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Teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Origem. Conceito. Aplicação. Efeitos. Teoria maior. Teoria menor. Teoria invertida. 1. Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica Também chamada teoria do superamento, da transposição, do levantamento do véu corporativo (lift of the corporate veil), da penetração, ou ainda disregard of the legal entity. É bastante comum a confusão entre a responsabilização direta dos sócios, de seu patrimônio pessoal, com a desconsideração da personalidade jurídica, mas é de fundamental importância ficar claro que nem toda responsabilização direta de um sócio é causada pela desconsideração da personalidade jurídica da sociedade que integra. Em verdade, há diversos caminhos para se alcançar a responsabilização do patrimônio pessoal de um sócio, sem que seja necessária (ou mesmo cabível) a desconsideração. Na maior parte das vezes, inclusive, é o que ocorre, e se confunde a situação com caso de desconsideração, não o sendo. A desconsideração será sempre o último modo de se atingir o patrimônio pessoal: só será cabível se nenhum outro meio o for, antes. Há casos em que sequer há personalidade jurídica a ser superada, como na hipótese da sociedade em comum, alcançando-se o patrimônio pessoal dos sócios sem se falar em desconsideração. A desconsideração, então, trata-se de um meio de defesa, criado pelo ordenamento jurídico com o fito de combater o abuso da personalidade jurídica, que em muito se assemelha à própria teoria civilista do abuso de direito 1 . Este abuso é a violação à ratio de uma pessoa jurídica: o ordenamento jurídico possibilita a criação das pessoas jurídicas, admite a ficção da personalidade jurídica, transformando-a em realidade negocial, para com isso fomentar a prática de atividades econômicas, a criação de empregos, ou seja, tudo aquilo que compõe a função social da empresa. Será configurado o abuso da personalidade jurídica justamente quando se comprovar que a sociedade foi criada com objetivos diversos, com escopo alheio aos fins sociais do instituto, contrário aos interesses do direito. Sendo assim, o abuso da personalidade jurídica pode ser caracterizado pelo desvio de finalidade – que é fraude propriamente dita –, ou pela confusão patrimonial. O STJ, no REsp 279.273/SP, trata magistralmente da caracterização do abuso da personalidade jurídica, pelo que se segue a ementa transcrita, e alguns trechos fundamentais: “Responsabilidade civil e Direito do consumidor. Recurso especial. Shopping Center de Osasco-SP. Explosão. Consumidores. Danos materiais e morais. Ministério Público. Legitimidade ativa. Pessoa jurídica. Desconsideração. Teoria maior e teoria menor. Limite de responsabilização dos sócios. Código de Defesa do Consumidor. Requisitos. Obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Art. 28, § 5º. - Considerada a proteção do consumidor um dos pilares da ordem econômica, e incumbindo ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, possui o Órgão Ministerial legitimidade para atuar em defesa de interesses individuais homogêneos de consumidores, decorrentes de origem comum. - A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração). - A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. - Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica. - A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a 1 O critério que melhor exprime a conceituação do abuso de direito é o critério do maior prejuízo social: mais vale permitir a reparação do dano causado pelo exercício de um direito do que proteger este direito, que em tese é detido pelo seu titular. O parâmetro mais claro para se identificar se o exercício do direito é regular ou abusivo é, sem dúvida, a boa-fé: é o critério para a definição dos limites para o titular do direito, que, numa conduta razoavelmente legítima, vai além do que seria razoável esperar. mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. - Recursos especiais não conhecidos. (...) A teoria da desconsideração da pessoa jurídica, quanto aos pressupostos de sua incidência, subdivide-se em duas categorias: teoria maior e teoria menor da desconsideração. A teoria maior não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade, ou a demonstração de confusão patrimonial. A prova do desvio de finalidade faz incidir a teoria (maior) subjetiva da desconsideração. O desvio de finalidade é caracterizado pelo ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica. A demonstração da confusão patrimonial, por sua vez, faz incidir a teoria (maior) objetiva da desconsideração. A confusão patrimonial caracteriza-se pela inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial do patrimônio da pessoa jurídica e do de seus sócios, ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas. A teoria maior da desconsideração, seja a subjetiva, seja a objetiva, constitui a regra geral no sistema jurídico brasileiro, positivada no art. 50 do CC/02. A teoria menor da desconsideração, por sua vez, parte de premissas distintas da teoria maior: para a incidência da desconsideração com base na teoria menor, basta a prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. Para esta teoria, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica. No ordenamento jurídico brasileiro, a teoria menor da desconsideração foi adotada excepcionalmente, por exemplo, no Direito Ambiental (Lei nº. 9605/98, art. 4º) e no Direito do Consumidor (CDC, art. 28, § 5º). (...)” Sintetizando o teor do REsp, neste ponto, o STJ entende que a teoria da desconsideração foi criada para combater o abuso da personalidade jurídica, e se caracteriza, objetivamente, pela confusão patrimonial, ou, subjetivamente, pelodesvio de finalidade. Existem, como já adiantou o teor do julgado transcrito, hipóteses em que bastaria a insolvência da sociedade, a sua incapacidade patrimonial, para justificar a desconsideração da personalidade jurídica. Esta anomalia, só existente no Brasil, subverte toda a principiologia do direito de empresa, sobremaneira no que atende à autonomia patrimonial das sociedades, corolário da personificação. Por isso, como já se pôde antever no REsp acima, o instituto se divide em teoria maior e teoria menor da desconsideração. A teoria maior é justamente a que já se introduziu: é aquela que demanda, a fim de permitir a invasão do patrimônio pessoal de um sócio, a presença do desvio de finalidade ou a confusão patrimonial para configurar o abuso da personalidade jurídica – sendo, respectivamente, as modalidades subjetiva e objetiva de abuso. A teoria menor, por seu lado, é aquela para a qual basta a insolvência de obrigações para que se autorize a desconsideração da personalidade jurídica. Veja que a regra, em direito de empresa, é a vigência da autonomia patrimonial da sociedade: a invasão do patrimônio pessoal dos sócios é exceção. A teoria menor, por sua estrutura, por sua pobreza em exigências autorizativas da incursão no patrimônio pessoal, transforma a exceção em regra: por esta teoria, se torna por demais corriqueira a invasão do patrimônio pessoal, a quebra da autonomia da pessoa jurídica – e por isso é uma anomalia. 1.1. Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica O objetivo desta teoria, como se adiantou, é combater o abuso da personalidade jurídica. A sua previsão legal se encontra no artigo 50 do CC: “Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.” Caracteriza-se a motivação para a desconsideração, nesta teoria, de forma objetiva – sem precisar prova de fraude, bastando a prova do fato – quando ocorre a confusão patrimonial. E caracteriza-se, de forma subjetiva – demandando a prova da fraude –, quando se verifica o desvio da finalidade. A confusão patrimonial se caracteriza quando a linha divisória entre o patrimônio autônomo da sociedade e o patrimônio pessoal de um sócio se desvanece: o sócio, dono das quotas, deixa de respeitar os valores que não lhe pertencem, mas sim à pessoa jurídica a qual integra, absorvendo em seu patrimônio pessoal aquilo que deveria estar acolhido no patrimônio da sociedade. Sempre que o sócio se utilizar dos bens da sociedade como se fossem seus, como se integrassem seu patrimônio pessoal, estará configurada a confusão patrimonial, e, constatada esta, objetivamente (matematicamente) é fator bastante para autorizar a desconsideração. O alcance da teoria da desconsideração é bem mais amplo do que apenas atingir o patrimônio dos sócios. De fato, poder-se-á atingir quem quer que esteja se valendo da personalidade jurídica daquela sociedade como artifício para burlar débitos – por vezes não sendo os próprios sócios. Esta hipótese ocorre, como exemplo, quando os bens de uma sociedade são transferidos a outra sociedade que tem em seus quadros os mesmos sócios da primeira, sendo que não é sócia daquela que realiza a cessão dos bens: se comprovada a fraude, os credores poderão pretender a desconsideração, a fim de alcançar o patrimônio daquela sociedade que, não-sócia, se valeu da personalidade da cedente para deixar os credores desta sem garantias. Há que se mencionar que a confusão patrimonial tem íntima correlação com a teoria da aparência. Vale lembrar, nunca é demais, que só se fala em desconsideração quando a personalidade se demonstrar um verdadeiro obstáculo ao adimplemento, pois se houver outro caminho a satisfazer o direito creditício, este será preferível – a desconsideração é ultima ratio, guardando necessária relação de subsidiariedade entre o patrimônio do sócio e o da sociedade. Se se puder obter os mesmos efeitos, ou seja, a satisfação do crédito, de outra forma não aviltante à autonomia patrimonial, como o é a desconsideração, esta será preferível. O desvio de finalidade, por sua vez, consiste no conluio, na má-fé percebida em atos da sociedade, configurando o abuso da personalidade. Veja que os atos que podem se demonstrar como desvio devem ser lícitos, na origem, pois do contrário a desconsideração é desnecessária: se o ato for ilícito, a pessoa que o pratica fica direta e pessoalmente responsável pela sua reparação. Se a responsabilidade pelo ato é direta do sócio, praticante do ilícito, não se faz necessária a desconsideração da personalidade da sociedade para se atingir seu patrimônio: este já está à disposição do credor. Exemplo de ato lícito que configura desvio de finalidade, fraude, é o seguinte: uma sociedade acumula muitas dívidas. Os sócios, visando driblar o passivo, criam uma nova sociedade, e passam a celebrar todos os contratos, dali em diante, em nome desta nova, sem se valer de nada, nenhum dos bens da antiga sociedade: transfere-se apenas a clientela (“transferência branca” da clientela). Veja que, legalmente, não há impedimento direto a esta constituição, tampouco à transferência da clientela: qualquer pessoa pode ser sócia de mais de uma sociedade, no mesmo ramo. Ato contínuo, a sociedade original vai à falência. Resta patente, neste exemplo, que a nova sociedade não tem por objetivo apenas a ratio empresarial, ou seja, não se presta, sua constituição e funcionamento, ao fomento econômico; se presta, sim, à burla do passivo contraído por aquela sociedade antecedente, ou seja, há desvio na finalidade da sociedade, pois o legislador, ao permitir uma constituição de personalidade jurídica, não teve por mens legislatorum a finalidade a que esta sociedade está se prestando – frustrar os débitos anteriores. Por isso, há abuso subjetivo da personalidade jurídica nesta nova sociedade, merecendo a desconsideração da sua personalidade jurídica, a fim de atacar seus bens sociais e os bens particulares dos sócios envolvidos na fraude 2 . Há que se comentar sobre a dissolução irregular da sociedade: uma vez que os sócios simplesmente fechem as portas da sociedade, sem promover a regular dissolução, com baixa na Junta Comercial, liquidação dos bens, e demais procedimentos legais impostos à dissolução, é caso de desconsideração (em que pese o TJ/RJ não acolher esta tese de forma pacífica). Entende-se que nesta dissolução, está presente a confusão patrimonial, pois ao fechar as portas os sócios têm para si os bens da sociedade, como se deles fossem. 1.1.1. Teoria Invertida 2 É verdade que, em regra, a confusão patrimonial está acompanhada da fraude, do desvio de finalidade, mas não é necessária esta correlação. E, como a confusão patrimonial é objetivamente constatada, é de prova mais fácil do que o desvio de finalidade, que é subjetiva. Dentro da teoria maior, pode-se aplicar a desconsideração, nos seus exatos termos, mas com sentido contrário: será requerida a desconsideração da personalidade jurídica por um credor pessoal do sócio, a fim de que seja invadido o patrimônio da própria sociedade para satisfazer tal crédito. Veja: o sócio, devedor particular, concentra todo seu patrimônio em quotas da sociedade, sendo que na casuística estas quotas são impenhoráveis (como na sociedade em nome coletivo). Se o credor pessoal do sócio comprovar que há confusão patrimonial, ou desvio de finalidade naquelasociedade, com a concentração do patrimônio do sócio, poderá ser desconsiderada esta maquinação, esta tentativa de blindagem patrimonial, a fim de disponibilizar, para satisfação do crédito do credor pessoal do sócio, o patrimônio em nome da sociedade. 1.2. Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica A teoria menor conta apenas com um pressuposto, um só requisito autorizativo da desconsideração: a incapacidade patrimonial da sociedade. Nesta teoria, basta que a sociedade não consiga adimplir suas obrigações para que posse ser sua personalidade desconsiderada e invadidos os patrimônios pessoais dos sócios. O objetivo desta teoria menor, em regra, é tutelar direitos de hipossuficientes. É mera política legislativa (enquanto o objetivo da teoria maior é bem mais técnico, qual seja, coibir o abuso da personalidade jurídica). Esta teoria se caracteriza com a mera insolvência da sociedade: basta que esta não conte com o ativo necessário ao adimplemento das obrigações contraídas para que se autorize a desconsideração. Há previsão legal da aplicação desta teoria em mais de um dispositivo. A primeira e mais notória se encontra no CDC, no artigo 28, § 5°: “Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. § 1° (Vetado). § 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. § 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. § 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa. § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.” Veja que o § 5° estabelece uma inversão à regra: sua redação transforma a desconsideração em regra, pois entender que sempre que, de qualquer forma, a personalidade for obstáculo ao ressarcimento é abranger uma enorme amplitude de hipóteses – pondo por terra o princípio da autonomia patrimonial da sociedade. Há quem faça, por isso, uma interpretação sistemática, conjugando o § 5° com o caput deste artigo 28: o termo “sempre”, do § 5°, diz respeito às hipóteses enumeradas no caput, quais sejam, abuso de direito; excesso de poder; infração da lei, fato ou ato ilícito; violação dos estatutos ou contrato social; falência; estado de insolvência; encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. Note-se que mesmo assim se interpretando, o cabimento ainda é tremendamente amplo, e esta interpretação ainda torna inútil a presença do § 5° – pois todas as hipóteses já estão no caput. Outra hipótese legal de cabimento da teoria menor é o artigo 4° da Lei 9.605/98, Lei dos Crimes Ambientais: “Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.” Veja que esta redação é extremamente similar à redação do CDC, não por acaso: foi copiado o dispositivo, com a simples adaptação para o dano ao meio ambiente. Portanto, todas as críticas feitas ao § 5° do CDC aqui se repetem. Última hipótese se encontra no artigo 18 da Lei 8.884/94, Lei do Cade: “Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.” Veja que este artigo é bastante impreciso, assim como o artigo 28 do CDC, pois também mistura os conceitos de ato ilícito com abuso de personalidade, e prevê larga gama de hipóteses, adotando a teoria menor. Há, aqui, um agravante: quem realiza a desconsideração não é o Judiciário, e sim o Executivo, na figura de uma autarquia federal, o Cade, Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Há que se mencionar, por fim, a hipótese sem previsão legal, em que se adota a teoria menor para desconsiderar a personalidade jurídica: nas relações trabalhistas, quaisquer que sejam, a justiça do trabalho aplica a desconsideração da personalidade jurídica sempre que necessária à satisfação de credores trabalhistas, mesmo que não haja previsão legal para tal. O fundamento de que se valem é o próprio § 5° do artigo 28 do CDC, por analogia, vez que trabalhador e consumidor são igualmente hipossuficientes 3 . No juízo falimentar, universal, esta desconsideração pró-trabalhador não é aplicada, motivo pelo qual muitas sociedades em dificuldades requerem a autofalência. 1.3. Aspectos Processuais da Desconsideração A desconsideração da personalidade jurídica pode ser requerida a qualquer tempo, mas normalmente o credor só terá ciência de seu pressuposto – abuso da personalidade – quando em fase de execução, pois como é medida subsidiária, é na satisfação que se perceberá a fraude ou a confusão patrimonial. Surge, então, um problema: como garantir o contraditório sobre esta argüição de fraude ou de confusão patrimonial em rito executivo? A doutrina entende, com fulcro na jurisprudência há muito aplicada, que a desconsideração em fase executiva não consiste em eliminação do contraditório: demonstrados os pressupostos por aquele que a requer, esta poderá ser realizada, considerando-se que o contraditório será diferido. O prejudicado pela desconsideração poderá contraditar seus fundamentos tanto em agravo de instrumento da decisão que a opera (se for a sociedade) quanto em embargos de terceiros (se for o sócio), que consistem em ação cognitiva autônoma com aporte probatório e amplo contraditório. Há um leading case, o RMS 16.274/SP, em que se aplica a tese do contraditório diferido quando requerida e concedida a desconsideração em fase executiva: “Processo civil. Recurso ordinário em mandado de segurança. Desconsideração da personalidade jurídica de sociedade empresária. Sócios alcançados pelos efeitos da falência. Legitimidade recursal. - A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica dispensa a propositura de ação autônoma para tal. Verificados os pressupostos de sua incidência, poderá o Juiz, incidentemente no próprio processo de execução (singular ou coletiva), levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens particulares de seus sócios, de forma a impedir a concretização de fraude à lei ou contra terceiros. - O sócio alcançado pela desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária torna-se parte no processo e assim está legitimado a interpor, perante o Juízo de origem, os recursos tidos por cabíveis, visando a defesa de seus direitos. Recurso ordinário em mandado de segurança a que se nega provimento.” Os juízos falimentares, mesmo com este entendimento sendo pacífico, a fim de evitar qualquer discussão sobre cerceamento de defesa, têm intimado o provável alvo da desconsideração, já na fase cognitiva, a fim de que se manifeste e promova eventual contraditório. E há, inclusive, corrente bem pequena que entende que é necessária ação autônoma para desconsideração, quando alcançada a fase executiva, a fim de promover o adequadocontraditório. 3 Esta analogia é criticada, pois a desconsideração deve ser exceção, e exceções são interpretadas restritivamente, sendo a analogia um exemplo de interpretação extensiva. Estabelecimento empresarial. Natureza jurídica. Elementos corpóreos e incorpóreos. Importância. Trespasse do estabelecimento. Requisitos. Responsabilidade do alienante no trespasse. Cláusula de não-restabelecimento. Contratos para a exploração do estabelecimento. Desapropriação. Atributos da empresa: clientela e aviamento. 1. Estabelecimento Empresarial O conceito de estabelecimento empresarial, copiado pelo legislador pátrio do direito civil italiano, está no artigo 1.142 do CC: “Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária.” O estabelecimento recebe diversos nomes: fundo de comércio, fundo empresarial, azienda, dentre outros. Ponto, por sua vez, não é sinônimo de estabelecimento: o ponto é um dos componentes imateriais do estabelecimento, sendo a localização em que se dá a exploração da atividade econômica organizada, da empresa. Veja que o ponto não é o imóvel em si: é aquilo que o local representa, ou seja, a quantidade de passantes, o tipo de pessoas que frequentam a área, etc. Os bens componentes do estabelecimento podem ser materiais ou imateriais, sendo ambas as classes açambarcadas pelo conceito legal. Há discussão na doutrina acerca da possibilidade de bens imóveis fazerem arte do estabelecimento, sendo certo que alguns doutrinadores mais retrógrados têm em mente que o imóvel não faz parte do estabelecimento. Contudo, a maior e mais acertada doutrina entende que o principal elemento do estabelecimento é justamente o ponto, o local físico em que a sociedade se expõe à clientela. Por isso, entender que o imóvel não faz parte do estabelecimento é desconsiderar o ponto como elemento fundamental deste. Há que se tecer ainda outra consideração: nem tudo que compõe o estabelecimento é parte integrante do patrimônio social, e nem tudo que é patrimônio da sociedade é componente do estabelecimento. Assim se desenha esta assertiva, em termos gráficos: Um exemplo vem a calhar: em um curso, as cadeiras, o imóvel em que se desenvolvem as aulas, as mesas, todos são bens que integram o patrimônio da sociedade, e também integram o estabelecimento, uma vez que sua serventia é justamente a prestação da atividade fim, ministrar as aulas. Nesta mesma sociedade, um quadro ornamental, de sua propriedade, que se coloca na parede do escritório do diretor integra o patrimônio, mas não integra o estabelecimento, pois não é afetado à atividade de empresa. E o contrário também ocorre: há bens que integram o estabelecimento, mas não fazem parte do patrimônio social, seno mais fácil perceber esta situação em relação aos bens intangíveis da sociedade. Exemplo clássico de bem que integra o estabelecimento mas não o patrimônio é o know-how, assim como o pode ser a própria clientela (elemento controvertido, que terá maior explanação adiante), ou mesmo o bom nome, a reputação da sociedade: são bens intangíveis, que não possuem aspecto contábil que os configurem como parte do patrimônio da sociedade. Esta separação é bastante relevante quando se for abordar o tema da alienação do estabelecimento, o trespasse: este negócio envolve a alienação de bens do estabelecimento, dedicados à atividade, e não aqueles que são exclusivamente parte do patrimônio. Como dito, há bens corpóreos e incorpóreos na composição do estabelecimento. Os bens corpóreos são e fácil identificação: são aqueles dedicados à consecução da atividade de empresa, inclusive o imóvel (ressalvada a discussão que se apresentou). Os bens intangíveis, por sua vez, merecem maior destrinche. Estabelecimento Patrimônio Patrimônio social afetado à atividade de empresa O nome empresarial, por exemplo, é bem incorpóreo componente do estabelecimento. Um exemplo de relevância do nome, enquanto parte do estabelecimento, é a relação empresarial virtual: se uma sociedade comercia principalmente (ou unicamente, em alguns casos) na internet, o seu nome, incluindo-se aí o domínio do seu sítio, é um dos principais elementos do estabelecimento. O mencionado know-how é elemento fundamental do estabelecimento, em especial para algumas atividades, como a indústria de bem exclusivo, por exemplo. Para alguns doutrinadores (minoria), o know- how é até mesmo mais importante do que o próprio ponto. Mas e a clientela, seria, de fato, elemento imaterial do estabelecimento? Se atentar-se para a literalidade do dispositivo, do artigo 1.142 do CC, este fala em bens, e, pelo conceito civilista de bens, fica difícil se imaginar que pessoas possam assim se configurar: pessoas, como se sabe, são sujeitos de direito, e nunca objeto de direito. Por isso, grande parte da doutrina entende que a clientela não é, em verdade, elemento do estabelecimento, mas sim um atributo deste. É aquilo que o estabelecimento conquistou, e que a ele agrega valor. Entenda: o agrupamento de bens que forma o estabelecimento atrai e agrega pessoas que consomem aquela atividade empresária realizada pela sociedade. Assim, o estabelecimento é o responsável pela formação da clientela, e os clientes angariados passam a ser uma qualidade, um atributo do estabelecimento que os colheu. Como foi por ele conquistado, agrega-lhe valor, mas não passa a ser um de seus elementos 4 . De outro lado, há doutrina que defende que o enfoque a ser dado à clientela é outro: não se está incluindo as pessoas, os próprios clientes, no rol de elementos do estabelecimento; o que se entende como parte do estabelecimento são os contratos, atuais ou potenciais, que se pactuam com estes clientes – estes sim podendo ser considerados bens incorpóreos, direitos, componentes do estabelecimento. O direito de negociar com aquele cliente angariado é um componente do estabelecimento, e não o próprio cliente. Outra expressão que precisa de comentários é aviamento. Veja: os bens do estabelecimento, se isoladamente considerados, têm um valor. Se coadunados, se reunidos e formatados de maneira que componham um todo maior, seu valor será outro. E esta reunião, esta integração dos bens do estabelecimento é justamente o aviamento: a soma dos bens do estabelecimento em um grupo considerado em uma unicidade de propósitos – desempenho da atividade empresária – representa um valor muito maior do que a mera soma matemática do valores de cada bem. O aviamento é o valor agregado do estabelecimento, quando universalmente considerados seus bens como um todo maior. Por isso, é claro que o aviamento não é elemento do estabelecimento: é uma característica deste. 1.1. Natureza Jurídica Há diversas teorias acerca da natureza jurídica do estabelecimento. Uma primeira é deveras difícil de se enquadrar na nossa sistemática: do direito alemão, tem este que o estabelecimento é uma personalidade jurídica autônoma, ou seja, sua natureza jurídica é de pessoa. Em nosso ordenamento, as pessoas jurídicas estão bem desenhadas na lei, e não se enquadra, o estabelecimento, sob nenhum aspecto, no conceito de pessoa. Outra teoria entende que o estabelecimento tem natureza jurídica de patrimônio de afetação, ou seja, sem que se dê personalidade jurídica própria aos bens dele componentes, se delimitaria uma afetação especial em relação àqueles bens destinados à atividade de empresa 5 . Esta teoria, se adotada, seria bastante benéfica à categoria de empresários individuais, que poderiamconstituir assim o estabelecimento, a fim de delimitar a responsabilidade patrimonial àquela parcela afetada à empresa. Mesmo não sendo a teoria adotada, o artigo 978 do CC dá ensejo à sua suscitação, na medida em que promove uma “separação virtual” entre o patrimônio do empresário e os bens da empresa. Veja: “Art. 978. O empresário casado pode, sem necessidade de outorga conjugal, qualquer que seja o regime de bens, alienar os imóveis que integrem o patrimônio da empresa ou gravá-los de ônus real.” 4 A clientela, enquanto atributo, influencia o valor econômico do estabelecimento, mas não passa a ser parte deste. Uma sociedade que conta com cem clientes decerto vale bem menos, em eventual trespasse, do que uma que conta com dez mil clientes – mas estes clientes não são parte do estabelecimento que se está alienando. 5 A Lei de Incorporações Imobiliárias traz hipótese em que a incorporadora pode constituir patrimônio de afetação para um de seus projetos. Contudo, este patrimônio eventualmente afetado será integrante do estabelecimento como um todo, sem separação real deste. Esta afetação diz respeito apenas à consecução de um projeto específico da incorporadora. A terceira teoria entende que o estabelecimento é uma universalidade de direito: o estabelecimento, enquanto um complexo de bens, se caracterizaria como um bem coletivo, uma universalidade assim designada pela lei, no artigo 1.142 do CC – e por isso seria universalidade de direito. Entretanto, esta teoria vai perder força em função da teoria mais aceita, majoritariamente adotada, de que o estabelecimento é uma universalidade de fato. Veja: a lei designa o estabelecimento como um complexo de bens, mas não delimita quais são estes bens, não os agrupa de fato. Quem estipula quais serão os bens componentes do estabelecimento são os sócios, e se a universalidade é preenchida pela vontade, e não pela lei, é uma universalidade de fato. Rememorando, vale a pena a transcrição dos conceitos legais de universalidade de direito e de fato, nos artigos 90 e 91 do CC: “Art. 90. Constitui universalidade de fato a pluralidade de bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação unitária. Parágrafo único. Os bens que formam essa universalidade podem ser objeto de relações jurídicas próprias.” “Art. 91. Constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico.” E é assim, como uma universalidade de fato, que o estabelecimento pode ser alvo de alienação de seu todo, sem necessidade sequer de que sejam descritos isoladamente os bens que o compõem, como diz o próprio parágrafo único do artigo 90 do CC, e o artigo 1.143 do mesmo codex. Esta alienação é o que se denomina trespasse. “Art. 1.143. Pode o estabelecimento ser objeto unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza.” 1.2. Trespasse Como dito, é o negócio jurídico em que o estabelecimento é alienado como um todo. As principais afecções deste negócio dizem respeito às responsabilidades dos envolvidos, trespassante e trespassário. A venda do estabelecimento é uma cessão, e como tal, não pode ser livre de obrigações. Se o ativo é cedido, automaticamente há também a assunção do passivo pelo trespassário. O CC não trata da cessão de contrato, situação comum na prática negocial, tratando apenas da cessão de crédito e da assunção de dívida. A doutrina, então, resolve a situação, entendendo que a cessão de contrato envolve tanto o passivo como o ativo. E este raciocínio é transportado para o trespasse: o trespassário assume todo o passivo, assim como adquire o ativo do alienante, trespassante, numa noção clássica de ônus e bônus: quem aufere o bônus, suporta os ônus. 1.2.1. Responsabilidade do Trespassante e do Trespassário A responsabilidade, então, será assumida pelo trespassário, mas há algumas peculiaridades. O legislador assim solveu a questão, no artigo 1.146 do CC: “Art. 1.146. O adquirente do estabelecimento responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um ano, a partir, quanto aos créditos vencidos, da publicação, e, quanto aos outros, da data do vencimento.” Assim, o legislador preferiu gerar solidariedade entre trespassante e trespassário pelo prazo de um ano desde a realização do trespasse, para os créditos anteriores ao trespasse e já vencidos, e desde o vencimento, para os créditos anteriores ao trespasse mas ainda por vencer. É importante se diferenciar bem a relação de trespasse da relação de cessão de quotas da sociedade. Em nada se confundem. Veja: Compra e venda de quotas (artigo 1.003, parágrafo único, CC) Sócio C Sócio D Cessão das quotas Na cessão de quotas, a sociedade “X” ainda continua sendo a titular do estabelecimento e de tudo que o compõe. Não há transferência da propriedade dos bens, que continuam, inalteradamente, sob domínio da pessoa jurídica; apenas há alteração no quadro societário, com modificação dos sócios detentores das quotas desta empresa “X”. Continuando a desempenhar a atividade, e com o mesmo estabelecimento, a cessão de quotas impinge aos ex-sócios, cedentes, a responsabilidade solidária com os cessionários, sócios atuais, por dois anos desde a averbação da cessão, como reza o dispositivo em comento: “Art. 1.003. A cessão total ou parcial de quota, sem a correspondente modificação do contrato social com o consentimento dos demais sócios, não terá eficácia quanto a estes e à sociedade. Parágrafo único. Até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, responde o cedente solidariamente com o cessionário, perante a sociedade e terceiros, pelas obrigações que tinha como sócio.” A averbação é necessária para que a publicidade faça o negócio oponível a terceiros, pois do contrário não é eficaz no mercado. Já no trespasse, a situação é completamente diversa: Veja a diferença: no trespasse, há a substituição do titular do estabelecimento, da pessoa jurídica detentora do estabelecimento, e não a alteração dos sócios detentores das quotas da sociedade. No trespasse, a sociedade “X” continua com o mesmo quadro societário, apenas tendo sido alienado o estabelecimento a outra sociedade, “Y”, que tem seu quadro social próprio. No trespasse, como se viu, o artigo 1.146 estabelece a solidariedade por apenas um ano, e com termo a quo específico. Veja que este termo inicial pode ser tanto da averbação do trespasse, para aquelas obrigações existentes à sua época, que já estejam vencidas; ou será iniciado desde o respectivo vencimento, para cada obrigação existente à época do trespasse, mas ainda não vencida no implemento deste. Por óbvio, aquele que aliena, o trespassante, não é responsável pelas obrigações contraídas após o trespasse: a solidariedade é sempre para a satisfação do passivo contraído quando o estabelecimento era de sua titularidade. 1.2.2. “Trespasse Parcial” Pode a alienação de parte do patrimônio, considerado integrante do estabelecimento de uma sociedade, ser considerada trespasse? Na Terceira Jornada de Direito Civil, o CJF editou enunciado bastante elucidativo, entendendo que se o grupo de bens alienados puder formar uma unidade funcional de produção, capaz de desenvolver, de forma autônoma, a empresa, será configurado, sim, o trespasse (“parcial”), e não mera venda de bens do alienante ao comprador. Veja:Sociedade “X”, titular do estabelecimento “E” Sócio A Sócio B Sociedade “X”, titular do estabelecimento “E” Trespasse (artigo 1.146, CC) Sociedade “X”, titular do estabelecimento “E” Sócio A Sócio B Sociedade “Y”, titular do estabelecimento “E” Sócio C Sócio D Alienação do estabelecimento “Enunciado 233, CJF - Art. 1.142: A sistemática do contrato de trespasse delineada pelo Código Civil nos arts. 1.142 e ss., especialmente seus efeitos obrigacionais, aplica-se somente quando o conjunto de bens transferidos importar a transmissão da funcionalidade do estabelecimento empresarial.” (grifo nosso) Um exemplo: se um curso aliena todas as suas carteiras, a fim de adquirir novas, esta venda de bens claramente integrantes do estabelecimento será considerada trespasse? É certo que não: as cadeiras, por si, não habilitam ao comprador desenvolver a atividade de forma autônoma. Todavia, se este mesmo curso conta com dois andares, por exemplo, e aliena um dos andares, com todos os bens (carteiras, quadros, mesas, etc), esta venda será considerada trespasse, pois aquele andar poderá desempenhar a atividade de empresa de forma autônoma. 1.2.3. Validade e Eficácia do Trespasse Há um limitador no artigo 1.145 do CC: o trespassante deverá resguardar patrimônio suficiente para arcar com o passivo da sociedade alienante, sob pena de configurar ato fraudatório, prática de ato de falência. Veja: “Art. 1.145. Se ao alienante não restarem bens suficientes para solver o seu passivo, a eficácia da alienação do estabelecimento depende do pagamento de todos os credores, ou do consentimento destes, de modo expresso ou tácito, em trinta dias a partir de sua notificação.” O dispositivo é claro: se o trespasse for representar insolvência do alienante, os seus credores deverão anuir na sua realização (pois seu crédito será passado ao trespassário). Se ainda houver patrimônio com o trespassante suficiente a sanar o passivo – que é assumido pelo trespassário, diga-se –, a anuência dos credores é dispensada. Ainda sobre esta questão, a nova Lei de Falências e Recuperações, no artigo 141, II, estabelece que se há trespasse do estabelecimento de sociedade em falência, o passivo não é assumido pelo trespassário (como forma de fomentar este trespasse, que d’outrarte seria impossível): “Art. 141. Na alienação conjunta ou separada de ativos, inclusive da empresa ou de suas filiais, promovida sob qualquer das modalidades de que trata este artigo: (...) II – o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, as derivadas da legislação do trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho. (...)” Sobre a validade do contrato de trespasse (não a eficácia), o enunciado 393 do CJF ainda esclarece que a forma é-lhe irrelevante, em si, apenas sendo imposta formalidade quando os bens alienados, componentes do estabelecimento, o imponham (como os imóveis, por exemplo). Veja: “Enunciado 393, CJF - A validade da alienação do estabelecimento empresarial não depende de forma específica, observado o regime jurídico dos bens que a exijam.” Outra questão que demanda abordagem é a situação dos contratos havidos pelo trespassante com seus clientes e fornecedores: como ficam estes contratos em relação ao trespassário? O artigo 1.148 do CC estabelece que: “Art. 1.148. Salvo disposição em contrário, a transferência importa a sub-rogação do adquirente nos contratos estipulados para exploração do estabelecimento, se não tiverem caráter pessoal, podendo os terceiros rescindir o contrato em noventa dias a contar da publicação da transferência, se ocorrer justa causa, ressalvada, neste caso, a responsabilidade do alienante.” Assim, os contratos são mantidos, em regra, salvo duas hipóteses: se o próprio contrato de trespasse previr de forma diversa, ou se o contrato for intuitu personae. A rescisão, quando o contrato for inicialmente mantido, será possível se, em até noventa dias, sobrevier justa causa para tanto. O CJF, na sua Primeira Jornada de Direito Civil, entendia que o contrato de locação do imóvel em que se instala o estabelecimento, ou seja, aquele ponto firmado pelo trespassante, era mantido após o trespasse, para o trespassário, que passa a ssumir a posição de locatário. Veja: “Enunciado 64, CJF - Art. 1.148: a alienação do estabelecimento empresarial importa, como regra, na manutenção do contrato de locação em que o alienante figura como locatário.” Ocorre que, na Terceira Jornada, o CJF emitiu novo enunciado, cancelando esta posição, dispondo exatamente o inverso: “Enunciado 234, CJF - Art. 1.148: Quando do trespasse do estabelecimento empresarial, o contrato de locação do respectivo ponto não se transmite automaticamente ao adquirente. Fica cancelado o Enunciado n. 64.” É que o contrato de locação, como é cediço, é um contrato personalíssimo, que envolve grande soma de particularidades na escolha do locatário pelo locador. Por isso, a manutenção do negócio em nome de outra pessoa, que não a pactuante originalmente, é violação direta e imotivada à relatividade contratual, pois alguém que não pactuou o negócio está sendo imposto ao outro contratante, sem que este possa se opor. Daí a mudança, muito correta, no entendimento do CJF. É claro que na cessão de quotas a situação é outra: nesta, o locatário, a pessoa jurídica, continua a mesma, mantendo-se inalterados os pólos originais do contrato de locação. Por isso, o contrato é mantido, sem qualquer avilte à relatividade contratual. Um último tema a ser tratado é a dissolução parcial da sociedade. São hipóteses de dissolução parcial a exclusão do sócio remisso, do sócio faltoso, daquele que se torna supervenientemente incapaz, daquele que se retira, na morte de um sócio, etc. A lei, quando trata da dissolução parcial, estabelece a liquidação, a apuração dos haveres, com cálculo patrimonial meramente matemático: apura-se o ativo, apura-se o passivo, e do valor encontrado entrega-se a proporção da quota do sócio em questão. Todavia, esta conta não corresponde à realidade do valor da sociedade, porque não leva em consideração um elemento importantíssimo: o estabelecimento, ou melhor, o aviamento do estabelecimento. Veja: a composição dos bens, como se viu, difere da sua concepção unificada, como um todo dedicado à empresa. A reunião dos bens em aviamento é muito mais valorizada do que a mera soma de ativos. Por isso, a conta matemática não faz jus à realidade. Destarte, a jurisprudência é majoritária no sentido de entender que a apuração de haveres deve considerar como ativo a potencialidade econômica do estabelecimento, a fim de que não haja locupletamento sem causa dos demais sócios. A avaliação do estabelecimento, para tanto, responde a criteriosa perícia contábil, não jurídica. 1.2.4. Quarentena O artigo 1.147 do CC estabelece que, havido o trespasse, o trespassante não poderá abrir concorrência ao trespassário por um período de cinco anos: “Art. 1.147. Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subseqüentes à transferência. Parágrafo único. No caso de arrendamento ou usufruto do estabelecimento, a proibição prevista neste artigo persistirá durante o prazo do contrato.” Aqui cabe uma menção importante: a territorialidade da concorrência será casuística, a depender da natureza do negócio. Se for um pequeno negócio, com clientela bairrista, os limites territoriais da concorrência são curtos. Se for uma indústriade grande porte, a quarentena se impõe até mesmo em nível nacional. 1.3. Proteção ao Ponto Como visto, o ponto é um elemento imaterial do estabelecimento, não sendo o imóvel, mas sim as características da localidade em que se desenvolve a empresa. Ocorre que, mesmo o imóvel não sendo o ponto, este tem clara relação com aquele, na medida em que é na sede do imóvel que grande parte das atividades de empresa se desenvolvem. E como, na maioria das vezes, o imóvel em que a sociedade se instala é locado de outrem, o legislador dedicou proteção especial ao ponto, na lei de locações, Lei 8.245/91: o artigo 51 deste diploma estabelece a renovação obrigatória do contrato de locação não-residencial. Veja: “Art. 51. Nas locações de imóveis destinados ao comércio, o locatário terá direito a renovação do contrato, por igual prazo, desde que, cumulativamente: I - o contrato a renovar tenha sido celebrado por escrito e com prazo determinado; II - o prazo mínimo do contrato a renovar ou a soma dos prazos ininterruptos dos contratos escritos seja de cinco anos; III - o locatário esteja explorando seu comércio, no mesmo ramo, pelo prazo mínimo e ininterrupto de três anos. 1º O direito assegurado neste artigo poderá ser exercido pelos cessionários ou sucessores da locação; no caso de sublocação total do imóvel, o direito a renovação somente poderá ser exercido pelo sublocatário. 2º Quando o contrato autorizar que o locatário utilize o imóvel para as atividades de sociedade de que faça parte e que a esta passe a pertencer o fundo de comércio, o direito a renovação poderá ser exercido pelo locatário ou pela sociedade. 3º Dissolvida a sociedade comercial por morte de um dos sócios, o sócio sobrevivente fica sub - rogado no direito a renovação, desde que continue no mesmo ramo. 4º O direito a renovação do contrato estende - se às locações celebradas por indústrias e sociedades civis com fim lucrativo, regularmente constituídas, desde que ocorrentes os pressupostos previstos neste artigo. 5º Do direito a renovação decai aquele que não propuser a ação no interregno de um ano, no máximo, até seis meses, no mínimo, anteriores à data da finalização do prazo do contrato em vigor.” Presentes os requisitos deste artigo, surge o direito potestativo à renovação do contrato. A discussão que se verifica, neste assunto, é se a alienação, ou a perda do imóvel por algum motivo (como a desapropriação), de forma a descontinuar o contrato – acabando com o ponto – gera algum tipo de indenização para o locatário. Há duas situações: quando há alienação do imóvel, prejudicando o ponto, o STJ entende que não há direito à indenização se o locatário não detinha, à época, o direito à renovatória plenamente constituído. Assim, se o ponto já alcançara a proteção da renovatória, o prejuízo deste ponto merece indenização. Outra situação é a desapropriação indireta do imóvel (desapropriação que é direta para o proprietário, e indireta para o locatário): se o Estado desapropria o bem, prejudicando o locatário, fulminando seu ponto, o STJ entende que há que se indenizar a perda do ponto, inclusive se o ponto não estava sob a proteção da renovatória obrigatória (se o contrato estava sob prazo indeterminado, por exemplo, ou se ainda não preenchidos os requisitos do artigo 51 da Lei 8.245/91). Assim se depreende do REsp 282.473/BA, tratando de contrato por prazo indeterminado (e portanto sem proteção ao ponto): “Civil. Locação não residencial. Contrato por prazo indeterminado. Fundo de comércio. Pretensão de indenização. Improcedência. Lei 8.245/91. Art. 52, § 3º. - Pela compreensão sistemática dos arts. 51 e 52, § 3º, da Lei do Inquilinato - Lei nº 8.245/91 -, não é devida a indenização a título de perda do fundo de comércio na hipótese de rescisão unilateral de contrato de locação não residencial por prazo indeterminado, sem pleito de renovação. - Recurso especial conhecido e provido.” Nome empresarial. Conceito. Natureza jurídica. Espécies: firma individual, razão social e denominação. Formação. Âmbito de proteção legal. Título de estabelecimento, insígnia e sinais de propaganda. Proteção legal. Alienação do nome empresarial e título de estabelecimento. 1. Nome Empresarial O nome empresarial tem natureza de bem incorpóreo, integrante do estabelecimento, e que permite ao empresário ser sujeito de direitos e obrigações. É gênero, que se subdivide em duas espécies: firma e denominação. A firma tem por base o nome civil. O empresário individual só pode usar esta espécie de nome empresarial: sua firma será sempre seu nome civil, por extenso ou com abreviações parciais, acompanhado da atividade que desempenha. Aqui cabe consideração sobre a razão social: esta, na verdade, não é uma espécie autônoma de nome empresarial, muito menos sinônimo do gênero nome empresarial. Nada mais é, razão social, do que a espécie firma, usada pela sociedade, quando admissível: é a firma coletiva. Destarte, quando a sociedade puder adotar firma, esta firma será coletiva, e sinônimo de firma coletiva é razão social. Quando a sociedade adotar a firma coletiva, a razão social, significa que desta constará o nome de algum sócio, mais de um, ou mesmo todos os sócios. Sendo sociedade regida pelo CC, será exigida, também, a presença, no nome, da atividade desempenhada. Na S/A, porém, não se exige a constância da atividade, aplicando-se a Lei 6.404/76 em detrimento do CC. A denominação, por sua vez, tem seu conceito por exclusão: se não há utilização do nome civil na composição do nome empresarial, é denominação. A sociedade registra, em seus atos constitutivos, o nome empresarial: este será necessariamente expresso no ato constitutivo. Levado ao registro, ganha a proteção contra sua utilização por terceiros não autorizados. O registro garante a proteção em âmbito estadual, em regra, pois a Junta Comercial tem esta abrangência. Esta é a previsão do artigo 1.166 do CC: “Art. 1.166. A inscrição do empresário, ou dos atos constitutivos das pessoas jurídicas, ou as respectivas averbações, no registro próprio, asseguram o uso exclusivo do nome nos limites do respectivo Estado. Parágrafo único. O uso previsto neste artigo estender-se-á a todo o território nacional, se registrado na forma da lei especial.” Caso o empresário queira proteger nacionalmente seu nome, basta que requeira a extensão desta propriedade, como diz o parágrafo único do artigo acima. Garantindo esta regra, o artigo 5°, XXIX da CRFB assim dispõe: “(...) XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País; (...)” A Lei 9.279/96, no artigo 124, adiante transcrito, estabelece previsão relevante sobre este tema; o artigo 36 da Lei 8.934/94, dispõe que: “Art. 36. Os documentos referidos no inciso II do art. 32 deverão ser apresentados a arquivamento na junta, dentro de 30 (trinta) dias contados de sua assinatura, a cuja data retroagirão os efeitos do arquivamento; fora desse prazo, o arquivamento só terá eficácia a partir do despacho que o conceder.” E, por fim, os artigos 61 e 62 do Decreto 1.800/96 assim mencionam: “Art. 61. A proteção ao nome empresarial, a cargo das Juntas Comerciais, decorre, automaticamente, do arquivamento da declaração de firma mercantil individual, do ato constitutivo de sociedade mercantil ou de alterações desses atos que impliquem mudança de nome. § 1º A proteção ao nome empresarialcircunscreve-se à unidade federativa de jurisdição da Junta Comercial que procedeu ao arquivamento de que trata o caput deste artigo. § 2º A proteção ao nome empresarial poderá ser estendida a outras unidades da federação, a requerimento da empresa interessada, observada instrução normativa do Departamento Nacional de Registro do Comércio - DNRC. § 3º Expirado o prazo da sociedade celebrada por tempo determinado, esta perderá a proteção do seu nome empresarial.” “Art. 62. O nome empresarial atenderá aos princípios da veracidade e da novidade e identificará, quando assim o exigir a lei, o tipo jurídico da sociedade. § 1º Havendo indicação de atividades econômicas no nome empresarial, essas deverão estar contidas no objeto da firma mercantil individual ou sociedade mercantil. § 2º Não poderá haver colidência por identidade ou semelhança do nome empresarial com outro já protegido. § 3º O Departamento Nacional de Registro do Comércio - DNRC, através de instruções normativas, disciplinará a composição do nome empresarial e estabelecera critérios para verificação da existência de identidade ou semelhança entre nomes empresariais.” Tavares Borba, minoritariamente, defende que o registro na Junta Comercial já se dá em âmbito nacional, por força do artigo 8° da CUP. Veja que tem seu fundamento, mas é tese bastante minoritária: “Art. 8°: O nome comercial será protegido em todos os países da união, sem obrigação de depósito ou de registro, quer faça ou não parte de uma massa de fábrica ou de comércio.” O artigo 1.163 do CC traz ainda outra previsão relevante: “Art. 1.163. O nome de empresário deve distinguir-se de qualquer outro já inscrito no mesmo registro. Parágrafo único. Se o empresário tiver nome idêntico ao de outros já inscritos, deverá acrescentar designação que o distinga.” Assim, a proteção se atém aos limites do registro, da mesma classe, pois do contrário não há, em regra, potencial de confusão no mercado, muito menos para a clientela, que mal tem acesso ao nome empresarial. Por isso, se for caso de proteção, prevalecerá aquele que foi registrado antes, pelo princípio da anterioridade, que aqui tem vigência. Veja, então, que a semelhança, homógrafa ou homófona, pode ser admitida, e quando for, coexistirão os nomes semelhantes ou iguais; mas esta coexistência só é admitida quando a atividade for diversa, e se for acrescentada alguma característica distintiva ao nome (de preferência, aludindo à atividade diversa) do que veio ao registro por último. Esta é a aplicação do princípio da especialidade. A ação cabível contra aquele que usa o nome empresarial é de abstenção de uso, ordinária de não fazer, cumulada com pedido de indenização. O enunciado 213 do CJF garante à sociedade simples a utilização de razão social, firma coletiva: “Enunciado 213 do CJF - Art. 997: O art. 997, inc. II, não exclui a possibilidade de sociedade simples utilizar firma ou razão social.” Vale aqui trazer um quadro comparativo dos tipos societários (e empresário individual) e dos nomes empresariais que podem adotar: Tipo societário (ou empresário individual) Firma Denominação Empresário individual Sim Não Sociedades regidas pelo CC, menos a sociedade simples pura Sim Não Sociedade simples pura Sim Sim Sociedade LTDA (artigo 1.158, CC) Sim Sim Cooperativa Não Sim Sociedade anônima Não Sim Sociedade em conta de participação Não tem nome Sociedade em comandita por ações Sim Sim 1.1. Título do Estabelecimento Não se pode confundir o nome empresarial com o título do estabelecimento, que é o que se chama, comumente, de “nome fantasia”. Este é o nome dado ao negócio, à sociedade, apenas para o relacionamento desta com a clientela. É um acessório do nome. Veja que o título do estabelecimento é mais conhecido do que o nome. Muitas vezes, se não na maior parte delas, o nome fantasia tem muito mais valor para a sociedade do que o nome empresarial. Para efeitos práticos, o nome empresarial vem sempre acompanhado da sigla que identifica o tipo societário. O nome fantasia, de seu lado, é o que melhor se relaciona com a clientela, não tendo menção formal alguma, em regra, à estrutura da sociedade.
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