à mudança estrutural da disciplina que, em meados de 1830, deixou de ter as obras de Quintiliano ou Cicero como referência e passou a ser balizada pelas regras forjadas por Hugh Blair. A permanência da retórica e da eloquência na cultura brasileira também foi abordada nesta pesquisa, a partir das obras de Francisco Freire de Carvalho e José de Alencar. Em seus trabalhos, esses três autores referiram-se à segunda metade do séculoXIX, quando a disciplina já possuía certa uniformidade. Entre suas fontes se pode encontrar manuais, compêndios, planos de ensino, registros de aulas, decisões e ordens do Estado brasileiro, fontes que lhes serviram como referência para localizar a contribuição que a retórica e a eloquência forneceram à educação. Quanto à formação de um discurso brasileiro, senão de uma literatura nacional, um deles recorreu a um literato da época, José de Alencar, enquanto os demais mantiveram-se atentos à produção de uma literatura didática ou pedagógica. Excetuando a distinção de gênero, pode-se afirmar que ambas possuíam uma unidade prescritiva de caráter edificante. Neste aspecto, pensar a retórica em nossas terras é importante para sabermos como o processo de esquecimento da disciplina no meio acadêmico se manifestou, ficando à literatura o papel de preservar sua existência de modo a garantir uma continuidade da arte de falar em nosso meio. Em alguns lugares do país foram os jornais e os folhetos que preservaram esta arte de construir e defender argumentos. A longevidade da retórica e da eloquência na cultura local foi garantida por meio dos periódicos cariocas que, a partir de 1822, tornaram-se cada vez mais numerosos e empenhados em “arrogar no coração do povo aquele bem entendido e luminoso entusiasmo, aquela zelosa energia, que constituem verdadeiro mérito moral e político e acrisola decidido patriotismo” (JORNAL SCIENTÍFICO, ECONOMICO E LITERÁRIO, 1826, NÚMERO 1: MAIO, p. 81). Regrada pela retórica, a comunicação dos cariocas do primeiro quartel do século XIX modelou uma 32 Oratória e Retórica eloquência que gradativamente ganhou ares de naturalidade e forneceu todo um universo vocabular, formal e temático para a invenção de uma literatura nacional e, paralelamente, de uma identidade brasileira (DURAN, 2009, p. 9). Os jesuítas contribuíram de modo muito importante sobre a preservação e difusão da arte retórica, sobretudo no meio religioso. Seus textos exegéticos foram fundamentais para que as vertentes de retórica e oratória se espalhassem no meio literário brasileiro. Foi publicado, em 23 de dezembro de 1770, o Compêndio histórico do Estado da Universidade de Coimbra no tempo da Invasão dos denominados jesuítas, no Palácio Nossa Senhora da Ajuda, em Lisboa. O opúsculo dava notícia de aspectos do método de ensino dos jesuítas durante o século XVIII nos cursos de Teologia, Cânones, Leis e Medicina da Universidade de Coimbra, apresentando as matérias conforme a sucessão das aulas durante a semana. Prima, Terça e Véspera eram aulas permanentes que aconteciam, respectivamente, às segundas, terças e quartas-feiras, certamente muito importantes, a julgar pelo maior honorário pago aos mestres. As quintas-feiras eram livres, como na França, e os domingos, reservados para o descanso e a missa. Um dia por semana servia para que o aluno estudasse por si mesmo os temas nos quais encontrasse dificuldades, geralmente as sextas-feiras, quando se realizava a Noa. Nas Catedrilhas, Institutas ou Avicena, que se seguiam irregularmente durante a semana, realizava-se a revisão dos temas já estudados ou a leitura dos textos das próximas aulas de Prima, Terça ou Véspera. Dedicadas a rememorar os temas já discutidos, tanto a Noa quanto as Catedrilhas eram aulas de passar a matéria, e o mestre dessas disciplinas ficou conhecido como passante. O passante era, na maioria dos casos, um aluno que se destacava dos demais por seu brilhantismo e eficiência, ou, ainda, um jovem recém-formado com as mesmas qualidades. Além do passante, havia o lente, um tipo de mestre responsável pela leitura dos livros do curso realizada nas aulas de Véspera, antecedendo a explicação do mestre titular da cadeira nas aulas de Prima e Terça. A relevância dos lentes e passantes estava no estabelecimento de um exercício contínuo de memorização da matéria, pois a intenção era que os estudantes chegassem a decorar os textos de maior importância, fato que, num mundo de poucos impressos, era um traço distintivo de inteligência. Em todas as matérias o estudo era guiado por uma obra de referência, impreterivelmente em latim. A predominância do latim justificava-se porque os textos escritos ou traduzidos nessa língua eram considerados os mais importantes e aprofundados. Soma-se a isso a crença de que o estudo da obra original, das ideias tais como foram escritas pelo seu primeiro autor, tinha maior mérito, por constituírem um conhecimento puro, capaz de sustentar um saber genuíno (DURAN, 2009, p. 15). Além desse caráter de decorar um assunto, o ensinamento de um argumento possibilita aos indivíduos uma capacidade de memorização que os distingue dos demais, visto que há poucos textos escritos nessa época e a eloquência com que se elencava um argumento fazia toda a diferença quando se queria convencer alguém. 33 Introdução ao Estudo da Retórica e Oratória Capítulo 1 Segundo Duran (2009), para alguns pensadores do final do século XVIII não era mais possível seguir sem a disciplina de retórica em nossos bancos escolares, e propuseram uma reforma no sistema de ensino para permitir aos estudantes uma maior polidez e qualidade em suas ideias. No sistema criado por Verney, as matérias História, Geografia e Gramática deveriam ser acompanhadas da Retórica, depois disso, Grego e mais História deveriam ser as matérias dos anos subsequentes. A Retórica alinhavava esses saberes, disponibilizando diversos tipos de discurso com os quais poder-se-iam expressar opiniões acerca das matérias estudadas. [O mestre de Retórica] Logo mandará compor alguma coisa em Português, começando por assuntos breves nos três gêneros de Eloquência. Começará, primeiro, pelas cartas portuguesas, dando somente aos rapazes o argumento delas, e emendando-lhe ao depois os defeitos que pode fazer contra a sua própria língua e contra a Gramática. E por esta razão é supérfluo neste ano ler mais autores portugueses, porque esta composição é o melhor estudo que se pode fazer da língua portuguesa. Depois, passará ao estilo histórico, e tirará algum argumento da mesma História que se explica pela manhã, para que os estudantes a dilatem, escrevendo o dito caso mui circunstanciado, e variando isto segundo o arbítrio do Mestre, ou também a descrição de um lugar e de uma pessoa, ou coisa semelhante. Em terceiro, lugar, segue-se dar- lhe algum argumento declamatório, mas breve. Para facilitar isto, o melhor meio é este: Quando o mestre propõe algum argumento que se deve provar, perguntará ao rapaz que razões ele dá sobre aquele ponto. Ouça as que ele dá, e ajude-o a produzi-las, pois desta sorte acostuma-se a responder de repente e escrever com facilidade (VERNEY, 1952, p. 63). Para Verney, o exercício repetido da comunicação era propício para incrementar a agilidade e autonomia do pensamento do discípulo. Esse, agora, não era mais um escolhido entre os iniciados e sua fala não se destinava somente aos grandes, nem deveria seguir os padrões de apenas um único modelo; por isso, estudariam os discursos deliberativo, demonstrativo e judicial, e [...] quando o estudante tiver bastante notícia dos três gêneros de Eloquência, em tal caso pode empregar-se em compor Latim, e isto pelo mesmo método que o fez em Vulgar. Nesta composição latina, não terá dificuldade alguma, visto ter vencido todas na composição portuguesa; somente lhe faltarão as palavras latinas e frases particulares da língua, ao que deve acudir e suprir o Mestre, emendando-as ou sugerindo-as. Encomende também aos rapazes que leiam muito as orações de Cícero; não digo as Verrinas, que são enfadonhas e só se podem ler salteadas, mas as outras mais fáceis e breves, das quais com facilidade se passa para as outras. E esta classe é necessárioque frequentem todos os que estudam Latinidade; porque, sem ela, nenhum pode entender e escrever bem Latim; e com ela pode saber muita coisa útil para todos os exercícios da vida, e, principalmente, para toda a sorte de estudos (VERNEY, 1952 apud DURAN, 2009, p. 15). O retorno da retórica aos âmbitos escolares como disciplina parece fundamental para que os indivíduos pudessem se expressar sem as amarras da linguagem embotada em elementos físicos e materiais. Com a retomada 34 Oratória e Retórica da retórica temos também o retorno de figuras de linguagem, comparações e estruturas mais rebuscadas. Platão e Aristóteles Segundo Platão, a retórica se caracteriza pela capacidade de persuasão dos interlocutores, essa capacidade nos traz a atualidade do diálogo em Górgias de Platão acerca de uma educação retórica. Embora estejamos enfeitiçados pela tecnologia, quando encontramos alguém que sabe se expressar muito bem, percebemos quão importante é saber falar e organizar as ideias. No diálogo Górgias, Calicles e Sócrates iniciam a discussão sobre alguns conceitos antigos sobre a guerra, e ao incorporarem Querefonte na discussão, Calicles propõe ouvirmos o que Górgias pensa sobre o ato de dialogar. Neste sentido, Sócrates apresenta o problema do que seria esta arte de argumentar, convidando todos ali presentes a perguntar algo e a se manifestar. Górgias se dispõe a responder todas as perguntas, gabando-se de que ninguém havia o pego desprevenido. Em determinado momento do diálogo, Sócrates inquire Górgias para que este explique de que se trata sua arte e quais as consequências desta, pois para Sócrates existe uma diferença entre oratória e diálogo, sendo a oratória instrumento dos falaciosos. Segundo Górgias, “me prezo de ser” um bom orador (PLATÃO, 1970, p. 52). Ao se considerar como tal, Górgias assume que é capaz de formar bons oradores em qualquer parte do mundo. Na sequência do diálogo, Sócrates pede para que Górgias exponha sua arte de maneira clara e concisa. Górgias concorda em expor esta oratória de que tanto se fala e compara concordando com Sócrates, com a tecelagem e a música. Ao responder a Sócrates, Górgias afirma que sua arte consiste em organizar e dispor palavras de modo a formular belos discursos e a distingue das demais artes, por exemplo, a medicina, pois a oratória não trata de todas as palavras. Segundo Górgias, seguindo Sócrates a oratória capacita as pessoas e as torna capaz de falar bem. E aparece assim a primeira contradição de Górgias, que dissera há pouco, no diálogo com Sócrates, que a oratória não tem nada a ver com a medicina, mas agora, quando Sócrates reformula a questão, Górgias concorda que a medicina reflete sobre 35 Introdução ao Estudo da Retórica e Oratória Capítulo 1 as doenças e, por conseguinte, usa a palavra. Ao falarmos de moléstias, segundo Sócrates, utilizamos palavras, também faz uso de palavras a ginástica que se refere ao corpo, logo concluímos que, seguindo o raciocínio socrático, todas as demais artes utilizam palavras para se expressar, e surge a principal questão até o momento: “por que não dar o nome de oratória às demais artes?” (PLATÃO, 1970, p. 54). A resposta de Górgias é que as demais artes trabalham com as mãos, enquanto a oratória é a arte da palavra, isto é, “sua atividade e operação se realizam todas por meio de palavras” (PLATÃO, 1970, p. 54). Na sequência do diálogo a discussão se encaminha para artes que usam as palavras, sendo que a oratória não abarca estas atividades. Neste sentido podemos ainda falar da geometria e da aritmética, que usam termos, palavras e sinais na escrita, mas em nenhum momento se expressam, sendo que a estas também não chamamos de oratória, logo, a oratória é a mais importante das atividades e que opera por meio de palavras. Devemos questionar agora se a oratória possui realmente este poder de persuasão defendido por Platão na obra que estamos utilizando para aplicar o debate. Para Górgias, a palavra é uma das formas que pode congregar cidadãos e colocar todos os demais que não dominam esta arte sob seus pés. É a arte retórica, do uso das palavras, que pode convencer as massas. “Com ênfase exalta Górgias a sua arte! Na apologia, Sócrates conta como saíra a interrogar os homens que passavam por sábios: políticos, poetas, artífices; cada qual por entender bem de sua especialidade se imaginava sapientíssimo nos demais domínios” (PLATÃO, 1970, p. 59). Aqui a palavra massa não tem nenhuma referência moderna. É uma referência à assembleia grega. Neste sentido, a retórica é um modo de persuasão que cria convicções nos interlocutores. Queremos saber agora em que consiste esta arte da persuasão. A persuasão, que é uma consequência da oratória, é o convencimento por meio de bons argumentos retóricos e o bom uso da oratória. No diálogo, Sócrates quer saber como distinguir um bom pintor de um pintor ruim, e mais, se a arte pode produzir uma persuasão parecida ou igual à da retórica. Antes de continuar esta reflexão sobre a persuasão, precisamos explicar que existe uma diferença entre persuasão didática e persuasão patética. A didática se refere ao convencimento do intelecto, enquanto a patética indica um convencimento mediante as emoções. Seguindo a linha de raciocínio de Sócrates no diálogo com Górgias, entendemos que outras artes também produzem o convencimento, cabe agora sabermos que tipo de convencimento a retórica produz. Para responder a isso, Górgias diz que a persuasão produzida pela oratória é aquela que se refere ao justo e ao injusto. Percebemos que a oratória referida por Górgias é aquela jurídica e que está restrita aos tribunais. Sócrates distingue dois tipos de persuasão: 1) a crença sem 36 Oratória e Retórica o saber; e 2) a ciência, logo conclui-se que o orador fala da crença e não da ciência, visto que no tribunal ele não expõe o que é justo e injusto, simplesmente quer convencer os interlocutores. Neste sentido devemos indagar, assim como Sócrates indagou Górgias: que proveito há em estudar esta arte retórica? A resposta a esta pergunta é a seguinte: quando queremos uma resposta e desejamos a cura de um paciente, procuramos um profissional médico, quando queremos falar bem, procuramos um especialista em oratória. Assim, quem aprende uma habilidade como esta, ou seja, a arte retórica, está habilitado a discutir com qualquer pessoa, pois domina os conceitos. Deste modo, cabe ao sujeito que aprendeu esta arte fazer uso dela para o bem da polis. Até agora a exposição da arte retórica e o modelo de oratória em Platão situaram o problema da qualidade e da objetividade de um discurso, de modo a permitir que o estudante entenda a retórica como uma forma de construção de argumentos e a retórica como um modo de persuasão dos interlocutores. O diálogo platônico Górgias trouxe a discussão para o patamar da escolha individual de cada indivíduo, assim, é o sujeito quem escolhe entre falar a verdade ou convencer a todo custo. Seguindo o diálogo platônico, Sócrates retoma a questão que propusera acerca da capacidade de se fazer um orador. Nesta perspectiva, Górgias concorda em retomar o problema e reconsiderar sua posição. O diálogo se inclina agora para a discussão da capacidade das demais artes de debater um tema com a mesma eloquência de um orador. Neste aspecto, Sócrates pede a Górgias que exponha mais detalhadamente o que vem a ser a oratória. Górgias concorda seguindo em tudo o que Sócrates diz a respeito do conhecimento de um orador. Concluindo este raciocínio, Sócrates e Górgias concordam que a oratória é um tipo de arte injusta. No pensamento platônico, o debate acerca da retórica e da oratória remete ao diálogo Górgias apontando na direção estética e literária. “Nascido por volta do ano 485 a.C.,Górgias viveu 109 anos, sobrevivendo, pois, a Sócrates. Também siciliano e discípulo de Empédocles, em 427 a.C. foi para Atenas numa embaixada, diz-se que ali sua eloquência encantou os atenienses a tal ponto que ele teve de prometer-lhes que voltaria” (REBOUL, 2004, p. 4). Percebemos aqui como a arte retórica ganhou força a partir dos textos e argumentações neste período citado. Até então, na Grécia, literatura e poesia eram consideradas idênticas. Por sua vez, a prosa procurava organizar e transcrever a linguagem oral. 37 Introdução ao Estudo da Retórica e Oratória Capítulo 1 Górgias criou o discurso epidictieo, que significa um elogio público, também desenvolveu uma prosa eloquente que, com suas rimas, metáforas e perífrases, formula um modelo que captura os espectadores. Citamos um exemplo de tamanha eloquência: o Elogio de Helena, que era uma mulher perfeita, bela, esposa de Menelau, que permitiu ser capturada por Páris, lançando os gregos em uma guerra de uma década. Górgias expõe a beleza de Helena em um discurso proferido ao público na época da guerra, no texto Górgias dá as justificativas pelas quais Helena permitiu ser raptada. Dentre elas, destacamos algumas: foi um decreto dos deuses, ou foi o destino; teria ela sido levada à força? Ou convencida por belas palavras? E, ainda, o desejo a teria dominado a ponto de se juntar aos troianos? Para Górgias, Helena foi convencida pela arguição de um belo discurso, e como tal não é culpada. Górgias defende Helena como pretexto para defender a retórica. “O discurso é um tirano poderosíssimo; esse elemento de pequenez extrema e totalmente invisível alça à plenitude as obras divinas: porque a palavra pode pôr fim ao medo, disse para a tristeza estimular a alegria, aumentar a piedade (GÓRGIAS apud REBOUL, 2004, p. 5). Para Górgias, Helena é inocente, pois ela não pode ter decidido livremente juntar-se aos troianos, logo, para Górgias, a argumentação sofística de que um ato involuntário não implica em culpa. Assim, a arte retórica expressa na oratória de Górgias passou a ser chamada de sofista. Eis aí um dos momentos marcantes da retórica antiga, pois surge a figura do professor que viaja de cidade em cidade vendendo sua eloquência e sua arte de convencimento. Inaugura-se neste período um modo de educação intelectual profundo que não tem a ver com uma profissão ou religião, pois era o conhecimento pelo conhecimento; em outras palavras, Górgias deu à retórica a capacidade de falar do belo. Além do debate entre Platão e Górgias protagonizado por Sócrates e seus interlocutores, temos outros pré-socráticos que desenvolveram a retórica como a arte de argumentar. Destacamos a figura de Protágoras de Abdera (486-410 a.C.) como um destes representantes, que, além de defender o agnosticismo, formulou a famosa máxima retórica em relação à moral: “o homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são”. No que se refere aos seres sagrados ou deuses, Protágoras formulou: “quanto aos deuses, não estou em condição de saber se existem ou não existem, nem mesmo o que são” (REBOUL, 2004, p. 7). Este pensamento retórico lhe custou a pena de morte, mas como tinha medo da morte, fugiu. Quanto à oratória e à retórica, a principal preocupação de Protágoras era com os substantivos, suas formas e variações. Também desenvolveu uma nova gramática e fundou a erística, que significa a contraposição de ideias, resultando, tempos depois, na dialética. Por éris Protágoras entendeu que uma boa discussão 38 Oratória e Retórica deve conter ideias contraditórias, visto que em grego a palavra erística vem de éris, que significa controversa. Desta maneira, segundo Protágoras, qualquer argumento pode ser refutado ou sustentando, eis que esta é a condição da técnica erística, ou seja, os modos e formas para vencer um debate. A discussão e a controvérsia, mediante o uso da retórica e da oratória, é que conferem a condição de um debate. Estas características que elencamos até agora representam a propedêutica ou preparação para iniciar a discussão acerca do fundamento da retórica e da oratória. Em Aristóteles, a retórica se configura em diálogo com a dialética. Neste sentido, ela aparece com diferentes aspectos de estrutura e significado. No pensamento retórico aristotélico há uma distinção entre saber como arte e conhecimento como ciência. No desenvolvimento da retórica, desde Aristóteles até nossos dias, ocorreu uma transformação desta que passou da arte persuasiva para uma hermenêutica interpretativa. Retomamos o cuidado com o significado da retórica e da oratória em nossos tempos. Em Aristóteles, a retórica não é simplesmente persuadir ou convencer os outros, ela é também fruto da experiência de vários oradores que desenvolvem técnicas para melhorar e exercitar esta arte. A tradição grega, desde Homero, sempre se preocupou em formular bons argumentos retóricos e excelentes oradores, assim, além de agir heroicamente, as personagens gregas deviam falar bem. Inúmeros são os exemplos na história grega que relatam estes acontecimentos. Todo o processo de transformação da oratória grega passa basicamente por Platão, Isócrates e Aristóteles, chegando às legiões romanas através de Cícero, que, com seus discursos e pronunciamentos no Senado Romano, imortalizou a retórica no meio latino. De acordo com Lausberg (1960), nunca houve um sistema retórico clássico, isso implica na necessidade de estarmos atentos ao modo como cada um dos indivíduos e pensadores organizou as ideias acerca da arte retórica e da oratória. Para explicarmos de maneira resumida as definições de retórica, elencaremos algumas que facilitam o nosso entendimento, mas todas essas definições concordam em um ponto: a retórica possui fins persuasivos. a) A definição de Córax, Tisias, Górgias, Platão: segundo estes, a retórica é geradora de persuasão. b) Aristóteles: é capaz de descobrir as formas de persuasão sobre um assunto. 39 Introdução ao Estudo da Retórica e Oratória Capítulo 1 c) Hermágoras: é a forma de bem falar no que tange aos assuntos públicos. d) Quintiliano, retóricos estoicos, que significa a ciência de falar bem. Essas definições partem do princípio de que retórica é um corpo de conhecimento ou método para se expressar bem; assim como pensamos a retórica, devemos levar em conta os seus usos. No que tange à finalidade de um discurso, não há muita diferença entre o âmbito teórico e prático da eloquência. Queremos deixar claro que retórica e oratória são formas de comunicação que compartilham técnicas, mas se distinguem enquanto execução. À retórica cabe a elaboração e à oratória a apresentação de um argumento. Desta maneira, a formulação e a exposição caminham juntas. Passamos agora ao entendimento de retórica segundo Aristóteles, que escreveu em seu livro Retórica sobre os fins persuasivos desta arte, e no livro Poética defende a evocação imaginária para discursos poéticos e literários. Faz, assim, uma distinção fundamental entre o caráter retórico e o poético. Percebemos aqui uma severa crítica de Aristóteles para os seus antecessores, que mantinham unidas dimensões tão distintas. A novidade apresentada por Aristóteles é a presença do argumento lógico, logo, há uma relação entre prova, raciocínio, silogismo e argumentação persuasiva. Este método serve tanto às ciências empíricas quanto à filosofia, e, além disso, pode ser usado também para interpretar textos. Aristóteles dividiu a retórica em sete partes: 1) A distinção de duas categorias formais de persuasão: provas técnicas e não técnicas; 2) Identificação de três meios de prova [...]: a lógica do assunto, o caráter do orador e a emoção dos ouvintes; 3) A distinção de três espécies de retórica:
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