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Resenha crítica do livro Justiça, Michael J Sandel _ Jus Arena

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Jus Arena
A força do direito deve superar o direito da força. – Rui Barbosa
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Resenha crítica do livro – Justiça, Michael J. Sandel .
Posted: 27 Julho 2012 in Artigos, Filosofia e Hermenêutica, Política 
Etiquetas:Dilemas morais, Justiça, Michael J. Sandel, o que é justiça, Rodrigo Constantino
Uma tempestade deixa arrasada uma cidade inteira, e os preços dos produtos básicos para a sobrevivência explodem. É
justo cobrar o que for possível nestas circunstâncias emergenciais, ou o governo deve intervir para impor um
comportamento mais virtuoso dos cidadãos? Em outras palavras: deve a lei tentar promover a virtude ou ser neutra
quanto a estas concepções, deixando cada um livre para escolher?
Estes e muitos outros dilemas morais são abordados no instigante livro “Justiça”, do professor de Harvard Michael J.
Sandel. O autor levanta inúmeras questões interessantes sobre justiça e o papel do governo, focando em diversas
escolas de pensamento diferentes. Sandel revisita o pensamento de Aristóteles, de Kant, de John Stuart Mill, de John
Rawls, dos libertários e de outros filósofos que dedicaram energia na tentativa de responder a delicada pergunta “o que
é justiça?”.
O leitor termina o livro talvez com mais dúvidas que respostas, sinal de que, provavelmente, a postura mais
condenável nestes dilemas seja justamente a que toma partido radical de forma simplista. Quem pensa ter respostas
fáceis para dilemas morais pode até espantar um pouco da angústia que persegue todos aqueles mortais que se
dedicam ao tema, mas isso não quer dizer, de forma alguma, que chegou mais perto da verdade.
O próprio autor toma partido no final do livro, que não necessariamente é o mesmo que o meu. Mas ele o faz somente
após abordar divergentes pontos de vista, apresentando bons argumentos de cada lado, o que demanda uma postura
humilde diante do hercúleo desafio. Sua empreitada preza a honestidade intelectual de quem realmente busca
respostas, a ponto de parecer que ele realmente está defendendo cada lado do debate. Só isso já é suficiente para
merecer meu respeito, ainda que a conclusão não seja a mesma.
Até porque, como disse antes, não acredito que seja razoável ter respostas tão enfáticas para dilemas tão complexos.
Quem ousaria oferecer uma resposta simplista sobre a questão do aborto, por exemplo? Se liberdade é apenas ausência
de coerção humana, e se este é o único valor importante, como sugerem alguns libertários, até quando a sociedade deve
tolerar as trocas voluntárias entre adultos? A prática do canibalismo, se consentida (como naquele bizarro caso alemão),
deve então ser tolerada pela lei? Deve a poligamia ser legal?
O utilitarismo também é dissecado no decorrer do livro. A máxima de que devemos beneficiar o maior número
possível de pessoas abre brechas para inúmeras atrocidades que poucos defenderiam abertamente. Mas alguns casos
levantam verdadeiros dilemas morais. Por exemplo, o caso hipotético de um bonde desgovernado em que o condutor
pode salvar cinco pessoas desviando a direção, mas com isso matando um inocente. Seria justo fazer isso? E se forem
não cinco, mas cinco mil pessoas? E se você, enquanto expectador, pudesse jogar um inocente no trilho e com isso
salvar centenas de pessoas? E se este inocente fosse, na verdade, um crápula ou um criminoso qualquer? Isso faria
alguma diferença?
O que fica claro é que temos alguns princípios conflitantes que produzem tais dilemas morais. Salvar vidas é
importante, mas não agredir um inocente também. Nenhuma resposta é fácil nessas horas, principalmente na prática.
Claro que utilizar os casos extremos para julgar uma teoria de justiça pode não ser o mais adequado, uma falácia
conhecida como reductio ad absurdum. Mas estas abstrações servem justamente para demonstrar que nenhuma teoria
de justiça será perfeita, absoluta, ideal para todos os casos imagináveis.
Vejamos o exemplo das Forças Armadas. A proteção contra potenciais inimigos externos sempre será uma necessidade
em qualquer sociedade. Existem basicamente três opções para manter o exército: alistamento obrigatório, convocação
com a possibilidade de contratar um substituto, e o sistema de mercado (um exército “voluntário”). Qual seria a forma
mais justa ou eficiente? Pela ótica utilitarista, o exército voluntário parece a melhor forma, pois cada um vai servir
somente com base na maximização de sua felicidade. Para os libertários, esta é a única forma justa, pois a alternativa
envolve coerção. Mas alguns podem objetar que a escolha de servir não é tão voluntária assim, dependendo das
alternativas existentes.
Como o autor explica, “Em lugares em que há muita pobreza e dificuldades econômicas, a opção por se alistar pode
simplesmente refletir a falta de alternativas”. Seria, segundo ele, um caso de “coerção implícita”. Isso pode gerar uma
situação injusta, quando quem decide ou não entrar em guerra está totalmente distante de quem pagará o maior
sacrifício por ela. O autor cita que apenas 2% dos membros do Congresso americano têm um filho ou filha no serviço
militar. Não seria um caso de injustiça?
Sandel compara ainda o serviço militar com o júri popular, convocado para deliberar sobre provas e leis. A ideia por
trás disso é que todos os cidadãos sejam obrigados a cumprir este dever cívico para preservar a ligação entre os
tribunais e o povo. Por este prisma, transformar o serviço militar em mercadoria, segundo ele, “corrompe os ideais
cívicos que deveriam governá-lo”. Se o recrutamento militar é um serviço como outro qualquer, onde deve prevalecer a
lei de oferta e demanda apenas, então não há argumentos contrários à contratação de mercenários estrangeiros
também. O elo entre serviço militar e expressão de cidadania se perde por completo.
Como liberal, posso continuar defendendo o alistamento voluntário, como de fato defendo. Mas isto não quer dizer que
a escolha seja simples e evidente, ou que não existam claramente “trade-offs” envolvidos. Os escândalos atrelados às
empresas privadas militares, como a Blackwater, mostram que o caminho do mercado nesta seara pode produzir
diversos problemas também. Sandel questiona: “O serviço militar (e talvez os serviços nacionais em geral) é uma
obrigação cívica que todos os cidadãos têm o dever de cumprir ou é um trabalho difícil e arriscado como tantos outros
(mineração, por exemplo, ou pesca comercial) devidamente regulamentados pelo mercado de trabalho?”
A questão pode ser vista de forma ainda mais abrangente: deve a lógica do mercado predominar em todos os casos? As
pessoas devem ser livres, por exemplo, para assinarem contratos envolvendo gravidez e guarda do bebê? Mas, se até
mesmo um bebê for visto como mercadoria, não estaremos depreciando seu valor? O mercado de barriga de aluguel se
internacionalizou, e americanos, para reduzir custos, pagam para indianas pobres gerarem seus filhos em seu lugar.
Mas quem pode negar que isso “aumenta a sensação de que a gravidez degrada a mulher ao transformar seu corpo e
sua capacidade reprodutiva em meros instrumentos”? Existem ou não certas virtudes que transcendem as leis do
mercado e o poder do dinheiro?
Outro ponto que gera muita discórdia é a questão da distribuição de renda. Para os libertários, cada um é dono de seu
corpo e deve usufruir daquilo que produz. Para os mais igualitários, como Rawls, este ponto de vista é injusto, pois
permite que a divisão de bens seja indevidamente influenciada por fatores arbitrários do ponto de vista moral. Seria
uma distribuição determinada pelo resultado de uma “loteria natural”. O mérito e até mesmo o esforço são
questionados por Rawls, que aponta inúmeros fatores aleatórios na determinação do resultado. Michael Jordan pode
ter nascido com uma habilidade específica de arremessar bolas em uma cesta que, por puro acaso, é extremamentevalorizada em sua sociedade. Até que ponto ele realmente merece sua fortuna?
A sorte teria um papel fundamental nos resultados, e Rawls propõe então o raciocínio a partir de um “véu de
ignorância”, como se ninguém soubesse ex ante quem será na sociedade. Qual seria o modelo justo então? Não seria
um que prezasse mais a igualdade? O grande problema do igualitarismo é que ele assume uma visão arrogante de
“justiça cósmica”, nas palavras de Thomas Sowell. Sim, a sorte exerce papel crucial nos resultados de uma sociedade
livre. Mas quem vai determinar qual seria o resultado alternativo mais “justo”?
Pode ser que o talento inato de alguém ou o fato de que aquela sociedade naquele momento valoriza muito este talento
sejam fatores aleatórios do ponto de vista moral. Mas não será menos aleatório decidir quanto do resultado obtido em
trocas voluntárias deve permanecer com o talentoso em questão e quanto deve ir para terceiros. Isso sem falar dos
incentivos inadequados que esta “justiça distributiva” produz. Talvez seja saudável derrubar o mito de que todo
indivíduo bem-sucedido o seja por mérito próprio. Mas isto não quer dizer que um ato coercitivo de lhe tomar grande
parte da riqueza seja justo.
Por fim, Michael Sandel retorna vários séculos até reencontrar Aristóteles e sua visão de télos ou propósito, finalidade.
Segundo esta ótica, há uma natureza humana que deve ser respeitada, e cada pessoa deve seguir o papel adequado à
sua própria natureza. O hábito deve fortalecer a virtude em cada um, e os homens devem procurar viver a “vida boa”,
ou seja, aquela que expressa nossa natureza e oferece uma oportunidade para expandirmos nossas faculdades
humanas. Para Aristóteles, o estado deve então promover a virtude. Mas, automaticamente, esta ideia gera calafrios.
Qual virtude? Quem decide? A imagem de fundamentalistas religiosos usando a coerção para obrigar os “hereges” a
viver de acordo com sua noção de virtude logo vem à mente.
Mas Sandel, apesar de compreender este alerta, pensa que o estado não deve ser neutro do ponto de vista moral. A
liberdade de escolha, incluindo a liberdade de escolher seus próprios valores morais, não é ilimitada na opinião do
autor. Ela não é uma base adequada para uma sociedade justa, pois sem as amarras morais de valores que não
escolhemos, “não terão sentido para nós as muitas obrigações morais e políticas que normalmente aceitamos e até
mesmo valorizamos”. Como exemplo, temos a solidariedade e a lealdade, a memória histórica e a crença religiosa,
“reivindicações morais oriundas das comunidades e tradições que constroem nossa identidade”.
Sandel acredita na narrativa histórica como parte fundamental de quem somos, e é impossível buscar o bem ou praticar
a virtude apenas como indivíduo. Nascemos com um passado, parte de quem somos. Nem tudo se resume ao contrato
voluntário, ao acordo consentido. A maioria aceita que os filhos possuem certas obrigações morais em relação a seus
pais idosos, sem que algum contrato tenha que ser redigido. Muitos aceitam o patriotismo (não confundir com
nacionalismo) como um valor importante, colocando os compatriotas em um patamar diferente dos distantes
estrangeiros.
A ideia de que estamos submetidos a laços morais que não resultam de nossas escolhas incomoda particularmente os
libertários individualistas. “O repúdio a essa ideia pode levar-nos a rejeitar os apelos do patriotismo, da solidariedade,
da responsabilidade coletiva e assim por diante”, escreve Sandel. Ele tenta mostrar que essa concepção de liberdade,
qual seja, a ideia de que não estamos atados a nenhum laço moral que não tenhamos escolhido, é uma concepção
equivocada. A propalada neutralidade moral na decisão de importantes coisas públicas não pode ser alcançada,
segundo o autor, além de ser indesejável. Ignorar o debate sobre o que seja a vida boa é um equívoco para Sandel, que
alerta: “Os fundamentalistas ocupam rapidamente os espaços que os liberais têm receio de explorar”.
Sandel conclui:
“Em vez de evitar as convicções morais e religiosas que nossos concidadãos levam para a vida pública, deveríamos nos
dedicar a elas mais diretamente – às vezes desafiando-as e contestando-as, às vezes ouvindo-as e aprendendo com elas.
[…] É sempre possível que aprender mais sobre uma doutrina moral ou religiosa nos leve a gostar menos dela. Mas não
saberemos enquanto não tentarmos. Uma política de engajamento moral não é apenas um ideal mais inspirador do que
uma política de esquiva do debate. Ela é também uma base mais promissora para uma sociedade justa”.
Voltemos finalmente à questão inicial: deve a lei tentar promover a virtude ou ser neutra e deixar cada um escolher por
conta própria? Enquanto liberal, eu confesso que fico incomodado com a opção aristotélica de que há uma finalidade
objetiva para cada indivíduo e que as leis devem buscar a promoção da virtude. Saber que virtude é essa já representa,
para mim, um desafio e tanto. Por outro lado, também não posso adotar a postura absolutamente individualista que
rejeita qualquer possibilidade de trazer o tema da moral para algumas questões públicas. Certos valores tradicionais
são fundamentais para a sociedade e inevitavelmente estarão refletidos nas leis, independente do consentimento de
todos os cidadãos. Onde traçar, então, esta linha divisória? Não tenho resposta clara. Por isso chamamos de dilema. O
que posso dizer é que prefiro errar pelo excesso de neutralidade moral das leis, pois tenho mais receio de uma ditadura
moralista do que de seu extremo oposto, qual seja, uma sociedade atomista que rejeita qualquer obrigação moral além
daquilo consentido pelo indivíduo.
_
Por  Rodrigo Constatino
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