Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Antigos e Modernos antigos e modernos.indd 1 1/1/1980 14:51:07 antigos e modernos.indd 2 1/1/1980 14:51:07 Antigos e Modernos diálogos sobre a (escrita da) história Francisco Murari Pires e Marlene Suano (orgs.) antigos e modernos.indd 3 1/1/1980 14:51:08 Edição: Joana Monteleone Assistente editorial: Marília Chaves Projeto gráfico, diagramação e capa: Marília Chaves Revisão: ALAMEDA CASA EDITORIAL Rua Iperoig, 351. Perdizes. CEP 05016-000 - São Paulo - SP www.alamedaeditorial.com.br antigos e modernos.indd 4 1/1/1980 14:51:08 Sumário Prólogo A redescoberta dos historiadores antigos no Humanismo e o nascimento da historiografia moderna Gabriella Albanese Conquista e influências culturais. Escrever a história da época helenística no século XIX (Alemanha, Inglaterra, França) Pascal Payen O Direito e os costumes: um exame comparativo (Montaigne, Hotman e Pasquier) Luiz Costa Lima A construção do passado nas crônicas assiro-babilônicas Marcelo Rede Arqueologia como Arqueografia Marlene Suano A nova “economia antiga”: notas sobre a gênese de um modelo Miguel Soares Palmeira Antigos e Modernos: Maquiavel e a leitura polibiana da história Marie-Rose Guelfucci Museus de História representações do passado, inquietações no presente Cecília Helena de Salles Oliveira 9 19 71 99 133 147 153 169 189 antigos e modernos.indd 5 1/1/1980 14:51:08 Liberalismo, História e Escravidão: presença dos antigos na argumentação de Joaquim Nabuco Izabel Andrade Marson Antigos, modernos e “selvagens” na obra de Francisco Adolfo de Varnhagen. Comparação e paralelo na escrita da historia brasileira oitocentista. Temístocles Cézar Borges e a Tradição Clássica Hugo Francisco Bauzá Maquiavel, a Corte dos Antigos e (o diálogo com) Tucídides Francisco Murari Pires Piadas impressas e formatos da narrativa humorística brasileira. Elias Thomé Saliba Escravidão moderna, ideologia antiga: as idéias jesuíticas sobre escravidão na América portuguesa do século XVIII Fábio Duarte Joly e Rafael de Bivar Marquese A Heterogenneidade das Fontes Antigas no Debate sobre a Escravidão moderna Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron Gramsci e a Escrita da História: Algumas Notas Lincoln Secco Mito, Razão e Enigma André Malta Vida e Sonho em Caledrón de La Barca: o espelho do político e do onírico na tragicomédia de Segismundo. Luís Filipe Silvério Lima 205 229 247 261 291 309 347 363 375 401 antigos e modernos.indd 6 1/1/1980 14:51:08 Experiência e método José Otávio Guimarães Como Um Barco à Deriva. Entrevista com Jean-Pierre Vernant José Otávio Guimarães Vistas Urbanas, Doces Lembranças as funções narrativas e ornamentais nas paisagens e retratos fotográficos. Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho A sociologia comparada de Marcel Mauss: da “civilização” ao “dom” Marcos Lanna Antigos e Modernos na escrita da história portuguesa e brasílica Íris Kantor A recuperação da antiguidade clássica e a instalação da república nos Estados Unidos da América (fins do XVIII e início do XIX). Mary A. Junqueira. “Wie es eigentlich gewesen ist”, “Wie es eigentlich geschehen ist”: a percepção rankeana da história frente às vicissitudes da subjetividade em Freud. Ana Lúcia Mandacarú Lobo 415 421 441 459 483 499 511 antigos e modernos.indd 7 1/1/1980 14:51:08 antigos e modernos.indd 8 1/1/1980 14:51:08 Prólogo Antigos e Modernos, o Fardo e o Fio Ao firmar no Proêmio de sua obra qual fosse a valia da história que ele narrava, Tucídides adverte contra os apelos que a desviassem pelas veredas sedutoras dos relatos mitificantes (tò mythõdes)1. Por tais modos narrativos, consagrados por poetas e logógrafos, a narração de histórias sujeitava (e perdia) sua finalidade enquanto memorização de feitos humanos ao sacrificar a expressão da verdade dos acontecimentos em prol da fruição do que era do agrado do público presente a quem fossem contadas. Ordenação da narrativa das ações dos homens pelos efeitos do mito que frustra a valia de suas histórias fazendo desvanecer, pelo deleite fugaz do presente, o alcance perene a que a memória humana almeja por (i) mortalidade. Tucídides, pelo contrário, duz ordenar sua narração pelo primado cognitivo da verdade dos fatos, apreendida graças à acribia de excelência ajuizante por historiador que se fundamenta pela autópsia fenomênica porque se presenciam os acontecimentos. A memorização das ações humanas ganha clarividência pela narração de uma história, a da Guerra dos Peloponésios e Atenienses, então cristalizada como saber. Dado que os homens, pelos modos próprios de sua natureza, assemelham suas ações no curso do tempo históri- co, praticando-as tais quais ou análogas às do passado, a história, constituída como ciência clarividente, dispõe ktema es aei (aquisição para sempre). O olhar da história tucidideana 1 Tucídides I.22.4. Francisco Murari Pires (DH/USP) antigos e modernos.indd 9 1/1/1980 14:51:08 10 Francisco Murari Pires e Marlene Suano (orgs.) volta a plenificação de sua valia para o futuro, quer imediato quer longínquo, porque os homens desta temporalidade a reconheçam no presente de suas ações. A história, por esse entendimento tucidideano, figura essencialmente a instância pri- vilegiada de saber humano, isto é, dos homens e para os homens, presentes e vindouros, de todos os tempos. Mas que valia útil de ensinamentos seria essa vislumbrada para a história da humanidade por Tucídides? O saber clarividente que sua história proclama ter alcançado pela observação da guerra do Peloponeso poderia projetar sua validade sobre toda a história humana, pondo à disposição dos homens futuros as diretrizes que lhes permitissem corrigir, na atualidade presente de sua própria história, os erros do passado por ele lá acusados naquela guerra dele contemporânea? Ou, antes, Tucídides estaria assim oracularmente antecipando a reiteração persistente dos mesmos erros ao longo da história, feita por homens de natureza incorrigível, como, aliás, o sugere Chate- aubriand numa passagem do Gênio do Cristianismo: “Tucídides retratou com severidade os males causados pelas dissensões políticas, deixando à posteridade exemplos jamais aproveitados”2? Pensamento algo similar é firmado também por Marx, que revelava, em carta a seu discípulo Ferdinand Lassalle, a razão porque então, maio de 1861, estava lendo Tucídides: “Estes antigos, pelo menos, permanecem sempre novos”3. Então, a convicção (e o orgulho) do saber histórico tucidideano refletiria um otimismo esperançoso quanto à melhora, senão aperfeiçoamento, da natureza humana ou, pelo contrário, acusaria um pessimismo amargurado, dela desiludido e descrente? Pois, essa virtuosidade sapiencial de vocação política por ele firmada para a escrita da história, bem afiançada por sua exemplaridade de histórias consumadas, teria a mesma ambígüa (in)eficácia em direcio- nar os atos humanos que uma outra, aquela aventada pelo mito paradigmático porque Fênix aconselhou Aquiles? Diz Políbio que é dever do historiador, ao empreender a composição de sua obra, tecer o louvor da História, firmar e reiterar as virtudes mais os benefícios que consagram e, pois, recomendam a todos os homens de todas as épocas a valia do cohecimento histó- rico. Ele assim o proclamava em Roma antiga, por meados do II século antes da era cristã, justo quando a cidade consolidava seu (suposto ou alegado) destino histórico de senhora do mundo, recém derrotada e aniquilada Cartago, que com ela rivalizava nas pretensões ambiciosas de um tal projeto. Políbio entãocomemora (mas também adverte), por sua narrativa histórica, a glória do poder imperial, por todas as vicissitudes de benesses (como malefícios) que, por ele, os vencedores usufruem (mas também sofrem). 2 Livro III, capítulo 3: “Thucydide retraça avec severité les maux causés par les dissensions politiques, laissant à la postérité des examples dont elle ne profite jamais” (Chateubriand, 1978: 836). 3 Citado por Walsh (2003). antigos e modernos.indd 10 1/1/1980 14:51:08 Antigos e modernos 11 Retirado em Sant’Andrea di Percussina, Maquiavel volta o olhar da história para o passado. Pelo círcuito dos livros de seu escritório frequenta então a Corte dos Antigos, com eles dialogando sobre as questões do Estado. Refletindo sobre esse diálogo com os Antigos em privilegiando a eleição da Primeira Década de Tito Lívio como interlocutor especial, Maquiavel pondera o alcance do olhar que a história presente volta para o passado, a fim de que se mobilize recíproca interpelação de conhecimentos modernos e antigos sobre os modos porque nela agem os homens. Nesse sentido, introduz em seus Discorsi dois proêmios, abrindo o primeiro e o segundo livro. Que os homens exaltem e prefiram o passado em detrimento do presente compõe aceite de senso comum, como tal apreciado quer referido ao tempo histórico, geral e objetivo, quer ao tempo biográfico, pessoal e subjetivo: “Os homens elogiam o passado e se queixam do presente, quase sempre sem razão. Partidários cegos de tudo o que se fazia outrora, louvam épocas que só conhecem pelos relatos dos historiadores; e aplaudem o tempo da própria juventude, conforme a lembrança que lhes fica na velhice”4. Assim o fazem, adverte Maquiavel, equivocadamente, iludindo-se pelos desatinos que afetam o senso ajuizante dos homens. No âmbito da própria experiência e conseqüente consciên- cia pessoal, a razão se perde porque subjugada pelas distintas paixões que os tomam no decorrer de suas vidas5. Já no âmbito do conhecimento alheio guardado por correspon- dentes relatos históricos, a razão humana se perde porque obstada pela ignorância. Os homens, que bem valorizam as histórias do passado, o fazem, todavia, inscientes de suas imperfeições, desatentos aos modos porque se opera a memorização dos acontecimentos da antigüidade, já que as histórias que os contam supõem comprometimentos de desíg- nios parciais, assim viciados pela axiologia de glorificação engrandecedora do passado e tanto mais discriminantes pelas definições de seus consoantes destinos de vencedores6. 4 Maquiavel (1979: 195). 5 “os anciãos, pelo menos, deveriam ter opinião equilibrada sobre o que puderam observar pessoalmente. Isto seria assim se todos os homens conservassem as mesmas paixões durante a sua vida. Mas, como estas mudam sem cessar, ainda que não mudem os tempos, a diferença das afeições e dos gostos dá-lhes pontos de vista diversos, na velhice e na juventude. Se a primeira aumenta a sabedoria e a experiência, rouba aos homens o seu vigor: assim, que o que se ama na mocidade parece mau e cansativo na idade avançada; mas em vez de acusarmos pela mudança o nosso julgamento alterado, preferimos acusar os tempos. Por outro lado, nada pode saciar os apetites humanos, pois a natureza nos deu a faculdade de tudo desejar, mas a sorte não nos deixa senão provar poucas coisas, disto resultando um descontentamento permanente, e um desgosto pelo que possuímos, o que nos faz culpar o presente, louvar o passado e desejar o futuro, ainda que sem razão” (Maquiavel, 1979: 197). 6 “Quando se equivocam, como acontece quase sempre, isso se deve à várias razões. A primeira é a de que não se pode conhecer toda a verdade sobre os acontecimentos da antigüidade; muitas vezes se oculta o que poderia trazer desonra aos tempos passados, enquanto se celebra, e amplia, tudo o que acrescenta à sua glória. Ocorre também que os escritores, em sua maioria, seguem a sorte dos vencedores, aumentando o que fizeram de glorioso, para antigos e modernos.indd 11 1/1/1980 14:51:08 12 Francisco Murari Pires e Marlene Suano (orgs.) O passado antigo que os homens memorizam por suas histórias fulgura imagens de perfeição, ícones de veneração que entesouram, exteriormente a nós mesmos, nossos valores e ideais petrificados, estáticos, como essas estátuas, ou apenas seus fragmentos, que adornam as casas modernas a figurarem modelos de beleza. Os modernos tornam os antigos presentes em suas vidas como (se fossem) deuses, por obras e feitos de grandeza e perfeição tanto mais veneráveis quanto excepcionais, de (ir)realização encerrada no passado, inalcançáveis, impossíveis para os homens do presente. Os antigos figuram na história valendo por heróis, essa ambígüa categoria porque se (con)fundem homens e deuses. Assim, adverte Maquiavel, os homens extraviam “o sentido real da história, per- dem seu espírito genuíno, substância de que se nutre o nosso”. Pois, a história, quer de antigos quer de modernos, os homens a fazem. E os homens de outrora são ainda os de hoje, como também o são “o sol e o céu e os demais elementos, mais sua ordem, rumos e poder”. A mímesis do antigo pelo moderno conforma, portanto, o télos da história, seu princípio e fim, sua essência, o bem valioso disponibilizado como o(s) conhecimento(s) virtuoso(s) que ela memoriza. Eis, diz Maquiavel, sua “descoberta”, a senda não trilhada porque se vislumbre o novo continente até então inexplorado, o método inovador de reflexão sobre a história, qual seja, uma dialética em que passado antigo e presente moderno mutuamente interpelem suas razões: “Resolvido a salvar os homens deste erro, achei necessário redigir, a propósito de cada um dos livros de Tito Lívio que resistiram à injúria do tempo, uma comparação entre fatos antigos e contemporâneos, de modo a facilitar-lhes a compreensão. Deste modo, meus leitores poderão tirar daqueles livros toda a utilidade que se deve buscar no estudo histórico”7. E história, consequentemente, de axiologia e teleologia essencialmente política, atinente às questões do Estado: como “ordenar uma república, manter um Esta- do, governar um reino, comandar exércitos e administrar a guerra, ou distribuir justiça aos cidadãos”. História por descortino político e Política de profundidade histórica, o saber inovador é assim disponibilizado aos que agenciam os destinos humanos no tempo histórico (“príncipes, repúblicas, capitães, cidadãos”), oferecendo-lhes os “exemplos da Antigüídade” em que devem “apoiar” seus atos, bem discernindo “virtudes contra vícios, a fugir destes e imitar aquelas”. Tal o dever do homem honesto, diz Maquiavel: “apontar o caminho do bem”. melhor ilustrar suas vitórias, e acrescentando à força dos inimigos que venceram; de modo que os descendentes de uns e de outros não podem deixar de admirá-los e de exaltar o seu tempo, fazendo-os objeto de homenagem e admiração.Há mais ainda. Por medo ou por inveja, os homens se entregam ao ódio, cujas duas razões mais fortes não vigem em relação ao passado: pois não há motivo para temer o que já ocorreu, e não tem sentido invejar os acontecimentos pretéritos” (Maquiavel, 1979: 195). 7 Maquiavel (1979: 18). antigos e modernos.indd 12 1/1/1980 14:51:09 Antigos e modernos 13 Algumas décadas depois, meados do século XVI, Jean Bodin inaugura as reflexões do Methodus ad facilem historiarum cognitionem tecendo o elogio da história então concebi- da como magistra vitae, desdobrando a antiga fórmula originariamente ciceroniana. Por uma figuração metafórica a história é estimada como esplêndido jardim, lugar de natu- reza cultivada pródiga de virtudes (re)vivificantes.8 Assim é afirmada a excelência valiosa, benéfica, do saber histórico: figura mestrade vida, fonte de virtudes mais ensinamentos a guiar as condutas e os atos dos homens por uma vida bela, regrada consoante o cânone disposto por suas leis sagradas. História vale por conjunção de moral com arte, porque a virtude seja bela e a beleza virtuosa. História compõe então campo de saber por afinidade e contiguidade com filosofia, ela também definida por similar fórmula tradicional: vitae dux, diretriz de vida. Mas a filosofia assim o é ao ensejo do que a história provê: ao regis- trar os ditos, os fatos e os ensinamentos do passado a história dispõe a memória exemplar dos atos humanos descortinados em seu horizonte de máxima amplitude moral, quer pelos extremos virtuosos de bens a serem buscados quer pelos viciosos de males a serem evitados.9 História constrói, pois, a ponte porque os homens transitam a temporalidade de suas ações, tirando da memória dos fatos passados (verdadeiro tesouro de ensinamentos) a ciência e razão explicativa do presente10, a assim vislumbrar a via por que se adentra o futuro ciente de suas encruzilhadas decisivas, em que se bifurcam o caminho do bem, in- flamando os homens para por ele trilharem em louvando suas virtuosidades exemplares, contra o do mal, advertindo-os a dele se afastarem em amaldiçoando suas viciosidades degradantes.11 A história configura, então, para o homem moderno o que o mito do pa- trocínio da sabedoria de Minerva imaginara para o antigo, assim consagrado pelo destino 8 “In this Method, oh most excellent President, I planned to deal with the way in which one should cull Flowers from History to gather thereof the sweetest fruits”, (Bodin, 1969: 1). 9 Methodus, Proêmio: “Certainly philosophy, which itself is called the guide of life, would remain silent among dead things, even though the extreme limits of good and evil had been set, unless all sayings, deeds, and plans are considered in relation to the account of days long past” (Bodin, 1969: 9). 10 Methodus, Proêmio: “Whatever our elders observe and acquire by long experience is committed to the treasure house of history; then men of a later age join to observations of the past reflections for the future and compare the causes of obscure things, studying the efficient causes and the ends of each as if they were placed beneath their eyes” (Bodin, 1969: 10-11). 11 Methodus, Proêmio: “From these not only are present-day affairs readily interpreted but also future events are inferred, and we may acquire reliable maxims for what we would seek and avoid. (…) in order that those who had devoted themselves entirely to crime might be reviled by well-earned curses, but those who were known for any virtue might be extolled according to their deserts. This, then, is the greatest benefit of historical books, that some men, at least, can be incited to virtue and others can be frightened away from vice” (Bodin, 1969: 9). antigos e modernos.indd 13 1/1/1980 14:51:09 14 Francisco Murari Pires e Marlene Suano (orgs.) heróico de Hércules, porque ele optasse entre a virtude e o vício. Tanto mais que a fama imortal a que os homens almejam como justa recompensa que os glorifique impele- os a tomarem a via da excelência virtuosa.12 Por esta apreciação, a axiologia histórica que Bodin sustenta para a ética do homem moderno, de consonante consciência cristã, diverge daquela que lhe é antes antagônica por seus vezos de paganismo antiquizante como figurada na história anedótica do Sonho de Maquiavel.13 Mesmo aos malfeitores, assevera Bodin, oprimem as aflições que torturam suas almas pela antevisão da reputação infamante que deixarem na história a denegrir suas almas.14 No 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx, denunciando o travestimento da obra his- tórica da Revolução Burguesa então tramado nos anos de 1848-51, que fazia da segunda edição do 18 Brumário, pelo sobrinho, a caricatura do feito original, do tio, sentenciara: Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob as circuns- tâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e as coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes de empréstimo os nomes, 12 Methodus, Proêmio: “Although the good are praiseworthy in themselves, even if they are acclaimed by no one, nevertheless it is proper that both living and dead, in addition to other rwards ofered to excellence, should attain due meed of praise, which many people think is the only real reward” (Bodin, 1969: 9). 13 “Il vit un tas de pauvres gens, comme coquins, deschirez, affamez, contrefaits, fort mal en ordre, et en assez petit nombre; on luy dit que c’estoient ceux de Paradis, desquels il estoit escrit, Beati pauperes, quoniam ipsorum est regnun caelorum. Ceux-ci estans retirez, on fit paroistre un nobre inomblable de personnages pleins de gravité et de majesté: on ley voyaoit comme un Senat, où on traitoit d’affaires d’Estat, et fort serieuses; il entrevit Platon, Seneque, Plutarque, Tacite et d’autres de cette qualité. Il demanda qui estoient ces Messieurs-là si venerables; on lui dit que c’estoient les damnez, et que c’estoient des ames reprouvées du ciel, Sapientia hujus saeculi inimica est Dei. Cela estant passé, on luy demanda desquels il vouloit estre. Il respondit qu’il aimoit beacoup mieux estre en enfer avec ces grands esprits, pour deviser avec eux des affaires d’estat, que d’estre avec cette vermine de ces belistres qu’on luy avoit fait voir. Et à tant il mourut, et alla voir comme vont des affaires d’Estat de l’autre monde” (Pierre Bayle, Dictionnaire historique et critique III: Machiavel, nota L). 14 Methodus, Proêmio: “The wicked may observe with annoyance that the good who have been oppressed by them are exalted even to the heavens, but that they temselves and the name of their race will suffer eternal disgrace. Even if they dissemble, yet they cannot bear this without the bitterest sense of grief. (…) If the minds of the wicked were revealed, as we read in the pages of Plato, we should see there welts and lacerations from the scourge, bloody marks on the beaten body, or even impressions of a burning iron; it is unbelievable to what extent the fear of infamy rends and consumes those among them who are more eager for glory” (Bodin, 1969: 9-10). antigos e modernos.indd 14 1/1/1980 14:51:09 Antigos e modernos 15 os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar a nova cena da história do mundo nesse disfarce tradicional e nessa linguagem emprestada.15 Assim, concluiu qual fosse o melhor preceito a por o princípio da última revolução mesma que ele propugnava: A revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda veneração supersticiosa do passado. As revoluções anteriores tiveram que lançar mão das recordações da história antiga para se iludirem quanto ao próprio conteúdo. A fim de alcançar seu próprio conteúdo, a revolução do século XIX deve deixar que os mortos enterrem seus mortos.16 Em 1958, Hannah Arendt acrescentou novo capítulo final a The Origins of Totalita- rianism, primeiro publicado em 195117. A reflexão com que ela o termina, preocupada com a realidade política então vivida, diz da virtualidade dual que a filósofa vislumbrava para os destinos da existência humana. Por um lado, haveria sempre presente, a conviver infelizmente conosco, o risco do totalitarismo, essa“forma inteiramente nova de governo” que “a crise do nosso tempo dera origem”. O totalitarismo se nos impunha como fato consumado, nele encerrado um fim da história. Mas, por outro lado, porque “todo fim na história constitui necessariamente um novo começo”, abria-se também um horizonte feliz para a existência humana, justo porque no “novo começo” se dispõe a “promessa, a única mensagem que o fim pode produzir. O começo, antes de tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do homem: politicamente, equivale à liberdade do homem. Initium ut esset homo creatus est – ‘o homem foi criado para que houvesse um começo’, disse Agos- tinho. Cada novo nascimento garante esse começo; ele é, na verdade, cada um de nós”. A reflexão que assim encerra as análises suscitadas em The Origins of Totalitarianism por vislumbre do novo começo histórico, é conexa com a que abre, bem no Prólogo, The Human Condition, obra publicada justo nesse mesmo ano, 1958. Hannah Arendt percebe seu tempo, década inicial da segunda metade do século XX, como horizonte de inova- ção, virtualidade de (novo) princípio. O olhar de Hannah Arendt, tanto em The Human 15 Marx (1974: 17-18). 16 Marx (1974: 20). 17 Ela própria assim o esclarece no Prefácio do terceiro volume (Totalitarismo, o paroxismo do poder) quando da edição de 1973: “O último capítulo desta edição, “Ideologia e Terror”, substituiu as “Conclusões” da 1a edição que foram incorporadas a outros capítulos. A segunda edição trazia ainda um “Epílogo” onde se discutia a introdução do sistema russo-soviético nos países satélites e a Revolução Húngara (de 1956). Superado em muitos detalhes, este “Epílogo” foi eliminado” (Arendt, 1979a: 10). antigos e modernos.indd 15 1/1/1980 14:51:09 16 Francisco Murari Pires e Marlene Suano (orgs.) Condition quanto em Between Past and Future, editado em 1961, se volta para o passado, direciona a mira histórica para a Antiguidade clássica, polis e república, e suas memórias de pensamento político. Os fantasmas aterrorizantes do Totalitarismo pesam no espírito de Arendt catalisando sua reflexão. Por esses traumas ela direciona seu diálogo com a tradição revolucionária. O que Marx, ou os demais críticos da tradição no século XIX, diz ela, não foram potentes em viabilizar historicamente, a História mesma que se lhes seguiu, no XX, consumou. Eles, embora “retirassem do passado sua autoridade ousando pensar o futuro sem qualquer de suas orientações”, situaram ainda a obra no campo das palavras, dos conceitos e, como Hegel, ainda se guiaram pelo “fio da tradição”, pensando a “totalidade da história universal como um desenvolvimento contínuo”18. Foi o século XX que rompeu o fio, quebrou a tradição, justo porque pôs em ação, realizou como fato, um fenômeno tanto impensável nos quadros conceituais da tradição de pensamento político quanto inajuizável pelos quadros da tradição de pensamento ético e jurídico: “A ruptura brotou de um caos de perplexidades de massa no palco político e de opi- niões de massa na esfera espiritual que os movimentos totalitários, através do terror e da ideologia, cristalizaram em uma nova forma de governo e dominação. A dominação totalitária como um fato estabelecido, que, em seu ineditismo, não pode ser compreen- dida mediante as categorias usuais do pensamento político, e cujos “crimes” não podem ser julgados por padrões morais tradicionais ou punidos dentro do quadro de referência legal de nossa civilização, quebrou a continuidade da História Ocidental. A ruptura em nossa tradição é agora um fato acabado. Nem o silêncio da tradição, nem a reação asses- tada contra ela no século XIX por pensadores podem jamais explicar o que efetivamente ocorreu. O caráter não-deliberado da quebra dá a ela uma irrevogabilidade que somente os acontecimentos, nunca os pensamentos, podem ter”.19 Pela consciência do olhar porque Hannah Arendt vê, e (res)sente, seu próprio tempo, assim perturbado por aquela experiência de paroxismo do poder como ela qualifica o 18 “Kiekgaard, Marx e Nietzche situam-se no fim da tradição, exatamente antes de sobrevir a ruptura. O predeces- sor imediato deles foi Hegel. Foi ele que, pela primeira vez, viu a totalidade da história universal como um desen- volvimento contínuo, e essa tremenda façanha implicava situar-se ele mesmo no exterior de todos os sistemas e crenças do passado com reclamos de autoridade; implicava ser ele tolhido unicamente pelo fio de continuidade da própria história. O fio da continuidade histórica foi o primeiro substituto para a tradição (...) não para repudiar a tradição como tal, mas a autoridade de todas as tradições. Kierkgaard, Marx e Nietzche permaneceram hegelianos na medida em que viram a História da Filosofia passada como um todo dialeticamente desenvolvido; seu grande mérito está em que radicalizaram essa nova abordagem ao passado da única maneira em que ela podia ser ainda desenvolvida, isto é, questionando a tradicional hierarquia conceitual que dominara a Filosofia Ocidental desde Platão e que Hegel dera ainda por assegurada” (Arendt, 1979b: 55). 19 Arendt, 1979b:53-54. antigos e modernos.indd 16 1/1/1980 14:51:09 Antigos e modernos 17 Totalitarismo, o mal comporta um bem, algo assim como Homero dizia do jarro à soleira do palácio de Zeus no Olimpo, que contêm tanto os bens quanto os males que ele reserva aos infortúnios da condição humana20. Pois, argumenta a filósofa, aquele era um tempo também privilegiado, situando a abertura de novo princípio: Em alguns aspectos, estamos em melhor posição. Não mais precisamos nos preocupar com seu repúdio pelos “filisteus educados”, os quais, durante todo o século XIX, procuraram compensar a perda de autoridade autêntica com uma glorificação espúria da cultura. Hoje em dia, para a maioria das pessoas, essa cultura assemelha-se a um campo de ruínas que, longe de ser capaz de pretender qualquer autoridade, mal pode infundir-lhe interesse. Este fato pode ser deplorável, mas, implícita nele, está a grande oportunidade de olhar o passado com olhos desobstruídos de toda tradição, com uma visada direta que desapareceu do ler e do ouvir ocidentais desde que a civilização romana submeteu-se à autoridade do pensamento grego.21 Momento histórico de um olhar, diz ela, privilegiado por visada direta, capaz de transparecer o tempo histórico, porque livrada sua percepção do filtro de autoridade com que o fio da tradição a estreitara, desde seu preenchimento pelos antigos romanos, nos úl- timos séculos antes da era cristã, até seu esvaziamento, nos alvores totalitários do XX. Por essa fórmula retórica de uma percepção de visada direta sobre o passado antigo Hannah Arendt condensa o anelo de um refrigério que alivie, senão cure, o pathos de seu tempo. Quer numa obra como noutra, ela (re)inova o fio do passado originário22: Grécia e Roma, democracia e república (re)vitalizam-se, atualizam-se de novo nos diálogos dos modernos com os antigos. Entre o fardo e o fio, tradição mais autoridade, em que presente estamos nós neste nosso lugar-tempo de que falamos? Qual nosso passado? Dispomos mesmo, neste nosso pre- sente, de “olhos desobstruídos de toda tradição, de visada direta sobre o passado antigo”, como augurava Hannah Arendt a meio século atrás? Afinal, nos avatares de todos esses diálogos de antigos e modernos sobre a (escrita da) história, quem o sujeito, quem o objeto do(s) discurso(s) histó(riográfi)co(s)? Quais seus princípios? Que legados de autoridade herdamos? Para nós, o fio não é ainda o fardo? Mas também, sem o fardo, qual o fio? 20 Confira-se também o dito de Maquiavel nos Discorsi (I.6) que recria mimeticamente a formulação do topos antigo: “Se refletirmos com atenção sobre o queacontece neste mundo, ficaremos persuadidos de que não é possível remediar um inconveniente sem provocar algum outro ... porque jamais se encontrará nada que seja perfeitamente puro, isento de quaisquer vícios ou perigos”. 21 Arendt, 1979b: 56. 22 O neologismo é inspirado nas análises que André Duarte teceu sobre o pensamento político de Hannah Arendt (cf. Moraes e Bignotto, 2001, p. 65-89). antigos e modernos.indd 17 1/1/1980 14:51:09 18 Francisco Murari Pires e Marlene Suano (orgs.) Somos nós, neste nosso lugar e tempo, os sujeitos que avolumam esse fardo dando corpo à História? Somos nós que tecemos os fios que atam os nós e amarram o fardo, compondo a tradição e firmando sua autoridade? Que obra nos resta e que competência podemos assumir? Então, sacudir o fardo ou (re)inovar o fio? Ou antes desfiar o fardo, desatar os nós que o (e também nos) prendem? Que razões, ou pelo menos que motivações, ou ainda mesmo que apelos, teríamos, então, nós, já virada do segundo para o terceiro milênio, para também louvar(mos) a História? De que lugar social e por qual tempo histórico, discorriam os historiadores, antigo(s) mais moderno(s), acerca dessa modalidade de conhecimento e conscientização de mundo em que vivem e se movem os homens? Por qual lugar social e de qual tempo histórico ecoa(ría)mos nós, hoje, tais preceitos ressoados por vozes assim tão antigas quão modernas? Quão antigos ainda somos nós, os (pós?)modernos? Na travessia milenar da história humana, que afinidades nos aproximam, antigos e modernos, ou que descom- passos nos distanciam? Indicações Bibliográficas: ARENDT, Hannah – Totalitarismo, o paroxismo do poder, tradução de Roberto Rapo- so, Rio de Janeiro, Editora Documentário, 1979. ARENDT, Hannah – Entre o Passado e o Futuro, 2a. edição, tradução de Mauro W. Barbosa de Almeida, 1979. BODIN, Jean – Method for the Easy Comprehension of History, translated by Beatrice Reynolds, New York, W.W. Norton & Company, 1969. CHATEAUBRIAND, François-Auguste-René de - Essai sur les révolutions. Génie du Christianisme, Paris, Gallimard, 1978. DUARTE, André – Hannah Arendt entre Heidegger e Benjamin. A crítica da tradição e a recuperação da origem da política in Hannah Arendt. Diálogos, Reflexões, Memórias, organizado por Eduardo Jardim de Moraes e Newton Bignotto, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001, p. 63-89. MAQUIAVEL – Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio, tradução de Sérgio Fernando Guarischi Bath, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1979. MARX, Karl – O Dezoito Brumário e Cartas a Kugelmann, 2a. edição, tradução revista por Leandro Konder, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974. WALSH, Joseph J. – Newman’s Idea of a Classical University, Renascence 56.1 (2003): 21-41. antigos e modernos.indd 18 1/1/1980 14:51:09 Uma análise sistemática que permita definir a concepção de história, o âmbito e a co- dificação do gênero literário da historiografia na Época moderna pode ser realizada mais apuradamente a partir da reproposição humanista dos modelos historiográficos clássicos e na perspectiva das descobertas dos autores gregos e latinos nos séculos XIV e XV.1 De fato, a influência dos modelos clássicos sobre a historiografia do Humanismo é o fruto de uma progressiva aquisição das obras gregas e latinas redescobertas graças às perlustrações dos mosteiros e das bibliotecas italianas e européias empreendidas por eruditos tais como Francesco Petrarca, Leonardo Bruni, Poggio Bracciolini, Giovanni Aurispa, Niccolò Niccoli, Lorenzo Valla, Angelo Poliziano, que recolocaram em circula- ção e amiúde ainda traduziram para o latim textos que eram só indireta ou parcialmente 1 O estudo mais importante sobre as raízes clássicas da historiografia moderna é o de A. MOMIGLIANO Classical Foundation of Modern Historiography, with a Foreword by R. Di Donato, Berkeley 1990, em cujo erudito quadro de conjunto apenas breves notas foram dedicadas ao Humanismo e ao Renascimento; veja-se também do mesmo autor The Place of Ancient Historiography in Modern Historiography, in Settimo Contributo alla Storia degli Studi Classici e del Mondo Antico, Roma, 1984, pp. 13-36; um balanço específico e sintético da herança clássica na historiografia humanístico-renascentista é oferecido por A. Buck, L’eredità classica nelle letterature neolatine del Rinascimento, ed. italiana a cura di A. Sottili, Brescia, Paideia, 1980, no capítulo La storiografia, pp. 161-177. A redescoberta dos historiadores antigos no Humanismo e o nascimento da historiogra- fia moderna Valla, Facio e Pontano na corte napolitana dos reis de Aragão Gabriella Albanese antigos e modernos.indd 19 1/1/1980 14:51:09 20 Francisco Murari Pires e Marlene Suano (orgs.) conhecidos e, por vezes, totalmente ignorados durante a Idade Média.2 É por isto que ao lado de uma tradição historiográfica latina melhor consolidada que reconhecia em Tito Lívio3 o modelo absoluto de escrita para a história, paralelamente a Cícero quanto ao estilo em prosa e Virgílio na poesia, começava também a aparecer uma nova perspectiva, de conformação eclética, que além de numerosos outros modelos de latinidade, podia agora alcançar também o patrimônio literário grego em vias de expansão. Considere-se a viragem promovida, no que respeita à latinidade, pela redescoberta da historiografia política de Júlio César e de Salústio4, como também pelo modelo menos afortunado de Tácito; pela redescoberta, da parte de Petrarca, de uma história exemplar que tinha por modelos Suetônio e Cornélio Nepos, e que conhecerá fortuna ainda maior graças à difusão das Vidas de Plutarco que circularam em muitas traduções latinas humanistas no século XV5; como ainda pela redescoberta da escrita erudita e antiquária de Varrão. 2 Cfr. a este respeito os estudos já clássicos de R. SABBAdini, Le scoperte dei codici latini e greci nei secoli XIV e XV, Firenze, Sansoni, 1967; D. ReynoldS-n. WilSon, Copisti e filologi: la tradizione dei classici dall’antichità ai tempi moderni, Padova, Antenore, 1987; e, no que respeita às vicissitudes e modos de circulação dos clássicos entre a Idade Média e o Humanismo, C. VillA, I classici, in Lo spazio letterario del Medioevo, vol. I, La produzione del testo, to. I , Roma, Salerno Editrice, 1992, pp. 479-522; M. FeRRARi, Il rilancio dei classici e dei Padri, ibidem, III, La ricezione del testo, Roma 1995, pp.429-455; M. coRteSi, Umanesimo greco, ibidem, pp. 457-507; I classici e l’Università umanistica, Atti del Convegno di Pavia (22-24 novembre 2001), a cura di L. GARGAn – M. P. MuSSini SAcchi, Messina, 2006. 3 Sobre a recepção de Tito Lívio na Idade Média e humanístico-renascentista vejam-se os estudos clássicos de G. BillAnovich, Per la fortuna di Tito Livio nel rinascimento italiano, in «Italia medioevale e umanistica», 1 (1958), pp. 245-281; id., Tradizione e fortuna di Livio tra Medioevo e Umanesimo, Padova, Antenore, 1981. 4 Cfr. especialmente sobre a recepção de Salústio na Idade Média e no Humanismo, B. SMAlley, Sallust in the Middle Ages, em Classical Influences on European Culture. A. D. 500-1500: proceedings of an international con- ference held at King’s college, Cambridge, Cambridge University Press, pp. 165-175; e sobretudo A. lA PennA, Il significato di Sallustio nella storiografia e nel pensiero di Leonardo Bruni, em Id., Sallustio e la “rivoluzione” romana, Milano 1968, pp. 409-431, e, com particular referência política ao pensamento do Humanismo, Q. SkinneR, The Vocabulary of Renaissance Republicanism, in Language and Images of Renaissance Italy, a cura di A. BRoWn, Oxford, Clarendon Press, 1995, pp. 87-110. Para a circulação de Júlio César cfr. os estudos específicos de v. BRoWn: The TextualTransmission of Caesar’s Civil War, Leiden 1972; Caesar, Gaius Julius, in Catalogus Translationum et Com- mentariorum: Mediaeval and Renaissance Latin Translations and Commentaries, III, a cura di F. F. cRAnz – P. o. kRiStelleR, Washington 1976, pp. 87-139; Portraits of Julius Caesar in Latin Manuscripts of the Commentaries, “Viator”, 12 (1981), pp. 319-353; G. BillAnovich, Nella tradizione dei “Commentarii” di Cesare. Roma, Petrarca, i Visconti, “Studi petrarcheschi”, 7 (1990), pp. 263-318; e veja-se também a recente edição crítica de F. PetRARcA, De gestis Caesaris, a cura di G. cRevAtin, Pisa 2003. 5 Cfr. especialmente sobre a concepção petrarqueana da historiografia como biografia heróica e exemplaridade clássica, G. MARtellotti, Storiografia del Petrarca, (1976) agora nos seus Scritti petrarcheschi, a cura di M. Feo e S. Rizzo, Padova, Antenore, 1983, pp. 475-486; e. keSSleR, Petrarca und die Geschichte. Geschichtsschreibung, Rhetorik, Philosophie im Übergang vom Mittelalter zur Neuzeit, München, Fink, 1978, particularmente pp. 87 ss.; antigos e modernos.indd 20 1/1/1980 14:51:09 Antigos e modernos 21 Obviamente persistem todos os modelos conhecidos já durante o período medieval, Valério Mássimo mais a poesia histórica de Lucano e de Estácio. As novidades maiores, todavia, consistiam do repertório reconquistado dos grandes historiadores gregos, os quais veicularam um nível mais elevado de reflexão sobre a história e uma maior con- sciência das problemáticas teoréticas da historiografia, graças justamente à redescoberta do importante tratado teórico e retórico de Luciano, sobre o qual nos deteremos parti- cularmente no decurso deste estudo: Heródoto e Tucídides, ambos traduzidos em latim por Lorenzo Valla, no quadro do importante programa cultural de traduções do grego empreendido pelo papa humanista Nicolau V, fundador da Biblioteca Vaticana; Políbio, redescoberto por Leonardo Bruni nos primeiros decênios do século XV, traduzido em latim por Niccolò Perotti por encomenda de Nicolau V e muito lido e utilizado desde Poliziano a Maquiavel; a Biblioteca de Diodoro Sículo, com ampla circulação graças à versão latina de Poggio Bracciolini, também ela encomendada por Nicolau V; Dionísio de Halicarnasso, novamente posto em circulação graças à latinização feita por Lampo Birago; Apiano, de que Bartolomeo Facio tinha bom conhecimento, traduzido em latim por Candido Decembrio por encomenda de Nicolau V e posteriormente em italiano por Alessandro Braccesi; Herodiano, traduzido em latim por Poliziano; Arriano, que desper- tou o interesse da corte aragonesa de Nápoles pelo mito de Alexandre Magno e vertido para o latim por Facio e Jacopo Curlo; Xenofonte, cuja Ciropedia Poggio Bracciolini tra- duziu em latim para o rei de Nápoles Afonso de Aragão; Procópio de Cesaréia, traduzido e reescrito por Leonardo Bruni e por Maffeo Vegio. Com efeito, torna-se necessário antes de tudo esclarecer que a própria definição de historiografia, entendida como ars da escrita da história, no Renascimento e na Época Moderna é rigorosamente dependente da teorética historiográfica fixada pela retórica clássica grega e latina, de Aristóteles a Luciano, de Cícero a Quintiliano. Na Poética (IX 1451b) de Aristóteles a historiagrafia é posta em causa somente porque melhor se definisse o domínio próprio da atividade poética, o qual encontra na epistemologia aristotélica um lugar primordial, ao passo que o interesse pela ars historica é secundário. Ao historiador compete iluminar as coisas que aconteceram, enquanto que o poeta deverá dizer as coisas que podem acontecer: e especificamente para a concepção petrarqueana da exemplaridade na dialética entre antiguidade e contem- poraneidade, C. delcoRno, Antico e moderno nella narrativa del Petrarca, em sua obra Exemplum e letteratura. Tra Medioevo e Rinascimento, Bologna, Il Mulino, 1989, pp. 229-263. Para a extraordinária fortuna das Vidas de Plutarco no Humanismo, cfr. v. R. GiuStiniAni, Traduzioni latine delle “Vite” di Plutarco nel Quattrocento, “Rina- scimento”, 1 (1961), pp. 3-62; G. ReStA, Le epitomi di Plutarco nel Quattrocento, Padova, Antenore, 1962; M. PAde, Sulla fortuna delle “Vite” di Plutarco nell’Umanesimo italiano del Quattrocento, “Fontes”, 1 (1998), pp. 101-116; L. ceSARini MARtinelli, Plutarco e gli umanisti, “Antichi e Moderni”, 2 (2000), pp. 5-33. antigos e modernos.indd 21 1/1/1980 14:51:09 22 Francisco Murari Pires e Marlene Suano (orgs.) O historiador e o poeta não diferem por narrar com versos ou sem versos (pois se poderia colocar em versos os escritos de Heródoto e seriam mesmo assim sempre uma história, com versos ou sem versos); ao invés, diferem nisto: um refere fatos realmente ocorridos, o outro fala de acontecimen- tos possíveis. Por isso a poesia é algo de maior fundamento teórico e mais importante do que a história, pois a poesia diz sobretudo os universais, a história os particulares. A diferença entre história e poesia não deriva, portanto, segundo Aristóteles, de ca- racterísticas puramente formais, como por exemplo a estrutura métrica da obra, mas do material que é tratado. A reflexão de Luciano de Samósata no mais importante tratado de teoria e técnica historiográfica de toda a antigüidade, De historia conscribenda, constitui a base indis- pensável para se compreender a refundação renascentista da história e o nascimento da tratadística sobre a ars historica que se desenvolve entre os séculos XV e XVI após a retomada da língua grega e a integração do tratado de Luciano nos circúitos culturais de vanguarda do Humanismo italiano6. O que permitia que se precisasse a finalidade da história, o âmbito da escrita histórica, a metodologia e a técnica da historiografia, ou seja como se escreve a história, sistematizando toda a investigação inerente à teorética historiográfica feita pelos clássicos:7 6 Para a fortuna de Luciano no Humanismo italiano cfr. os estudos específicos de E. MAttioli: Luciano e l’Umanesi- mo italiano, Napoli, Istituto Italiano per gli Studi Storici, 1980; I traduttori umanistici di Luciano, in Studi in onore di Raffaele Spongano, Bologna 1980, pp. 205-214; e de e. BeRti: Alla scuola di Manuele Crisolora. Lettura e com- mento di Luciano, “Rinascimento”, 27 (1987), pp. 3-74; Alle origini della fortuna di Luciano nell’Europa occidentale, “Studi classici e orientali”, 37 (1987), pp. 301-351; luciAno di SAMoSAtA, Caronte. Timone. Le prime traduzioni, a cura di e. BeRti, Firenze, Edizione Nazionale delle Traduzioni dei testi greci in età umanistica e rinascimentale (Il Ritorno dei Classici nell’Umanesimo. III. 1), Sismel, Edizioni del Galluzzo, 2006; em particular sobre as traduções de Luciano no Humanismo e no Renascimento, cfr. l. de FAveRi, Le traduzioni di Luciano in Italia nel XV e XVI secolo, Amsterdam 2002; e para a recepção do tratado de Luciano no âmbito da historiografia humanista italiana, no panorama da redescoberta dos historiadores clássicos antigos, gregos e latinos, veja-se sobretudo M. ReGolioSi, Riflessioni umanistiche sullo ‘scrivere storia’, “Rinascimento”, 31 (1991), pp. 3-37. 7 A edição crítica mais recente do tratado de Luciano é a de luciAni Opera, ed. M. d. MAcleod, iii, Oxford 1980, pp. 287-319; as passagens citadas da tradução italiana encontram-se em in l. cAnFoRA, Teorie e tecnica della storio- grafia classica, Roma-Bari, Laterza, 1974 (II ed. 1996), com ampla análise histórico-crítica e bibliografia específica; para o delineamento da preceituação retórica da historiografia, veja-se em particular e. MAttioli, Retorica e storia nel “Quomodo historia conscribenda sit” di Luciano, in Retorica e storia nella cultura classica, a cura di A. PennAcini, Bologna 1985, pp. 89-105; e os estudosde F. MontAnARi: Ekphrasis e verità storica nella critica di Luciano, “Ricerche di filologia classica”, II, Pisa 1984, pp. 111-123; “Virtutes elocutionis” e “narrationis” nella storiografia secondo Luciano, ibidem, III, Pisa 1987, pp. 53-65, aos quais remetemos para uma ampla bibliografia. antigos e modernos.indd 22 1/1/1980 14:51:10 Antigos e modernos 23 [5] A maioria sustenta que não há necessidade de conselhos para praticar a atividade do historia- dor, assim como não há necessidade de uma arte para andar ou para olhar ou para comer; entende, pois, que seja facílimo e ao alcance de todos escrever história [...]; e todavia a sua escrita, mais do que qualquer outra, exige preparação, caso alguém, como diz Tucídides, queira realizar ‘uma aquisição para sempre’. Dado que é justamente, tendo por base o tratado de Luciano, que é fundada no século XVI pelos humanistas italianos uma historiografia científica e uma tratadística de historia conscribenda que repete de perto sua preceituação, é oportuno focalizar antecipadamente nesse tratado quais os pontos salientes que depois retornam exatamente na historiografia humanístico-renascentista, em cujo exame nosso estudo agora se detém. Antes de tudo Luciano estabelece uma primeira diferença fundamental entre a his- toriografia científica e o gênero encomiástico, por um lado, e entre a historiografia e a poesia, de outro: [7] A maioria comete enorme engano quando, ao invés de contar como se passaram os fatos, se estendem em elogios aos chefes e aos comandantes, exaltando seus conterrâneos e rebaixando além de qualquer parâmetro os inimigos. Esquecem que não apenas um estreito ístmo separa a história do encômio, porém bem no meio há uma enorme muralha [...] A história jamais tolera a mentira. [8] Os pressupostos e as regras da poesia são uns, e outros os da história. Naquela, a liberdade não têm freios e sua única norma é ditada pelo que é do agrado do poeta: ele é inspirado pela divindade [...] Grande mal, mesmo grandíssimo, que alguém não saiba distinguir o campo da história do da poesia, antes introduzindo na história os ornamentos procurados naquela, o mito, o encômio e as hipérboles conexas. [9-10] Mas não quero dizer que na história não deva absolutamente recorrer ao elogio; entretanto, no momento oprtuno [...] Assim a história, se vier casualmente a ganhar uma aparência deleitante, atrairá muitos afeiçoados; porém enquanto perseguir apenas seus próprios fins – ou seja, dizer a verdade – pouco se preocupará com a beleza. Pelo que justamente também se diz: não causa qualquer prazer uma narração histórica que seja totalmente fantasiosa. [22] O que dizer daqueles que na obra histórica empregam termos poéticos [...] e em meio a belas palavras tão cultas inserem termos banais e quotidianos [...]; pelo que a obra acaba parecida com um ator trágico que tem calçado num pé um coturno e no outro uma sandália. Ele define também as características intelectuais e morais indispensáveis para o ofício do historiador, e como, segundo Luciano, a história é fundamentalmente verdade, os principais requisitos do historiador são a imparcialidade e a objetividade. Deste modo antigos e modernos.indd 23 1/1/1980 14:51:10 24 Francisco Murari Pires e Marlene Suano (orgs.) o tratado de Luciano termina por traçar, para todos os séculos vindouros, o retrato do historiador ideal como filósofo cosmopolita, errante, livre, independente, retrato este que incarna a utopia do intelectual ‘cidadão do mundo’ em perfeita harmonia com a doutrina filosófica sofística de Luciano: [34. 38] O egégio historiador deve ter duas características principais: inteligência política e ca- pacidade expressiva [...]. A primeira [....] é um dom da natureza, a outra deve ser ganha com muito exercício e fadiga assídua mais imitação dos autores antigos [...] Mas sobretudo, e este é seu principal requisito, deve ser profundamente independente, não deve ter medo de ninguém nem depositar esperanças em quem quer que seja. [39-40-41] O historiador tem apenas um encargo: dizer como efetivamente as coisas se passaram [...]. Se alguém se põe a escrever uma obra histórica, deve prestar sacrifício apenas à verdade [...], a única medida, a única regra que ele deve ter é a de não pensar em quem o ouvirá mas sim em seus leitores futuros [...] Se, ao invés, ele se preocupa com o dia de hoje, pode com razão ser enumerado entre os aduladores: dos quais a história sempre, desde o início, se esquivou. [...] Eis então como deve ser no meu entendimento o historiador: impávido, incorruptível, livre, amigo da verdade e da palavra franca [...], alguém que nunca por amizade ou por ódio é induzido a conceder ou negar [...], juiz equânime, benévolo em geral [...] que não tenha pátria – quando escreve – nem cidade nem soberano. Luciano tem também o mérito de fixar o cânone dos historiadores gregos, Heródoto, Tucídides e Xenofonte, afirmando a superioridade e a exemplaridade de Tucídides, que ratifiocu a historiografia política e suas leis, definindo sua finalidade como educação e formação dos políticos e dos quadros dirigentes, e reivindicou a utilidade prática da his- tória para a arte de governo dos reis, príncipes, imperadores, e para a arte da guerra dos comandantes e generais: [42] Foi Tucídides quem legislou sobre tudo isto, foi ele quem distinguiu a virtude e o vício na historiografia [...]. Diz, com efeito, ter escrito algo que permanecerá ‘para sempre’ antes do que ‘para os certames da ocasião’. Por outro lado, Luciano marginaliza Heródoto e sua concepção desinteressada e nêutra da historiografia como memória histórica, testemunho dos grandes empre- endimentos dos gregos e dos bárbaros, e impõe a concepção e a metodologia de uma história política, tendo por modelo Tucídides e Políbio, alheia a conotações dramáticas e de pathos narrativo e baseada antes em elementos pragmáticos e técnicos, com empe- nhada atenção na arte militar. Efetivamente é Tucídides e seu divulgador Luciano quem antigos e modernos.indd 24 1/1/1980 14:51:10 Antigos e modernos 25 determina todo o desenvolvimento sucessivo da historiografia grega, romana e depois bizantina e renascentista, ao passo que Heródoto não tem igual recepção e importância no âmbito da formação e codificação da historiografia moderna8. Por meio da descoberta de Luciano e da leitura direta de Tucídides o Humanismo lançará os fundamentos de uma reflexão científica sobre a história e sobre a técnica historiográfica, oferecendo a base aos tratadistas modernos da ars historica, os quais se encontram apenas no século XVI. Em 1560 Francesco Patrizi da Cherso, em seus Dialoghi della historia, reconhecia em toda a tradição ocidental clássico-renascentista que lhe antecedera somente dois tratados de ars historica: Luciano entre os gregos e Giovanni Pontano entre os latinos9. De fato, per- manece estável até o Cinquecento a teoria de Luciano acerca da “parrhesia” e da verdade como requisitos fundamentais dos historiador, e assim o direito-dever de falar livremente em testemunho da verdade dos fatos, com um estilo adequado a uma comunicação prag- mática e ecientífica ao mesmo tempo, e assim clara e perspicaz mas simultaneamente de elevado nível estilístico: [44] Estabelecemos como base das concepções do historiador a parrhesia e a verdade, de modo que seu estilo tem um fim único: expressar claramente o fato de modo que resulte mais evidente, sem recorrer a palavras raras ou em desuso nem a expressões banais e grosseiras, de modo compreen- sível a todos e não criticáveis pelas pessoas cultas. 8 Cfr. particularmente sobre a recepção de Heródoto pela historiografia moderna, A. MoMiGliAno, Erodoto e la storiografia moderna: alcuniproblemi presentati ad un convegno di umanisti, “Aevum”, 31 (1957), pp. 75-84; para a recepção de Tucídides na historiografia do Humanismo, com particulares referências a Salutati, Crisolora, Bruni, Valla e Alberti, veja-se a recente monografia de F. MuRARi PiReS, Modernidades Tucidideanas. Ktema es Aei, to. I, No tempo dos humanistas, Sao Paulo, Editora da Universidade de Sao Paulo, 2007, com ampla bibliografia específica. 9 Sobre a tratadística renascentista, que estrutura e codifica sistematicamente a preceituação historiográfica, cfr. G. cotRoneo, I trattatisti dell’ars historica, Napoli 1971; veja-se também para uma edição seletiva destes textos, E. keSSleR, Theoretiker Humanistischer Geschichtsschreibung, München 1971, e, para a valorização de Luciano e Pon- tano como teóricos da historiografia no âmbito do Renascimento, cfr. cAnFoRA, Teorie e tecnica della storiografia classica, cit., p. 32; para os pródromos do Quattrocento no que respeita à teorética historiográfica em relação com a práxis militante dos historiadores do Humanismo e seus desenvolvimentos no Cinquecento, cfr. F. GilBeRt, La teoria e la pratica storiografica nel Quattrocento, em sua obra Machiavelli e Guicciardini. Pensiero politico e storio- grafia a Firenze nel Cinquecento, tradução italiana Torino 1970, enfocando sobretudo o âmbito florentino; G. M. AnSelMi, Umanisti, storici, traduttori, Bologna 1981; e. FRyde, Humanism and Renaissance Historiography, London 1983; R. BlAck, The New Laws of History, “Renaissance Studies”, 1 (1987), pp. 125-156; e para uma ampliação deste tema em perspectiva medieval tardia relacionada à historiografia moderna, vejam-se os estudos de M. MiGlio: Storiografia umanistica del Quattrocento, Bologna 1975; La teorizzazione della “ars historica” tra tardo Medioevo ed età moderna, in Acta Conventus neo-latini Bariensis, Proceedings of the Ninth International Congress of Neo- Latin Studies (Bari, 29 August – 3 September 1994), Tempe 1998, pp. 41-49. antigos e modernos.indd 25 1/1/1980 14:51:10 26 Francisco Murari Pires e Marlene Suano (orgs.) Encontra também acolhida, nos níveis mais elevados da historiografia humanistíco- renascetista, a metodologia tucidideana da crítica das fontes: [47] No que respeita ao material do relato, não deve integrá-lo com o que se depara, mas avaliando repetidamente os mesmos fatos com atenção e empenho [...], dando fé aos testemunhos menos suspeitos de parcialidade comprometida [...]. A tal ponto deve ter por aspiração saber individuar e referir o relato mais aceitável; a concepção dos proêmios das obras historiográficas como local privilegiado para hospedar um discurso metodológico a respeito da ars historica, e como declarações de intentos do historiador: [53-54] Tornará clara e cômoda a compreensão do que está narrando, se esclarecerá priori- tariamente a exposição das causas e os pontos essenciais da narração. Tais são os proêmios a que recorreram os melhores historiadores: Heródoto ‘porque os acontecimentos não se desvanecessem com o tempo”, que fossem “grandiosos e maravilhosos” – assim entendendo as vitórias dos gregos e as derrotas dos bárbaros – e Tucídides, que “previa que aquela guerra seria grande e digníssima de lembrança e superior a todos os conflitos precedentes”; a utilização do procedimento dos discursos diretos atribuídos pelo historiador aos personagens históricos, atendendo à concepção que tem a historiografia como gênero que se vale da retórica: [58] Caso se deva introduzir um personagem que pronuncia um discurso, deve-se antes de tudo atribuir palavras adequadas ao personagem e à circunstância, em segundo lugar há que expressá- las da forma a mais clara. Neste caso, ademais, é lícito recorrer à retórica e exibir suas próprias capacidades oratórias; e, por fim, a concepção da utilidade da história, de enorme fortuna em toda a his- toriografia moderna como perspectiva do ‘passado-futuro’, que afirma a atualidade da história do passado para uma gestão consciente do presente e uma projeção responsável do futuro: [61-63] Não escrever com os olhos no presente, não se perguntar que acolhimento tereis entre os contemporâneos; pensai sobretudo nos tempos vindouros e escrevei especialmente para os póste- ros [...]. É necessário que a história seja escrita assim: veridicamente e com o pensamento voltado para o futuro [...] Isto vos será régua e medida para uma correta historiografia. antigos e modernos.indd 26 1/1/1980 14:51:10 Antigos e modernos 27 A historiografia grega é, assim, portadora da vertente mais consciente da reflexão sobre a história e a matriz retórica da escrita histórica moderna. E ainda a complexa ar- ticulação retórica interna do gênero historiográfico, facetado em múltiplos sub-gêneros especializados na época moderna, preserva de fato, que seja mesmo com inovações suas propriamente ligadas aos diversos contextos histórico-políticos e culturais, o pavimento macro-estrutural do sistema retórico clássico. O proêmio ao livro IX das Histórias de Políbio constitui uma das primeiríssimas tentativas de codificação retórica dos sub-gêneros historiográficos, reflexão esta muito provavelmente conhecida e levada em consideração pelos historiadores do Renasci- mento, dado que Políbio foi, antes de Heródoto e de Tucídides, o primeiro historiador grego a ter tido grande impacto no Humanismo, do modo mesmo como o esclareceu Momigliano10: Não ignoro que nossa obra histórica tenha algo de austero, se adapte apenas a um gênero de leitor e somente deles ganhe aprovação, considerada a uniformidade do tratamento. Quase todos os outros historiadores, de fato, ou ao menos a maioria deles, integrando todas as parcelas da história atrai muitos à leitura de suas obras. O tipo genealógico, com efeito, atrai quem ama a leitura, o que trata de colônias, fundações de cidades e parentelas atrai, como é dito em algum lugar por Éforo, quem é movido por interesses e curiosidades, ao passo que o político é atraído pelo tipo de historiografia concentrada nas vicissitudes dos povos, das cidades e dos soberanos. A articulação dos sub-gêneros da historiografia aqui sintetizada por Políbio, resulta, de fato, aplicável também ao sistema das tipologias retóricas da historiografia huma- nístico-renascentista, substancialmente articulada nas duas categorias de historiografia erudita e historiografia política. A historiografia erudita retoma vínculos com as duas primeiras categorias arroladas pelo historiador grego, ou seja a genealogia histórica e a historiografia sobre as origens e as fundações de cidades, as ktiseis tão apreciadas pelos primeiros que experienciaram a escrita histórica pré-herodoteana. Já a historiografia política corresponde plenamente aos intentos mais profundos de grande parte da histo- riografia humanístico-renascentista, aquela historiografia oficial desenvolvida em meio às afirmações políticas dos Senhorios, principados e reinos entre os séculos XV e XVI, a 10 Cfr. A. MoMiGliAno, Polybius’ Reappearance in Western Europe, in Polybe. Fondation Hardt pour l’Etude de l’An- tiquité classique. Entretiens, Genève 1973, pp. 347-373; The Classical Foundation of Modern Historiography, cit.; Erodoto e la storiografia moderna, cit. antigos e modernos.indd 27 1/1/1980 14:51:10 28 Francisco Murari Pires e Marlene Suano (orgs.) que se entregam historiadores engagés, envolvidos pessoalmente nas atividades políticas e diplomáticas de seus príncipes e reis.11 Todavia, também a tradição clássica latina contribui fortemente para a formação da historiografia moderna na época humanístico-renascentista, sobretudo por meio da refle- xão, de tipo mais diferenciadamente retórica e filosófica, de Cícero e Quintiliano, os quais têm sempreainda a veritas como princípio fundamental e normativo da historiografia e a utilitas como a finalidade própria da práxis histórica. No De oratore Cícero define a história como testemunha dos tempos, luz da verdade, vida da memória, mensageira da Antigüidade, e lhe atribui alto valor de exemplaridade e de formação do cidadão, na medida em que deve exortar à virtude e afastar do vício (II, 35: “cohortari ad virtutem … a vitiis revocare”); a primeira lei da história é a verdade (II, 62: “nam quis nescit primam esse historiae legem, ne quid falsi dicere audeat? Deinde ne quid veri non audeat? Ne quae suspicio gratiae sit in scribendo? Ne quae simultatis?”), mas a historiografia é principal- mente uma ‘ars rhetorica’, e o historiador é privilegiadamente um orador, razão porque é justo no tratado especificamente dedicado à formação do perfeito orador que Cícero expõe a preceituação valiosa para a escrita da história (De oratore, II, 63-64): Historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia vetustatis, qua voce alia nisi oratoris immortalitati commendatur? (II, 9, 36) A definição do gênero literário da historiografia é dada por Cícero de modo exemplar no De legibus (I, 2), e fará escola até a época moderna: “historia opus oratorium maxime”. Mas a definição se articula no De inventione (I, 27) no âmbito de três específicos gêne- ros de narração, “tria genera narrationis”, que permanecem ainda na retórica tardia da antiguidade, medieval e renascentista: a fábula ou “narratio brevis”, ou seja o conto, que não comporta realidade verídica, “quae nec res veras nec verisimiles continet”, tendo por finalidade somente o entretenimento, “delectare”; l’argumentum ou “narratio probabilis, verisimilis”, que não é realidade mas verossimilhança, “res ficta quae tamen fieri potuit, ut contigit in comoediis”, e tem por finalidade a persuasão, “movere”; e a historia ou “nar- ratio aperta, dilucida”, totalmente real e verídica, “gesta res ab aetatis nostrae memoria remota”, a qual tem por finalidade a instrução, “docere”. Similar igualmente a definição de história dada por Quintiliano (Institutio oratoria, II, 4, 2; XII, 2, 29-31), a qual enfatiza a veritas: “historia tanto robustior quanto verior”; e retoma a definição aristotélica que 11 Uma primeira análise das várias articulações das formas da historiografia humanista se encontra em F. Pez- zARoSSA, Verso un Convegno su “La memoria della città”. Scritture storiche fra Medioevo e Età moderna, “Schede umanistiche”, 2 (1991), pp. 25-49. antigos e modernos.indd 28 1/1/1980 14:51:10 Antigos e modernos 29 afirma a indiferença da forma em prosa ou poética no âmbito da historiografia (Inst. or., X, 1, 31): “historia est proxima poetis et quodam modo carmen solutum”.12 Todavia, a concepção historiográfica latina recolhia e recuperava também a tradição da historiografia política tucidideana: para Salústio a escrita histórica constitui uma continuação das lutas políticas, e Cícero no De officiis (II, 1, 3) considerava as “litterae forenses et senatoriae” como um aspecto da atividade política, alternativa indispensável por que a obra literária fosse o sucedâneo de uma militância política então inviabilizada pelo desmantelamento do Estado, e na célebre carta a Lucéio contemplava, entre os requi- sitos reclamados pela historiografia, a possível exigência de desenvolver e sustentar uma propaganda política e consequentemente valia-se de uma historiografia inteligentemente celebrativa. Disto nasce e se desenvolve a tradição romana dos historiadores senadores, desde Tácito aos Scriptores Historiae Augustae: tradição que continua a florescer até o Renascimento e a Época Moderna. Porém, a viragem determinada pela recepção conjunta dos grandes clássicos histo- riográficos gregos e latinos se dá apenas a partir de ínícios do século XV, com a afirma- ção da vanguarda da escola humanista. Por toda a Idade Média, com efeito, o gênero da historiografia não possui estatuto próprio, o qual começa a se delinear somente em tempos humanístico-renascentistas. Isidoro de Sevilha, de fato, um dos pais fundadores da historiografia medieval européia, dá uma definição da história que a reconduz tout court integrada à categoria da grammatica:13 12 Sobre a teoria dos estilos em relação com os principais gêneros literários da latinidade clássica, e particularmente com a historiografia, cfr. os estudos específicos de A. d. leeMAn: Le genre et le style historique à Rome: théorie et pratique, “Revue des études latins”, 33 (1955), pp. 183-208; Orationis ratio. Teoria e pratica stilistica degli orato- ri, storici e filosofi latini, Bologna 1974. Sobre a fortuna humanista da concepção ciceroniana de história como “magistra vitae” e como “opus oratorium maxime”, cfr. R. lAndFeSteR, Historia magistra vitae. Untersuchungen zur humanistischen Gescichtstheorie des XIV bis XVI Jahrhunderts, Genève 1972; N. S. StRueveR, The Language of History in the Renaissance. Rhetoric and Historical Consciousness in Florentine Humanism, Princeton 1970; sobre a recepção humanista da concepção retórica ciceroniana da história e da tradição aristotélica e quintiliniana da contiguidade entre história e poesia, cfr. também MuRARi PiReS, Historia, Retorica e Poesia, no citado volume Modernidades Tucidideanas, pp. 171-189. 13 Sobre a historiografia medieval e a sua problemática vejam-se os recentes estudos com ampla bibliografia espe- cífica, de B. lAcRoix, L’historien au Moyen Age, Paris, 1971; B. Guenee, Histoire et culture historique dans l’Occident médiéval, Paris, Aubier Montaigne, 1980 (tradução italiana di A. Bertoni, Bologna, Il Mulino, 1991); G. ARnAldi, Annali, cronaca, storia, in Lo spazio letterario del Medioevo, 1. Il Medioevo latino, vol. I, La produzione del testo, II, Roma, Salerno Editrice, 1993, pp. 463-490, que delineia a fisionomia dos vários sub-gêneros da historiografia entre a Idade Média e o Humanismo; G. FeRRAù, La storiografia come ufficialità, in Lo spazio letterario del Medio- evo, 1. Il Medioevo latino, vol. III, La ricezione del testo, a cura di G. cAvAllo, c. leonARdi, e. MeneStò, III, Roma, Salerno Editrice, 1995, pp. 661-693, que põe em evidencia as reservas com que a historiografia medieval bloqueou a elaboração de uma historiografia oficial, de que se tira a citação de Isidoro. antigos e modernos.indd 29 1/1/1980 14:51:10 30 Francisco Murari Pires e Marlene Suano (orgs.) haec disciplina ad grammaticam pertinet, quia quicquid dignum memoria est litteris mandatur (Ety- mologicum magnum, I, 40-43) [Esta disciplina pertence à gramática, dado que o que é digno de memória é transmitido por meio da literatura.] Ademais, o nascimento e a afirmação de uma predominante historiografia cristã determinou a integração do tópos do “futuro-passado” de matriz clássica, encaixado no conceito de utilitas da história pagã, em perspectiva escatológica, e a articulação da histo- riografia sob um dupla e paralela bitola, da história eclesiástica e história pagã. Porém, de toda esta configuração foi também fortemente orientada ideologicamente a concepção medieval da historiografia não eclesiástica, que resgatava do ensinamento de Luciano sobretudo o preceito da veritas e da imparcialidade do historiador, a finalidade ética da história, a sua utilitas e a sua empenhada dimensão educativa e didática. Consequen- tement não se desenvolveu na Idade Média uma historiografia propriamente oficial até a época carolíngia, no século IX-X, quando da afirmação do império centralizado de Carlos Magno, e após a queda do império carolíngio quando os novos Estados nacionais emergentes na Europa dos séculos XI e XII, Lombardos, Saxões, Normandos, começaram a se darconta da necessidade de histórias oficiais, comissionando-as a historiadores de extração monástico-eclesiástica, os únicos, naqueles tempos, depositários da cultura, todavia mistificando-a mediante a auctoritas de uma figura de extração eclesiástica a quem era dedicada por garantia da veritas e da imparcialidade do historiador, o qual sempre preventivamente se defende da suspeita de adulação e de escrito panegirista, em conformidade com a rigorosa distinção imposta por Luciano. Exemplares, assim, os ca- sos de Dudone di S. Quintino, o qual inicia a historiografia oficial dos Normandos, por encomenda de Ricardo duque da Normandia, ou de Cosmo de Praga, historiador dos Boêmios, ou de Widikundo, historiador dos Saxões, ou de Rigord, que escreveu a história do Reino de França para Filipe Augusto, considerando que justo a aceitação pelo rei e pelo abade da respeitável Abadia de S. Denis podiam conferir a seu testemunho histórico valor oficial (“ut sic demum per manum ipsius regis in publica veniret monumenta”).14 O tema da imparcialidade do historiador mantém-se central até a historiografia da Época Comunal do século XIII, porém sucessivamente, tomando por base as reflexões ciceronianas sobre a história e sobretudo graças à redescoberta dos historiadores gregos 14 Quanto a este linhagem da historiografia medieval, amplas e específicas análises encontram-se no citado artigo de FeRRAù, La storiografia come ufficialità, a quem se remete para a bibliografia específica sobre os textos históricos citados. antigos e modernos.indd 30 1/1/1980 14:51:10 Antigos e modernos 31 e suas concepções acerca da escrita da história, o Humanismo pode refundar o gênero historiográfico moderno. O reconhecimento do papel autônomo da história no âmbito dos “studia humanitatis” da época moderna é consequência direta do valor primordial atribuído pelos humanistas ao estudo dos historiadores clássicos e à historiografia.15 Ba- sta que se pense nos primeiros e mais importantes tratados pedagógicos do Humanismo, tais como o De ingenuis moribus et liberalibus studiis de Pier Paolo Vergerio, que por inícios do Quattrocento propõe um sistema epistemológico situando em posição priori- tária e fundante a história, a filosofia moral e a eloquência (“historiae notitia et moralis philosophiae studium: in horum altero praecepta, quid sequi quidve fugere conveniat, in altero exempla invenimus”), o De studiis et litteris de Leonardo Bruni ou o De libero- rum educatione de Enea Silvio Piccolomini, nos quais a leitura dos historiadores antigos era considerada elemento fundamental da educação escolar, criando e impondo uma tradição didática que permanecerá estável na escola renascentista. Pelo cânone didático do Humanismo é explicitamente recomendada a leitura dos historiadores romanos Tito Lívio, Júlio César, Salústio, Cúrcio Rufo e Justino, antes que se afirmasse a conquista da historiografia grega em meados do século XV; este cânone histórico permanece, apenas com o acréscimo de Tácito, até a Ratio studiorum jesuíta de 1586. A redescoberta dos hi- storiógrafos clássicos gregos e latinos e sua força modeladora na cultura do Renascimento europeu determinou uma virada no método de escrita da história, que levou, por meio da reflexão sobre a natureza e a essência da história e conexos encargos do historiador como também sobre as técnicas metodológicas da escrita da história, à laicização, isenção moral e politização da história, e assim também a uma historiografia de tipo oficial: via esta que conduz à importante historiografia moderna de Maquiavel. Basta que se pense que no período compreendido entre a invenção da imprensa, por meados do século XV, e os fins do século XVIII, circularam pela Europa pelo menos dois milhões e meio de volumes de edições impressas dos historiadores clássicos, sobretudo Salústio, Júlio César, Tito Lívio, entre os latinos, e entre os gregos Heródoto e Tucídides.16 Podemos traçar, de fato, uma linhagem contínua na tradição historiográfica ocidental que une fortemente o mundo clássico à Idade Média e ao Renascimento como um fio invisível a constituir o fundamento da historiografia moderna. Em primeiro lugar há que definir os termos da reflexão acerca da escrita da história nos primeiros humanistas que apresentam um consciência teórica da especificidade des- se gênero literário, e tentam definir suas regras, sua codificação retórica, seus limites, 15 Cfr. a este respeito F. tAteo, L’umanesimo, in Lo spazio letterario del Medioevo, 1. Il Medioevo latino, vol. I. La produzione del testo, to. I, Roma, Salerno Editrice, 1992, pp. 145-179, com mais bibliografia. 16 Cfr. Buck, L’eredità classica nelle letterature neolatine del Rinascimento, cit., pp. 161-164. antigos e modernos.indd 31 1/1/1980 14:51:10 32 Francisco Murari Pires e Marlene Suano (orgs.) sobretudo tomando por base Luciano, Tucídides e Políbio, a ratificar a passagem de uma idéia de história celebrativa e pedagógica, de afinidade à oratória epidítica, a uma idéia de história politicamente útil. Examinaremos o caso de Coluccio Salutati e de Guarino Veronese, figuras-chaves da primeira geração da escola humanista, cuja lição será logo absorvida pelos historiadores militantes do século XV. A primeira reflexão de molde claramente humanista sobre a história e a escrita da his- tória encontra-se casualmente em uma carta de Coluccio Salutati datada de 1392 a Juan Fernandez de Heredia.17 A passagem mais significativa atém-se precisamente de modo evidente a uma lição ciceroniana: Historicos, quibus rerum gestarum memoriam studium fuit posteris tradere, ut regum, nationum, et illustrium virorum exemplis per imitationem possent maiorum virtutes vel excedere vel equare […] rerum gestarum scientia monet principes, docet populos et instruit singulos quid domi quidque foris, quid secum quid cum familia, quid cum civibus et amicis, quidque privatim vel publice sit agendum […]. Nil cogitari potest vitii nichilque laudari virtutis, quod historiarum non probetur exemplis […]. Nichil ornatius, nichil floridius nichilque suavius in dicendo, nichilque quod magis moveat vel delectet quam id quod historicum aspergatur […]. Tolle de sacris litteris quod historicum est: erunt profecto reliquie res sanctissime, res mirande; sed quantum ad delectationem pertinet, taliter insuaves, quod non longe poterunt te iuvare. [O objetivo do historiador é transmitir aos pósteros a memória da história a fim de que estes possam superar ou igualar a virtude de seus antepassados imitando os exemplos dos reis, nações e homens ilustres. O conhecimento da história constitui advertência aos príncipes, instrui os povos e os cidadãos a como agir em todos os domínios, público e privado. A avaliação dos vícios e das virtudes deve ser sempre corroborada por exemplos históricos. Nenhum relato é tão agradável quanto os relatos dos feitos históricos, nada havendo que possa convencer ou deleitar mais. Ex- perimente retirar os elementos históricos das Sagradas Escrituras: continuarão sempre santos e dignos de admiração, mas não conseguirão mais a suscitar deleite e consequentemente a atenção dos leitores, razão pela qual não lhes podem mais ser útil.] 17 A carta pode ser lida na edição completa do Epistolário de Salutati: c. SAlutAti, Epistolario, a cura di F. novAti, II, Roma 1893, pp. 289-302 (a tradução italiana é minha); sobre Juan Fernandez de Heredia, a sua biblioteca, e seus interesses históricos antigos e as relações com os humanistas italianos, especialmente com Salutati, veja-se A. luttRell, Greek Histories Translated and Compilated for Juan Fernandez de Heredia, Master of Rhodes, 1377-1396, “Speculum”, 35 (1960), pp. 401-407; J. M. CAcho BlecuA, El Gran
Compartilhar