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Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Serviço de Fisiologia Aula Teórico-Prática FISIOLOGIA DO CHOQUE TEXTO DE APOIO Sílvia Marta e João Bruno Soares Dra. Cristina Gavina Prof. Doutor Adelino Leite Moreira Porto, Ano Lectivo 2002/03 1 INDICE INTRODUÇÃO......................................................................................................................Pg. 2 RESPOSTA ORGÂNICA À HIPOPERFUSÃO.................................................................Pg. 3 1. MECANISMOS COMPENSATÓRIOS........................................................................Pg. 3 Sistema Adrenérgico....................................................................................Pg. 3 Cortisol..........................................................................................................Pg. 5 Sistema Renina-Angiotensina-Aldosterona e Vasopressina.....................Pg. 5 2. MECANISMOS DESCOMPENSTÓRIOS.....................................................................Pg. 8 LESÃO CELULAR E FALÊNCIA MULTIORGÂNICA................................................Pg.11 CLASSIFICAÇÃO FISIOPATOLÓGICA DO CHOQUE............................................................Pg. 13 1. CHOQUE HIPOVOLÉMICO.....................................................................................Pg. 13 2. CHOQUE CARDIOGÉNICO.....................................................................................Pg. 14 3. CHOQUE OBSTRUTIVO.........................................................................................Pg. 16 4. CHOQUE DISTRIBUTIVO.......................................................................................Pg. 16 BIBLIOGRAFIA..................................................................................................................Pg. 18 ALGORITMO DIAGNÓSTICO..................................................................................................Pg. 19 2 Introdução O choque é um estado de hipoperfusão tecidular. Independentemente da causa, condiciona um desequilíbrio entre o transporte e as necessidades de oxigénio (O2) e substratos energéticos, o qual pode gerar sofrimento e morte celulares. A própria lesão celular induz uma resposta inflamatória que, alterando as características funcionais e estruturais da microcirculação, agrava ainda mais a hipoperfusão. Gera-se assim um ciclo vicioso que, se não for interrompido, pode levar à falência de múltiplos órgãos e, eventualmente, à morte. As manifestações clínicas do choque resultam, por um lado, da resposta neuroendócrina à hipoperfusão, e, por outro, da disfunção orgânica induzida pela lesão celular. Deste modo, o choque caracteriza-se clinicamente pela combinação de hipotensão (PAM<60 mmHg), taquicardia, taquipneia, hipersudorese e sinais de hipoperfusão periférica como sejam a palidez, a cianose, extremidades frias1 e húmidas, oligúria, acidose metabólica, alterações sensoriais e do estado de consciência. Vários esquemas de classificação de choque foram propostos, com o intuito de sistematizar os processos fisiopatológicos subjacentes que, no entanto, se revelam aparentemente diferentes. Actualmente, o mais aceite é aquele que distingue quatro tipos de choque: o hipovolémico, o cardiogénico, o obstrutivo e o distributivo. No entanto, convém lembrar que nenhum esquema de classificação é completamente satisfatório, já que é frequente a combinação de duas ou mais causas de choque (choque combinado) e que mais importante que classificar o choque é compreender a sua patofisiologia. 1 No Choque séptico, a vasodilatação predomina, pelo que os membros se apresentam quentes. 3 RESPOSTA ORGÂNICA À HIPOPERFUSÃO A perfusão adequada dos tecidos implica a integridade estrutural e funcional dos três constituintes básicos do sistema cardiovascular: coração (a bomba), vasos (o continente) e sangue (o conteúdo). Assim, alterações num ou mais destes constituintes representam, por um lado, as possíveis causas de choque, e, por outro, a resposta do organismo ao mesmo. Esta resposta envolve inicialmente mecanismos compensatórios e nalgumas situações mecanismos descompensatórios podem sobrevir mais tarde. 1. MECANISMOS COMPENSATÓRIOS Em geral, as diferentes formas de choque desencadeiam uma série de mecanismos que visam atenuar/reverter o estado de hipoperfusão e, deste modo, proteger os órgãos da subsequente disfunção. Esses mecanismos consistem essencialmente numa activação neuroendócrina cujo padrão é aquele que ocorre numa situação de stress. Sendo assim, há participação do sistema adrenérgico como resposta imediata, seguindo-se a activação do córtex da supra-renal com libertação de cortisol e do sistema renina-angiotensina-aldosterona e a libertação da hormona antidiurética pelo eixo hipotâlamo-hipofisário. 1.1 Sistema Adrenérgico No choque, a activação deste sistema decorre da hipovolémia/hipotensão e hipóxia interpretadas pelos baroreceptores e quimioreceptores, respectivamente. Contribui para restaurar o volume circulante, assegurar a perfusão cerebral e coronária, bem como mobilizar substratos metabólicos. Por conseguinte, os seus principais efeitos são sentidos essencialmente ao nível do sistema cardiovascular e do metabolismo energético. A nível cardiovascular, a activação do sistema adrenérgico provoca aumento da resistência vascular periférica (RVP), venoconstrição e assegura o débito cardíaco (DC). O aumento da RVP é subsequente à constrição arteriolar, sendo mediada pela noradrenalina (NA, via receptores α1) originária dos terminais nervosos adrenérgicos. Tem como fim manter a pressão sistémica dentro de valores que assegurem a perfusão dos órgãos nobres (coração e SNC), conseguindo-o à custa da vasoconstrição dos territórios muscular, cutâneo e esplâncnico. Em situações de hipovolémia a constrição arteriolar contribui também para a restituição do volume intravascular, reduzindo a pressão hidrostática capilar e o número de leitos capilares perfundidos, o que limita a saída de fluídos. Uma vez que a pressão oncótica 4 intravascular se mantém normalizada ou mesmo aumentada, a reabsorção de fluidos para o espaço vascular é potenciada. O sistema venoso e, em particular, as vénulas, contém cerca de dois terços da volémia. Por conseguinte, a venoconstrição é um mecanismo fundamental no aumento do retorno venoso e da pré-carga. À semelhança do que sucede com o território arterial, a venoconstrição é mediada pela NA através dos receptores pós-sinápticos α1. A nível cardíaco, a activação do sistema simpático tem como objectivo a manutenção de um DC adequado. Tal é conseguido através do aumento da contractilidade miocárdica (efeito inotrópico positivo) e da frequência cardíaca (efeito cronotrópico positivo). Esses efeitos são mediados pelos receptores β1, para os quais a adrenalina (Ad) tem maior afinidade. No miocárdio existem também receptores α1 que causam aumento da contractilidade sem induzir taquicardia. Este aspecto tem particular interesse uma vez que o aumento moderado da frequência cardíaca tem efeito benéfico na manutenção do DC, enquanto que as taquicardias graves podem comprometer o enchimento ventricular e condicionar uma redução do próprio DC. Sendo assim, em algumas situações, agonistas selectivos α1 são preferidos em relação aos agonistas não selectivos ou selectivos β1, no tratamento do choque, na medida em que aumentam a contractilidade sem o correspondente incremento da frequência cardíaca. Ainda neste contexto convém referir que a resposta cardíacaà activação do sistema adrenérgico encontra-se comprometida em situações de disfunção do coração, a qual poderá inclusivamente constituir a causa do choque (vide infra). Os principais efeitos metabólicos do sistema adrenérgico são mediados pela Ad (actuando sobre os receptores β) e consistem na estimulação da glicogenólise e gliconeogénese, da lipólise e cetogénese, na inibição da utilização periférica de glicose e, a nível pancreático, na estimulação da libertação da glicagina e na diminuição da insulina. Além de assegurar maior disponibilidade de substratos energéticos (glicose, ácidos gordos e corpos cetónicos), estas alterações metabólicas aumentam a osmolaridade plasmática, gerando um gradiente osmótico entre as células e o interstício, o qual aumenta os volumes intersticial e intravascular à custa do volume intracelular. Por fim, convém salientar que, se pela sua importante acção cardiovascular, o sistema adrenérgico constitui um dos pilares da adaptação ao choque, pelo mesmo motivo, a falência desse sistema, é também uma das causas primárias de choque (como é o caso do choque neurogénico, vide infra). 5 1.2 Cortisol A libertação do cortisol pela zona fasciculada do córtex da suprarrenal é, à semelhança do sistema adrenérgico, essencial na adaptação ao choque, sendo igualmente fundamental para que Ad e NA exerçam seus efeitos. Essa libertação decorre do stress associado a qualquer estado de choque, o qual estimula a libertação de CRH por núcleos hipotalâmicos. O cortisol tem como efeitos mais importantes aqueles que exerce sobre o metabolismo e o sistema cardiovascular. Em termos metabólicos, o cortisol estimula a proteólise e a gliconeogénese, facilitando a conversão de proteínas em glicogénio e provocando um balanço nitrogenado negativo. Daqui decorre basicamente as mesmas consequências que as das alterações metabólicas induzidas pelo sistema adrenérgico, reforçando, assim, a ideia de sinergismo entre os dois sistemas. A nível do sistema cardiovascular a libertação de cortisol é necessária para a manutenção da pressão arterial dentro de valores normais. Além de sustentar o desempenho miocárdico, contribui para os efeitos inotrópico positivo (aumentando a expressão de receptores cardíacos de tipo β) e vasoconstritor induzidos pela libertação de catecolaminas. Diminui também a libertação de prostaglandinas vasodilatadoras e pode concorrer para a manutenção do volume circulante reduzindo a permeabilidade do endotélio vascular. A importância do cortisol no choque é ilustrada pelo profundo colapso circulatório que ocorre em doentes com insuficiência da suprarenal (choque hipoadrenal, vide infra). 1.3 Sistema Renina-Angiotensina-Aldosterona (SRAA) e Hormona Antidiurética (ADH) No choque, particularmente no que se acompanha de perda de volume, o SRAA é activado e a libertação da HAD pela neuro-hipófise é estimulada, tendo como principal fim a manutenção do volume sanguíneo (através da redução do débito urinário). Enquanto a angiotensina (AII) e a aldosterona fazem-no indirectamente (pela reabsorção de Na+), a ADH age quer indirectamente (também pela reabsorção de Na+) quer directamente (através da reabsorção de água sem reabsorção de Na+). Além dos efeitos renais, quer a AII quer a ADH exercem um efeito vasoconstritor que contribui para o aumento da RVP. A activação do SRAA é desencadeada por estimulação do sistema adrenérgico (β2) e do aparelho justaglomerular dos rins (com a libertação de renina). A AII, através dos receptes AT1, provoca vasoconstrição, tem efeito inotrópico positivo, estimula a libertação de aldosterona pela suprarrenal e de ADH pela neuro-hipófise e favorece a reabsorção de Na+ pelos tubos contornados proximais (com consequente reabsorção de água). Este último efeito é responsável pela acção da AII na manutenção do volume sanguíneo, como foi atrás referido. 6 A aldosterona, cuja libertação pela zona glomerular do córtex das suprarrenais é estimulada pela AII bem como pela redução da concentração sérica de Na+, contribui para a restauração do volume sanguíneo através da reabsorção de Na+ pelas células principais dos ductos coletores, a qual por sua vez induz reabsorção de água. A libertação de ADH pela neuro-hipófise é estimulada principalmente pela hiperosmolaridade plasmática e hipotensão graves, percebidas pelos osmoreceptores e baroreceptores, respectivamente. A nível renal, a HAD estimula a reabsorção de Na+ pelo ramo grosso ascendente da ansa de Henle e tubos colectores, e de água pelo ducto colector. Todos estes efeitos são mediados pelos receptores V2. Como já mencionado, a ADH pode também colaborar no aumento da RVP pela contracção da muscular lisa vascular que induz através dos receptores V1. 7 Figura 1: Mecanismos compensatórios do choque: PVC – pressão venosa central; SNS - sistema nervoso simpático; SNP - sistema nervoso parassimpático; FC – frequência cardíaca RVP – resistências vasculares periféricas; DC - débito cardíaco; PAM - pressão arterial mé Choque cardiogénico Choque hipovolémico Choque séptico, anafilático Choque neurogénico ↓ PVC ↓ RVP ↓↓↓↓ DC ↓↓↓↓ PAM Barorr s arteriais Resposta cerebral isquémica (se PAM< 60 mmHg) Barorreceptores cardiopulmonares Centros vasomotores centrais ↓ actividade SNP ↑ actividade SNS otropismo, ↑↑↑↑ tónus venoso e arteriolar ão Órgãos ↓ pressão capilar Reabs. fluidos ↑ RVP ↑ DC ↓↓↓↓ fluxo orgânico ↑↑↑↑ PAM dia. sistémicos ↑↑↑↑ FC, ↑↑↑↑ in Coraç eceptore 8 2. Mecanismos descompensatórios Estes mecanismos estão ainda mal esclarecidos mas sabe-se que podem estabelecer-se mesmo quando o doente parece relativamente estável. Parecem resultar do choque grave ou persistente, quando a intensa vasoconstrição mantida pelos mecanismos compensatórios provoca perfusão inadequada de vários órgãos (que não o coração e o SNC), causando a sua disfunção. No agravamento do choque têm particular importância a disfunção do trato gastrointestinal (TGI), do fígado, do rim e as alterações inflamatórias e metabólicas multiorgânicas. Todos eles, alterando o DC e/ou a RVP, acabam por reduzir ainda mais a pressão arterial, agravando a hipoperfusão. De facto, ao condicionarem uma acentuação da queda da pressão arterial, são responsáveis pelo agravamento do choque, situação que pode chegar ao estadio da irreversibilidade. A hipoperfusão renal prolongada pode condicionar o desenvolvimento de insuficiência renal aguda. Esta caracteriza-se por desequilíbrios electrolíticos e metabólicos que podem originar arritmias e insuficiência cardíacas, redução do tónus venosos (diminuindo a pré-carga) e do tónus arteriolar (reduzindo a RVP). Este último aspecto é também responsável pelo desenvolvimento de edema, já que condiciona um aumento da pressão hidrostática capilar. O TGI e o fígado possuem uma acção sinérgica no agravamento do choque. A hipoperfusão entérica ocasiona a perda da sua função de barreira o que, associado à proliferação da flora intestinal, favorece a passagem de bactérias e de toxinas para o sistema porta. Por sua vez, a hipoperfusão hepática justifica a perda da sua função de órgão depurador. Em conjunto, a disfunção destes dois órgãos condiciona a acumulação de bactérias e toxinas na corrente sistémica, podendo eventualmente levar a um quadro de sépsis. As alterações que ocorrem a nível multiorgânico e que contribuem para a acentuação da hipoperfusão são fundamentalmente duas: produção de metabolitos ácidos elibertação de mediadores inflamatórios. A hipóxia mantida condiciona a inibição da fosforilação oxidativa, favorecendo-se a glicólise anaeróbia, da qual resulta a formação de metabolitos ácidos, como o ácido láctico. A consequente acidose metabólica provoca diminuição da contractilidade cardíaca e dilatação arteriolar. A libertação de mediadores inflamatórios pode ser explicada pela acumulação de toxinas e bactérias na corrente sanguínea, secundária à falência do sistema hepato-intestinal, ou pela lesão celular induzida pela própria hipoperfusão. No agravamento do choque, os efeitos da libertação de mediadores inflamatórios resultam sobretudo da alteração das características funcionais e estruturais da microcirculação: vasodilatação, aumento da permeabilidade vascular e recrutamento de células inflamatórias (neutrófilos, macrófagos e plaquetas). A vasodilatação provoca diminuição da RVP, enquanto que o aumento da permeabilidade vascular condiciona 9 extravasamento de líquido, com a consequente diminuição do volume circulante (e da pré- carga) e aumento do volume intersticial. Este último aspecto repercute-se na dificuldade da difusão de oxigénio e nutrientes entre o sangue e as células. Por seu lado, o recrutamento de células inflamatórias parece fortemente implicado na génese da lesão celular. De facto, a marginação dos neutrófilos activados na microcirculação é um achado patológico comum no choque, provocando lesão secundária à libertação de radicais livres de oxigénio e proteases potencialmente citotóxicos. Na sépsis, também o coração é afectado directamente, através da libertação endógena de um factor depressor do miocárdio (vide infra). Para além de contribuir para o agravamento do choque e da lesão, a libertação de factores inflamatórios pode também ser a causa primária do aparecimento de choque (nomeadamente os choques séptico e anafilático, como será abordado mais à frente). Os mecanismos envolvidos no desencadeamento destas formas de choque são os mesmos que aqueles que participam no agravamento do choque com outras causas. Para finalizar, o despoletar de mecanismos descompensatórios está normalmente associado a um estado de irreversibilidade, até porque, geralmente coincide com um novo padrão de activação neuroendócrina (estimulação do parassimpático e inibição do simpático). 10 Figur depre press ↓↓↓↓ PAM Vasoconstrição persistente ↓↓↓↓ fluxo sanguíneo tecidular Coração TGI e Fígado Rim Multiorgânico Insuficiência miocárdica ↓ DC Acidose Acumulação de toxinas Desequilíbrio electrolítico FDM ↓ PVC ↓ RVP ↑ pressão capilar com transsudação ↓ tonus venoso e arteriolar ↓↓↓↓ PAM s a 2: Mecanismos descompensatórios: PVC – press ssor do miocárdio; RVP – resistências vasculares perif ão arterial média; TGI – trato gastrointestinal. ão venosa cent éricas; DC - déb arritmia ral; FDM – factor ito cardíaco; PAM - 11 LESÃO CELULAR E FALÊNCIA MULTIORGÂNICA A consequência última da hipoperfusão é a lesão celular (sofrimento e/ou morte) e a disfunção orgânica. A lesão celular está relacionada com a hipóxia (défice de aporte de O2) que a hipoperfusão provoca. Os mecanismos subjacentes à lesão celular induzida pela hipóxia são fundamentalmente dois: disfunção mitocondrial (com desaclopamento da fosforilação oxidativa) e lesão das membranas. A nível celular, a primeira consequência da hipóxia é a redução da formação de ATP pelas mitocôndrias, da qual resultam efeitos difusos sobre vários sistemas da célula, em particular, a falência da bomba de Na+ e a estimulação da glicólise anaeróbia. Por conseguinte, dá-se acumulação intracelular de Na+, perda de K+, com consequente hiperpolarização da membrana e ganho isosmótico de água (edema celular). Pela glicólise anaeróbia ocorre formação de produtos ácidos, como o ácido láctico, os quais reduzem o pH intracelular e esta acidose metabólica, condicionando vasodilatação, é particularmente importante nos estadios graves/avançados do choque. As alterações atrás enumeradas são reversíveis se o choque for tratado em tempo útil e a oxigenação restabelecida. Entretanto, se a hipoperfusão persistir, pode estabelecer-se lesão irreversível, cujo principal alvo é a perda de integridade morfofuncional da membrana celular. As possíveis causas desta disfuncionalidade são a perda de fosfolípidos da membrana (devido à activação de fosfolipases pelo aumento da [Ca2+] citosólico secundária à sua mobilização a partir dos reservatórios intracelulares induzida pela isquemia), alterações do citoesqueleto (pelo edema celular e activação de proteases induzidas pelo aumento do cálcio citosólico), os produtos da degradação dos lípidos (resultantes da degradação de fosfolípidos, com efeito detergente) e a produção de radicais livres de oxigénio. Estes últimos são moléculas de oxigénio parcialmente reduzidas, altamente tóxicas e que causam lesão das membranas e outros constituintes celulares. A sua libertação está aumentada em tecidos isquémicos após a restauração do fluxo sanguíneo, originando a chamada lesão de reperfusão. Parecem ser produzidas principalmente por células inflamatórias que infiltram o local da isquemia durante a reperfusão. Todos os mecanismos citados concorrem, em última análise, para a perda da integridade da membrana. Uma das implicações deste facto é o influxo de Ca2+, o qual se encontra fortemente relacionado com alterações responsáveis pela irreversibilidade da lesão celular: envenenamento mitocondrial, inibição de enzimas celulares e desnaturação proteica. Quando extensa, esta lesão celular pode condicionar a perda da função do órgão como um todo. Apesar de estar subjacente a um atingimento multiorgânico, alguns órgãos são mais susceptíveis (Cf. Tabela 1). No caso concreto do SNC, ele é incapaz de autoregular o fluxo 12 sanguíneo quando a PAM cai para valores inferiores a 60 mmHg. A resultante isquemia provoca uma queda do nível de consciência do doente, que pode chegar ao estado de coma. A disfunção pulmonar aguda, por sua vez, é frequente, cursando com perturbação das trocas gasosas, hipoxémia, diminuição da complacência pulmonar e aumento do trabalho respiratório. Pode também resultar em exsudação de fluido contendo proteínas para o espaço alveolar (síndroma da dificuldade respiratória do adulto - SDRA). A insuficiência renal e a disfunção gastrointestinal são comuns e manifestam-se como íleo paralítico, gastrite, colecistite aguda alitiásica. A disfunção hepática é muitas vezes evidente, com hiperbilirrubinémia e elevação das transaminases e desidrogenase láctica. Outros sistemas frequentemente afectados são o hematológico (trombocitopenia e coagulação intravascular disseminada - CID) e o imune (disfunção dos macrófagos, linfócitos T e B). Tabela 1: Síndroma da Falência Multiorgânica Órgão/Sistema Clínica Órgão/Sistema Clínica Pulmonar Desacoplamento ventilação- perfusão ↑ da ventilação e trabalho de respiração ↓ trocas gasosas→ ↓pO2 e pH e ↑ pCO2 Lesão capilar→SDRA TGI Ileus Gastrite e pancreatite Isquemia: sépsis, acidose láctica SNC Alteração do estado de consciência (confusão→coma) Enfarte molhado (PAM<60 mmHg) Fígado Necrose centrolobular→↑ transamínases e bilirubina Colestase intrahepática, colecistite alitiásia ↓ depuração de tóxicos Cardiovascular Libertação de catecolaminas: ↑ FC e contractilidade ↑ consumo de O2 Disfunção sistólica e diastólica ArritmiasHematológico CID Coagulopatias Tombocitopenia Rim Diminuição da taxa de filtração glomerular Necrose tubular aguda Insuficiência aguda: edema, ↑ K+, ↓HCO3 Imune Endócrino Imunossupressão humoral e celular ↓ da secreção de insulina Insuficiência adrenal Disfunção da paratiróide 13 CLASSIFICAÇÃO FISIOPATOLÓGICA DO CHOQUE 1. CHOQUE HIPOVOLÉMICO O choque hipovolémico é o tipo mais frequente de choque, podendo ser subsequente a hemorragia (perda da massa eritrocitária e de plasma) ou a perda plasmática isolada (como sucede no sequestro de liquido extravascular, nas perdas pelo trato gastrointestinal e urinário ou nas perdas insensíveis). A sintomatologia destas duas situações é clinicamente sobreponível, embora no segundo caso o quadro possa instalar-se de forma mais insidiosa. Os sintomas variam de acordo com a magnitude da perda e, portanto, com a gravidade da situação (tabela 2). Tabela 2: Sintomas de Hipovolémia Leve (<20% do volume circulante) Moderado (20 a 40% do volume circulante) Grave (>40% do volume circulante) Membros frios Tempo de preenchimento capilar aumentado Hipersudorese Colapso venoso ansiedade Idem, mais: Taquicardia Taquipneia Oligúria Alterações posturais (mas a PA pode ser normal em decúbito) Idem, mais: Instabilidade hemodinâmica (mesmo em decúbito) Taquicardia acentuada Hipotensão Deterioração do estado mental (coma) A resposta fisiológica compensadora à hipovolémia visa assegurar sobretudo a perfusão dos órgãos nobres, nomeadamente o SNC e o coração. Sendo assim, e como referido anteriormente, ocorre activação do sistema adrenérgico, hiperventilação, activação da supra- renal (com libertação de cortisol), redução do débito urinário (pelo SRAA) e recrutamento dos líquidos intersticiais e intracelulares. No que diz respeito aos parâmetros do hemograma é importante ter presente que após uma hemorragia aguda, os valores da hemoglobina e do hematócrito podem não estar alterados até que ocorra retenção hídrica ou sejam perfundidos fluidos. Por conseguinte, perante um valor do hematócrito dentro dos limites da normalidade não se pode excluir uma perda hemática significativa. Em contrapartida, se for uma situação de perda plasmática, pode mesmo haver hemoconcentração. O diagnóstico deste tipo de choque pode ser rápido e fácil se o doente apresentar sinais clínicos de instabilidade hemodinâmica e se a fonte da perda de volume for evidente. No entanto, há situações em que esta fonte de perda é oculta, pelo que o diagnóstico se prefigura 14 mais difícil. O diagnóstico diferencial com o choque cardiogénico é outro aspecto importante uma vez que ambos cursam com hiperactividade simpática, aumento das RVP e diminuição do DC, mas têm abordagens terapêuticas díspares. 2. CHOQUE CARDIOGÉNICO O choque cardiogénico é um estado de baixo débito secundário a patologia cardíaca , condicionando uma inadequada perfusão tecidular. Pode ser secundário a patologias que provocam falência da bomba- como o enfarte agudo do miocárdio (EAM), a miocardite aguda ou descompensação da insuficiência cardíaca (IC)- ou a causas mecânicas que comprometem a função ventricular- doença valvular aguda, ruptura de cordas tendinosas ou do septo inter-ventricular. A causa mais frequente é o EAM e a mortalidade, apesar de adequado tratamento, é elevada, rondando os 70%. Para classificar o choque como sendo cardiogénico devem estar reunidos critérios clínicos e hemodinâmicos que caracterizam esta etiologia. Para o diagnóstico clínico, para além da hipotensão, devem estar presentes sinais de hipoperfusão tecidular como a oligúria, as extremidades frias, cianose e alterações da consciência. Estes sinais geralmente persistem apesar da tentativa de correcção de outros possíveis factores precipitantes reversíveis (como a hipovolémia, arritmias, hipóxia e acidose). Os critérios hemodinâmicos do choque cardiogénico são a hipotensão sustentada (TA sistólica < 90 mmHg durante pelo menos 30 minutos) e o índice cardíaco diminuído (< 1,8 l/min/m2) na presença de pressão de encravamento pulmonar (PCWP) elevada (> 18 mmHg). O choque cardiogénico secundário a isquemia, por ser o mais frequente, será aquele cuja fisiopatologia será abordada em seguida. Fisiopatologia do choque cardiogénico pós-EAM No EAM a redução da perfusão coronária e o aumento do consumo miocárdico de O2 estão envolvidos num ciclo vicioso que induz progressivamente mais isquemia e morte celular, amplificando a área de lesão inicial. Estudos de autópsia mostraram que, para que ocorra choque cardiogénico, geralmente são necessárias perdas por necrose de mais de 40% do miocárdio ventricular . No choque cardiogénico existe disfunção ventricular sistólica e diastólica. 15 A função diastólica está comprometida pela redução da complacência ventricular induzida pela isquemia, o que se traduz por aumento das pressões de enchimento do VE com a possibilidade de edema pulmonar e hipóxia (mais uma vez agravando a isquemia em curso). A disfunção sistólica com diminuição do débito cardíaco é responsável por uma situação de hipoperfusão tecidular com hipóxia celular, a qual condiciona acidose intracelular por favorecer a glicólise anaeróbica. A menor produção de energia por estas vias metabólicas alternativas vai levar à falência dos sistemas de transporte contra-gradiente da membrana celular (ex. a bomba de Na+) com diminuição do gradiente transmembranar. Assim, vai haver acumulação intracelular de iões Na+ e Ca2+, com o consequente edema celular. Como atrás referido, quando a isquemia é prolongada estas alterações tornam-se irreversíveis e há necrose celular e, por acção dos mediadores inflamatórios e stress oxidativo uma onda de apoptose (morte celular programada) é criada na área peri-enfarte, aumentando a extensão da perda de miócitos. Estas alterações celulares vão ter uma tradução hemodinâmica com desvio para a direita das curvas pressão-volume devido à disfunção sistólica. Há uma redução do DC com aumento do volume telediastólico do VE já que vai ser ejectado um menor volume em cada ciclo. Para compensar a redução do DC, a curva pressão-volume diastólica também se desloca para a direita com diminuição da complacência diastólica e aumento das pressões telediastólicas. A tentativa de manter o DC por este mecanismo tem como consequência um aumento das pressões de enchimento ventricular com aumento do consumo de O2 e edema pulmonar. Existe portanto um ciclo vicioso em que a isquemia miocárdica é potenciada quer pela redução da perfusão miocárdica secundária à hipotensão e taquicardia, quer pelas maiores pressões de enchimento com aumento do stress da parede e elevação do consumo de O2 . A redução do DC desencadeia também respostas compensatórias com repercussões a nível sistémico. A activação do sistema simpático, para além de aumentar a frequência cardíaca e a contractilidade miocárdica com aumento do consumo de O2, tem efeitos renais promovendo a retenção de água e sódio com aumento da pré-carga e das pressões telediastólicas do VE, favorecendo a congestão venosa pulmonar. Também as alterações metabólicas secundárias à hipoperfusão, particularmente a acidose, induzem maior depressão miocárdica e perpetuam a situação de choque. 16 3. CHOQUE OBSTRUTIVO Este tipo de choque engloba uma série de situações que provocam compressão ou obstrução do coração ou dos grandes vasos, com redução do DC (sem, no entanto, estar presente nenhuma doença primariacardíaca) - choque cardiogénico compressivo. Qualquer causa de aumento da pressão intratorácica (ex: pneumotórax hipertensivo, ventilação mecânica com pressões positivas) ou intrapericárdica (tamponamento cardíaco) pode, em condições extremas, levar à compressão das câmaras cardíacas e a um aumento das pressões telediastólicas, com redução significativa do DC e originando um estado de choque. Também a embolia pulmonar, por provocar uma obstrução aguda à câmara de saída do VD e diminuição do enchimento do VE, leva a insuficiência cardíaca direita aguda e diminuição do DC, com possibilidade de choque. 4. CHOQUE DISTRIBUTIVO O choque distributivo caracteriza-se por um inadequado fornecimento e extracção de O2, subsequente a vasodilatação periférica, apesar do DC se encontrar normal ou aumentado. Este aspecto tem particular interesse na medida em que a presença de uma saturação venosa mista de O2 normal pode não indicar uma perfusão periférica adequada e, apesar do DC estar normal ou aumentado, ele pode ser insuficiente para satisfazer as necessidades metabólicas totais. Semiologicamente, os doentes apresentam-se hipotensos, taquicárdicos mas com as extremidades quentes devido à vasodilatação. Se o quadro se enxertar num contexto de choque séptico, pode haver igualmente febre, arrepios e o foco de infecção pode ser clinicamente evidente. São várias as entidades englobadas sob a designação de choque distributivo, nomeadamente: choque séptico, choque anafilático, choque neurogénico e insuficiência supra- renal (Síndrome de Addison). 4.1 Choque Séptico O choque séptico resulta da resposta sistémica a uma infecção grave. É uma situação mais frequente nos idosos, imunodeprimidos ou nos doentes sujeitos a procedimentos invasivos. As infecções gastrointestinais, urinárias e pulmonares são as mais comuns e a resposta global do organismo bem como o quadro sintomático são independentes do tipo de agente envolvido. As 17 toxinas dos microrganismos conduzem à libertação de citocinas pelos macrófagos teciduais, incluindo a IL-1 e o FNTα e a síntese de NO pela NO-síntase induzível. Há, igualmente, aumento da expressão do factor tecidual e deposição de fibrina, podendo sobrevir coagulação intravascular disseminada. Pode haver também libertação endógena de um mediador designado por factor depressor do miocárdio (FDM), que deprime directamente a actividade cardíaca. Em termos hemodinâmicos, ocorrem dois padrões típicos de alterações no choque séptico: a resposta hiperdinâmica ou precoce e a resposta hipodinâmica ou tardia. Resposta hiperdinâmica Caracteriza-se por taquicardia, DC normal ou elevado, vasodilatação periférica, diminuição das resistências vasculares pulmonares, diminuição do fluxo visceral (por vasoconstrição esplâncnica) e aumento da capacitância venosa (o que diminui o retorno venoso). Os mediadores inflamatórios vão condicionar, também, aumento da permeabilidade vascular (com perda contínua do volume intravascular) e compromisso da contractilidade miocárdica. Resposta hipodinâmica À medida que a sépsis evolui, instala-se a vasoconstrição e diminuição do DC, apesar da taquicardia (por disfunção VE). O doente torna-se taquipneico, febril, prostrado, com hipersudorese e os membros frios, cianóticos. A oligúria e insuficiência renal, bem como a hipotermia são outros eventos do quadro numa fase mais avançada. 4.2 Choque Anafilático O choque anafilático ocorre quando um indivíduo entra em contacto com um antigénio para o qual está sensibilizado (microrganismo, alimento, fármaco). A reacção alérgica cursa com libertação maciça de histamina, bradicinina, PGD2 e outros mediadores que condicionam uma intensa resposta vasodilatadora e perda da permeabilidade vascular. 4.3 Choque Neurogénico O choque neurogénico instala-se na sequência de depressão central medicamentosa (ex. em anestesiologia) ou por traumatismo medular/crâneo-encefálico. Um dos mecanismos fisiopatológicos que parece estar implicado nesta situação é a lesão das fibras vasomotoras simpáticas. Este facto vai repercutir-se hemodinamicamente na dilatação das arteríolas (com redução da pós-carga) e das vénulas (com diminuição do retorno venoso e, por conseguinte, da pré-carga) e, em ultima análise, compromisso do DC. 18 4.4 Choque por Insuficiência Supra-Renal O choque que se instala na insuficiência supra-renal relaciona-se com a incapacidade do doente em produzir hormonas de stress, nomeadamente o cortisol. Caracteriza-se por redução da resistência vascular sistémica, do volume circulante e do DC. O diagnóstico definitivo pode ser estabelecido com o teste de estimulação com o ACTH. Tabela 3: Parâmetros hemodinâmicos dos diferentes tipos de choque. Choque PVC PE DC RVP PvO2 Hipovolémico Hemorrágico ↓ ↓ ↓ ↑ ↓ Cardiogénico EVE ↑ ↑ ↓ ↑ ↓ Obstrutivo TEP ↑ ↔ ↓(VD) ↑ ↓ Distributivo Séptico (hiper/hipo) Anafilático ↓/↓ ↓ ↓/↓ ↓ ↑/↓ ↔↑ ↓/↑ ↓ ↑/↑ ↑ Nota: PVC - pressão venosa central, PE - pressão de encravamento, DC - débito cardíaco, RVP - Resistência vascular periférica, PvO2 - pressão venosa de O2, VD – ventrículo direito, EVE - enfarte ventricular esquerdo, TEP - tromboembolismo pulmonar, hiper - fase hiperdinâmica, hipo – fase hipodinâmica. BIBLIOGRAFIA 1. Cardiology – Crawford, DiMarco, 2000 2. Hurst, The Heart – Fuster, Alexander, 2001 3. Harrison´s Principles of Internal Medicine - Fauci, Braunwald, 2001. 19 ALGORITMO DIAGNÓSTICO DO CHOQUE (in: Cardiology)
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