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BIOQUÍMICA APLICADA Débora Guerini de Souza Fármacos utilizados na eliminação de amônia Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Analisar as consequências do acúmulo de amônia no organismo. Descrever as formas de excreção de amônia pelo organismo. Reconhecer os fármacos utilizados para a excreção de amônia. Introdução Todas as reações químicas que ocorrem no nosso corpo são muito bem controladas, e algumas adaptações brandas ou a longo prazo podem ocorrer sem gerar maiores transtornos. Entretanto, se a capacidade de eliminação de produtos tóxicos é excedida por sua intensa produção, graves quadros de intoxicação podem surgir. Um exemplo emblemático é a toxicidade gerada pelo acúmulo de amônia no organismo, capaz de promover graves consequências no sistema nervoso central. É especialmente importante que esse quadro seja contornado quando se trata de recém-nascidos com erros inatos do metabolismo, pois as consequências e sequelas podem variar de retardo mental até óbito. Assim, neste capítulo, você vai estudar a respeito da toxicidade as- sociada a altas quantidades de amônia circulante, compreendendo a importância da eliminação da amônia, as suas vias de excreção e os fármacos que podem atuar na sua detoxificação, questões de suma importância nos estudos em bioquímica. Consequências do acúmulo de amônia no organismo A amônia é a molécula inorgânica que permite que o nitrogênio seja incor- porado às moléculas orgânicas que compõem o nosso organismo. Produtos nitrogenados podem dar origem à amônia quando degradados e desempe- nham papéis essenciais na fi siologia celular, realizando funções obrigatórias para o adequado funcionamento dos sistemas. No nosso organismo, os grupos amino são cuidadosamente gerenciados e não podem faltar, pois são constituintes de macromoléculas obrigatórias nos seres vivos — es- pecialmente proteínas e ácidos nucleicos. Entretanto, eles também não podem sobrar, sendo reciclados e eliminados constantemente por meio de inúmeras reações químicas que envolvem mecanismos de transaminação, desaminação e culminam com a detoxifi cação da amônia de forma atóxica. A amônia livre, geralmente, deriva da produção intensa pela microbiota intestinal (bactérias presentes no trato gastrintestinal possuem urease, enzima que degrada ureia em amônia e dióxido de carbono; essa amônia livre ingressa no organismo via veia porta-hepática) e do catabolismo dos nucleotídeos que constituem os ácidos nucleicos ou dos aminoácidos que constituem as proteínas, tanto as exógenas (grande aporte proveniente da dieta) quanto as endógenas (constantemente degradadas e ressintetizadas). Cada aminoácido possui, no mínimo, um grupo amino em sua estrutura e, no momento da metabolização dos aminoácidos, isso impede que as enzimas acessem a sua cadeia carbonada; portanto, é necessário que o grupo amino seja removido a partir de reações de transaminação e desami- nação, gerando, em alguns casos, amônia livre. Os níveis de amônia livre circulantes devem ser mantidos sob estrito controle para que não se tornem tóxicos e, para tanto, a amônia entra, na mitocôndria do hepatócito, em um ciclo de produção da substância atóxica que tem a função de eliminá-la: o ciclo da ureia. Quando a eliminação da amônia não pode ser realizada de maneira adequada e ela começa a se acumular nos sistemas biológicos, uma série de danos pode ocorrer. O órgão mais suscetível à toxicidade da amônia é Fármacos utilizados na eliminação de amônia2 o cérebro, e a barreira hematoencefálica não opõe resistência à entrada de amônia quando a sua concentração periférica aumenta. Em situações normais, existem traços de amônia circulantes (10-20 mg/dL), porém, em situações de comprometimento da função hepática ou de defeitos genéticos nas enzimas do ciclo da ureia, os níveis podem alcançar até dez vezes ou mais esse valor, culminando em sintomas como tremor, fala arrastada, visão embaçada e coma, podendo levar à morte (no adulto). No recém-nascido, os efeitos são ainda mais graves e devem ser urgentemente revertidos para evitar danos permanentes, como retardo mental. A reação da amônia livre com o alfa-cetoglutarato, catalisada pela gluta- mato-desidrogenase, produz glutamato e pode reduzir a função do ciclo do ácido cítrico pela remoção do componente. O glutamato aumentado no meio extracelular é neurotóxico, pois ativa receptores nas sinapses excitatórias, as quais devem ser rigorosamente controladas, e pode gerar resposta excitatória exacerbada e estresse oxidativo. Em uma tentativa de reduzir o glutamato gerado, o cérebro produz glutamina, a partir de amônia e glutamato, usando ATP para a atividade da glutamina-sintetase, o que pode contribuir para redução do ATP disponível para os processos celulares e gera aumento de glutamina no meio extracelular, exercendo força osmótica e promove edema cerebral (RODWELL et al., 2018). Logo, o controle da amônia extracelular é de suma importância para a função cerebral, de modo que, a seguir, você vai acompanhar a seguir os mecanismos pelos quais ele ocorre. A Figura 1 apresenta o ciclo da ureia, que acontece na mitocôndria e no citosol do hepatócito. Várias fontes geram amônia livre nas mitocôndrias hepáticas, e a carbamoil-fosfato-sintase I catalisa a conversão de amônia e bicarbonato em carbamoil fosfato, o composto que alimenta o ciclo. Esse se condensa com ornitina (1) e forma citrulina, que é convertida em um intermediário citrulil-AMP (2a) e é condensada com o aspartato (2b), formando arginino-succinato. Esse é clivado, liberando fumarato e arginina (3), a qual regenera a ornitina liberando ureia (4). A ornitina, então, retorna à mitocôndria para participar novamente do ciclo. 3Fármacos utilizados na eliminação de amônia Figura 1. O ciclo da ureia. Fonte: Nelson e Cox (2014, p. 705). Fármacos utilizados na eliminação de amônia4 Encefalopatia hepática, uma consequência grave da hiperamonemia, é um sintoma da cirrose hepática avançada e caracteriza-se por alterações cognitivas, comportamentais, desorientação e perda de coordenação motora, podendo evoluir para coma. Formas de excreção de amônia pelo organismo Existem algumas formas pelas quais podemos eliminar amônia do organismo. Por se tratar de um composto tóxico (se acumulado em altas concentrações) e também de uma molécula da qual não é possível remover mais energia, a amônia livre tem algumas funções específi cas, mas seu principal destino é a eliminação via ciclo da ureia. Assim, o ciclo da ureia é um dos principais mecanismos de proteção do nosso organismo e ocorre na mitocôndria e no citosol dos hepatócitos. O primeiro grupo amino que entra no ciclo da ureia é derivado da amônia livre presente na matriz mitocondrial, gerado pela pro- dução da microbiota intestinal (que chega ao fígado via veia porta) e de vias como a desaminação oxidativa do glutamato e desaminação da glutamina. Independente da fonte de amônia, na mitocôndria hepática ela é utilizada junto com o CO 2 , na forma de HCO3 -, para formar carbamoil-fosfato na matriz, com custo energético, por meio da ação da carbamoil-fosfato-sintetase I (CPSI), enzima marca-passo dessa via. Assim, o carbamoil-fosfato ingressa no ciclo doando seu grupo carbamoila para a ornitina, formando citrulina, a partir da ação da ornitina-transcarba- moilase. A citrulina é, então, transferida para o citosol, no qual sofre uma condensação com o aspartato, gerando arginino-succinato, reação que também requer ATP e é catalisada pela arginino-succinato-sintetase. Esse intermediário pode, então, ser clivado, formando arginina e fumarato, sendo o fumarato convertido em malato, que é transportado para a mitocôndria para compor o ciclo do ácido cítrico. Esse passo é a única reação reversíveldo ciclo, catali- sado pela arginino-succinase. A arginina é clivada pela arginase, produzindo ureia e ornitina, que retorna à mitocôndria para iniciar o ciclo novamente. A regulação do ciclo se dá pela disponibilidade de substrato, sendo a arginina um modulador alostérico da N-acetil-glutamato-sintase, que catalisa a formação de N-acetil-glutamato, ativador da CPSI (NELSON; COX, 2014). 5Fármacos utilizados na eliminação de amônia A amônia pode ser eliminada fisiologicamente também pela excreção renal. Como mecanismo para aumentar o pH da urina, a glutamina é desaminada pela glutaminase, gerando NH3 e captando prótons do filtrado glomerular, transformando-se em NH 4 +, auxiliando na manutenção do equilíbrio ácido-base da urina e do sangue. O glutamato pode ser utilizado para as necessidades celu- lares ou pode sofrer transaminação com o piruvato, gerando alfa-cetoglutarato para o ciclo do ácido cítrico e alanina (aminoácido de transporte) para envio do grupo amino ao fígado. A excreção urinária (a partir da eliminação de ureia e da amônia livre) constitui a principal forma de eliminação da amônia, sendo que, no adulto, em situações fisiológicas, geralmente, a excreção de ureia é proporcional à proteína ingerida na dieta. Entretanto, existem outras maneiras de promover a redução da amônia livre circulante. A atividade das enzimas glutamina-sintetase e glutamato-desidrogenase possibilita a ligação de uma amônia a um esqueleto de carbono à custa de ATP, podendo gerar, assim, glutamina e glutamato, respectivamente. Essas enzimas são capazes de fixar nitrogênio inorgânico em moléculas orgânicas e são centrais no metabolismo dos aminoácidos, visto que glutamato e glutamina são aminoácidos com funções imprescindíveis na fisiologia celular. Em situações de emergência, a remoção da amônia pode ser realizada por meio de hemodiálise. A urina é eletricamente neutra, pois a excreção dos íons cloreto (Cl-) e amônio (NH4 +) é proporcional. Fármacos utilizados para a excreção de amônia Sob condições normais, a amônia livre é rapidamente fi xada em moléculas orgânicas como glutamato e glutamina, que podem, na matriz mitocondrial, fornecer a amônia livre para excreção pelo ciclo da ureia. Caso o ciclo da ureia apresente algum defeito, a função hepática esteja seriamente compro- metida ou o suprimento sanguíneo não chegue ao fígado na taxa normal, ocorrerá acúmulo de intermediários do ciclo da ureia e de amônia livre, o que promoverá, também, aumento de glutamina. Mesmo em curto prazo, Fármacos utilizados na eliminação de amônia6 esse quadro é muito grave devido aos efeitos centrais da amônia elevada. Esse fato é especialmente importante em recém-nascidos ainda não diag- nosticados. Uma vez que a criança apresente sintomas característicos de uma defi ciência de enzimas do ciclo da ureia, devem ser tomadas medidas imediatas para redução nos níveis de amônia. Dieta restrita em proteínas é essencial para evitar a degradação decorrente do excesso de aminoácidos. Se a defi ciência vier nos passos enzimáticos após a síntese de arginino-succinato, a suplementação elevada de arginina apresenta efeitos benéfi cos (SMITH; MARKS; LIEBERMAN, 2007). Após a síntese de arginino-succinato, os dois grupamentos amino destinados à excreção já foram incorporados ao substrato, sendo necessária a regene- ração da ornitina. Se a ornitina puder ser reposta para permitir que o ciclo continue, o próprio arginino-succinato poderá ser utilizado como carreador para excreção de nitrogênio. Dessa maneira, ingerir altos níveis de arginina leva à produção de ornitina pela reação da arginase, e a excreção urinária de arginino-succinato pode ser aumentada. Entretanto, a suplementação com arginina não será benéfica em casos de defeitos enzimáticos que ocorram em passos anteriores à síntese de arginino-succinato. Nesses casos, os fármacos usados devem ser capazes de formar conju- gados com aminoácidos para eliminação. Consequentemente, o organismo terá que usar amônia livre para a síntese de aminoácidos para reposição. Assim, os dois compostos mais frequentemente utilizados são os ácidos benzoico (forma dissociada: benzoato) e fenilbutírico (forma dissociada: fenilbutirato). O verdadeiro composto ativo no caso do fenilbutirato é o fenilacetato, mas esse possui mau odor, tornando difícil a aceitação por via oral. O benzoato, inicialmente utilizado como conservante alimentar, demonstrou aumentar a excreção urinária de grupos amino e foi aprovado para uso clínico nos Estados Unidos na década de 1980 — o fenilbutirato aprovado poucos anos depois. Conforme demonstra a Figura 2, o ácido benzoico, após ativação, reage com a glicina, formando ácido hipúrico ou hipurato, que é excretado. Sendo a glicina sintetizada endogenamente por meio da serina, o organismo tem que desviar aminoácidos para repor o que foi eliminado na urina e, por isso, ocorre remoção de amônia livre da circulação. O ácido fenilacético forma um conjugado com a glutamina presente em excesso e é eliminado pela urina. Esse conjugado, por remover glutamina, consegue eliminar dois grupos amino por molécula (SMITH; MARKS; LIEBERMAN, 2007). 7Fármacos utilizados na eliminação de amônia Figura 2. Os ácidos orgânicos fenilbutírico e benzoico são comumente utilizados para remover amônia da circulação. Administrados por via oral, em seu metabolismo, ocorre conjugação com glutamina e glicina, o que promove a remoção desses aminoácidos e, consequentemente, de amônia da circulação. O benzoato conjuga-se com a glicina e gera hipurato, e o fenilbutirato é convertido em fenilacetato, conjuga-se com a glutamina e gera fenilacetilglutamina — sendo ambos metabólitos atóxicos eliminados pela urina. Fonte: Nelson e Cox (2014, p. 710). Fármacos utilizados na eliminação de amônia8 Sendo o trato gastrintestinal uma importante fonte de amônia, na década de 1990, foi lançado o AST-120, uma microesfera adsorvente de carvão que se liga à amônia no intestino e impede a sua absorção. O AST-120 não é absorvido nem degradado no intestino, apenas eliminado nas fezes, o que o caracteriza como seguro para uso prolongado e promove menos efeitos adversos (RAHIMI; ROCKEY, 2016). Já no caso dos ácidos fenilbutírico e benzoico, vários efeitos adversos são relatados. A terapia combinada de benzoato de sódio/fenilacetato de sódio pode causar vômitos, infecções, desordens do sistema respiratório, do sistema sanguíneo e linfático, do sistema nervoso central ou do metabolismo. Em menor escala, o fenilbutirato de sódio já demonstrou reduzir o apetite, a palatabillidade dos alimentos e causar odor corporal desagradável. Em cerca de 25% das pacientes, o fenilbutirato crônico causou disfunção menstrual. Apesar de esses medicamentos serem bem tolerados pela maioria dos pa- cientes, estudos já demonstraram hepatotoxicidade devido a interações entre eles e o citocromo P450 hepático. Por fim, o uso desses fármacos demonstrou causar uma redução nos aminoácidos de cadeia ramificada, levando a uma maior suscetibilidade de catabolismo proteico endógeno (DE LAS HERAS et al., 2017). Dessa forma, o uso terapêutico desses fármacos deve sempre ser acompanhado por equipe clínica especializada, assim como deve ser avaliado o benefício em fazer uso deles em relação aos riscos apresentados. Acesse o link para acompanhar um breve vídeo que revisa as principais reações do metabolismo de aminoácidos e da amônia a partir de esquemas. https://goo.gl/V2Etm7 Ammonaps® é um medicamento que possui como princípio ativo o fenilbutirato de sódio, utilizado no tratamento de desordens do ciclo da ureia. Ele está indicado nos ca- sos em que há deficiências da carbamoil-fosfato-sintetase I, ornitina-transcarbamoilase ou arginino-succinato-sintetase. 9Fármacos utilizados na eliminação de amônia DE LAS HERAS J. etal. An update on the use of benzoate, phenylacetate and phenylbu- tyrate ammonia scavengers for interrogating and modifying liver nitrogen metabolism and its implications in urea cycle disorders and liver disease. Expert Opinion on Drug Metabolism & Toxicology, v. 13, n. 4, p. 439-448, abr. 2017. Disponível em: <https://www. ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5568887/>. Acesso em: 13 out. 2018. NELSON, D. L.; COX, M. M. Princípios de bioquímica de Lehninger. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. RAHIMI, R. S.; ROCKEY, D. C. Hepatic Encephalopathy: Pharmacological Therapies Targeting Ammonia. Seminars in Liver Disease, v. 36, n. 1, p. 48-55, fev. 2016. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26870932#>. Acesso em: 13 out. 2018. RODWELL, V. W. et al. Bioquímica ilustrada de Harper. 30. ed. Porto Alegre: Penso, 2018. SMITH, C.; MARKS, A. D; LIEBERMAN, M. Bioquímica médica básica de Marks: uma abor- dagem clínica. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2007. Leitura recomendada VOET, D.; VOET, J. G. Bioquímica. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2013. Fármacos utilizados na eliminação de amônia10 Conteúdo:
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