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Difíceis Ganhos Fáceis - Vera Malaguiti

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I'
XEROY VALeR02"J.,.f?t2
, PASTA I --, PROF". ,
MATÉRIA 29W411~
ORIGINA!.
Coleção Pensamento Criminológico
VeraMalaguti Batista
I
DIFÍCEIS GANHOS FÁCEIS
Drogas e Juventude Pobre
no Rio de Janeiro
2' edição
g Instituto 'Carioca deCriminologia
Editora Revan
2003
,.•.
(
•
m1£Pensamento
Criminológico
Direção
Prof. Dr. Nilo Batista
@2003 Instituto Carioca de Criminologia
Rua Aprazível, 85 - Santa, Tereza
Rio de Janeiro/RJ CEP: 20241-270
Tel: (21 )2221 1663 fax (21 )2224 3265
criminologia@icc-rio.org.br
Edição
Editora Revan
Av. Paulo de Frontin, 163
20260-010 Rio de Janeiro RJ
tel: (21) 2502 7495 fax: (21) 2273 6873
editora@ revan .com.b r / www.revan.com.br
Projeto gráfico
Luiz Fernando Gerhardt
Revisão
Sylvia Moretzsohn
Diagramação
lido Nascimento
Batista, Vera Malaguti.
Difíceis ganhos fáceis - drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro I
Vera Malaguti Batista. - Rio de Janeiro: Revan, 2003
t52p.
ISBN 85-7106-291-9
1. Direito penal.
Para Nilo, com todo o amOHJW! houver nessa vida
Para Lucas e Paulo, os meus meninos
Para Carlos Bruce, Maria Clara e João Paulo
os meninos do Nilo '
Para todos os meninos do Rio
Sumário
Nota introdutória à segunda edição ..... 11
Prefácio ..... 15
Capítulo I
Introdução ..... 35
CapítuloTI
Criminologia e História ..... 43
A função oculta do sistema penal ..... 43
As ilegalidades populares ..... 48
Criminologia crítica ..... 51
Cidadania negativa ..... 57
Aventura metodológica ..... 61
Capítuloill
Criminalização da juventude pobre no Rio de ~jin~iro:
aspectos do processo histórico republicano ..... 65
Novos excluídos na ordem republicana ..... 65
Orientação correcional- os tempos do SAM ..... 71 .
1964 - Funabem, menoristas e Segurança Nacional ..... 78
Capítulo IV
Drogas e criminalização da juventude pobre
no Rio de Janeiro ..... 81
O mito da droga ..... 81
1968 - 1988: o recrutamento da juventude pobre ..... 85
8
Atitude suspeita 101
O olhar seletivo 116
Capítulo V
Conclusões ..... 133
Anexos ..... 136
Quadros
IA - Adolescentes envolvidos com drogas (I) 136
IB - Adolescentes envolvidos com drogas (2) 137
II - Adolescentes envolvidos em atos infracionais ..... 138
,
Gráficos
Adolescentes envolvidos em atos infracionais
Tráfico e consumo de drogas ..... 139
Tipos de infração ..... 140
Etnia (1) 141
Etnia (2) 142
Faixa etária 143 ~
Escolaridade 144
Trabalho ..... 145
Sexo ..... 146
Fontes ..... 147
Bibliografia ..... 147
9
.
1
I
I
III.
II
I!, I
I!
I'
i I
t !
; !
-1'TOtaintrodutória à segunda edição
Uma reflexão para a segunda edição deste livro deveria trazer
elementos novos à discussão do tema drogas. O mais assustador, tra-
tando-se de assunto tão letal, é que não há nada de novo no jrontl. A
inesquecível Rosa deI Olmo dizia que havia uma mistura de informa-
ção, desinformação e até contra-informação produzindo uma saturação
funcional à ocultação de seus problemas.
Tenho afirmado com Loi"cWacquant que, na periferia do neoli-
beralismo a destruição das precárias estruturas previdenciárias têm
dado lugar a um incremento gigantesco de um Estado penal2• As pri-
sões superlotadas e o aumento exponencial das populações carcerárias
só atestam o poder infinito do mercado e o papel que a política crimi-
nal de drogas, capitaneada pelos Estados Unidos, desempenha no pro-
cesso de criminalização global dos pobres.
A mediação psicofarmacológica, bem como as drogas ilegais, é
que confortam esse novo sujeito pós-moderno. A necessidade dissemi-
nada, paralela à criminalização, inscreve a produção e distribuição das
drogas no circuito do comércio e das finanças internacionais. "Enfim,
as drogas se deslocaram do campo regulado pela economia dos signos
para o campo da economia política"3.
A uma economia política das drogas corresponde uma geopolí-
tica das drogas. Para Rosa del Olmo, tratar desse tema tão mitificado
significa também analisar as relações de poder no sistema mundial. O
processo de globalização repercute também no circuito ilegal das iner-
cadorias; a condição de ilegalidade de algumas drogas tem implicações
econômicas, políticas, sociais e mor.ai.L0s Estados Unidos têm sido o
eixo céntral da atual política de drogas no continente e suas marcas de
fracasso: multiplicação das áreas de cultivo, organização do tráfico,
comlpção de autoridades, crescimento da adição e incremento da cri-
minalidade. Por outro lado, a América Latina tem sido fonte produto-
ra de maconha, cocaína e até de heroína para forte consumo nos Esta-
dos Unidos e na Europa. A crise econômica é uma constante geopolíti-
I Título de artigo escrito com Alexandre Moura Dumans para n revista Ci2ncia Hoje. Soei .
. edade Brasileira pa~ o Progresso da Ciência, Rio de Janeiro. vol. 31, n" 18/abril de 2002, p.
36.
2 Lo"ic Wacquant. Punir os pobres: a nova gestão da mishia nos Estados Unidos. Rio de
limeira. Freitas Bastos/Instituto Carioca de Criminologia/200l.
3'Jael Birman. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1999.
11
•
•
ca nesse quadro, com queda de preços de matérias-primas, e com as
multidões de camponeses empobrecidos e desempregados urbanos4 As
novas políticas de ajuste econõmico favorecem a expansão dessa
produção voltada para o comércio globalizado. Podemos observar: a
cada novo "ajuste" corresponde uma nova onda de criminalização e
encarceramento.
Paralelamente a este processo econômico, os governos dos Esta-
dos Unidos, a partir dos anos 80, utilizam o combate às drogas como
eixo central da política americana no continente. Passam a difundir
termos como "narcoguerrilha" e "narcoterrorismo", numa clara simbi-
ose dos seus "inimigos externos". As drogas passam a ser o eixo das
políticas de segurança nacional nos países atrelados a Washington, ao
mesmo tempo em que o capital financeiro e a nova divisão internacio-
nal do trabalho os obriga a serem os produtores da valiosa mercadoria.
Os países andinos se transformam em campo de batalha e nossas cida-
des se transformam em mercados brutalizados para o varejo residual
das drogas ilícitas.
Nilo Batista define esta política criminal de drogas no Brasil
como "política criminal com derramamento de sangue"5. Ele descreve
a transição do modelo sanitário desde 1914 até o modelo bélico implan-
tado em 1964, na conjuntura da guerra fria, da doutrina de segurança
nacional, com a exploração da figura do inimigo interno, e com a droga
como metáfora diabólica contra a civilização cristã. A guerra contra as
drogas introduz um elemento religioso e moral. Não há nada mais
parecido com a inquisição medieval do que a atual "'guerra santa"
contra as drogas, com a figura do "traficante-herege que pretende
apossar-se da alma de nossas crianças"6. Essa cruzada exige uma
ação sem limites, sem restrições, sem padrões regulativos. A droga se
converte no grande eixo (moral, religioso, político e ~tnico) da recons-
trução do inimigo interno, ao mesmo tempo em que produz verbas para
o capitalismo industrial de guerra. Este modelo bélico produ~ marcas no
poder jurídico, produz a banalização da morte. Os mortos desta guerra
têm uma extração social comum: são jovens, negro1/índios e são po'
,
4 Cf. Rosa dei Olmo, "Geopolítica de las drogas", in revista Análisis, Medellín, Colômbia,
junho, 1998.
5 Nilo Batista. "Política criminal com derramamento de san~ue", in Revista Brasileira de
Ciências Criminais, n° 20, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1997.
6 Nilo Batista. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. Coleção Pensamento Crimi-
nológico, n° 5. Freitas Bastos/Instituto Carioca de!Criminologia. Rio de Janeiro, 2000.
12
bres. Saio de Carvalho criticou historicamente a legislação penal de
drogas no Brasil com se~s dispositivos va~~s e indeterminados e o u.so
abusivo de normas penaIs em branco, que acabaram por legJl1marSIS-
temas de total violação das garantias individuais"?
O fato é que esta política criminal bélica, pródiga em fracassos,
se aprofunda na proporção inversa ao insucesso. Numa espé~ie de ~ela-
ção sado-masoquista, quanto mais apanhamos da nossa pohtlca cnml-
nal, mais nos apegamos a ela. As nOVIdades que s~rgem aponta,!, para
os redutos eleitorais de classe média e alta. Os projetos de descnmma-
lização dos usuários, que prevêem penas maiores .par~ os !raficantes,
deixam ainda mais expostos à demonização e cnnunahzaçao as pnncI-
pais vítimas dos efeitos perversos do controle social globalizado: a ju-
ventude pobre de nossas cidades.
Uma das novidades é o projeto dos Tribunais de Drogas "sob o
patrocínio do Consulado America@", como consta no o_fíciode II de
junho de 2001 da Associação NaCIOnal de Jus.tIça Terap:utlca. O f~tor
crucial é que o programa atua no âmbIto do ~nmm~1 ~ nao_descnmma-
lizando. Enfim, como tenho dito, a nossa pohtlca cnnunal e um tIgre de
papel: sua fraqueza provém de sua força. S~a forma e seu discurso de
cruzada moral e bélico, tem realizado mUltas baIxas, mas nada tem
feito co~tra o demônio que finge combater: a dependência química.
Esta só pode ser tratada com um olhar radicalmente diferente e que
rompe com a esquizofrenia de uma sociedade que p:eclsa se ~r.ogar
intensamente, mas que precisa demonizar e vulnerabIhzar as VItImaS
desse modelo perverso: dependentes químicos de substâncias ilegais,
jovens e negros pobres das favelas do Brasil, camponeses colombianos
ou imigrantes indesejáveis no hemi~ norte. .
No mais, o que sinto são muitas saudades de Rosa deI Olmo e
Alessandro Baratta.
Vera Malaguti Batista
Rio de Janeiro, 19 de maio de 2003
7 Saio de Carvalho. A política criminal de drogCl$no Brasil. Rio de Janeiro, Luam, 1996. p. 10
13
I
Prefácio
o livro que tenho a honra de apresentar analisa o funciona-
mento do sistema da justiça criminal através do método histórico-
sociológico. É uma coincidência que simultaneamente seja publica-
do na Alemanha um livro que faz a mesma coisa. Os dois livros são.
muito semelhantes e muito diversos. O contexto e o objeto da
análise são diferentes: o microscópio de Vera Malaguti apontou
para um fragmento da "periferia" latino-americana, e seu livro rela-
ta vinte anos de eriminalização - de 1968 a 1988 - sofrida por ado',
lescentes moradores de favelas e bairros pobres do Rio de Janeiro.
O contexto histórico de sua narração - os poucos mais de cem anos
de história republicana no Brasil - é mais breve do que o da autora
alemã. Como resultado, temos ressaltada uma imagem extraordina-
riamente complexa de um objeto tão elementar. De maneira oposta,
a autora alemã narra um acontecimento que começa com o início da
época moderna e se estende a toda a comunidade dos países "cen-
trais", da Europa aos Estados Unidos; a clientela do sistema são os
adulto~ pobres, o seu campo de abstração teórico é macroscópico.
O resultado foi botar no foco uma imagem extraordinariamente ele-
mentar daquela complexidade.
Sob perspectivas diversas, as duas autoras ilustram, de modo
convincente', a mesma tese: ao contrário de sua função declarada,
isto é, diferentemente de sua ideologia oficiál, o sistema de justiça
criminal da sociedade capitalista serve para disciplinar despossuí-
dos, para constrangê-los a aceitar ~oral do trabalho" que lhes é
imposta pela posição subalterna na divisão de trabalho e na distri-
buição da riqueza socialmente produzida. Por isso, o sistema crimi-
nal se direciona constantemente às camadas mais frágeis e vulnerá-
veis da população: para mantê-Ia - o mais dócil possível - nos gue-
tos da marginalidade social ou para contribuir para a sua destruição
ffsica. Assirri fazendo, o sistema sinaliza uma advertência para to-,
dos os que estão nos confins da exclusão social.
Ambas as autoras demonstram que, passados dois séculos da
proclamação do direito penal do fato - isto é, de um direito iguali-
tário para todos os infratores -, o sistema de justiça criminal conti-
nua a funcionar como um direito penal do tipo de autor; e que o
IS
•
•
estereótipo do criminoso - que guia a ação da polícia, dos promoto-
res, dos juízes e domina a opinião pública e os meios de informa-
ção de massa - corresponde às características dos grupos sociais
entre os quais o sistema seleciona e recruta seus clientes reais entre
todos os potenciais, isto é, entre os vários infratores distribuídos
por todas as camadas da população. Isto, segundo as autoras, signi-
ficaria dizer que o problema que move a ação do sistema não é pro-
priamente a realização do delito descrito pelas leis ou a defesa dos
bens jurídicos, mas o controle ou a destruição dos grupos mais po-
bres da população, aqueles percebidos e definidos como "classes
perigosas". Gerlinda Smauss demonstra que não são punidos aque-
les que roubam somente porque roubam, mas porque roubam quan-
do deveriam trabalhar, porque deveriam aceitar viver com um salá-
rio mínimo e precário (enquanto não são punidos aqueles que rou-
bam mas não estão em posição subalterna no sistema produtivo). E
Vera Malaguti conclui sua análise sobre o processo de criminaliza-
ção por drogas dos adolescentes pobres no Rio de Janeiro obser-
vando que "o problema do sistema não é a droga em si, mas o con-
trole específico daquela parte da juventude considerada perigosa".
Esta observação nos permite entender melhor um aspecto re-
corrente no livro de Vera: a relatividade das distâncias entre os in-
tervalos temporais que a autora percorre e a homogeneidade dofe-
nômeno estudado (a criminalização de adolescentes pobres do Rio,
do início da república até nossos dias) apesar das mudanças que se
deram em sua evolução. Isto vale tanto para o que diz respeito à
diferenciação dentro da fase mais específica da pesquisa (a crimina-
lização por drogas entre 1968 e 1988), quanto para o que diz res-
peito à relação entre esta fase e as que a precederam. Em ambos os
casos, a autora, pelas diferenças, mostra a unidade, ou melhor,
pode-se afirmar que Vera Malaguti se serve das diferenças para
mostrar a unidade: "meu objeto de pesquisa era o processo de cri-
minalização dos adolescentes como um todo".
Através dos quatro períodos em que se articula a amostragem
dos processos ligados à droga na 2' Vara de Menores da cidade do
Rio, pode-se perceber muito claramente a transformação qualitativa
do fenômeno do consumo e do tráfico de drogas proibidas: Ocres.,
cimento percentual das infrações por droga, do consumo de cbcaína
em relação a outras substâncias, da estruturação' e da "profissiona-
16
lização" do comércio, as mudanças na legislação e o aumento da
violência interna ao mercado, e da violência policial. No entanto, o
ponto lIIais interessante de seu estudo é a percepção de que exis.te~
duas características constantes neste processo específico de cnml-
nalização: a designação do papel de consumidor para o jovem da
classe média e de traficante para o jovem das favelas e bairros po-
bres do Rio; a seletividade da justiça juvenil. "Nos processos escO-
lhidos ao acaso, entre1968 e 1988, só jovens pobres e não-brancos
foram indiciados por porte de pequena quantidade de droga para
consumo próprio". E não é certamente por acaso que adolescentes
da classe média apareçam em apenas 11% dos processos.
A análise das sentenças revela, com impressionante clareza,
os mecanismos ideológicos que integram a seleção dos casos que
entram no sistema. Entre as variáveis examinadas, o estado de
abandono, a etnia ou a classe social são, junto à reincidência,
determinantes pari! a internação dos jovens que portavam pequenas
quantidades de droga. Ainda nesta análise, a liberdade assistida e
os serviços psicoterapêuticos paralelos à internação parecem des-
tinados, sobretudo, à recuperação dos jovens negros, mulatos e
pobres. Para os jovens da classe média, evitam-se estas medidas,
substituindo-as pelo reenvioà família e pelo acompanhamento mé-
dico ou em clínicas particulares.
Através das sentenças apresentadas, torna-se evidente que
os juízes e os operadores do sistema (psicólogos, psiquiatras, assis-
tentes sociais) interiorizaram a convicção de que aquelas medidas
são normais e necessárias para o pri,meiro grupo de jovens, mas im-
próprias para o segundo. Conscientemente ou não, polícia, juízes e
operadores agem, no campo das drogas proibidas, de modo total-
mente coerente com a função não declarada que, na reconstrução
histórica de Vera Malaguti, parece dominante na justiça juvenil, do
início do século até 1988: criminalizar crianças e adolescentes po-
bres, definir o apartheid de uma população jovem já excluída soci-
almente, pô-Ia em guetos ou destruí-Ia, impor aos sobreviventes a
resignação a um emprego subalterno e precário, com um salário de
subsistência. Um dos importantes resultados deste livro, está na
demonstração da continuidade da teoria e dos estereótipos com os
quais o sistema (e também a mídia e a opinião pública - que são o
ambiente deste sistema), durante todo o tempo, exercitou o verda-
17
deiro "olhar seletivo", dirigido exclusivamente às crianças não-
brancas e pobres.
Este resultado se apóia na análise de documentos efetuada
nos arquivos do Departamento de Ordem P?lítica e Social,. no Ar-
quivo Público do Estado do Rio de Janeiro e nos arquIvos da
Funabem, durante um período que começa em 1907 e cobre os .ca-
sos da 2' Vara de Menores da cidade do Rio. 9ue a.droga seja. a
ocasião de intervenção do sistema, que a ocaSlaO seja fo:mda, as
vezes, como nas décadas anteriores, por outras lllfr.açoes, t.als
como, principalmente, pequenos furtos, ou pela pura .e simples SitU-
ação de abandono que leva o jovem ao sistema, nao obstante as
transformações legislativas e institucionais que se s~gU1ram~o SIS-
tema permanece substancialmente o mesmo: cnmllla!Jzaçao das
crianças e adolescentes pobres pela única razão de serem pobres e
de se encontrarem em "situação irregular". • . .
É a estes jovens, e não aos jovens da classe media e das. e1J:
tes, que se dirigem as leis, os tribunais e as instituições me~ons; e
a estes jovens que se aplica a expressão "menor': ..A de!pelto das
definições institucionais do que seriam casos de ' s!tuaçoes megu-
lares", de risco ou de abandono, os comportamentos lllfrato~es ou
problemáticos não são, de maneira ~lguma, a variável determlllante
para que a justiça do menor seja aClOn~~a.Fazend~ um balanço d~
jurisprudência do Juizado de Menores ja nos pn~el:os ano~ de sua
fundação - que se deu em 1923 -, Vera observa: é ImpressIOnante
como a grande maioria dos casos se r.efer.e a.cria.nças PO?reS; ~s
elites resolvem seus casos em outras lllstanclas, lllformals e nao
segregadoras". . .
É impressionante, durante os oitenta anos de hlstóna percor-
ridos pela autora, a continuidade de todos os principais componen-
tes ideológicos do "olhar seletivo" da justiça do menor. Se uma
evolução parece existir, esta consiste, por um lado, na progresslya
confirmação e consolidação destes componentes, e por outro, na
institucionalização dos efeitos desumanizantes, repressivos e se.gre-
gadores do sistema, independentemente das transformações legisla-
tivas e das mudanças gerais das condições políticas. Cada fase per-
corrida pela história do sistema de justiça menoril parece voltada ao
passado mais que ao futuro, isto é, voltada para a gestão de um pr.?-
blema de controle herdado da fase precedente, e para a conservaç\,o
18
d,alógica do controle, adaptando instrumentos às mudanças gover-
námentais. A mudança nas dialéticas sociais serve para consolidar
esta lógica em vez de propiciar a ocasião para um projeto de trans- •
formação na ótica do sistema. Essa mesma ótica é constantemente
projetada na fase sucessiva e se torna cada vez mais consistente.
•••
No livro de Vera, os sinais desta continuidade são freqüentes
e sugestivos. Podemos, portanto, constatar, assim como ela, que os
componentes ideológicos, a teoria e os estereótipos - que condicio-
nam a seletividade do sistema e que, com o estudo da jurisprudên-
cia da 2"Vara de Menores da cidade do Rio de Janeiro, podem ser
verificados - aparecem da mesma maneira, desde as primeiras déca-
das do século, seja naquela cidade ou em qualquer outra do país.
Vejamos algun,s exemplos: na linguagem policial, a expressão "ati-
tude suspeita", registrada nos autos de dezenove processos, não foi
nunca usada para indicar que o jovem estivesse fazendo algo sus-
peito, mas para indicar que ele foi considerado automaticamente
suspeito pelos sinais de sua identificação com um determinado gru-.
po social. A autora vincula este artifício à "estratégia de suspeição
generalizada", assim chamada por Sidney Chalhoub para indicar a
forma utilizada para o controle da população negra há pouco tempo
liberta, no fim do século XIX.
Não menos longínquas se situam as origens do "olhar moral
e periculosista", que os técnicos do sistema (psicólogos, psiquia-
tras, assistentes sociais) introduze~noções de família, trabalho
e lugar de habitação. Na carga ideológica negativa presente na vi-
sã,? da família pobre e não-branca, que se afasta do modelo de inte-
gração próprio da família burguesa, e que tanto pesa nas senten-
ças, continuam vivos a incompreensão e o desprezo dirigidos à fa-
mília afro-brasileira sobrevivente à escravidão. O que nesta é o prin-
cipal fator de integração, a mãe, é considerado como inexistente: se o
pai não está presente, a farm1iaé vista como desagregada. Se, então,
nos referimos à noção de trabalho, podemos observar que, nos pro-
cessos dos anos 1968-1988, os serviços psicológicos e psiquiátricos
do Rio continuam a definir Ojovem pobre com as mesmas catego-
rias com que era definido pela polícia nos anos trinta.
19
Como "pergunta emblemática", permanece a encontrada no
questionário utilizado pelo Serviço de Fiscaliz,~çãO e Repressão da
Polícia Civil do Distrito Federal, nos anos tnnta: tem vendido Jornais,
bilhetes de loteria, doces, engraxado sapatos ou desempenhado alguma
ocupação na via pública?". O desempenho de qualquer dessas funções
indica o status que faz destes jovens a clientela natur~l do sistema d~
justiça para menores. Estes são perigosos sobretudo porque, assim
como a dos mendigos e dos vadios, a atividade que exercem denota
insubordinação à disciplina que o sistema deles exige.
Sendo assim, em 1988, C.O. (17 anos) é perigoso, porque "está
trabalhando em biscates, pois não tem paciência para aturar patrão".
W.S.L. (17 anos, negro) e F.A.S. (mulato, morador da favela Barros
Filho, internado aos 16 anos) também são perigosos: p primeiro porque
"jamais demonstrou submissão e, de fato, não é submisso"; o segundo
porque, de acordo com a perícia psicológica, mesmo depois de dois
anos de "readaptação social" no Instituto Muniz Sodré, "ainda se sente
atraído por uma vida de ganhos fáceis". E a psicóloga comenta: "esta
vida é ainda sentida como uma coisa boa, fazendo com que os olhos
brilhem ao referir-se ao que fazia com o dinheiro conseguido. A fanta-
sia de poder manter um status, um grande guarda roupa em plena
moda, de se cercar de guloseimas e garotas bonitas, não coadunam com
a vida que é possível se levar com um salário mínimo".
A disciplina da obediência e da resignação a um trabalho subal-
terno e a um salário mínimo constitui o centro da readaptação social e
da formação profissional que vem sendo imposta aos adolescentes po-
bres. O conteúdo desta formação reproduz fielmente a imagem domi-
nante no Brasil - do início da República aos dias de hoje - dos papéis
reservados a homens e mulheres jovens provenientes dos estratos mais
pobres da população, não existindo muita diferença entre os papéis in-
certos exercidos por adolescentes na economia informal - que é o que
justifica sua internação - e os papéis que exercem na economia formal
_ para os quais devem ser"readaptados". Vera se atém à ambigüidade
desta noção de trabalho, que tanto pode ser vista como um 1I!-0tivode
criminalização quanto como um critério de ressocialização. As vezes,
esta ambigüidade se torna um verdadeiro paradoxo: A.M.N.T. (14
anos, morador da favela dos Caídos), em seu ingresso no Instituto Pa-
dre Severino, é diagnosticado como um adolescente que necessita de
tratamento, porque "não teve vida produtiva declarada, mas alega ter se
20
ocupado co~ subempregos diversos como engraxate ou outros bisca-
tes". Mas, depois da "cura", a psicóloga do Serviço de Liberdade As-
sistida declara, com satisfação, que "atualmente o jovem está trabalhan-
do ~om,o engraxate e perfeitamente integrado à sociedade". Igualmente
anaga e a representação do serviço militar, para os jovens pobres, e do
casament~, para as jovens, como uma alternativa de vida, isto é, como
mpa terapia extramuros.
. Enfim, encontramos, um século depois, a continuidade dos pro-
cedimentos dos operadores dos serviços psicológicos e psiquiátricos.
"Recuperaçã?",. "ressocialização", "reeducação" são eufemismos que
escondem obJetiVOs e mstrumentos de contenção social claros e explí-
~ltOSem sua selelivldade. Desta maneira, a conclusão a que Vera chega
e que, apesar das mudanças da problemática do crime devido ao lugar
central ocupado pelo mercado de drogas ilícitas, encontramos ainda no
sistema de justiça para menores ao final dos anos 80, o mesmo I~m-
broslanismo social que existia no início da República: "psicólogos,
pSiqUiatras, pedagogos, médicos e assistentes sociais trabalham em seus
pareceres, estudos de caso e diagnósticos, da maneira mais acrítica,
com as mesmas categorias utilizadas na introdução das idéias de Lom-
broso no Brasil".
Os vinte anos de criminalização de jovens pobres no Rio por trá-
fico de drogas no varejo são ao mesmo tempo uma história recente e
uma his~ória antiga. Como história antiga começa com a abolição da
escravldao e com o processo de urbanização, quando as cidades ganha-
ram ~m ~ovo perfil, com a remoção dos bairros' pobres do centro para
a penfena. As grandes obras de modernização assumiram o significado
de operações de higiene social, exprimHido bem o ':medo branco" e o
projeto de exclusão e de marginalização dos libertos, a representação
burguesa do que seria a cidadania negativa das classes subalternas. A
escplha do Rio para ilustrar esta história antiga é uma escolha feliz
porque o Rio é um espelhd fiel que reflete, de maneira aumentada, ~
que aconteceu no resto do Brasil.
E é também uma escolha feliz para ilustrar a história recente
deste país, já que no Rio se pode seguir, melhor que em qualquer outra
Cidade brasileira, a passagem da ideologia da segurança nacional da
época da ditadura militar à ideologia da segurança urbana dos nossos
diaS. E, de fato, a tese principal do livro é que, de 1978 a 1988, com a
"transição democrática", deu-se no sistema de repressão "o desloca-
21
mento do inimigo interno para o criminoso comum, com o auxílio lu-
xuoso da mídia". Explica-se, de tal maneira, o paradoxo aparente:
que a visão seletiva e repressora da seguran~a urbana e as campa-
nhas de pânico moral e alarme social que a alimentaram permltuam
a sobrevivência, até os dias de hoje, da lógica e da estrutura do con-
trole social próprio do período do governo militar, uma interioriza-
ção do autoritarismo e uma introjeção da ideologia de extermínio
maior e mais maciça que nos anos posteriores ao fim da ditadura.
Se o Rio é a representação concentrada da história do capita-
lismo brasileiro, o Brasil é, por sua vez, a representação da história
do capitalismo ocidental. Duas são as "anomalias" da sociedade
brasileira que a distinguem de todos os outros países capitalistar a
sociedade brasileira foi a última a acabar com a escravidão e é
aquela em que a desigualdade é maior. De algum modo, estas dUas
características contribuem para que a sociedade brasileira exprima,
de maneira direta e elementar, as contradições da sociedade capita-
lista em geral. A dependência recíproca entre desigualdade e vio-
lência, entre exclusão social e seletividad~ do sistema repressivo se
apresenta no Brasil, digamos assim, em estado puro. Por este moti-
vo, as funções latentes do sistema de justiça criminal são mais visí-
veis, as relações complexas entre direito penal e diferenciação sOrl-
ai são mais simples do que no contexto histórico dos países "cen-
trais", no qual se ihscreve o livro da autora alemã. Os d6is livros
são tão complementares quanto os seus objetivos: não se pode en-
tender o centro sem olhar a sua periferia, mas não se pode também
entender a periferia sem se considerar o centro. A reflexão crítica
sobre o capitalismo central e o sistema punitivo encontra no Rio a
ponta de diamante que põe em foco muitas questões de que trata o
livro alemão, e as toma ainda mais claras. Não vi histórias melhores
do que as contadas por Vera para ilustrar a ligação entre proprie-
dade e violência punitiva, de que trata Gerlinda. E esta ligação é
que permite colocar o Rio, com precisão, na história e na estrutura
atual da sociedade capitalista.
Se colocarmos, lado a lado, o que os dois livros nos ensinam,
poderemos entender melhor tanto o caráter geral quanto o caráter
específico da ação da 2' Vara de Menores no Rio: o problema da
droga não é a questão relevante para se entender o funCionamento
do sistema punitivo em relação aos jovens pobres no Rio, mas a
22
sua criminalização po~ tráfico de substâncias proibidas é relevante
par~ a compreensão do problema da droga na sociedade capitalista a
partir dos anos setenta.
"': droga não é mais que a última ocasião com a qual o siste-
ma pumtlvo da ~ocledade moderna reali~a a sua história, que é a
mesma no BrasIl e no resto do mundo. E a história das relações
entre duas nações que, como escrevia Disraeli, compõem os povos:
os ncos e os pobres. Mas como, dentro da história da sociedade
moderna ocidental, o Brasil tem suas anomalias - que tornam mais
transparentes do que em qualquer outro lugar os mecanismos e fun-
ções do sistema punitivo -, também o sistema droga funciona no
BrasIl com uma anomalia, que confere a este país uma diferença
t~nto em re~ação ~o "centro" como em relação à "periferia" da so-
Ciedade capitalista. No que diz respeito ao sistema droga, o Brasil é
ao mesmo ~empo um país central e um país periférico, ou talvez,
nem um paiS central nem periférico. .
,. Se nos referimos às drogas pesadas, o Brasil é um país peri-
fenco. que, na economia da droga ilegal, tem o papel dos países
centrais: o consumo. Mas não tem o papel dos países periféricos: o
cultivo_da substância base por parte dos camponeses pobres e a
produçao e a exportação operada pelas máfias locais. Por esta ra-
zão, a guerra contra a droga no Brasil não é uma guerra internacio-
n~l c,omandada pelos Estados Unidos e por outros países centrais;
~~o e uma guerra contra um inimigo externo; ~ uma guerra contra o
mlmlgo mterno; um assunto, como se viu acima, de segurança naci-
onal e urbana.
A inexistência de ações estrangeIras, de uma guerra contra a
droga conduzida em seu território, e a inexistência de uma guerra
contra as drogas conduzidas pelo Brasil no território de outras na-
ções faz com que, no Brasil, o problema da droga, simplesmente,
assuma a forma da relação entre as duas nações em que está dividi-
da a SOCiedadebrasileira: os ricos e os pobres. Assim, aos jovens
consumidores das classes média e alta se aplica o paradigma médi-
co, en~uanto que aos jovens moradores de fav.elas e bairros pobres
se aplica o paradigma criminal.
. .Co~stituin~o-se, já em 1995, o motivo número um para a cri-
mmalizaç~o dos Jovens 'p0.bresno Rio e um problema de segurança
com relaçao ao novo Inimigo mterno, a droga é hoje o cerne da di-
23
•
ferenciação do controle (médico ou penal), da distribuição de segu-
rança baseada no censo (certeza dos direitosdos ricos, incerteza
dos direitos dos pobres), do privilégio e da exclusão social através
da aplicáção dos estereótipos positivos e dos negativos, criminais e
periculosistas.
A particularidade da economia da droga proibida é que, para
esta, o principal elemento dinamizador do círculo de oferta e procura é
a sua própria proibição. Os lucros da proibição devem, porém, ser pa-
gos com os custos sociais da mesma, que são tão altos quanto os altís-
simos lucros. Fazem parte dos custos sociais os processos de crimina-
lização, que atingem quase que exclusivamepte os traficantes de pouca
importância provenientes dos estratos mais frágeis da sociedade. E
devemos colocar entre os custos sociais da econolnia da droga ilegal
também os que são pagos pela justiça criminal em decorrência da so-
brecarga imposta pela ação repressiva que surte os efeitos opostos dos
declarados no discurso oficial do sistema, e em decorrência da crise de
legitimidade que, consequentemente, o ameaea.
Para enfrentar os custos sociais da proibição e da criminalização,
o sistema droga os "externaliza", fazendo a sociedade e seus grupos
mais vulneráveis - aqueles que fornecem mão-de-obra a preço baixo e
com alto risco - pagar pelos mesmos, imunizando dos efeitos secundá-
rios, e portanto da criminalização, os consumidores e tráficantes que
provêm dos grupos mais fortes. Desta forma, explica-se também por
que no Rio o sistema de justiça criminal aparece exClusivamente dire-
cionado à repressão dos jovens traficantes que retiram do mercado
meios de subsistência, ao combate do crime "desorganizado" das fave-
las, mais do que ao combate da criminalidade organizada. A seletivida-
de da justiça criminal neste e nos demais campos é tão grande quanto a
desigualdade social e a eficácia segregadora da cidadania negativa, sen-
do ambas emblemáticas para o Rio e para a sociedade brasileira.
Para compensar os custos materiais e simbólicos enfrentados
pela justiça criminal, o sistema droga se vale de meios de comunicação
internos e externos. Neste ponto, acontece uma troca de serviços entre
o sistema droga e o sistema da justiça criminal, vantajosa para ambos.
A criminalização, já vimos, é a essência específica do mercado das dro-
gas; os processos de comunicação de massa e de estigmatização social
que a acompanham garantem, então, que a sua concentração e a dos
outros custos sociais nos grupos mais vulneráveis obtenha um vasto
24
consenso na opinião pública. Por outro lado, a centralidade da droga na
formação do estereótipo da criminalidade faz desta um alimento formi-
dável p~a o alarme social e para as campanhas de lei e ordem; e o alar-
me soc.lal e as campanhas de lei e ordem são, por sua vez, um instru-
mento mdlspensável de legitimação do sistema de justiça criminal. São
também um instrumento para a tecnocracia do poder e para o sucesso
dos gove~os e dos políticos conservadores. O "mito da droga" aumen-
ta o.~umhao eleitoral da ilusão de segurança que estes governos e estes
pohtlcos vendem com a ajuda maciça dos meios de comunicação. De
tal ~odo, a e.co~oml~ da droga, além de ser elemento de legitimação
do sls~ema cnnunal, e também, através deste sistema (mas não somente
atraves dele ),um elemento da economia política do poder.
***
Por ~ue um aco.ntecimento que tem a ver com a justiça para
menores é tao emblematlco para o sistema punitivo geral? Pode-se dar
a esta, a.ntes de. qualquer outra pergunta, uma resposta de caráter
quantitativo. Se e verdade que o sistema punitivo em geral é dirigido aos
P?bres e que a justiça menoril dele faz parte (a despeito de sua ideolo-
gia_tutelar e d: seus eu~emismos), então os jovens pobres são a popu-
laça0 de refe~encla mais representativa do sistema punitivo em geral.
De fato, a maiOr parte dos pobres é jovem e a maior parte dos jovens é
pobre, no Brasil e no mundo inteiro.
. Se pr?curamos uma resposta de caráte.r qualitativo, devemos
partir de ~als longe. A justiça para menores, desde sua fundação, no
final do seculo XIX, fOi sempre a paJ1e mais sensível de todo o sistema
puniti.vo, a m~s pro.bl~mática e qualificante, o lug~ onde a mistificação
doutrmária e Ide?loglca do sistema e, ao mesmo tempo, o seu caráter
seletivo e destru~vo a1c.ançaram seu ponto mais alto. Todavia, a justiça
p~a men~res fOi tambe~ o lugar onde nos últimos tempos melhor se
pode medu suas contradições e onde prosperaram sinais de crítica e
projetos de reforma.
Se é verdade que, "no período das turbulentas lutas sindicais" na
passagem.do século XIX para o século XX, no Brasil (assim como em
toda a SOCiedadecapitalista), "a burguesia tinha necessidade de alimen-
tar o sistema jurídico penal com medidas que punissem além do crime"
como lembra Vera utilizando as palavras de Nilo Batista, então a intro:
25
i
i
I
dução de medidas de segurança junto à pena na justiça penal dos adultos
foi um modo parcial e imperfeito de realizar o programa para o qual o pe-
riculosismo positivista e o biologismo lombrosiano forneceram as ferrarnerl-
tas teóricas. A perfeição havia sido alcançada, por sua vez, no final do
sé~ul~ XIX, co~ a invenção do,s códigos e dos tribunais de menores (o
pnmerro, o de ml~OIS,fOimstltUldo em 1889). De fato, com a justiça para
menores que nasCia, os pobres, se jovens, podiam ser criminalizados atra-
vés,de medidas "tutelares" que não se aproximavam da pena, mas a subs-
titulam conceItualmente, e, portanto, poderiam ser completamente subtra-
ídas dos limites e das garantias processuais e substanciais com que, mesmo
durante? auge da escola positivista, a dogmática penal sempre circundou
o conceito de pena. Aquilo que, no direito dos adultos, devia se realizar
apenas pela metade, com a doutrina do "valor sintomático" do delito e
com a introdução das medidas de segurança, era plenamente
alcançado com a doutrina da "situação irregular" e com a introdução
da justiça menoril.
Até os anos 80, em toda a área ocidental, a justiça menoril era pior
do que a dos adultos. Isto se toma ainda mais evidente quando nos damos
conta não só da realidade efetiva do sistema, mas também da relação entre
as normas.e a realidade. O funcionamento seletivo, segregador, desumani-
zante do sIstema era ainda mais pronunciado na justiça para menores que
na dos adultos, e sua legislação não indicava um modelo melhor de reali-
d~de, sendo, ~igamos ass~m, uma má fotografia. A arbitrariedade da poli-
~Ia,.o paternalismo dos JUIZes,a ausência de defesa, de meios recursais, de
hnutes preestablecidos da responsabilidade e das medidas penais, eram
abertamente programados na legislação menoril. Na justiça dos adultos, ao
contráno, exceção feita às medidas de segurança, nas quais o adulto se
encont;ava em c?ndição comparável à do menor, poderíamos di~er que,
no penodo conSIderado, a reahdade se afastava à revelia da legislação.
Mesmo com t~ntas contradições, esta, de fato, continuou a prover garan-
tIas substancuus e processuaIs que encontraram, então, uma aplicação limi-
tada nos fatos. Ou então, os fatos se emanciparam totalmente da legislação
c?mo acont~c~u, no Brasil e em outros lugares, todas aJivezes em que ~
slstemapurntlvo paralelo ou extrajudicial prevaleceu sobre o legal ou o
SUb~tltulU- o que aconteceu regularmente durante os governos rrtilitares e
as ditaduras fascista,s.,A justiça ~enal dos adultos, na teoria, é menos per-
v~rsa do que na pratica. A Justiça dos menores, na teoria - até os anos
Oitenta - era tão perversa quanto na prática.
26
Nas últimas duas décadas do século XX, a relação começou a se
inverter. Um processo de transformação a nível mundial se exprimiu
em importantes documentos das Nações Unidas, sendo o último destes,
e o mais decisivo, a Convenção de 1989. As garantias fundamentais
presentes nos princípios do direito penal liberal foram estendidas aos
adolescentes. Em todo o mundo ocidental capitalista a Convenção foi
precedida e seguida por importantes reformas no direito dascrianças e
dos adolescentes e na justiça juvenil, sendo que a doutrina da "situação
irregular" foi substituída pela doutrina da "proteção integral". O
movimento se estendeu à América Latina, encontrando seu ponto mais
alto de desenvolvimento no Brasil, onde se afirmou através do trabalho
firme e corajoso de especialistas e com o apoio considerável da
sociedade civil. O artigo 227 da Constituição de 1988 antecipou a
Convenção das Nações Unidas: o Estatuto da Criança e do Adolescen-
te, de 1990, resumia magistralmente'as idéias da Convenção, tendo sido
um grande e inovador exemplo da política participativa de direito. Os
princípios presentes na nova legislação, no que dizia respeito à justiça
juvenil, se tomaram critérios e campos de experimentação potencial
das reformas da justiça dos adultos. Como exemplos, a mediação e o
ressarcimento da vítima como alternativa ao processo e à pena, a dife-
renciação das sanções, a excepcionalidade e a brevidade das medidas
de internação, a cessação antecipada das sanções.
A justiça para menores representou, em sua - relativamente bre-
ve - história, o que há de melhor e o que há de pior da justiça dos adul-
tos. Mas a relação entre norma e realidade, nos 'dois setores, se modifi-
cou profundamente nas últimas duas décadas: as normas do direito
J,Jenaldos adultos pioraram cada vez-mais, enquanto que as da justiça
juvenil, e d~ todo o sistema que engloba o direito da criança e do adoles~
cente, melhoraram cada vez mais. Em todo o mundo ocidental, a
realidade do que conceme à área infanto-juvenil deu sinais de algumas
melhoras. Todavia, quanto mais se aumentou o nível qualitativo das
normas, maior o atraso da realidade em relação ao mesmo, dada a len-
tidão e os obstáculos materiais e ideológicos com os quais se realiza, no
Brasil e em qualquer outro lugar, a sua adequação ao programa consti-
tucional e legislativo. Eis, então, uma outra anomalia desse extraordiná-
rio país: assim como a desigualdade social, a diferença entre as refor-
mas e suas atuações, no campo da infância e da adolescência, está entre
as' maiores do munôo; mas, isto 'não depende somente do atraso nas
27
•
relações sociais e políticas, depende também, devemos ressaltar, do
nível altíssimo que as reformas alcançaram no plano normativo.
Não se trata de dois primados diferentes, mas da mesma coisa.
É a grande distância social entre ricos e pobres que faz COnjque, no
Brasil, seja tão grande a distância entre as normas e a realidade. De
fato, como foi dito de maneira tão eficaz por Antônio Carlos Gomes da
Costa, uma vez tendo se tomado lei, os projetos constitucionais e legis-
lati vos relativos à infância e a adolescência se transformaram em um
projeto de sociedade. Sem que se realize o projeto de uma sociedade
mais igualitária e mais justa, a aplicação do novo direito da infância e da
adolescência é impossível. Mas, para realizar este projeto, o caminho
hoje no Brasil e em todo o mundo do capitalismo real é o das lutas
pacíficas e tenazes, para se assegurar e impor que a Constituição e a lei
sejam aplicadas em todas as áreas. Revolução social significa sinergia
de todas as lutas pela defesa e plena realização dos direitos sancionados
pelas leis, pelas constituições, pelas convenções internacionais, e para
mudá-las quando for necessário. Hoje, utopia cpncreta é a legalidade
constitucional, e a .realidade material, a defesa com todos os meios do
status quo das relações sociais, é a subversão, caso esta palavra ainda
possua sentido.
***
O que é tocante ao terminar a leitura do livro de Vera Malaguti é
que não se vê indícios desta utopia concreta contida no novo direito da
infância e da adolescência no Brasil, no projeto de sociedade traçado
no Estatuto e na nova Constituição. Uma historiadora poderia então
.descrever somente a sociedade de ontem e ver a atual.como sua conti-
nuação natural? Para que se entenda a década da transição democrática,
conta mais a continuidade com 64 do que com outubro de 88? Nada
mudou de 1990 a 1998 na realidade das crianças ~ dos adolescentes
pobres do Rio? E, se algo mudou, que influência tem em relação ao
sentido total da história que o livro narra? '
Se é verdade que um prefácio não deveria propor perguntas que
não são formuladas no livro, gostaria, pelo mçnos, de reconhecer que
nele estão alguns bons argumentos para explicar como a mudança legis-
lativa, e também a mudança da praxis judicial e administrativa, ainda
não modificaram o sentido desta história e não fizeram entrever ainda
28
uma mudança substancial de direção da realidade que Vera estudou,
nos últimos dez anos. Em primeiro lugar, as duas grandes engrenagens
da emoção coletiva - droga e insegurança urbana - continuaram, nos
anos que sucederam a reforma, a criar uma espécie de cordão em tomo
dos jovens distribuidores de drogas das favelas e dos bairros pobres do
Rio. A força destas engrenagens fez com que, aos olhos da opinião
pública manipulada pela Rede Globo, aquela marcada pelo binômio
"droga e insegurança" continuasse sendo uma espécie de zona franca
em meio à reforma. Foi depois da reforma que o percentual de incrimi-
nações por droga no Juizado de Menores do Rio cresceu, até mesmo
triplicou, em relação a 1988. Tráfico de droga e jovens marginais per-
maneceram no cerne do estereótipo da criminalidade e do alarme soci-
al, no Rio e no resto do Brasil, mesmo depois de ter entrado em vigor
a nova Constituição, a Convenção e o Estatuto.
Em segundo lugar, a involução eficientista, periculosista e emer-
gencialista da justiça penal dos adultos em toda a sociedade ocidental
teve, também no Brasil, um efeito devastador sobre a imagem e sobre
o modelo da justiça juvenil, impedindo, até o momento, que se desse o
condicionamento potencial da primeira pela segunda. A separação do
setor de proteção do setor da resposta à conduta infratora constituiu um
grande progresso, mas, em um primeiro momento, talvez tenha forneci-
do um álibi moral à consciência coletiva, em favor da repressão aos
meninos pobres: se na emergência risco-abandono respondemos com
as medidas de proteção, respondemos então com repressão à emergên-
cia-crime. O álibi, que assim se criou, não percebe nem o espírito nem
a letra do Estatuto, nem o fato de que, muitas vezes, os adolescentes
infratores moradores de favelas e baitmJ; pobres são meninos em situ-
ação de risco-abandono, isto é, privados de muitos dos seus direitos
fundamentais.
Se a maneira indicada fosse verdadeiramente a maneira na qual
a separação dos dois setores atingiu a opinião pública, esta se prestaria
- além de reproduzir o modelo assistencialista como contraposição ao
modelo repressivo - a reproduzir o modelo criminalizante. Em relação
aos adolescentes pobres, o modelo criminalizante agiria então de ma-
neira negativa: os adolescentes pobres são reprimidos exatamente pelo
fato de serem pobres, mas os adolescentes infratores, ou assim conside-
rados, são privados de seus direitos de proteção exatamente pelo fato
de serem infratores.
29
Em terceiro lugar, quando falamos de justiça penal de adultos e
de justiça menoril, não devemos nos esquecer de que são somente dois
subsistemas de um vasto sistema punitivo geral, que compreende não
só o setor formal-institucional, mas também um vasto setor informal-
social. Olhando o conjunto do sistema punitivo no sentido mais amplo,
podemos observar que, no Brasil, assim como nos outros países, o sub-
sistema formal juvenil melhorou no plano normativo, mas que o dos
adultos piorou tanto no plano normativo quanto no empírico, e que o
setor informal, em seu conjunto, não sofreu ainda, de maneira relevan-
te, as conseqüências das reformas. A ideologia autoritária do apartheid,
da limpeza étnica e do extermínio continuam a dominar o sistema in-
formal. A situação das crianças e adolescentes pobres, no Rio e no res-
to do país, ainda paga o preço das involuções e do atraso dos demais
componentesdo sistema punitivo em geral.
O mais importante, enfim, para se entender a continuidade da,
situação real, não obstante a ruptura normativa, é refletir sobre o modo
parcial e emergencial com que a reforma foi até o momento conduzida
pelas instituições e pela opinião pública. O sistema dos direitos das
crianças e dos adolescentes foi, até o momento, esmagado por duas
emergências: a emergência risco-abandono e a emergência criminal.
Por conseguinte, e contrariamente ao proposto pela Constituição e pelo
Estatuto, na ótica institucional e na opinião pública, prevaleceram as
políticas públicas de resposta contingencial a essas urgências, e não as
políticas públicas básicas, que deveriam representar a forma estrutural
e preventiva de intervenção nas condições sociais e nos serviços funda-
mentais (escola, saúde, ambiente, trabalho, relações de propriedade),
das quais dependem as emergências.
Então não é verdade que a resposta protetiva à emergência risco-
abandono é o álibi para a resposta repressiva à emergência criminal; é
sobretudo verdade que ambas as respostas emergenciais são o álibi das
instituições e da opinião pública para as graves deficiências das políti-
cas públicas de base e da política de proteção dos direitos fundamentais
das crianças e dos demais cidadãos (direitos de liberdade, direitos eco-
nômicos, sociais, culturais, direitos de participação política), que deve-
riam favorecer o progresso na direção de uma maior igualdade social.
É principalmente neste ponto que se mede o atraso nas atuações da re-
forma, visto que são as políticas públicas de base, e não as emergenci-
ais, a espinha dorsal da reforma no projeto constitucional e legislativo.
30
O ponto em torno do qual gira o problema da continuidade da
repressão aos jovens pobres no Rio reside, então, na estratégia imutá-
vel da defesa material e simbólica da desigualdade por parte dos grupos
no poder, que encontram o consenso interessado das classes médias.
Criminaliza~ os pobres é um instrumento indispensável porque garante
materialmente a sua posição subalterna no mercado de trabalho e a sua
crescente exclusão, disciplinando-os, pondo-os em guetos e, quando
necessário, destruindo-os. É também um instrumento indispensável
para encobrir, com a imagem da criminalidade perseguida, isto é, a dos
pobres, o grande edifício de ilegalidade e de violên:ia, que reúne ~~
nossa sociedade as classes detentoras do poder economlco. Este edlfI-
cio é tanto' maior quanto maior for a desigualdade social.
Ao fazer esta afirmação, devemos evitar cair no sociologismo
ingênuo de uma teoria criminológica da violência, que gostaria de cha-
mar de "criminologia salomônica", Para ser cientificamente imparcial
e politicamente neutra, eSta distrib~i de modo igu~litári? e simétric? o
custo social da desigualdade. A deSigualdade cna Ilegalidade e vlOlen-
cia criminal tanto no escalão social mais baixo como no mais alto, diz
a criminolegia salomônica, e segue em frente, como se a desigualdade
fosse um dado natural ou como se a desigualdade devesse ser conSide-
rada, em um discurso metodologicamente correto, só como variável
independente, e não também como variável dependente da violência,
Contb esta representação naturalística e simétrica, uma análise
mais atenta da história da nossa sociedade mostra, ao contrário, que as
duas formas de ilegalidade e de violência são muito heterogêneas, de-
vido às posições diversas que ocupam na din'âmica social e no tempo
histórico, A insubordinação e, em certos casos, a violência dos pobres
é determinada pelas condições de desigualdade social. Mas a violência
dos ricos não é determinada por estas condições, é ela que as determina
e as mantém. Foi preciso muita violência, inicialmente, para que fossem
impostas condições estruturais de desigualdade, que. co?ti~ua~iam a
existir através das gerações; e precisa-se de mUlto maiS vlOlencIa para
que subsistam, quanto mais próximas estiverem daquelas impostas pela
acumulação originária.
Parec~-me que a validade deste último conceito se confmnou na
mudança de paradigma entrevisto na teoria da criminalidade a partir dos
anos quarenta. Utilizando-o, agora, no contexto histórico do labeling
approach e da criminologia crítica, podemos entender ainda melhor certas
31
.,
teses surpreendentes de Marx sobre a relação entre violência e justiça
punitiva, e perceber que durante as grandes transformações sociais,
como aquelas que aconteceram no início da história da sociedade capi-
talista, não foram os "criminosos" que produziram a violência, mas,
sobretudo, os poderosos que "criaram" a criminalidade. Tendo imposto
condições de desigualdade e de aproveitamento, tendo despojado vio-
lentamente populações inteiras de seus bens (como aconteceu com a
expulsão dos camponeses na Europa) e da propriedade sobre seus cor-
pos (como aconteceu com a escravidão dos negros na América), os
grupos dominantes, então, impuseram, com as leis e com o poder ins-
titucional, a manutenção daquelas condições e definiram como "crimi-
nosos" os despossuídos errantes, os escravos desobedientes ou ociosos
os subalternos indisciplinados ou rebeldes. O ponto de partida do direi:
to penal moderno foi o crimen lesae maiestat/s, o delito de lesa majes-
tade contra o poder político e patrimonial das monarquias.
Distante algumas gerações da acumulação originária e como
conseqüência do pacto social da modernidade na Europa e da sua im-
portação na colônia latino-americana, a legislação penal dos Estados
modernos foi se transformando e ampliando até que incluiu, no catálo-
go dos delitos, condutas freqüentemente realizadas por indivíduos per-
tencentes às classes poderosas. O fortalecimento, social e político, das
classes inferiores impôs lentamente códigos penais que se destinavam
potencialmente a todos os autores de fatos tipificados como delitos,
independentemente da sua extração de classe. Mas, como mostra a his-
tória e a sociologia dos sistemas punitivos, os seus reais destinatários
permaneceram sendo os mesmos; os destinatários nunca foram verda-
deiramente os autores dos fatos típicos, mas os tipos de autor, isto é, os
tipos de autor pertencentes aos grupos sociais estigmatizados como
criminosos potenciais, suspeitos de sê-lo e, por isso, perigosos.
A criminalização dos grupos subalternos no Brasil - que, entre os
países latino-americanos, é o mais desigual e o que está mais próximo
ao passado escravista - permaneceu como um tipo de compensação à
perda de propriedade sobre os escravos e como uma forma de manu-
tenção da autoridade dos proprietários sobre os libertos e seus filhos.
Se antes a propriedade sobre os escravos autorizava a puni-los, 'torturá-
los ou destruí-los, agora continua-se a punir, torturar e destruir seus
descendentes para afirmar simbolicamente um tipo de propriedade so ..
bre eles, para enfatizar sua diversidade, para combater sua tendência
32
natural à insubordinação. A história da criminalização dos jovens po-
bres do Rio começa no amanhecer da abolição da escravidão e termina
com o inicio do grande processo de emancipação marcado pela Cons-
tituição e pelo Estatuto. No meio, está um século de desigualdade e
discriminação, de autoritarismo e de manipulações urbanísticas, legis-
lativas e policiais direcionadas ao controle repressivo e à guetização das
sucessivas gerações de ex-escravos. Uma história que, através dos me-
canismos sociais, políticos e culturais reconstruídos por Vera, e devido
às razões acima expostas, ainda subsiste.
Não é tarefa do historiador dar receitas para mudar a sociedade,
assim como não é tarefa do poeta melhorar o mundo. Mas, como o
poeta, ao fazer da realidade uma metáfora, nos ajuda a reconhecer o
sentido e ~ manter a distância e a liberdade necessárias na luta para
melhorá-la, também o historiador e o sociólogo, pelo fato de revelarem
como andavam e como andam realmente as coisas na sociedade, já
começaram a mudá-la. Opresente livro é um bom exemplo do quão
atual é esta tese: não nos diz o que podemos e o que devemos fazer
para modificar a realidade que descreve, mas nos obriga a questioná-la,
o que já é o início da mudança.
Em todo caso, algo já mudou: temos boas leis. Isto não é ainda
uma condição suficiente, mas é uma condição necessária que reforça
enormemente, em relação ao passado, a luta por uma sociedade mais
igualitária e mais jJsta e que lhe confere a força moral e a dignidade de
ser uma luta pela legalidade. Sabemos onde estamos e como chega-
mos: este é o mérito dos bons livros de histórià e de sociologia como
este. Sabemos aonde queremos chegar: este é o mérito de todas as
mulheres, homens e jovens que levarà!ITacliante, no Brasil e em tantos
outros países do mundo, a recente reforma do direito da criança e do
adolescente. Mas sabemos também por que queremos chegar até lá e
por que temos o direito e o dever de querê-lo: e este é o desafio que
advém de um novo pacto social que começa a ser construído, no Brasil
e em outros países do ocidente, com as novas constituições atualmente
em vigor.
Alessandro Baratta
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No dia 12 de abril de 1997, num episódio do programa da Rede
Globo intitulado "Você decide", em que os telespectadores decidem o
final da história, 79.493 pessoas optaram pela morte, por vingança, de
um jovem infrator que havia participado de um assalto violento. No
caso, a justiceira do rapaz seria a vítima, uma socióloga que lidava com
meninos de rua. As outras opções apresentadas seduziram menos es-
pectadores: 44.000 preferiram que ele fosse preso e apenas 20.000 op-'
taram por deixá-lo fugir. A vitória do extermínio foi avassaladora. A
produtora do programa recebeu vários telefonemas reclamando da le-
veza fia cena de assassinato. Os telespectadores queriam execução
sumárial.
Esta opção pelo extermínio foi noticiada com falso espanto pelo
jornal da Rede, junto com estatísticas sobre a situação dos adolescentes
infratores no Estado do Rio de Janeiro. Essas estatísticas apontaram
hoje a droga como principal fator de criminalização da juventude. Cer-
ca de 49% dos adolescentes que entram no sistema estão envolvidos
com drogas (38% por tráfico, 11% por consumo). A maioria desses
meninos vêm dos morros, favelas e bairros pobres cariocas e 38% são
analfabetos2.
É a partir deste quadro que a mídia se encarrega de esculpir o
novo inimigo público número um, o traficante armado, que reproduzi-
ria táticas de guerrilha, já que se difundiu que em algum momento da
história ele se cruzou na prisão com'a-militãncia de esquerda. O pro-
cesso de demonização das drogas, a disseminação do medo e da sensa-
ção de insegurança diante de um Estado corrupto e ineficaz, vai despo-
litizando as massas urbanas brasileiras, transforrnando-as em multidões
desesperançadas, turbas linchadoras a esperar e desejar demonstrações
de força.
Neste cont~xto, mecanismos psico-sociais de autoproteção, per-
versamente, dão lugar à lógica da exclusão. As campanhas por pena de
morte e as de justiça pelas próprias mãos vão tomando dimensão naci-
I Jornal O Globo. 19 de abril de 1997. p.14 e O Dia. 24 de abril de 1997 e 29 de maio de 1997.
1 Estatísticas da 2" Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro.
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onal. Os objetos do processo de demonização são desumanizados: a
eles não se aplicam os direitos à vida, à justiça, muito menos à cultura,
à educação. E o pior é que o imaginário os vê por tod~ parte, organiza-
dos em poderosos comandos, inexpugnáveis e indestrutíveis se não fo-
rem combatidos ao estilo de uma verdadeira guerra, digamos, uma cru-
zada. I
Do ponto de vista das elites brasileiras, as massas urbanas dê tra-
balhadores, em sua maioria negros, vivendo nos morros, quilombados3,
constituem contingentes perigosos. Reivindicam-se mais e mais inves-
timentos nos mecanismos de controle social, penas mais duras.
O estereótipo do bandido vai-se consumando na figura de um
jovem negro, funkeiro, morador de favela, próximo do tráfico de dro-
gas, vestido com tênis, boné, cordões, portador de algum sinal de orgu-
lho ou de poder e de nenhum sinal de resignação ao desolador cenário
de miséria e fome que o circunda. A núdia, a opinião pública destacam
o seu cinismo, a sua afronta. São camelôs, flanelinhas, pivetes e estãb
por toda parte, até em supostos arrastões na praia. Não merecem respei-
to ou trégua, são os sinais vivos, os instrumentos do medo e da vulne-
rabilidade, podem ser espancados, linchados, exterminados ou tortura-
dos. Quem ousar incluí-los na categoria cidadã estará formando fileiras
com o caos e a desordem, e será também temido e execrado. Existe
alguma coisa de novo nesta configuração simbólica da crise urbana
brasileira? Ou historicamente se reproduz todo o processo de formação
de nossas cidades: concentração de descendentes de ex-escravos nas
tarefas informais que um mercado de trabalho excludente e aviltador
vem criando através dos tempos?
Na cidade do Rio de Janeiro, hoje, a luta pela cidadania tem o
seu principalfront no nível simbólico e ideológico, num contexto de dis-
seminação do autoritarismo, onde o medo e a desqualificação do outro
se somam às campanhas de descrédito do Estado e das classes políti-
cas. Está instaurado o terreno para o autoritarismo sem ditadura.
N a raiz da constituição desta ideologia exterminadora está o
medo. Esse medo é administrado cotidianamente pelos meios de comu-
nicação. Mas, olhando para trás, vemos que a história do medo e da ex-
clusão já andaram jnntas desde antes do início do período dito "moder-
no" da história da Europa Ocidental. Em 1321, pela primeira vez acon-
tece um programa maciço de reclusão, dirigido aos leprosos na França.
3 Cf. Gizlene Neder. Violência e cidadania. Porto Alegre. Fabris, 1994.
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Recorrentemente, processos semelhantes de segregação e perseguição
se estendera!n aos judeus, muçulmanos, bruxos e também loucos, po-
bres e criminosos. Autoridades e multidões faziam sua parte encarce-
rando, torturando, apedrejando, exterminando todos os que ameaçavam,
os que estavam além dos limites da cristandade. O inimigo externo ti-
Ijha como cúmplice e emanação o inimigo interno, ao alcance da mã04•
Através da inquisição os perseguidos vão se adaptando (via tortura e
terror) aos estereótipos dos inquisidores, cristalizando o imaginário
social do medo e da exclusão.
Na América, o encontro da civilização européia com o "outro"
exterior se dá no momento em que a Espanha repudia seu "outro" inte-
rior, na vitória sobre os mouros e na expulsão dos judeus5• A relação
conquistadores-conquistados no Mundo Novo é permeada pela pouca
percepção que os primeiros têm dos segundos, pelo sentimento de su~
perioridade, e pela preferência pela terra e suas riquezas antes que pelos
homens. O genocídio da população americana e a liberação total da
crueldade obedecem a um duplo movimento de desqualificação do
"outro" e de subordinação de todos os valores ao desejo de enriquecer,
símbolo da modernidade, o fetiche do ouro. Se, na Europa Ocidental, o
alvo das campanhas e políticas de exclusão e controle são os grupos
minoritários, na América o processo de exclusão é generalizado à popu-
lação nativa.
Na Europa, a consolidação do capital mercantil, o fortalecimen-
to das cidades, o empobrecimento dos camponeses e artesãos, cria-
ram, por um lado, as condições para a Revolução Industrial e, por
outro, os motins e as rebeliões das novas multidões urbanas. O período
de transição à modernidade inundou aEuropa urbana de gente do cam-
po. Inicia-se uma fase de sucessivos'matins, rebeliões, greves, mo-
vimentos detonados pela fome, pela revolta contra as máquinas, pelos
preços, pela jornada de trabalho. Na medida em que se consolida o ca-
piüllismo, consolida-se também uma classe despossuída, vistacomo
turba ou ralé, ameaçadora e perigosa para a burguesia comercial e ma-
nufatureira.
O Grande Medo de 1790 se repete e se estende em todas as mar-
chas e contra-marchas da Revolução Francesa, até a consolidação da
burguesia e a derrota dos setores populares, antigo aliado nas lutas con-
4 Carla Ginhurg. A história noturna. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
5 Tzvetan TodoroV. A conquista da América. São Paulo, Martins Fontes, 1991.
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tra a aristocracia. Na reação das elites e das autoridades aos movimen-
tos de massa da Europa moderna, diante do pânico e 'dã impotência
frente à multidão, as autoridades se destacam pela violência contra a
vida. As políticas de controle social se aprimoram e se fortalecem para
responder ao pânico das elites. A Revolução Francesa põe em pânico
toda a Europa. Organiza-se um sistema jurídico institucional e uma po-
lícia para conter as massas ante as rigorosas condições que o capitalis-
mo vai impondo. A configuração urbana vai expressando e cristalizando
os processos econômico-sociais em curso. Não é à toa que as refor-
mas urbanas de Paris, efetuadas por Haussmann, interferem, desarticu-
litm, desmontam os cenários das lutas çlos sans-culottes e da Comuna
de Paris. Isola-se o centro histórico, criam-se anéis viários para melhor
circulação das forças da lei e da ordem, rasgam-se avenidas, apagam-
se os vestígios das barricadas. Tem-se comQ estratégia a neutralização
do proletariado revolucionário de Paris e a destruição da estrutura ma-
terial urbana dos motins populares.
Mas, bem ou mal, a "questão social" é incorpobda na Revolu-
ção Francesa, onde cada homem é um cidadão.
No Brasil, o projeto de construção da ordem burguesa é bastan-
te diferente. O fenômeno da escravidão desenvolve uma realidade soci-
al absolutamente violenta. Ou melhor, a violência é um elemento cons-
titutivo da realidade social brasileira. Ao trabalho compulsório do ne-
gro soma-se a despersonalização legal do escravo; o ~cravo era mercíl-
doria, não era sujeito. Temos aqui o que Roberto Schwarz chama de
"sentido histórico da crueldade"6.
Como a transição para o capitalismo no Brasil não destitui a elite
agrária, a modernização se dá "pelo alto", pela via conservadora. So-
brevivem intactos até hoje a despersonalização legal das massas negras
e pobres urbanas e o desprezo pelo trabalho manual no coração das
nossas elites. O projeto autoritário das elites brasileiras se afrouxa em
momentos de crise para rearticular-se imediatamente após a superação
dessas crises de mudança. No Brasil, autoritarismo e liberalismo são
duas faces da mesma moeda 7•
No período da dissolução das relàções escravistas (segunda me-
tade do século XIX), vão-se criando nas cidades brasileiras grandes
6 Schwarz. Roberto. "O sentido histórico da crueldade em Maçhado de Assis", in Novos
Estudos Cebrap. São Paulo. n° 17. maio 1987, pp. 38-44.
7 Gizlene Neder. Discursojurldico ~ ordem burguesa no Brasil. Porto Alegre, Fabris, 1995.
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contingentes de homens negros, escravos e libertos. Políticas de imi-
gração são favorecidas. A constituição do mercado de trabalho a partir
do fim da escravidão é razão de duplo medo: das massas negras e do
movimento operário internacional. A concepção do mercado de trabalho
no Brasil é excludente, desqualificadora e racista até hoje.
Esta realidade social violenta e excludente traz uma agitação
constante nas ruas da Corte; no fim do século XIX, há um temor dessa
mobilidade contínua chamado de "medo branco de almas negras" por
Sidney Chalhoub8. Esta população de escravos e libertos, entre 1830 e
1870, institui o processo de formação da cidade-negra. No censo de
1849 o Rio de Janeiro tem a maior população escrava negra das Amé-
ricas: A preocupação com a segurança se traduz em todos os níveis. O
medo branco faz com que o temor à insurreição seja mais sólido que a
própria perspectiva de insurreição. .
Mas a população é incansável em transformar a Cidade-negra em'
esconderijo; a cidade que esconde é a cidade que liberta. Deixa de exis-
tir a cidade escravista' disciplinada e se confundem os escravos, os h-'
vres e os libertos. As elites contrapõem às redes de solidariedade teci-
das na cidade negra as estratégias de suspeição generalizada (cidade-ar-.
madilha)9 As políticas urbanas republicanas, em conjunto com as po-
líticas diretas de controle social, atacam a memória histórica dessa ci-
dade-esconderijo, desmontando cenários de significados tão penosa-
mente construídos.
No Rio de Janeiro as intervenções urbanas têm uma concepção
higienista. Pereira Rego propõe uma cirurgia ria cidade com ~sv~zia-
mento do centro e remoção dos bairros pobres para áreas penféncas.
Rodrigues Alves desenvolve a primeíi'ãtnfervençãà sistemática do Es-
tado sobre espaço urbano no Rio de Janeiro, demolindo milhares de
cortiços para grandes obras urbanísticas.
O final do século XIX e o começo do século XX transformam o
Rio de Janeiro em palco de várias manifestações populares. Nós não
deixamos de criar o nosso "Haussmann tropical"lo Pereira Passos, ins-
pirando-se no modelo de Paris como metrópole ind~s~al, empreende
um conjunto de mudanças urbanas, baseadas nas eXlgencIas da. ordem
sanitária e da circulação urbana. É uma luta que se dá entre dOIScam-
SSidney Chalhoub. Visões da liberdade. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
9 idem.
10 Jaime Benchimol. Pereira Passos: um Haussmann tropical. Rio de Janeiro, Seco
Municipal de Cultura. 1990.
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pos: de um lado "o progresso, a civilização e a regeneração", do outro
a "cidade atrasada, suja e doente". Institui-se o "bota-abaixo" e sur~em
os deserdados da urbe renovada. Uma grande força segregadora se ar-
ticula através de um conjunto notável de obras e regula~entações jurí-
dIcas, executadas nos moldes de uma operação rrtilitar. E reduzido a es-
combros o suporte material da trama de relações engendradas na desa-
gregação do escravismo. A urbanização do Rio de Janeiro (e do Br~il)
é o retrato fiel de sua visão de cidadania: a exclusão permanente das
classes subalternas. "
. O trabalho que desenvolvi junto à coordenação de segurança pú-
bhca durante o governo Leonel Bnzola (1991-1994), o dia-a-dia letal das
favelas, a implantação dos Centros Comunitários de Defesa da Cida-
dania, a desolação que o comércio varejista de drbgas e'a barbárie que
este merca~o desencadearam me fazia sempre refletir: COq10 alguém
pode acreditar que esses meninos são os vilões da nossa história?
Como não enxergar nessas comunidades as principais vítimas de uma
modernidade exterminadora e segregadora, cuja dinán\ica tenta destruir
as redes de solidariedade tão cuidadosamente mantidas em séculos de
colonização e barbárie?
Essa perspectiva me conduzia para os objetivos da minha pes-
: quisa: analisar a criminalização por drogas da juventudy do Rio de Ja-
I neiro, entre 1968 e 1988, analisar historicamente a cons'trução do este-
"I" reótipo do novo "inirrtigo interno" (bandidos, traficantes) e do processo
de ideologização que disserrtina o "medo branco" na sociedade brasilei-
ra, e mapear as mudanças nas comunidades faveladas/periféricas' pro-
vocadas pelo recrutamento dos jovens para o tráfico de drogas, a partir
da consolidação da cocaína no mercado internacional na conjuntura
considerada. "I
Minha hipótese central de trabalho foi que na transição do auto-
ritarismo, da ditadura para a abertura democrática (1978-1988) houve
uma transferência do "inimigo interno" do terrodsta para o traficante.
Todo o sistema de controle social (incluindo ai suas instituições ideoló-
gicas, como os meios de comunicação de massa) convergiupara a cpn-
fecção do novo estereótipo. O inirrtigo, antes circunscrito a um pequeno
grupo, se multiplicou nos bairros pobres, na figura do jovem traficante.
Este jovem traficante, vítima do desemprego e da destruição do
Estado pelo aprofundamento do modelo neoliberal, é recrutado pelo
poderoso mercado de drogas. Com a consolidação da cocaína no mer-
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cado internacional, o sistema absorve o seu uso mas criminaliza o seu
tráfico, efetuado no varejo pela juventude pobre da periferia carioca. A
convivência cotidiana com um exército de jovens queimados como car-
vão humano na consolidação do mercado interno de drogas no Rio de
Janeiro, a aceitação do consumo social e da cultura das drogas paralela
à demonização do tráfico efetuado por jovens negros e pobres das fa-
velas, tudo me remetia à gênese do problema que hoje vivemos.
A cocaína se consolida no mercado internacional e no Brasil na
década de setenta, junto com o fortalecimento, a nível planetário, do
neoliberalismo. Importante do ponto de vista cultural, high-tech e nar-
císica, a cocaína movimenta um mercado paralelo milionário, cujos cir-
cuitos de comercialização e produção são controlados pelos países cen-
trais. Num mundo onde nenhuma lei vale mais do que a da oferta e da
demanda, a cocaína transforma-se numa mercadoria altamente valoriza-
da. O sistema convive com seu uso social, sua alta lucratividade, mas
desenvolve um discurso moral esquizofrênico que demoniza a parcela
da população atirada à sua venda pelo mercado de trabalho excludente
e recessivo. A manutenção da sua ilegalidade aumenta sua lucrativida-
de e reduz à condição de bagaço humano uma parcela significativa da
juventude pobre de nossas cidades.
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TI - Criminologia e História
1. A função oculta do sistema penal
Para a compreensão deste brutal processo de criminalização re-
corri primeiramente a Ruschell, por ser o primeiro a analisar historica-.
mente a relação entre as condições sociais, a estrutura do mercado de
trabalho, os movimentos da mão-de-obra e a execução penal. Ao
considerar a história da execução penal, distinguem-se diferentes
sistemas punitivos estritamente vinculados às fases do desenvolvimento
econômico.
Rusche analisa a transformação da pena pecuniária a partir da
Alta Idade Média, de pena privada em instrumento de dominação soci-
al fundado nas necessidades dos senhores feudais de incrementar suas
funções disciplinares e dos interesses decorrentes da lucratividade da
administração da justiça criminal.
Quando, a partir do século XV, pioram as condições de vida dos
setores populares, começam a surgir intensos conflitos sociais; a expul-
são'de mão-de-obra do campo ameaça os artesãos nas cidades, surgem
as hordas de vagabundos, mendigos e delinqUentes, nos limites
urbanosl2• A mão-de-obra torna-se abundante, o capital perde seu
papel secundário para transformar-se na força'motriz da economia. A
transição para o capitalismo conduz a um direito penal orientado direta-
mente contra estes setores populares:--A-criação de um direito eficaz
para combater os delitos contra a propriedade toma-se a preocupação
central dá burguesia urbana ascendente, A preocupação com a
administração da justiça faz com que surja uma administração
centrajizada por uma burocracia educada pelo direito romano, Aprofun-
dam-se as diferenças de execução das penas por classe; quanto mais
empobreciam as massas, mais severas as penas. As execuções,
mutilações e açoitamentos se convertem em regra. Impossibilitados de
sofrer penas pecuniárias, os pobres emprestam seus corpos para o
11 George Rusche e Quo Kirchheimer. Punição t! estrutura social. Rio de Janeiro. Insti-
tuto Carioca de Criminologia!Freilas Bastos.1999 p. 114.
12 ~nrameticulosa informação acerca do papel do controle penal desses pobres na criação
moderna da pena de prisão. cf. Dario Melossi e Massimo Pavarini. Cdrctl y fdbrica.
Ml!xico, Sigla XXI, 1980.
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espetáculo do horror. Para Rusche, o significado da pena de morte se
transforma em meio de eliminação de indivíduos. Todo o sistema punitivo
da Baixa Idade Média demonstrava a abundãncia de mão-de-obra e a re-
dução do valor da vida humana. A caça às bruxas toma proporções epi-
dêmicas. Bruxas, judeus e criminosos satisfazem o desejo de crueldade das
massas. Impera a convicção oficial do caráter dissuasivo das execuções
públicas. O sistema expressa o seu sadismo em um círculo vicioso em que
os "fora-da-lei" são mutilados e marcados para permanecerem excluídos
da sociedade.
Já no [mal do século XVI, com o surgimento do mercantilismo, os
métodos punitivos se transformam diante da possibilidade de exploração
da mão-de-obra através da pena de prisão. O crescimento demográfico da
segunda metade do século XVI não fôra capaz de cobrir as necessidades
de emprego dos novos tempos. A escravidão nas galés, a deportação e a
servidão penal colocam esta mão-de-obra escassa à disposição do aparato
administrativo. Durante o século XVI, na Europa, enfatizou-se a çiistinção
entre mendigos aptos e inaptos para o trabalbo, distinção que criminalizará
o controle social dos habilitados recalcitrantes. Se na época de abundância
de mão-de-obra os mendigos são considerados criminosos, o final do sécu-
lo XVI, de escassez, impõe mudanças no tratamento dos pobres. Multipli-
cam-se as leis que punem os trabalhadores aptos que deixaram seu traba-
lho para mendigar, já que os trabalhadores se transfOrmavam periodica-
mente em mendigos, quando desejavam descansar das penosas condiçqes
de trabalho da época.
Novas mudanças nas condições econômicas gerais transfor-
mam as casas correcionais do final do século XVII. Nessas unida-
des aproveitava-se a mão-de-obra disponível absorvendo-a nas ati-
vidades econômicas. A força de trabalho dos reclusos era utilizada
pelas próprias autoridades ou alugada aos empresários privados. As
casas de correção tinham uma administração lul:rativa e este argu-
mento foi decisivo na substituição da pena de morte pelo confina-
mento. A relutância em trabalhar era punida mesmo ao nível inter-
no, regulamentar das casas de correção, como na hipótese de ne-
gar-se ao trabalho P?r três vezesl3. As casas de correção eram imo:
portantes para o conjunto da economia; os baixos salários e o ades- :
tramento dos trabalhadores desqualificados deram uma importante i
contribuição ao surgimento do modo de produção capitalista. J
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13 MeJossi e Pavurini, op. cito
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A forma precursora da prisão moderna está estritamente ligada às
casas de correção e ao seu modo de produção. O seu objetivo principal
era a exploração racional da força de trabalho e não a produção. Mas a
necessidade de sustentar o abastecimento da força de trabalho para o
Estado complicava-se com a competição dos empresários privados. As
condições de vida nas prisões eram indescritíveis, mas sua administração
foi um negócio lucrativo até o final do século xvrn. .
As raízes do sistema carcerário se encontram no mercantilismo,
mas sua promoção e elaboração teórica foram tarefas do Iluminismo.
É nesta época que se desenvolve a teoria do direito penal. Surge um
movimento dirigido contra a indeterminação das penas e a
arbitrariedade das cortes penais (Montesquieu e Beccaria). Os
pioneiros da reforma penal estavam preocupados em limitar o poder
sancionador do Estado, formalizando o direito processual e matenal.
Hobbes já havia efetuado a formulação do conceito de culpabilidade
penal pela conexão rigorosa de um fato juridicamente definido. A idéia
de proporcionalidade se concretiza no reconhecimento legal da grada-
ção ela pena segundo a gravidade do delito. A privação de liberdade é
considerada como uma conseqüência

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