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41 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 PSICOLOGIA DOS GRUPOS E SUBJETIVIDADE Unidade II Teorias sobre grupos Nesta unidade, são apresentados alguns dos principais conceitos associados à Psicologia, numa perspectiva crítica que tem instrumentalizado as práticas de pesquisa e intervenção no que diz respeito ao trabalho com grupos: a Teoria das Representações Sociais, a Identidade, o Processo Grupal e novos campos para o embate ideológico: Linguagem e Imaginário. 5 GRUPOS E SUBJETIVIDADE 5.1 Conceituação Só no século XVIII, a palavra grupo vai designar ajuntamento de pessoas. A origem dessa palavra remonta a um termo técnico italiano das Artes Plásticas (groppo, gruppo), que designa vários indivíduos, pintados ou esculpidos, compondo um tema (ANZIEU; MARTIN, 1975). Além da “novidade” do conceito, Anzieu e Martin (1975), ao apresentarem diferentes concepções sobre grupos, indicam também que, até há pouco tempo, nas Ciências Sociais, havia um preconceito bem‑estabelecido contra a ideia do grupo, do pequeno grupo. Para alguns, esse mal‑estar em relação ao conceito estaria presente porque seria entendido como categoria para o entendimento do social, e esta supostamente comportaria a negação do indivíduo. Para outros, esse incômodo se estenderia ao próprio fenômeno grupo, como perturbador da personalidade – os grupos de jovens e os grupos partidários, por exemplo. Contemporaneamente, podemos reconhecer grupos definidos a partir de uma metáfora biológica (o grupo‑organismo) ou mecânica (o grupo‑máquina), ou simplesmente pelo ajuntamento de pessoas, nas multidões, nos bandos, nas aglomerações. A ideia de grupo também está presente em grupos nos quais os indivíduos se encontram face a face, os pequenos grupos sociais, ou nas organizações das quais todos participamos e por meio das quais temos um papel no jogo social. Para discutir qual ou quais os sentidos de um grupo social e tentar traçar uma dinâmica dos grupos, isto é, o movimento de uns em relação a outros, é necessário descrever algo da história dos estudos sobre grupos a partir das maneiras como eles têm sido definidos. Algumas das referências para essas definições têm sido a quantidade de membros (se são pequenos grupos, categorias sociais, a “massa”), a medida da sua organização (aglomerados, categorias sociais, grupos estruturados, organizações, instituições) ou a medida do relacionamento entre seus membros (face a face ou não). Geralmente, quando falamos em grupos, pensamos nos pequenos, aqueles dentro dos quais seus membros têm contato face a face, grupos que são estruturados, organizados por regras e com objetivos definidos, cuja ação está delimitada no espaço – por uma sala, um campo, uma instituição. Menos comum é chamarmos de grupos os agregados mais ou menos numerosos de indivíduos que não têm propriamente 42 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 Unidade II nenhum contato entre si, os amontoados percebidos por Sartre numa fila à espera do ônibus (uma série) que não estão sujeitos a normas claras de comportamento comum, conjuntos que compreendem meros aglomerados ou categorias sociais que indicam um relacionamento de ordem simplesmente distributiva. Estes últimos são aqueles das nacionalidades, da cor da pele, dos matizes ideológicos, do sexo ou da opção sexual. Contudo, mesmo nessa outra ordem de agrupamentos que se constitui a partir de sua simples nomeação, por um critério burocrático, filosófico, político e mesmo biológico ou étnico, tendemos a dizer dos indivíduos a eles pertencentes que se “comportam como um grupo”. Figura 10 – As mulheres são uma categoria social Tratamos a semelhança entre os membros dessas categorias com a mesma naturalidade com que compreendemos a semelhança entre os que pertencem a uma organização. Em alguns casos, todavia, a escolha da filiação e daquilo que ela implica está também no âmbito do indivíduo, que pode apresentar‑se como jogador do time tal ou como pertencendo a certa instituição religiosa, profissional ou acadêmica, por exemplo, ou filiado a uma determinada ONG. Em outros casos, não há escolha, mas a suposição de que, entre os nomeados de uma determinada maneira, há certa identidade de comportamento, incluídas aí visões de mundo, expectativas, disposições para a ação. Sobre essas pessoas socialmente nomeadas não se questiona sua pertença a uma categoria, embora elas sejam reconhecidas por essa identificação e esse reconhecimento implique a forma como os “outros” se comportam em relação a elas (ainda que esse reconhecimento possa fazer diferença entre tratá‑las ou não como seres humanos, entre segurança e assassinato, estupro, genocídio, exclusão social; enfim, violência). Essas maneiras de entender um grupo como uma unidade estruturada ou como uma categoria são bastante conhecidas e utilizadas pelos cientistas sociais (HARRÉ, 1984). Contudo, as pessoas de modo geral – e, mesmo em muitas ocasiões, esses mesmos cientistas sociais – tendem a tratá‑los como se fossem a mesma “coisa”. Espera‑se de indivíduos que pertencem a um grupo que se define pela nomeação, muitas vezes circunstancial, a mesma homogeneidade de comportamento dos indivíduos que fazem parte de grupos estruturados, mais permanentes, com normas e objetivos bem‑definidos. Esperar que um jogador de futebol tente marcar um gol nas redes do adversário pode ter o mesmo valor preditivo que a expectativa em relação ao comportamento de um simpatizante de um partido de esquerda quando em oposição a um certo governo (ser “contra”, por exemplo). 43 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 PSICOLOGIA DOS GRUPOS E SUBJETIVIDADE Essa concepção de que nos grupos estruturados determinadas regras dirigem a disposição dos indivíduos (como num jogo) é extrapolada para uma situação em que tais regras não existem senão implicitamente na imagem que acompanha aquela categoria. A garantia que se tem ao se afirmar a repetição de um comportamento (ser de esquerda para ser “contra”) para um grupo apenas categorizado baseia‑se na experiência social do sujeito que afirma isso e que apreendeu uma identidade para aquele grupo, reificada pela insistência em identificar grupos como sendo “assim”; afirmação que confirma uma tendência cada vez mais enraizada nos relacionamentos sociais contemporâneos: sua objetivação, coisificação (CARVALHO, 2002). Nesse sentido, basta ter um nome e o grupo se transforma em coisa. O grupo ou a categoria a que esse nome está associado passa a ser vinculado a uma imagem estereotipada, cristalizada, a algo mais do que a apenas uma palavra, o nome, desde que essa imagem implique também comportamentos estereotipados. Assim, o grupo tende a ser visto como algo que não se modifica, ou melhor, sua “inércia”, porque ele se tornou “coisa”, passa a ser muito grande – é difícil de mover‑se, de mudar de posição. Os movimentos em direção a qualquer mudança são difíceis, e ele vai se encontrar instalado efetivamente fora do tempo, que, de fato, parece não existir. Ele não se apresenta como referência para a identidade do grupo. Aqueles indivíduos que indicamos como parte de um grupo teriam sempre as mesmas características, independentemente do contexto no qual estivessem envolvidos. Essa imagem,que a partir do olhar do outro configura um grupo inerte, contamina o próprio grupo nomeado, de tal forma que o esforço de manutenção, espécie de trava que pretende garantir a paralisia e a identidade do grupo, não é algo exterior, mas se verifica entre os próprios nomeados, eles mesmos guardiães da estereotipia. Desse modo, uma mulher tende a comportar‑se como “uma mulher” de acordo com um modelo que está apoiado numa história do que devem ser as mulheres e que não tem mais suporte nesse momento da sociedade. Aproveitando o exemplo, o mesmo se pode considerar sobre as pessoas de “esquerda”, alienadas numa expectativa sobre o que isso significa, num mundo em que a crítica ao status quo é mais indefinida. Seja o grupo estruturado ou a categoria social, desde que tenham um nome, sua imagem estática, congelada, será a figura que o identifica; um “nome” cuja presença‑imagem participará da mediação entre os grupos, naquilo que regula e orienta seus movimentos uns em relação aos outros. O nome do grupo é sua bandeira, e é como algo cujo único movimento possível é o proporcionado pelo vento – por mais arrasador, não pode redesenhar o brasão. Tem‑se quase sempre procurado qualificar os grupos e seus movimentos no ambiente social (CARVALHO, 2002). 5.2 Uma história das ideias sobre grupos A representação que se tem de um grupo social compreende aquilo que se “vê” e o que se espera dele numa determinada circunstância. Assim, é preciso estar atento não apenas ao que está sendo representado e em qual contexto, mas também a quem representa, para se poder compreender, na história das ideias sobre grupo, as explicações que se oferecem a como e por que os indivíduos se associam, classificam e categorizam uns aos outros, assim como os efeitos dessas associações nos relacionamentos que ocorrem dentro dos grupos e entre eles. A discussão das ideias sobre grupos passa pelas histórias de constituição e da manutenção dos próprios grupos de pesquisadores, 44 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 Unidade II tanto nos seus aspectos simbólicos (a instituição de uma figura significativa, um líder, o fundador) quanto nos seus aspectos imaginários – imaginário entendido aqui a partir das considerações de Castoriadis (2007). Um dos principais organizadores da história das ideias sobre grupos pode ser identificado no entendimento sobre presença e importância do imaginário. As teorias sobre grupos tratam, com maior ou menor intensidade, da presença do imaginário nos grupos como um problema, um resto que precisa ser excluído: ora ele é privilegiado, deixando de lado tudo o que seria contextual, ora ele é descartado, quer pela sua pouca importância (na Psicologia Social americana), quer pela impossibilidade de manipulá‑lo (como na Psicologia Institucional francesa). Neste último caso, o imaginário é muitas vezes confundido com a ideologia, e os indivíduos e grupos que a ele se submetessem estariam alienados da “realidade” – como se fosse possível evitar sua presença cada vez mais “visível”. Na mesma perspectiva que garante o descarte do imaginário e de seu caráter perturbador, as teorias sobre grupo nessas diferentes correntes negligenciam a questão da linguagem no âmbito dos grupos. De um lado, pela simples ausência de importância oferecida à linguagem como marca e continente dos grupos sociais; de outro, mesmo quando a linguagem é reconhecida como elemento configurador do grupo, na ausência de discussão sobre quais entendimentos sobre a linguagem estariam presentes nessas correntes: se a linguagem é entendida como propiciadora de sentidos e de possibilidades (“meio universal”), ou como simples ferramenta (“cálculo”), tendo uma função meramente representacional (KUSCH, 1989). Em outras palavras, vários autores têm entrado nessa discussão sobre se as palavras instituem, constroem a realidade, ou se servem apenas para representar uma realidade que existe para “além” da linguagem. Uma pista para entender o debate sobre o imaginário e a linguagem nas Ciências Sociais e, assim, nos trabalhos sobre grupos está na compreensão de que imaginário e linguagem comportam, de fato, a “desordem” que não poderia ser equacionada no âmbito da ciência e que o próprio senso comum procura excluir, na tentativa de preservar o social como permanente (Lembra‑se da discussão sobre a identidade?). Na ciência, esses elementos não encontrariam lugar, seja em razão dos princípios que sustentariam uma abordagem científica na perspectiva do positivismo, e que se oferecem como paradigma científico, seja pela tradição dos grupos de pesquisadores no trato com tais elementos. Sua (quase) exclusão é tentativa de encobrir aquilo que não faz sentido, que implica a própria presença do pesquisador, de sua identidade, de sua história e de suas escolhas, de presenças que resistem à razão e à ordem mais imediata: a das leis e normas que regem os objetos naturais. É também tentativa de resistir à inclusão de elementos que se encontram em profunda e contínua transformação e que teimam em não se submeter à permanência que um olhar organizador solicita. Lembrete Positivismo é a doutrina que Augusto Comte (século XIX) propõe como fórmula para constituir as Ciências Sociais nos mesmos princípios das Ciências Naturais, fundada na separação entre sujeito e objeto do conhecimento. 45 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 PSICOLOGIA DOS GRUPOS E SUBJETIVIDADE Dentre os diferentes entendimentos sobre os grupos e as tradições históricas e filosóficas às quais estão vinculados, uma chave para sua apresentação é percorrer a incidência do imaginário nesses universos. Destacamos, inicialmente, a Psicologia dos Grupos voltada para as questões individuais, marcadamente ideológica, de ordem funcionalista, uma Psicologia Social dos pequenos grupos naturais. Esta se verifica mais intensamente no âmbito da Psicologia Social americana, com autores como Lewin, Newcomb, Asch, Stoessel e Maisonnave, e é voltada para os problemas de produção e de eficiência, seja num grupo de soldados ou de operários, seja num grupo terapêutico, estudando os relacionamentos intragrupo, a liderança e a motivação. Na outra ponta, na Psicologia Social das categorias sociais, estão os estudos sobre grupos que colocam em jogo os elementos da história e da cultura nas quais os grupos estão inseridos. Alinhados à Psicologia Social “sociológica”, que veio se desenvolvendo principalmente na Europa do Pós‑Guerra, esses estudos que privilegiam os fatores históricos, ideológicos e políticos identificam a Psicologia Social europeia e os trabalhos de autores como Tajfel, Doise e Moscovici. Numa posição intermediária em relação a essas duas vertentes, no que diz respeito aos estudos sobre grupos, estariam os trabalhos sobre Psicoterapia de Grupo, sejam ou não de inspiração freudiana, mais ou menos próximos da vertente americana, como Moreno, ou da vertente europeia, como Guattari, e os desenvolvidos por psicólogos sociais sul‑americanos, como Baremblitt, Bauleo, Bleger e Pichon‑Rivière. Em qualquer das vertentes da Psicologia Social – a Psicologia Social dos pequenos grupos naturais, a Psicoterapia de Grupo ou a Psicologia Social das categorias sociais –, a presença do imaginário como elemento para identificação e mediação entre os grupos traz, de maneira indiscutível, a tensão entre a ordem e a desordem no âmbito dos grupos. 5.2.1 A Psicologia Social dos pequenos grupos A PsicologiaSocial americana tem sua fundação filosófica no funcionalismo de William James e no pragmatismo de John Dewey. Aquilo que é social nessa Psicologia diz respeito a sua função e utilidade, bem como sua localização fora do contexto e do tempo, no limite do tempo do “eu‑grupo”, isto é, o social entendido como coisa, naturalizado. Num contexto cultural e social, o norte‑americano, no qual se dará a valorização e o engrandecimento do “eu” com a apropriação dos princípios humanistas para mitificação de uma cultura narcisista, a Psicologia Social oferecerá recursos para o estudo e a implementação do que seja o melhor funcionamento dos grupos. As pesquisas sobre a dinâmica de grupos, em especial, irão exigir uma concepção de grupo na qual este possa ser compreendido a partir de sua estrutura “física”, com os participantes organizados a fim de definir objetivos e estratégias para alcançá‑los, desempenhando tarefas e obedecendo às normas de funcionamento do grupo (LEWIN, 1973). 46 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 Unidade II Figura 11 – Grupo face a face Esse pequeno grupo, face a face, necessariamente estruturado, é o grupo típico dos setores administrativos dos empreendimentos capitalistas, alvo dos profissionais de Recursos Humanos. Caracteriza um entendimento de grupo cuja história recente, reforçada pela importância dada aos aspectos gerenciais – e de controle – das relações humanas, seja numa empresa, seja numa organização como o exército, remonta à Segunda Grande Guerra, quando se dará importância especial ao estudo dos pequenos grupos. Traçando a história desses estudos, o autor definirá esses pequenos grupos como compostos de duas ou mais pessoas que entram em contato para determinado objetivo (MILLS, 1970). Estão implícitas aqui as ideias de proximidade, de frequência e de intensidade no contato entre os membros do grupo. O estudo dos pequenos grupos justifica‑se pela sua importância como microcosmo social, pelo atravessamento das pressões sociais, pela densidade afetiva e, portanto, pela influência que exerce sobre o indivíduo. De maneira geral, no pequeno grupo o sujeito é, ou procura ser, sujeito. Figura 12 – Grupo de soldados Essa concepção, apoiada no estudo dos pequenos grupos, aponta a ênfase na sua importância funcional, isto é, sabendo que os grupos influem no comportamento e, mais ainda, no desempenho do indivíduo, é preciso entender seu funcionamento e sua dinâmica, conhecer suas variáveis e, assim, poder operar sobre ele. Dessa forma, os cientistas sociais (sociólogos e psicólogos sociais) não investiram apenas em pesquisas que oferecessem informações sobre a dinâmica dos grupos, mas também em instrumentos de intervenção grupal, inclusive clínicos. Assim, os modelos para o estudo dos pequenos grupos têm como referência a sua funcionalidade, o quanto são operacionais 47 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 PSICOLOGIA DOS GRUPOS E SUBJETIVIDADE para o pesquisador e para os próprios membros do grupo. Para tais pesquisadores (Bales, Festinger, Heider, Deutch), os grupos apresentam‑se como unidades nas quais seus membros buscam a satisfação de suas necessidades individuais. Essas visões sobre grupos encontram‑se num contexto em que a associação presta‑se de uma forma ou de outra à otimização de seu funcionamento em direção a um determinado objetivo (MILLS, 1970). Os critérios para esses entendimentos não relacionam sequer o contexto no qual esses grupos estariam inseridos, excluindo aqui toda e qualquer referência à dimensão imaginária nos pequenos grupos. Nessa mesma tradição, incluem‑se as pesquisas desenvolvidas por Kurt Lewin. 5.2.2 A dinâmica de grupo de Kurt Lewin Criador da expressão dinâmica de grupo, Kurt Lewin tem como uma das principais contribuições de sua Psicologia Social as investigações sobre a solução de conflitos nos pequenos grupos. Lewin propôs‑se a estabelecer os conceitos e a metodologia que, dando conta das dinâmicas nos pequenos grupos, fossem também abrangentes o suficiente quanto ao entendimento e à intervenção nos grupos sociais. Nas pesquisas com grupos de crianças em que se variava o clima das relações com um monitor (autoritário, democrático, laissez‑faire), ele procurou identificar o efeito do ambiente político e de suas mudanças sobre a capacidade dos indivíduos de realizarem tarefas, assim como suas repercussões sobre a satisfação e a agressividade. A “descoberta” do clima democrático como o mais adequado à produção teve enorme repercussão durante a Segunda Grande Guerra (ANZIEU; MARTIN, 1975). Figura 13 – Memorial da Segunda Guerra Mundial (Washington, EUA) Os estudos sobre a dinâmica dos pequenos grupos realizados por Lewin buscariam responder a duas perguntas relativas ao funcionamento dos grupos sociais nesse contexto tão decisivo da nossa história: como se pode produzir o nazismo como fenômeno psicológico? Qual a prevenção psicológica contra ele? Temas de seu grande interesse – ele próprio judeu e egresso da Europa durante a guerra. A importância alcançada por Lewin na Psicologia Social americana pode também ser encontrada no seu linguajar físico, ao tratar do confronto de forças intragrupos e intergrupos, o que conferiria um maior reconhecimento científico às suas teorias. Com seu interesse aumentado pelo fascínio que o desenvolvimento de tecnologia, inclusive para a manipulação de seres humanos, produziu a partir das Grandes Guerras, como “arma” contra literalmente quaisquer problemas, inclusive os sociais, as teorias de Lewin viriam a reafirmar as concepções sobre pequenos grupos, que, desenvolvidos em ambiente de guerra, serviriam para a otimização de seus comportamentos. 48 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 Unidade II Observação O nazismo foi a doutrina política conduzida na Alemanha por Adolf Hitler que, entre outros fatores, levou o mundo à Segunda Guerra Mundial. Movimento nacionalista, racista e fascista, o nazismo buscava uma supremacia de raça. É importante reconhecer que Lewin foi inovador ao abordar aspectos da personalidade como referidos ao contexto cultural e, mais do que isso, político, ao tratar da presença da democracia, dando status científico a essas considerações. Também é importante considerar o contexto em que são feitas suas pesquisas: em meio às Grandes Guerras, num ambiente em que parecia ser preciso marcar a diferença entre o “povo alemão” e o “povo americano” – de sua nova pátria. Ainda assim, mesmo reconhecendo os aspectos históricos dos fenômenos grupais, herança notável de sua formação científica europeia, Lewin elabora nessa mesma tradição um entendimento sobre grupos tratando daquilo que é “visível”, ainda que seja seu efeito, como as forças de atração e de repulsão interindividuais. Nas suas considerações, em que pese a importância da valoração dos grupos e de suas diferenças, elementos essencialmente simbólicos, o grupo continua mantendo uma existência natural. Portanto, não são consideradas as dimensões imaginárias (isto é, afetivas, sócio‑históricas) nos fenômenos grupais, as quais poderiam auxiliar na explicação do que produz e sustenta essas valorações e diferenças. 5.2.3 As psicoterapias de grupo Os pequenos grupos, face a face,são exemplares de relações que parecem dar‑se in natura, nas quais o que importa é o aqui e agora. Eles são típicos das organizações sociais, que parecem mais simples, nas quais a quantidade de pessoas envolvidas, a proximidade do contato e a caracterização mais insistente desses conjuntos de pessoas como uma unidade conferem a impressão de que suas determinações, sua dinâmica, aquilo que explica o funcionamento dentro do grupo (intragrupo) pode prescindir do que é “exterior” a ele e que o atravessa: o social e a história nos quais ele está imerso, elementos supostamente perturbadores de sua ordem. Assim como os estudados por Kurt Lewin (operários, estudantes, soldados), outros exemplos de pequenos grupos podem ser encontrados no âmbito das psicoterapias de grupo, consideradas aqui como modalidade da Psicologia Clínica que vem sendo desenvolvida concomitantemente com os avanços das psicoterapias individuais desde o início do século XX e como prática que se encontra no âmbito da Psicologia Social. Nessas práticas terapêuticas, será possível apreender uma ideia de grupo que ocupa uma posição central no conjunto dos conceitos que as definem e que lhes oferecem sentido. As soluções oferecidas aos indivíduos que se submetem à terapia grupal, seja ela estritamente clínica, tenha ela um viés político ou instrumental, dependem da concepção do que seja um grupo. A quantidade e diversidade de orientações, princípios e objetivos que sustentam as práticas de terapeutas fundamentadas em Bion e Moreno, entre outros, respondem às diferentes histórias que congregam os vários grupos de teóricos e profissionais que se 49 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 PSICOLOGIA DOS GRUPOS E SUBJETIVIDADE associaram a um ou a outro desses nomes. Quando, porém, escolhemos o imaginário como fazendo fundo para as diferenças, isto é, quando percorremos no contexto das psicoterapias de grupo, bem como as ideias sobre grupos que elas comportam, e discutimos a presença do elemento “perturbador” – o imaginário –, deparamo‑nos com um cenário no qual há mais semelhanças do que diferenças. O imaginário será visto, muitas vezes, como componente causador de perturbação, justamente quando é mais visível, sensual, perceptível, banhado do afeto envolvido nos relacionamentos face a face. O momento em que quase se pode tocá‑lo é quando sua presença mais será negada ou demonizada. O posicionamento em relação ao imaginário nas psicoterapias de grupo não está marcado necessariamente pela disposição científica ou ideológica do pesquisador, pela sua ânsia por verdade ou justiça social. Parece depender, antes, do preconceito ontológico contra tudo o que não possa ser perfeitamente equacionado, o que não significa que não possa ser compreendido – herança do cientificismo nas Ciências Sociais. As considerações de autores como Lancetti (1994), Pontalis (1972) e Guattari (2005) discutidas a seguir são exemplares de alguns dos principais posicionamentos sobre os pequenos grupos terapêuticos: a vertente mais politizada e engajada da psicoterapia institucional francesa e a mais histórica e filosófica da Psicanálise também francesa. Todas elas revelam a presença/ausência do imaginário e da linguagem nos grupos a partir de diferentes perspectivas teóricas, como o psicodrama, a Psicanálise ou a grupoterapia engajada politicamente. Esses autores discutirão a presença das disposições afetivas e não racionalizáveis na Psicoterapia de Grupos. Para Lancetti (1994), a atenção metodológica que se tem dado aos grupos nas mais diferentes circunstâncias e modalidades em psicoterapia tem servido, entre outras coisas, a uma proposta ideológica: melhorar as relações entre os indivíduos, nas famílias, nas instituições, na produção. Nesse sentido, a Psicoterapia de Grupo tem como modelo as práticas que orientaram o estudo dos conjuntos de pessoas no Pós‑Guerra, quando se verificou, como já foi visto no contexto da Psicologia Social americana, a importância das circunstâncias grupais para a produção. Lancetti (1994) defende a tese de que os estudos sobre grupos, paradoxalmente, comportam uma ideologia individualista. Os movimentos que se verificam nos grupos seriam similares aos dos indivíduos, solicitando entendimentos e intervenções que deixam à mostra a intenção de promover, antes de tudo, a modificação do comportamento do outro por meio de técnicas de grupo, que poderiam, no limite, ser responsáveis por “uma forte promoção narcísica” (LANCETTI, 1994, p. 87). A instituição de grupos, nos quais se produz a individualização do grupo e a grupalização do sujeito, teria como função “obturar a função desejante do indivíduo e oferecer um dos melhores exemplos do que Guattari chamou de grupos submetidos” (LANCETTI, 1994, p. 87). Neles, a ideia de grupo, segundo a crítica de Lancetti, está contaminada com o que seria o funcionalismo da Psicologia americana: ele encontra nas psicoterapias de grupo a mesma preocupação com a “produção”, que pode ser verificada nos trabalhos de Kurt Lewin, por exemplo. Todavia, também a Psicoterapia de Grupo via Psicanálise estaria contaminada, segundo ele, por uma presença que viria a distorcer o real e a iludir o grupo quanto à sua cura: a presença do engano (o imaginário) claramente identificado ao falso, à invenção, em franca oposição à razão e, portanto, sem valor, senão como perturbador da realidade. Para Lancetti (1994), a ilusão (o imaginário) é compreendida como um problema que precisa, de alguma forma, ser controlado e extraído. 50 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 Unidade II Figura 14 – Terapias de grupo/terapia comunitária (Tenda Che Guevara FSM) 5.2.4 Dos grupos diagnósticos à Psicanálise: as críticas de Pontalis e Guattari Produzidas durante a década de 1950 e o início dos anos 1960, as considerações de Pontalis (1972) sobre a Psicoterapia de Grupo comportam referências importantes sobre a questão do contexto e da história no entendimento dos grupos sociais. Percebendo nas práticas clínicas em grupo distorções tanto de ordem ideológica quanto técnica, ele discute o que entende ser uma leitura equivocada dos textos freudianos sobre grupos. Para Pontalis, o que assegura a existência de um grupo humano é sua função institucional, isto é, o seu lugar num universo simbólico. O pequeno grupo deve ser pensado não como absolutamente independente, mas sempre como inserido no contexto social. As práticas de intervenção sobre os grupos, dentre as quais ele destaca o psicodrama de Moreno, pretenderiam, equivocadamente, reduzir as barreiras imaginárias que bloqueiam, retardam e perturbam um processo natural, resolvendo, assim, problemas de comunicação entre os indivíduos. Nesse caso estariam todas as práticas em Psicoterapia de Grupo que compreenderiam sua não contextualização, tomando o grupo como unidade completa e independente do social, sem referência exterior. Estão aqui também a corrente psicossociológica, que pretenderia o ajuste dos comportamentos por meio de práticas grupais, e também as práticas inspiradas numa visão biologizante de grupo, que faz dele, em qualquer circunstância, uma unidade em desenvolvimento, em que não cabem o caos e o imponderável associados ao imaginário. Segundo Pontalis (1972), desde o grupo diagnóstico ou terapêutico (T‑group), inventado em 1947 nos EUA por discípulos de Kurt Lewin, os grupos são necessariamente artificiais. O T‑group seria um grupo sem passado e sem futuro, quecomporta uma realidade falseada, em que se amplificam situações que, na realidade, não teriam a mesma intensidade. A partir daí, a história das intenções e práticas comportadas nos trabalhos com grupos inicia‑se pelo interesse numa Pedagogia comunicativa (é preciso que haja comunicação no grupo), passando pela ênfase no autoconhecimento do próprio grupo, de como ele “funciona”, até bastar‑se como espaço para a experiência, sem nenhuma outra finalidade. Nessa história, os grupos não têm mais modelos normativos, nos quais se trate do seu desenvolvimento. Quando essa concepção ainda pode ser percebida, isto é, quando o grupo é entendido como em desenvolvimento, tal qual um organismo, isso se dá como tentativa de isolar os significados possíveis da experiência grupal, e a Psicoterapia de Grupo continua descaracterizada quanto à sua possibilidade de intervenção social – e clínica. Portanto, a técnica, qualquer que seja (lewiniana, psicodramática, psicossociológica, sociométrica), seria, para Pontalis (1972), comandada pela ideologia e, assim, as 51 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 PSICOLOGIA DOS GRUPOS E SUBJETIVIDADE supostas diferenças entre as várias tendências quanto a seu aparato “técnico” seriam, de fato, mínimas, acentuadas apenas pelos diferentes vocabulários que adeptos de umas e outras utilizam. Por meio dessas técnicas, o indivíduo na Psicoterapia de Grupo será tratado, de uma forma ou de outra, como subgrupo que precisa ser integrado à sociedade e à realidade, uma forma de adaptação ao contexto e de negação das dimensões imaginárias nas quais está inserido. Num texto posterior, Pontalis (1972) encontrará no início da década de 1960 a Psicoterapia de Grupo sendo exercida mais frequentemente como Psicanálise Aplicada. As práticas com grupos, assim como a Psicanálise, estão na moda e são apresentadas ora como instrumento de formação, ora como ferramenta terapêutica. Assinalando sua dúvida quanto à pertinência da separação entre terapia e formação na prática de grupos, Pontalis identifica, nessa mesma linha, a precariedade, muitas vezes, em definir os objetivos de um trabalho de grupo, descritos sem parcimônia como a tentativa de sensibilizar os participantes para os “fenômenos de grupo” (PONTALIS, 1972). O autor reconhece, em relação aos estudos de grupo, que continuaria havendo uma diversidade quanto às influências (Lewin, Moreno), quanto às técnicas (experimentalista, observação clínica) e quanto aos modelos (matemático, organicista, psicanalítico), mas indica que essas práticas teriam sofrido um “banho” de Psicanálise que, ao mesmo tempo que as teria habilitado como transformadoras e retirado seu ranço ideológico, diluiu ainda mais os conteúdos teóricos que as caracterizariam, tornando‑as menos rigorosas e ainda mais semelhantes. Nesse cenário, aqueles que antes eram críticos dos trabalhos de grupo como “engenharia humana” teriam reconhecido, depois, possibilidades de intervenções grupais transformadoras, revolucionárias. As técnicas de grupo deixariam de ser necessariamente ideológicas, podendo ter outro “uso”. Seja como for, a ideia de grupo nessas práticas psicoterapêuticas, tanto antes quanto nesse ponto, continua sendo, fundamentalmente, subsidiária de uma prática, de uma ferramenta, ainda que alcançando uma dimensão social que inicialmente parecia desnecessária. A contribuição da Psicanálise para a Teoria dos Grupos, segundo Pontalis (1972), está inicialmente nas tentativas de encontrar, nos grupos, similares das instâncias da personalidade da segunda tópica freudiana (ego, superego, ideal do ego). Será com Bion, entretanto, que a Psicanálise virá a oferecer uma nova dimensão para a Psicoterapia de Grupo, com as diferenças entre os grupos de base e os grupos de trabalho, bem como o conceito de hipótese de base. Enquanto os grupos de trabalho são aqueles organizados para uma tarefa, os grupos de base caracterizam‑se por não estarem presos a normas de funcionamento, mas a circunstâncias, como o horário da sessão de psicoterapia. Esses grupos não têm tarefa, ou ela é (re)definida permanentemente pela sua história. Já as hipóteses de base seriam responsáveis por organizar o grupo, orientando, por exemplo, a escolha de um líder, por meio de critérios de dependência (de um líder), de duplicação (esperança messiânica no fim das dificuldades do grupo) ou de ataque e fuga (como estratégia de manutenção), e fundamentam‑se nas teorias de Melanie Klein sobre os mecanismos de defesa infantis. De acordo com Bion, citado por Pontalis (1972), o grupo seria um agregado de indivíduos, e mais, possuiria um fantasma, isto é: [...] uma realidade estruturada, que age, capaz de informar não apenas imagens e sonhos, mas todo o campo do comportamento humano (p. 218). É isso que o grupo provoca nos indivíduos, o efeito desse fantasma. Quando o indivíduo se vê face a face com um grupo, isso lhe provoca efeitos fantasmáticos, quanto a se o grupo é um “bom” objeto – com o qual pode aliar‑se, sumir nele como indivíduo – ou um “mau” objeto –, um grupo persecutório, 52 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 Unidade II que o ameaça de destruição. Nos dois casos, está em jogo a morte do indivíduo, prevalecendo o grupo. Nessa perspectiva bioniana, Pontalis reconhece, se não efetivamente uma novidade nos estudos sobre grupos, ao menos um retorno a questões já formuladas pela Psicanálise a respeito disso e que resgatam a importância, inclusive clínica, do imaginário no entendimento dos grupos: Não basta mostrar os processos inconscientes que operam no seio do grupo, por mais sabedoria que se possa provar: enquanto se colocar fora do campo da análise a própria imagem do grupo, com as fantasias e os valores que ela carrega em si, na realidade se evitará qualquer pergunta sobre a função inconsciente do grupo (PONTALIS, 1972, p. 222). Observação Melanie Klein, psicanalista inglesa do século XX, seguidora de Freud, é responsável por uma leitura muito original e provocadora da obra freudiana. Apesar da importância dada a Bion por Pontalis (1972) no que diz respeito às ideias sobre grupos contidas no âmbito das psicoterapias grupais, é com Guattari (2005) que vem tomar corpo aqui, mais efetivamente, também por meio da Psicanálise, uma dimensão crítica e transformadora. Tratando de um determinado tipo de grupo, o “grupo‑sujeito”, Guattari afirma que eles: [...] se definem por coeficientes de transversalidade que conjuram as totalidades e hierarquias; são agentes de enunciação, suportes do desejo, elementos de criação institucional; por meio de sua prática não deixam de se confrontar com o limite de seu próprio sentido, de sua própria morte ou ruptura (GUATTARI, 2005, p. 14). Assim, o grupo‑sujeito deveria atuar como uma “máquina de guerra”, uma “máquina de desejo”, sem pretensão de ser vanguarda ou de hegemonia, “senão como simples suporte que permita a transferência e a desaparição das inibições” (GUATTARI, 2005, p. 17). Desse modo, Gilles Deleuze faz a apresentação de uma das ideias ou funções de grupo que Guattari (2005) conceitua para tratar de um grande problema, como já o havia definido Pontalis (1972): a oposição – ou composição – do grupo como realidade social e do grupo como “subjetividade”, tendo a Psicanálise como pano de fundo. Nessa tentativa, Guattari (2005) visa dar sustentação a um projeto político e revolucionário de intervenção social, que toma os grupos como capazesde movimentos de transformação, desde que se leve em conta não só seus aspectos históricos, como pretenderia uma concepção marxista, mas também os aspectos imaginários dos grupos (o “fantasma” do grupo), razão pela qual foi violentamente criticado pelas instituições de esquerda francesas na década de 1960. Nas duas modalidades de grupo propostas por esse autor (o grupo‑sujeito e o grupo‑objeto), localiza‑se um quantum de imaginário, que está ora “sob controle”, como nos grupos‑sujeito, ora inundando o grupo, como nos grupos‑objeto. O imaginário, antes de ser uma marca permanente do grupo, apresenta‑se para ele como uma função que não pode ser excluída da experiência grupal, e assim 53 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 PSICOLOGIA DOS GRUPOS E SUBJETIVIDADE deve ser interpretado. Se não o for, mesmo os grupos ditos revolucionários tenderão a grupos‑objeto, isto é, completamente “imaginarizados”. Esses grupos “dominados” pelo imaginário ficariam, assim, distantes de seu objetivo transformador, e se verificaria neles o crescimento da burocracia em detrimento da sua criatividade social. Somente os grupos‑sujeito, ou a atuação dessa função no grupo, escapando à burocracia, seriam capazes de induzir movimento. Discutindo seu próprio histórico de relacionamentos e suas implicações com uma grande variedade de grupos, como estudantes, políticos, universitários, acadêmicos e, especialmente, grupos revolucionários, Guattari (2005) procura definir mais precisamente as duas funções que explicariam os movimentos gerais dos grupos. Citando Freud, ele afirma que existe uma série contínua entre o estado amoroso, a hipnose e a formação coletiva – lá onde estaria a alienação – e que o neurótico acaba por substituir suas formações sintomáticas pelas grandes formações coletivas (as instituições da humanidade), criando seu próprio mundo imaginário. Da mesma forma, Guattari (2005) acabaria por encontrar algo equivalente também nos indivíduos que pertencem a grupos sociais, mesmo os tidos como revolucionários, como partidos de esquerda ou grupos de jovens, e que poria por terra a distinção fácil entre grupos “revolucionários” e “não revolucionários” quanto sua potência de transformação social. Figura 15 – Estamos preparados para a revolução? Os grupos submetidos ou grupos‑objeto são aqueles que recebem dos outros suas determinações e que não podem recuperar sua função desejante, porque passam a “desejar” a sobrevivência grupal, operando não contraditoriamente. Por outro lado, os grupos‑sujeito propõem‑se a recuperar sua lei interna, seu projeto, sua influência sobre os outros grupos, que encontrariam similar, em princípio, nos grupos revolucionários (GUATTARI, 2005). Mesmo caracterizado assim, um grupo não seria, definitivamente, grupo‑sujeito ou grupo‑objeto, e Guattari (2005, p. 192) acaba por indicar essas duas maneiras de ser do grupo como funções: Dizemos que o grupo‑sujeito se articula como uma linguagem e se articula no conjunto do discurso histórico, enquanto o grupo‑objeto se estrutura de um modo espacial, com uma forma de representação especificamente imaginária que é o suporte do fantasma do grupo; mas, na realidade, se trata mesmo de duas funções que inclusive podem aparecer conjuntamente. 54 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 Unidade II Haveria, portanto, grupos‑sujeito, que se deixam embalar por seus fantasmas, e grupos‑objeto, nos quais se apresentam momentos de subjetividade do grupo. Para que um grupo se confirme ou se mantenha como grupo‑sujeito, é necessário que haja uma articulação entre a criatividade do grupo, sua expressão organizativa e sua elaboração teórica. Além disso, com o grupo‑sujeito definido como não produtor de burocracia, mas de movimento, a proposta desse conceito viria a opor‑se ao entendimento do que seriam as instituições sociais, como organizações detentoras de formações imaginárias que comprometeriam inapelavelmente esse movimento. Tais formações seriam comuns a todo e qualquer grupo social, desde que os grupos não estão sujeitos apenas a injunções contratuais (racionais), mas responderiam também a “forças” subjetivas, caóticas, imponderáveis, irracionais, inconscientes, que estariam a serviço da manutenção da permanência reificada dos grupos e dos indivíduos (GUATTARI, 2005). Desde que grupo‑objeto e grupo‑sujeito possam ser pensados como funções, Guattari (2005) sugere que o imaginário nos grupos poderia ser suplantado por meio da instituição de um analisador, o que faria surgir o grupo‑sujeito como “campo de leitura dos fenômenos inconscientes”, provocando uma mudança no fantasma do grupo. Tal mudança pode ser efetivada, já que, para para o autor, o fantasma não seria único, definitivo, nem se apresentaria como marca da essência de um grupo. Pode ocorrer que o fantasma originado em um indivíduo ou em um grupo particular venha a servir circunstancialmente de suporte à “fantasmatização” do grupo, da mesma forma que os individuais também serão função de certo fantasma coletivo. É justamente o caráter circunstancial do fantasma de grupo, diferente do fantasma individual, que pode abrir caminho para a transformação do grupo, catalisada pela função “grupo‑sujeito”. Os grupos oscilariam, dessa forma, entre dois tipos de fantasmas, de acordo com a quantidade de imaginário que eles comportem: de um lado, os fantasmas de base, dos grupos submetidos, mais fundamentais, institucionais, que dependem do caráter de submissão do grupo (os aspectos imaginários na igreja, no casamento, no partido político, por exemplo); de outro, os fantasmas transicionais, associados aos grupos‑sujeito, capazes de mudanças, ligados ao processo interno de subjetivação que corresponde às diferentes transformações do grupo, como a teoria num partido revolucionário. Para Guattari (2005), as intervenções institucionais devem levar em conta estes aspectos dos grupos: funções e fantasmas. Um grupo que tenha as funções imaginárias “funcionando bem” é aquele no qual as pessoas sentem‑se “em casa”. Ali, o fantasma do grupo é transicional. Nos grupos que não estão “lutando” por sua permanência, há possibilidade de avanço. Nos outros, o sujeito paga com a paralisia a oferta de manter‑se “vivo”. O autor oferece como exemplo destes últimos um grupo político‑revolucionário no qual a burocracia supera seu objetivo transformador: ainda que buscando a transformação, esse grupo revolucionário não se apresenta como parte do jogo, isto é, como inserido num espaço de mudança permanente de seus lugares e funções sociais, de sua identidade. A função imaginária nos grupos‑objeto, presente num certo fantasma de grupo, compele os indivíduos a procurar esconjurar a morte. Associados num “sentimento de eternidade” (2005, p. 198), isso implicaria, no entanto, e paradoxalmente, certo tipo de morte no grupo, desde que permanece, mas nele não há movimento. O “efeito morte”, para Guattari, não está alicerçado apenas na presença do imaginário no grupo: pelo contrário, se o imaginário “funcionasse bem”, os indivíduos não se perceberiam num movimento em direção à fusão com o absoluto; ao contrário, eles estariam abertos para o desejo, isto é, livres para ser. O “efeito morte” será, assim, determinado não pelo imaginário, mas pela função que ele desempenha. 55 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éia An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 PSICOLOGIA DOS GRUPOS E SUBJETIVIDADE Lembrete O conceito de imaginário, em Guattari (2005), guarda semelhanças com aquele utilizado por Castoriadis (2007) proposto na confluência dos estudos marxistas e da Psicanálise. 5.2.5 A Psicologia Social das categorias sociais Depois da apresentação das concepções de grupo presentes em diferentes práticas na psicoterapia e nas práticas institucionais fundamentadas na Psicanálise, tratamos aqui da discussão sobre grupos no âmbito da Psicologia Social europeia. Nesse caso, o debate sobre o imaginário e a linguagem nas ideias sobre grupos tem uma história bastante recente. Reconhecida como tradição e campo de pesquisa científica a partir do final da Segunda Grande Guerra, a Psicologia Social europeia constitui‑se influenciada pela Sociologia de Durkheim e em oposição à hegemonia da Psicologia Social americana, situando suas preocupações nos grandes grupos sociais e em sua dinâmica (FARR, 2006). Nesse sentido, ao lado dos esforços para sistematizar métodos e procedimentos de pesquisa, os psicólogos sociais europeus irão dar especial importância à história e ao contexto, isto é, ao tempo, no desenvolvimento de seus trabalhos. Estarão marcados pela presença de discussões ideológicas, por teorias que garantem a prevalência do social, como o marxismo, e pelos processos que explicam os relacionamentos intergrupos, como a categorização social, base para se pensar a instituição e o pertencimento a grupos. Os pesquisadores alinhados a essa tradição europeia serão profundamente influenciados por questões sobre o comportamento e a dinâmica dos grupos sociais deixadas na esteira da Segunda Grande Guerra. A importância oferecida aos contextos social e político no Pós‑Guerra é um indicativo dos parâmetros que viriam a orientar os pesquisadores na tentativa de explicar, entre outros, o comportamento intergrupos, seja na preparação para a guerra, seja durante o seu desenrolar. Os grupos‑alvo dessas pesquisas serão predominantemente aqueles das categorias sociais, isto é, grupos caracterizados como sem estrutura e sem leis de funcionamento predefinidas, com objetivos circunstanciais, que têm membros cuja relação não será necessariamente face a face. Nessa tradição, encontram‑se os estudos sobre grupos desenvolvidos pelas escolas de Bristol e de Genebra, assim como os trabalhos realizados a partir da Teoria das Representações Sociais de Serge Moscovici. Nas considerações de Amâncio (2004) sobre a Escola de Bristol, situada na tradição de uma Psicologia Social de orientação sociológica, encontramos uma apresentação crítica dos trabalhos de Tajfel e Turner, seus principais representantes. Esses autores, ainda que vinculados a uma tradição sociológica de pesquisa, apresentariam os grupos sociais como estando a serviço de determinantes psicológicos, mais especificamente, da constituição e da manutenção de uma identidade controlada por processos cognitivos individuais, como motivações, reforçando a ideia do grupo como coadjuvante do self positivo e esvaziando sua dimensão solidária. 56 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 Unidade II Estudando o que determina a discriminação intergrupos, Tajfel e Turner opõem‑se às explicações que extrapolam o nível do individual e do interindividual para o das relações intergrupos, mais especificamente à atribuição do conflito como determinante da discriminação entre grupos sociais. O ponto de partida em Tajfel é o de que a percepção do que está à nossa volta não é uma ação puramente mecânica, mas comporta uma dimensão valorativa, na qual a categorização se apresenta como processo cognitivo fundamental e universal (apud AMÂNCIO, 2004). Nas experiências com grupos mínimos, paradigma experimental dessa concepção, verifica‑se, numa situação socialmente vazia, o favorecimento do grupo ao qual se pertence, em detrimento do grupo dos outros, com a categorização como condição mínima para a emergência da discriminação intergrupos. Nessa perspectiva, em que o autofavorecimento dos grupos orienta‑se pela busca dos indivíduos por uma identidade social positiva, Amâncio (2004) indica que: [...] os processos intergrupais de categorização e comparação sociais passam a ser regulados por uma motivação e o próprio grupo de pertença torna‑se uma entidade temporária e arbitrária, que serve de mero substituto funcional à satisfação de um self positivamente distintivo (AMÂNCIO, 2004, p. 296). Para a autora, se Tajfel situa a identidade num continuum entre o interpessoal e o interindividual, e Turner transforma o conflito interpessoal‑intergupo numa oposição entre o self e o grupo, entre uma identidade pessoal e uma identidade social, isso leva a uma ideia de grupo “como um simples meio de satisfação da necessidade psicológica de uma distintividade social positiva” (AMÂNCIO, 2004, p. 298). Apresentando os trabalhos desenvolvidos por pesquisadores vinculados à Escola de Genebra, representados por Doise, e que também fazem parte da tradição europeia de Psicologia Social, Amâncio (2004) afirma que eles preservarão conceitos como a ideia de categorização social e o paradigma do grupo mínimo, mas que os resultados dessa abordagem, ainda que integrando elementos da Escola de Bristol, afrontam princípios defendidos por Tajfel e Turner, como o da causalidade psicológica universal. Segundo a autora, para os pesquisadores de Genebra: [...] a dicotomia entre identidade pessoal diferenciada e identidade social homogeneizante torna‑se inaceitável, tanto teórica como empiricamente, visto que o comportamento do indivíduo, no interior do grupo e em relação ao grupo comparativamente relevante, não é universalmente orientado por uma motivação, mas sim por referências a normas e valores coletivos que a categorização intergrupos torna significantes (AMÂNCIO, 2004, p. 303). O processo de discriminação intergrupos que vai constituir as identidades sociais seria, assim, função dos elementos simbólicos que se situam na trama social, afastando essa concepção de grupos das explicações psicológicas e a localizando como francamente social. Propondo a ideia de uma diferenciação categorial, os autores da Escola de Genebra defendem que, no processo psicológico de estruturação do meio, os conteúdos das categorias não podem ser desligados dos seus critérios classificatórios e que tais critérios dependem fundamentalmente das 57 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 PSICOLOGIA DOS GRUPOS E SUBJETIVIDADE relações intergrupos. Aqui, o ponto de partida está em estudos sobre conflitos nas décadas de 1950 e 1960, cuja evolução entre os grupos é acompanhada por uma evolução nas imagens que cada grupo tem de si e do outro (AMÂNCIO, 2004). Doise irá complementar essas constatações incluindo a discussão sobre a dinâmica das representações dos grupos e afirmando que tais representações operam funções sociocognitivas que orientariam as interações entre os grupos: pela função seletiva, a diferenciação categorial dar‑se‑ia tendo o contexto como mediador; a partir da função justificativa, os conteúdos das representações que veiculariam uma imagem do outro grupo seriam justificados pelas posições de cada grupo no contexto da interação; a função antecipatória orientaria o desenvolvimento da relação entre os grupos. Assim, os trabalhos de Doise, em especial,observam uma maior interação entre o grupo e os indivíduos que o constituem, assim como entre as realidades simbólicas dos grupos e suas representações, num processo de constituição de identidades e diferenças sociais no qual os grupos se constroem, afetam os comportamentos dos indivíduos, e estes, por sua vez, interagem e corroboram a realidade dos grupos. 5.3 A Teoria das Representações Sociais (TRS) de Serge Moscovici 5.3.1 O pensamento do senso comum: os grupos pensam? Na tradição da Psicologia Social europeia e buscando caracterizar o que seria efetivamente uma dimensão sociocognitiva (os grupos pensam?), o francês Serge Moscovici irá propor, a partir da década de 1960, a Teoria das Representações Sociais (TRS). Para iniciar a apresentação dessa teoria, vale aqui uma pergunta: quais as relações entre o pensamento científico e o senso comum? Na tentativa de buscar uma resposta para essa questão num contexto de grande debate sobre a relevância do pensamento científico no Pós‑Guerra e de como esse pensamento era assimilado e transformado pelas “pessoas comuns”, Moscovici (1986) propõe o conceito de representações sociais, apresentado pela primeira vez no trabalho As Representações Sociais da Psicanálise, em 1961. Moscovici tem como ponto de partida a ideia de representações coletivas, antes proposta pelo sociólogo francês Émile Durkheim. É um dos fundadores da Sociologia como ciência, para quem as representações coletivas são instituídas na origem da sociedade humana e têm status ontológico, isto é, não se constituem como uma média das representações individuais, mas são formadas por um caráter universal e necessário, apoiadas na natureza (social). Na tradição de uma ciência sustentada pela razão e que busca na sociedade seu caráter positivo, verificável, concreto, Durkheim trata das representações coletivas como uma forma de conhecimento, próprio da sociedade, que é concebida como um “ser” que pensa: as representações coletivas “correspondem à maneira pela qual esse ser especial, que é a sociedade, pensa as coisas de sua própria experiência” (DURKHEIM, 1989, p. 513). 58 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 Unidade II Figura 16 – Émile Durkheim (1858‑1917) O conceito de representação coletiva procurava dar conta de determinados conhecimentos inerentes à sociedade, como a religião, os mitos ou a ciência. Entre eles, Durkheim destacou a religião como origem de todas as formas de conhecimento. No estudo da religião de povos “primitivos”, ele identificou formas elementares que estariam presentes também em religiões mais elaboradas (SÁ, 1994). A ideia original de Durkheim, que irá sustentar a proposta de um objeto próprio para a Sociologia, “um pensamento social”, contraria o senso comum e a concepção do pensamento como atributo do indivíduo e abre a porta para considerar‑se sociedade (e grupos) como entes para os quais cabe reconhecer e, então, estudar os processos que sustentam as representações. Moscovici, apoiado nesse debate, subverte, no entanto, a concepção durkheimiana e indica que a representação dos objetos e das teorias sobre os quais as sociedades humanas têm interesse são reconstruídos por essas sociedades num processo contínuo apoiado, fundamentalmente, nas relações entre as pessoas e os grupos sociais. Essa concepção de Moscovici pode ser contemporaneamente associada a outras preocupações e movimentos do pensamento nas Ciências Sociais, como sugere Arruda (2002, p. 10), ao falar das relações da Psicologia com outras áreas do saber: Estamos numa era de reforma do pensamento que desvela a complexidade do objeto da Psicologia e a ingênua veleidade de acreditar que podemos, a partir de uma única área de saber, dar conta dele. Isso projeta a Psicologia no território da interdisciplinaridade. Para a autora, seguindo o pensamento desenhado por Boaventura de Souza Santos (2010), vivemos um cenário em que se apresentam diferentes rupturas epistemológicas, isto é, movimentos que desafiam a hegemonia do valor dos conhecimentos já estabelecidos. A primeira dessas rupturas seria a do senso comum para a ciência, quando esta se constitui como campo hegemônico do saber. A segunda, da qual 59 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 PSICOLOGIA DOS GRUPOS E SUBJETIVIDADE estamos mais próximos no tempo, subverte e transforma esse entendimento, quando da passagem da ciência para o senso comum; mas um senso comum já transformado pela presença do pensamento científico e capaz de desafiar a hegemonia daquele pensamento. Os interesses de Moscovici (2003) na construção da Teoria das Representações Sociais apresentam‑se nessa convergência; mas, indo além, ele pretende constituir teórica e metodologicamente um campo de trabalho em que se possa recuperar não apenas a importância do senso comum, mas a do grupo (e do humano). Sinteticamente, a TRS apresenta uma concepção que pretende atender a um problema crônico nas Ciências Sociais: a relação entre o pensamento científico e aquele que se refere ao senso comum, o pensamento do grupo, propondo, nesse sentido, outro problema: os grupos pensam? A resposta a essa pergunta não é simples, porque propõe a superação de um entendimento bem‑estabelecido: o pensamento, para todos os efeitos, é um fenômeno individual. Como falar de um grupo que pensa? Como entender algo como uma cognição social? Moscovici (2003) vai, assim, construir uma teoria que pretende instituir uma maneira diferenciada de conceber a realidade dos grupos, o seu pensamento e, como decorrência, o comportamento e o devir dos grupos humanos. Deparando‑se com o que ele entendia ser um fenômeno, antes de ser um conceito, a representação social, Moscovici evita sistematicamente definir, na sua obra, as representações sociais, sucumbindo a esse esforço em poucos momentos. Numa das poucas vezes em que sugere uma definição, ele se refere às representações sociais como “uma rede de conceitos e imagens arranjados juntos de diferentes maneiras de acordo com as interconexões entre as pessoas e os meios que servem para estabelecer comunicação, cujos conteúdos se diferenciam continuamente através do tempo e do espaço” (MOSCOVICI, 1988, p. 222). Já Denise Jodelet (2001), psicóloga francesa do mesmo grupo de Moscovici, tentou materializar minimamente esse conceito e compreende uma representação social como: [...] uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. Igualmente designada como saber de senso comum ou ainda saber ingênuo, natural, esta forma de conhecimento é diferenciada, entre outras, do conhecimento científico (p. 22). Na passagem das teorias científicas para o senso comum, num processo mediado pelo diálogo entre os indivíduos, a Teoria das Representações Sociais redescobre nos grupos sociais uma explicação para o mundo que orienta o comportamento dos indivíduos no grupo. Considerando as representações sociais uma teoria do senso comum, e não uma teoria científica, como uma versão do senso comum, isso não lhes confere, no entanto, o status de pensamento primitivo ou menor. Ao contrário, a representação social apresenta‑se como uma categoria especial de conhecimento, variando de acordo com onde, quando e quem se serve dela. Sua presença e função podem ser verificadas no cotidiano de todos nós e não implicam uma apreensão “deficiente” da realidade,mas um entendimento socialmente determinado pelas relações humanas e que organiza nossa compreensão e ação no mundo. 60 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 Unidade II 5.3.2 Objetivação e ancoragem Moscovici irá considerar que o processo de elaboração de uma representação social, que ele caracteriza como do âmbito da cognição social, pode ser compreendido em razão de dois momentos: a objetivação e a ancoragem. A objetivação é o processo pelo qual se tenta reabsorver um excesso de significações, materializando‑as. A quantidade de significantes e indícios que um determinado grupo utiliza pode tornar‑se de tal maneira abundante que os sujeitos, diante dessa situação, procuram combatê‑la tentando ligar palavras a coisas. Aqui, Moscovici entende estar a dimensão imagética da representação social, que tem importância direta no seu processo de disseminação. É possível reconhecer esse movimento, por exemplo, ao se falar da representação social da Psicanálise. Ainda que se trate de campo complexo e suponha uma difícil assimilação, não podemos deixar de lembrar a figura de Freud, das práticas psicoterapêuticas e do sofrimento mental, cada vez que nos depararmos com um simples divã. Figura 17 – Um divã pode compor a representação social da Psicanálise A ancoragem é o outro lado da moeda em relação à objetivação. Ajusta o objeto representado à realidade da qual este foi sacado, promovendo a constituição de uma rede de significações em torno dele e orientando as conexões entre ele e o meio social. Assim, o objeto, via representação social, passa a ser um instrumento auxiliar para a interpretação da realidade. Nesse contexto, pode‑se verificar a dimensão conceitual e linguageira da representação social. Para não irmos muito longe, podemos recorrer novamente à Psicanálise como exemplo. É possível verificar o processo de ancoragem na associação que podemos fazer entre a prática religiosa católica da confissão e a Psicanálise: ambas ocorrendo num espaço reservado, com garantia de sigilo, possibilidade de se tratar de questões íntimas que o sujeito não traria para o espaço público. A prática psicanalítica como conceito viria ancorar‑se, assim, no conceito já conhecido de confissão. Exemplo de aplicação Considere outro exemplo do processo de disseminação das representações sociais na sua dimensão imagética: qual famosa marca de refrigerantes pode ser reconhecida pelo formato inconfundível de suas garrafas? 61 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 PSICOLOGIA DOS GRUPOS E SUBJETIVIDADE 5.3.3 Teoria das Representações Sociais e grupos De acordo com Moscovici, as representações sociais são função dos grupos, de sua experiência e daquilo que os identifica, sua identidade. Assim, pode‑se considerar que variam de acordo com determinado grupo. Isso é de tal forma importante que seria possível reconhecer a pertença (a relação com o grupo) por meio do estudo das representações sociais. Universitários versus operários, mulheres versus homens, cada categoria social apresentaria singularidades em relação às suas representações sociais de um determinado objeto/teoria. Apesar dessa associação, Moscovici e outros estudiosos da TRS têm recolhido exemplos de como, em um mesmo grupo, podem conviver diferentes representações sociais, o que foi chamado de polifasia cognitiva (MOSCOVICI, 1986). Nos estudos sobre a representação social da Psicanálise, Moscovici entendeu que havia evidências quanto a diferentes representações que coexistiam tanto em um mesmo indivíduo quanto em um mesmo grupo social, dependendo do contexto em que são produzidas e dos objetivos a que estão subordinadas. Conforme as condições nas quais as representações são evocadas, elas podem diferir e deixar transparecer diferentes racionalidades e sistemas para explicar a realidade. Dessa forma, as pessoas lançam mão de um ou outro desses saberes, dependendo das circunstâncias e dos interesses particulares que sustentam em um dado lugar e tempo. De acordo com Jodelet (2001), Moscovici propõe esse entendimento no contexto de debates ligados à diversidade do saber e da sua sobreposição, exigindo uma explicação que desse conta da convivência, no cotidiano, de diferentes abordagens do conhecimento, que vão da ciência a outras formas embebidas em outras racionalidades, como as crenças, as representações sociais etc. Alguns exemplos sobre as representações sociais podem ajudar a entender a valoração das experiências sociais e étnicas, de como o conhecimento é função da história e das circunstâncias concretas que levam os diferentes grupos sociais a instituírem representações sociais e a elas recorrerem. O primeiro, apresentado pelo próprio Moscovici (1986), afirma que a população de origem espanhola do sudoeste dos Estados Unidos possui quatro registros diferentes para classificar e interpretar as doenças: a sabedoria popular medieval do sofrimento físico, a cultura das tribos ameríndias, a medicina popular inglesa nas zonas urbanas e rurais, e, finalmente, a ciência médica. Tendo em vista a gravidade da doença e a situação econômica do grupo, eles recorrem a um ou outro desses registros para procurar a cura. Outro exemplo pode ser encontrado no estudo sobre populações de origem chinesa na Inglaterra e suas diferentes formas de cuidar da saúde, especialmente entre os adultos jovens. De acordo com Gervais e Jovchelovitch (1998), pode‑se constatar o uso de duas representações diferentes: a da medicina tradicional chinesa (MTC) e a da medicina ocidental. De acordo com o tipo de problema e a sua gravidade, os indivíduos buscam uma ou outra. Não fossem apenas as grandes diferenças entre os princípios e os métodos de cada uma dessas práticas, o que chamou a atenção da pesquisadora aqui foi a aparente contradição (o reconhecimento de uma prática deveria invalidar a outra), que é tomada pelo grupo com “naturalidade”: afinal, trata‑se de um uso que pretende ser, sempre, o melhor para resolver a questão de saúde. 62 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 Unidade II No que diz respeito à relação com os grupos, vale reiterar ainda outros aspectos das representações sociais,l um deles a linguagem. As representações sociais são definidas no contexto das relações, são entidades dinâmicas, mudando de acordo com o contexto social em que se apresentam. São relativas, assim, ao grupo que delas se apropria e, mais ainda, são função também da linguagem desse grupo, e, ainda, de como esse grupo usa a linguagem. Outro aspecto diz respeito às relações entre as representações sociais e o comportamento do grupo. Segundo Moscovici (1986), a representação social é compreendida também como comportando a preparação para a ação, isto é, não tem apenas status de constructo, mas é um “instrumento” nas inter‑relações cotidianas. O comportamento de um indivíduo ou grupo poderá ser assim entendido como referente ao universo de representações sociais que os caracteriza, e o estudo de uma certa representação social refere esse universo em relação ao qual o grupo se orienta. Assim, para investigar as condições grupais das representações sociais, é necessário observar as questões da história e do jogo dessas representações. Seguindo o sugeridopor Jodelet (1989) e Spink (1993), é especialmente importante o entendimento não apenas dos conteúdos, mas também dos processos sociais envolvidos nas representações, integrando essas duas dimensões e apelando para a história de sua produção como fonte de conhecimento. Uma chave para dar conta dessa preocupação é tomar como referência, para organização e categorização do contexto, conceitos como tempo longo (o imaginário social), tempo curto (a situação interacional) e tempo vivido (as disposições adquiridas em virtude da filiação a determinados grupos sociais), indicados por Spink (1993) e que se prestam a localizar o lugar ocupado por uma determinada representação social. Dinâmica, organizadora, integradora, histórica, a representação social apresenta‑se e reproduz‑se nas conversas do dia a dia, nas esquinas, nas praças e nos bares, instalando‑se de maneira que subverta as normas e a rigidez habituais de aprendizagem. Integrando o que é desconhecido, a representação social possibilita apontar a importância do senso comum nas ações dos indivíduos em suas realidades. Ao terminar este tópico, vale destacar uma dimensão menos explorada nas discussões teóricas sobre a TRS, mas muito importante quando se trata das práticas de investigação numa dimensão crítica. Como modelos compartilhados nas relações cotidianas, as representações sociais participam na definição das identidades pessoais e sociais. Sob esse viés crítico, compreende‑se que identidades e representações sociais estão sujeitas às condições de dominação e controle social, à influência da ideologia, e não podem ser entendidas como construídas em ambientes neutros e alheias a esses determinantes. Dessa forma, as representações sociais podem ser consideradas como ideológicas e potentes para cristalizar relações concretas de dominação (OLIVEIRA; WERBA, 2002), especialmente quando se trata da identidade. Para tomar aqui um exemplo, Mattos e Ferreira (2004), ao tratarem das representações sociais que um determinado grupo pode possuir sobre moradores de rua, discutem como essas representações podem estar a serviço de instituir uma condição permanente, naturalizada. As representações sociais sobre as pessoas em situação de rua podem estar a serviço de reforçar identidades que possuem intrinsecamente um valor negativo; nesse caso, seriam consideradas ideológicas, pois materializam relações concretas de dominação. 63 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 PSICOLOGIA DOS GRUPOS E SUBJETIVIDADE 5.3.4 Teoria das Representações Sociais, imaginário e grupos Discutindo as ideias sobre grupos presentes na Teoria das Representações Sociais, autores importantes como Jorge Vala e Rom Harré irão afirmar que estas classificam os grupos como categoriais. A partir daí, os autores apontam as consequências dessa caracterização para o estabelecimento da TRS como uma genuína teoria dos grupos sociais e, mais ainda, para sua filiação à corrente sociológica de Psicologia Social. Em tais considerações, abrem caminho para a introdução do imaginário nessa concepção de grupo social. Numa apresentação crítica da TRS, Vala (2004) faz um levantamento das concepções de grupo que perpassam pela Psicologia Social. Segundo o autor, fundamentados no processo de categorização, os psicólogos sociais teriam produzido, como vimos antes, pelo menos duas maneiras relativamente distintas de considerar um grupo. Na perspectiva cognitiva, como a de Tajfel e Turner, “um grupo só existe quando os indivíduos integram na sua autodefinição a inclusão numa categoria de pessoas produzida pelo processo de categorização” (VALA, 2004, p. 381). Já na perspectiva sociocognitiva de Doise, “um grupo existe quando os indivíduos integram na sua autodefinição a pertença a uma categoria social, sendo que esse processo é regulado pela interdependência dos grupos sociais” (VALA, 2004, p. 381). Para o autor, no entanto, o processo de categorização social implicaria utilizar não só o que ele chama de categorias “reais”, mas também aquelas decorrentes de certa história e contextos simbólicos, resultado do entrecruzamento das linguagens cotidiana, econômica, religiosa, administrativa e jornalística. Desse modo, a construção de representações sociais no âmbito do grupo seria um passo fundamental para o processo de categorização. Os indivíduos constroem representações sobre as estruturas sociais; estas, por sua vez, organizam a instituição dessas representações sociais de forma que, no esforço para o estabelecimento dos limites dos grupos, a pergunta “quem sou eu” englobe“o que significa ser membro desse grupo”. Isso quer dizer que a constituição de uma identidade grupal é função do universo simbólico (e imaginário) no qual os membros desse grupo estão imersos. Em oposição a esse entendimento do grupo como uma categoria, autores que representam uma Psicologia Social psicológica, como Horowitz, Rabbie, Deutsch e Sherif, indicariam, segundo Vala (2004, p. 382), que “um grupo social deve ser considerado como uma totalidade dinâmica, caracterizada pela interdependência entre os seus membros, enquanto uma categoria social corresponde apenas a uma simples coleção de indivíduos que compartilham, pelo menos, um atributo comum”. Assim, só haveria grupo quando houvesse interdependência e objetivos comuns, diferentemente do que se encontra numa categoria social. Vala (2004), mediando essa disputa, sugere que, em vez de se pensar uma diferença absoluta entre grupos e categorias, deve‑se considerar a organização social como um continuum, com grupos pré‑estruturados (categorias) e grupos estruturados (os “grupos” propriamente ditos), sem prejuízo de sua relevância teórica e metodológica. Nas considerações desse autor, encontram‑se argumentos para preservar o grupo categorial e a própria TRS no contexto de uma Psicologia Social sociológica; já Rom Harré irá colocar em xeque esse entendimento. As críticas de Harré (1984) às noções de cognição e de social que perpassam pela TRS estabelecem‑se a partir da distinção entre os grupos estruturados, aqueles cujas relações entre membros implicam direitos, obrigações e cumprimento de certos papéis, e os grupos categoriais, chamados por ele de taxonômicos, constituídos basicamente pelas similaridades entre seus componentes. 64 SS OC - R ev isã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o / L uc as R ic ar di / An dr éi a An dr ad e- D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i- 1 9/ 12 /2 01 3 Unidade II Esses grupos taxonômicos seriam entidades ideais, agregados, resultados de uma atitude classificatória arbitrária, feita de acordo com interesses que podem ou não ser justificados cientificamente (HARRÉ, 1984). Entendendo que no âmbito das representações sociais predomina a noção de grupo taxonômico, isso implicará, de acordo com Harré, uma compreensão do social como equivalente a um conjunto de indivíduos similares, uma pluralidade distributiva, fazendo da representação social uma “representação social distributiva”. Em última análise, a TRS, em vez de constituir‑se como produção exemplar de uma Psicologia Social sociológica, viria a ser apenas mais uma versão “psicológica” de Psicologia Social, reafirmando a ênfase no individualismo. Quanto a um exemplo de como essa ênfase implica diferenças significativas, ele diz, apontando para a diferença entre a importância dada aos problemas que tratam de regras e papéis sociais e aqueles que tratam de cognição – em relação, por exemplo, à prerrogativa da racionalidade do cientista –, que “comparando cientistas e pessoas comuns, nós não devemos perguntar
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