embora elas se- jam as responsáveis pela instituição das organizações estatais e pela autorização e delineamento de sua ação futura. As atividades adntinis- trativas escoradas nessas bases não podem ser definidas como mera execução de leis; há nelas, claro, implementação do que as leis pre- veem, mas a função criadora da Administração nesses casos não pode ser minintizada: essas atividades são muito mais que execução. Adnti- nistrar é também criar, a partir das leis. Essa Adntinistração criativa, ao atuar, interagindo com o Judiciá- rio e a sociedade, constrói uma história, envolvendo práticas, entendi- mentos jurídicos, normas administrativas etc., que adquirem algum 3. Por que a ideia do braço mecânico ainda éforte no Brasil? É justo notar que já no início do século Xx havia adntinistrativis- tas nacionais bastante conscientes da complexidade das funções da Adntinistração e da impossibilidade de descrevê-Ia como uma máqui- na de execução de leis 9 237ADMINISTRAR É CRIAR? grau de vida própria. Ao fim desse processo toma-se muito irrealista usar a ficção de que a Adntinistração mesma e tudo o que ela faz se- riam mecâilicas aplicações de leis.' A lei está na origem de tudo, é verdade, más nem por isso a vida adntinistrativa se reduz à execução' de leis, assim como nenhuma pessoa pode ser compreendida por in- teiro pela simples referência a seus ancestrais. 8. Irrealista e contraproducente, pelo ângulo da submissão da Admil).istração ao Direito. Quem minimiza as normas e atos da Administração, descrevendo-os como mera execução de lei, tem, por dever de coerência, que encarar as invalidades como um simples problema de incompatibilidade com a lei. Mas essa fórmula é claramente insuficiente para explicar, por exemplo, por que há invalidade no caso do ato admi- nistrativo concreto incompatível com o regulamento, mesmo que esse ato não seja diretamente contrário à lei. A invalidade, na hipótese, nada tem a ver com a vincula- ção da Administração ao legislador, mas sim com a vinculação da Administração às suas próprias normas (princípio da inderrogabilidade singular dos regulamentos). Aquela fórmula também não explica a inviabilidade de a nova interpretação admi- nistrativa de um texto legal ter efeitos retroativos (proibição hoje positivada I)a Lei Fe- deral de Processo, n. 9.784/1999, art. 211, XIII, infine, mas existente antes). A nova inter- pretação não invalida os atos anteriores, porque administrar não se reduz a executar materialmente leis; administrar é também interpretar. Incide, então, no caso, a vinculação da Administração a suas próprias interpretações passadas, que é uma aplicação particular da ideia de que a Administração está vinculada às suas próprias normas (interpretar é atribuir sentido ao texto legal; é produzir a norma, que é produto da interpretação). Interessa destacar, aqui, o quanto o direito administrativo seria insuficiente, co- mo instrumento de controle da Administração, se fosse levada realmente a sério a vi- são que subestima a ação normativa da Administração. Felizmente nem seus próprios defensores vão a tanto, pois, em incoerência saudável, também eles defendem as múltiplas aplicações da ideia de que a Administração se vincula às suas próprias nor- mas. 9. Alcides Cruz, o mais arguto dos administrativistas da P República, é o exemplo a citar. Em seu Direito Administrativo Brasileiro, de 1914 (Rio de Janeiro, Francisco Alves), referiu a Administração como um "conjunto de serviços públicos" (p. 19) e recusou-se a vincular seu conceito de direito administrativo à separação de Poderes (noção "se não incompleta, positivamente obscura" - p. 23). Como fontes do direito administrativo listou as normas constitucionais, as leis, os regulamentos e outras normas administrativas, os princípios, a jurisprudência nacional, o costume e DIREITO ADMlNlSTRATlVO PAltA CÉTICOS236 Todavia, a visão monista - de que a Administração é uma máqui- na de executar leis e, portanto, o direito administrativo é só um direi- to da execução das leis - manteve-se forte no pensamento jurídico brasileiro, e inclusive cresceu nas décadas finais do século XX. Há várias explicações para isso, e a primeira delas tem algo a ver com a resistência às ditaduras. No decorrer dos anos nossa história administrativa foi ficando muito vinculada a períodos de ditadura (a de Vargas, de 1930 a 1946 e a militar, de 1964 a 1985). Aí, vários publicistas adotaram a estratégia de tentar cortar as asas do Executivo e de suas autoridades pelo argu- mento que as diminuía: elas não poderiam ser mais que fiéis executo- ras da vontade popular expressa nas leis, cujo sentido e alcance caberia ao mundo dos juristas revelar. Seria um constrangitnento litnitado ao poder das autoridades, mas ainda assim algum constrangitnento.1O a praxe dos negócios públicos e a doutrina e jurisprudência estrangeiras, especial- mente a norte-americana (p. 27). Quanto às condições de validade do ato administra- tivo, falou em "conformidade" e "submissão" ao "Direito" Cp.38) e na necessidade de o ato ser "legal" (p. 39). Como se percebe, Alcides Cruz já estava muito longe de uma visão simplifica- dora da Administração e do direito administrativo. 10. O clássico de referência dessa estratégia é o belo livro O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, não por acaso lançado em 1941, em plena Ditadura Vargas, por Seabra Fagundes, que se tomaria o grande símbolo do publicis- mo democrata. Sua definição para a Administração estampou com nitidez a visão política que a inspirou: "A Administração tem por finalidade exclusiva os fenômenos de realização do Direito; a legislação é formadora do Direito e a Administração exe- cutora" (& ed., São Paulo, Saraiva, 1984, p. 5). O fio dessa meada foi retomado durante a Ditadura Militar por Bandeira de Mello, que lançou seu Elementos de Direito Administrativo em 1980 (São Paulo, Ed. RT) (hoje, Curso de Direito Administrativo, 29.aed., São Paulo, Malheiros Editores, 2012), quando o regime já estava em período fmal, da distensão (mas o livro reunia textos que vinha elaborando desde a década de 1960). Com sua doutrina, Bandeira de Mello acabou celebrizando, como síntese simbólica da corrente monista, uma senten- ça de Seabra Fagundes: "administrar é aplicar a lei de ofício". A doutrina de Bandeira de Mello conquistou o coração de boa parte dos publi- cistas teóricos da época. Mas não foi unânime em sua geração. Almiro do Couto e Silva, contemporâneo discreto mas profundamente respeitado, pôs-se enfaticamente em outra ala, como se vê aqui: "A Administração Pública é voltada para o futuro. No Estado contemporâneo, extremamente complexo, seria impensável que a lei sempre detenninasse, até os últimos pormenores, qual deveria ser o comportamento e a atua- ção dos diferentes agentes administrativos. A noção de que a Administração Pública é meramente aplicadora das leis é tão anacrônica e ultrapassada quanto a de que o ~ireito_seri~apenas um limite para o administrador. Por certo, não prescinde a Admi- rustraçao~bl.1cade uma base ou .deu~a autorização legal para agir, mas, no exercício da competencIa lega1ment~ defimda, tem os agentes públicos, se visualizado o Estado glob~me?te, ~m dilatado campo de liberdade para desempenhar a função formadora, que e hOJel,lmversalmente reconhecida ao Poder Público" ("Poder discricionário no direito administrativo brasileiro", RDA 179-180/53, Rio de Janeiro, Renovar, 1990). . 11. Um panorama dos controles útil para nosso debate está em Maria'Rita Lou- rerro, Fernando Luiz Abrucio e Regina Sílvia Pacheco (orgs.), Burocracia e política 239ADMINISTRAR É CRIAR? Este ensaio respeita o espírito democrata que, em sua época, ins- pirou tal postura. Mas isso não impede de dizer que essa orientação não serve mais a nosso direito administrativo. Ela, sobre ser tecnica- mente inexata e insuficiente, perdeu sua razão de ser: o Brasil vive agora