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3 DECISÕES DO STF ANALISADAS FILOSOFICAMENTE TH I AGO RODR IGUES PERE I RA COMO A F I LO SOF I A PODE AUX I L I AR NA TOMADA DE DEC I SÃO J UR ÍD I CA THIAGO RODRIGUES PEREIRA 3 DECISÕES DO STF ANALISADAS FILOSOFICAMENTE COMO A FILOSOFIA PODE AUXILIAR NA TOMADA DE DECISÃO JURÍDICA Edição do Autor Niterói 2018 1ª Edição 3 Apresentação 5 A Importância de Tomás de Aquino naFundamentação Filosófica do Princípio da Insignificância 18 A ADPF 54 e a anencefalia – brevesconsiderações filosóficas 32 As conduções Coercitivas e o Medo do Poder Judiciário no Brasil – como a filosofia pode contribuir para proteção do cidadão www.novoliceu.com Conteúdo Bibliografia49 51 Informações Quando um dos maiores jus filósofos do Direito, Hans Kelsen, escreveu sua mais importante obra, Teoria Pura do Direito, em 1934, o Direito alcançou a tão esperada autonomia científica, passando a possuir um objeto científico plenamente identificável (1) . Com isso, parecia que todos os problemas teóricos do Direito seriam finalmente resolvidos. Assim, Kelsen, pensando a partir de uma lógica kantiana da Crítica da Razão Pura, pretende criar uma metodologia que pudesse “blindar” a ciência do Direito das influências da moralidade, da sociologia, da psicologia, da antropologia, dentre outras, e principalmente da filosofia. Cumpre alertar sempre que Kelsen escreveu sobre uma “teoria”, e o problema da sua teoria, como de todas as faces do positivismo jurídico, é que na prática, se mostrou nociva e extremamente perigosa. A p r e s e n t a ç ã o (1) O Direito era acusado de ser mera técnica e não ciência por não possuir um objeto científico até Hans Kelsen afirmar que seria a lei (em sentido formal), ou seja, as normas postas pelas autoridades competentes, ficando de fora fatores meta jurídicos como os fatores sociais, econômicos, morais, políticos, etc., o objeto científico do Direito Contudo, após a II Guerra Mundial, verificou-se a impossibilidade prática da teoria do positivismo jurídico, pois se mostrou equivocado excluir os demais ramos científicos do Direito, pois, diferente do que pensou Kelsen, o Direito não é puro, pelo contrário, ele é mestiço. Essa relação intrínseca com os demais ramos científicos é uma marca indelével de sua característica. Partindo da premissa do erro teórico kelseniano, que acabou se mostrando mais grave ainda na prática, a presente obra visa analisar decisões do Supremo Tribunal Federal – STF apresentando a influencia e necessidade da filosofia para compreensão de como a corte máxima brasileira decidiu o caso concreto, nem sempre acertadamente, data máxima vênia, procurando encontras as bases filosóficas as quais as decisões ora analisadas estão assentadas. Assim, serão abordadas algumas teorias filosóficas utilizadas nas decisões analisadas ou que deveriam ter sido utilizadas para que a questão submetida ao excelso pretório fosse analisada e decidida da forma constitucionalmente correta. A IMPORTÂNCIA DE TOMÁS DE AQUINO NA FUNDAMENTAÇÃO FILOSÓFICA DO PRINCÍP IO DA INSIGNIF ICÂNCIA CAPÍTULO 1 O Direito, diferente do pensado por Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito, não é uma ciência que consiga se fechar em si mesma, pelo contrário, por ser uma ciência social aplicada, talvez seja das mais “mestiças” ciências existentes. O texto constitucional deve refletir os valores consagrados naquela sociedade, tanto internamente quanto em sua relação com outros Estados e organismos internacionais, sendo principalmente um catálogo de direitos básicos e princípios a nortear não apenas a relação entre indivíduos e Estado, como também entre os próprios indivíduos e em todas as ações estatais, seja de qual ordem for. Uma constituição é tão importante que deve não apenas refletir o pensamento momentâneo de uma sociedade, mas inclusive defender minorias contra maiorias passageiras, no chamado poder contra-majoritário. Para fazer valer o sentido correto do texto constitucional, deve o Tribunal Constitucional, que aqui no Brasil fica a cargo do Supremo Tribunal Federal – STF, CAPÍTULO I 06 www.novoliceu.com A I m p o r t â n c i a d e T o m á s d e A q u i n o n a F u n d a m e n t a ç ã o F i l o s ó f i c a d o P r i n c í p i o d a I n s i g n i f i c â n c i a Introdução velar para que seja respeitada à constituição e principalmente os valores contidos naquele texto. Entretanto, tanto o texto constitucional quanto os infraconstitucionais, não derivam simplesmente do intelecto do legislador, mas são frutos de lutas e conquistas sociais. A filosofia muito contribuiu e contribui para a evolução do pensamento humano como um todo, inclusive do pensamento jurídico. No presente estudo, irei brevemente demonstrar que apenas o Direito possuiu o princípio da insignificância (ou da bagatela) em razão da influência do pensamento de Tomás de Aquino. 07 www.novoliceu.com Tomás de Aquino é considerado um dos maiores filósofos do medievo, tendo escrito sua principal obra, a Suma Teológica, uma obra sofisticada, que dependendo da edição chega a mais de 8 volumes, com mais de 500 laudas cada. Além do próprio conteúdo de sua obra, ela terá grande importância, pois foi escrita em uma época em que o pensamento dominante da Igreja tinha como base o entendimento de Platão por Agostinho (2) . Na alta e em boa parte da baixa idade média, a leitura dos clássicos gregos e romanos se tornou heresia, podendo ser severamente punido quem desobedecesse tal ordem. Os clássicos são banidos da Europa, mas encontraram refúgio no mundo árabe, que traduziram para o árabe e guardaram com o desvelo merecido. No meio da alta idade média, iniciava-se a invasão moura (árabes oriundos do norte da África) na península ibérica, e com essa invasão, além dos costumes, cultura e afins, as obras clássicas, até então proibidas, regressaram à Europa. Após a tradução especialmente do grego para o árabe, filósofos árabes como Avicena, Al Farabi, dentre outros, traduziram a obra quase completa de Aristóteles do árabe para o latim, e será essa versão em latim que Tomás de Aquino terá contato. Esse contato com a obra aristotélica marcará profundamente Aquino, que o adotará como marco teórico da sua obra Suma Teológica. 08 www.novoliceu.com I – Tomas de Aquino é a oculta compensatio (2) Tanto Agostinho como Tomás de Aquino foram de grande importância para o pensamento medieval, especialmente para a Igreja Católica, vindo a serem canonizados após suas mortes. Entretanto, o que poderia ser apenas uma opção metodológica, se transformou em uma grande heresia, fruto de muita coragem por parte de Aquino, pois como mencionado, a única visão permitia na época em termos filosóficos seria a visão agostiniana de Platão. E nada mais! Então, o ato de ler Aristóteles e utilizá-lo como seu marco teórico, mostrou, além da profunda erudição, a enorme coragem de Aquino. Se no início sua obra foi recebida com enorme desconfiança por parte de uns, com desprezo por outros (principalmente os agostinianos), foi recebida com entusiasmo e encanto por outros, marcando de forma indelével a própria história da humanidade, pois provocou talvez o primeiro grande conflito ideológico dentro da Igreja, após a visão platônico-agostiniana se tornar hegemônica. A importância de Aquino se demonstra na celeridade de sua canonização, onde em menos de 100 anos se tornaria um dos santos da Igreja Católica. Na Suma Teológica, Aquino não apenas se detém em elucubrações teóricas ou teológicas, mas também com uma vida mais prática, incluindo o Direito e suarelação com os homens e com as sagradas escrituras. Na presente pesquisa, o que mais interessa será demonstrar a influência de Aquino no surgimento do princípio da insignificância ou bagatela. 09 www.novoliceu.com No artigo 7 do livro VI da sua Suma Teológica, Aquino irá desenvolver seu pensamento sobre licitude ou ilicitude de roubar por necessidade. Aquino (2013, v. VI, p165) começa sua escrita afirmando, sobre as penitências, que estaria escrito em um cânon : "Se alguém, impelido pela fome e pela nudez, furtar comida, roupa ou gado, fará penitência por três semanas". A conclusão seria, portanto, óbvia a princípio, pois apenas há penitência em relação a um ato errado. Se há penitência pelo ato de roubar, é porque tal ato é errado, tenha sido praticado em qualquer circunstância. Portanto, Aquino vai mencionar que, a princípio, uma coisa má em si não poderia vir a se tornar boa apenas por ter um fim bom. Portanto, o furto chamado famélico seria de qualquer forma um ato errado. Entretanto, Aquino irá demonstrar que tal ideia inicial estaria equivocada. Para isso irá recorrer a sua divisão das leis. Entende Aquino que existem 4 leis. A lei eterna, que seria a razão ou plano da sabedoria de Deus, enquanto Ele dirige todos os atos e movimentos de todas as criaturas. A lei divina é causa de todas as demais leis, e todos os seres, racionais ou irracionais, a ela estarão submetidos. Entretanto, apenas Deus tem acesso a essa lei. Existe também as leis naturais. A lei natural será a participação da lei divina no ser racional, o ser humano. Apesar de serem em raiz oriunda da mesma força criadora, Deus, se diferenciam, pois a natural diz respeito apenas aos aspectos morais dos seres humanos. 10 www.novoliceu.com Aquino também apresenta uma outra espécie de lei, a lei humana, que é a lei feita pelo homem para os casos mais particulares da vida do ser humano na Terra, mas sempre devendo estar de acordo com as leis naturais (já que o ser humano não tem acesso a lei eterna, por ser exclusiva do intelecto de Deus. Apesar do homem possuir uma centelha desse intelecto, não possuiu a sua plenitude). Por fim, existem as leis reveladas ou divino-positiva, que seriam as leis divinas que, por Deus entender ser necessário dirimir qualquer dúvida possível, revelou algumas leis naturais para serem escritas por homens escolhidos por Deus. Tanto o Antigo como o Novo Testamento são exemplos das leis reveladas, sendo o Decálogo de Moisés o melhor exemplo. 11 www.novoliceu.com Se encontra em Aquino portanto a primeira defesa real do princípio da insignificância ou da bagatela, hoje consagrado em alguns ordenamentos mas basicamente em toda a jurisprudência ocidental. 12 www.novoliceu.com Assim, Aquino vai afirmar que a subsistência é um direito natural do ser humano, e quando tal direito é negado a um indivíduo e em razão disso ele pratica um roubo, tal roubo não configuraria um crime ou ato errado, pois ele o está fazendo para dar concretude a uma lei natural que está sendo vilipendiada por uma lei humana. Portanto, Aquino (2013, v. VI, p166) irá falar que “se a necessidade é de tal modo evidente e urgente, que seja manifesto que se deva obviar à instante necessidade com os bens ao nosso alcance, quando por exemplo é iminente o perigo para a pessoa e não se pode salvá-la de outro modo, então alguém pode licitamente satisfazer à própria necessidade utilizando o bem de outrem, dele se apoderando manifesta ou ocultamente. E esse ato, em sua própria natureza, não é furto ou rapina”. II – A Aplicação da oculta compensatio no STF O STF vem aplicando o princípio da insignificância ou da bagatela, de forte influência de Aquino, conforme já mencionado, em várias decisões. O Excelso Pretório aplica o referido princípio normalmente com o objetivo de salvaguardar o direito de locomoção do indivíduo que acaba prezo por furtos ou roubos que se enquadrem na ideia defendida por Aquino. 13 www.novoliceu.com Para realizar isso, até pelo princípio da inércia que norteia o Poder Judiciário como regra geral, o STF acaba por apenas julgar tais casos, via de regra, em forma de recurso em sede de habeas corpus. O habeas corpus é previsto no artigo 5º, inciso LXVIII da CRFB/88, e serve para devolver a liberdade de locomoção a um indivíduo que a perdeu por ato ilegal do Poder Público, assim disposto: “conceder ‑se ‑á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO. TENTATIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. OCULTA COMPENSATIO. 1. A aplicação do princípio da insignificância há de ser criteriosa e casuística. 2. Princípio que se presta a beneficiar as classes subalternas, conduzindo à atipicidade da conduta de quem comete delito movido por razões análogas às que toma São Tomás de Aquino, na Suma Teológica, para justificar a oculta compensatio. A conduta do paciente não excede esse modelo. 3. O paciente tentou subtrair de um estabelecimento comercial mercadorias de valores inexpressivos. O direito penal não deve se ocupar de condutas que não causem lesão significativa a bens jurídicos relevantes ou prejuízos importantes ao 14 www.novoliceu.com titular do bem tutelado, bem assim à integridade da ordem social. Ordem deferida.(HC97189, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 09.06.2009, Segunda Turma, DJE de 12.08.2009) A aplicação pela Min. Ellen Gracie da teoria oculta compensatio de Aquino obedeceu exatamente a ideia original contida na Suma Teológica e supramencionada, ou seja, para os casos de pessoas com condições sócio-econômicas de miséria. Entretanto, essa ideia foi ampliada, amparando também furtos que, não teriam relação com a subsistência do ser humano, mas que, pelo seu valor ínfimo, aplicou-se o mesmo princípio. “FURTO. TENTATIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. OCULTA COMPENSATIO . A aplicação do princípio da insignificância há de ser criteriosa e casuística. Princípio que se presta a beneficiar as classes subalternas, conduzindo à atipicidade da conduta de quem comete delito movido por razões análogas às que adota São Tomás de Aquino, na Suma Teológica, para justificar a oculta compensatio . A conduta do paciente não excede esse modelo. O paciente se apropriou de um violão cujo valor restou estimado em R$ 90,00. 15 www.novoliceu.com Assim, muitos aplicam e defendem o princípio da insignificância ou da bagatela sem se darem conta que tal princípio tem seu fundamento na filosofia, no pensamento de Tomas de Aquino. Além disso, a ideia defendida por Aquino da oculta compensatio se mostra em total consonância com os ditames constitucionais atuais pois a atual carta constitucional brasileira tem como um dos seus fundamentos, contido no inciso III do artigo 1º justamente a dignidade da pessoa humana. Indo mais além, o texto constitucional é explícito quando afirma que são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, contidos no artigo 3º e seus incisos: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação Portanto, aplicar tal preceito defendido por Tomás de Aquino é tanto moral como absolutamente constitucional, sendo um corolário dos direitos humanos e uma das faces da dignidade dapessoa humana. O direito penal não deve se ocupar de condutas que não causem lesão significativa a bens jurídicos relevantes ou prejuízos importantes ao titular do bem tutelado, bem assim à integridade da ordem social.” (HC 94.770, Rel. p/ o ac. Min. Eros Grau, julgamento em 23-9-2008, Segunda Turma, DJE de 12-12-2008.) 16 www.novoliceu.com Conforme já mencionado, o Direito não é uma ilha isolada dos demais ramos do saber humano e muito menos da sociedade. O Direito influencia, mas sem dúvida é muito mais influenciado. No presente estudo, apresentou-se brevemente que o princípio da insignificância, muito utilizado no direito penal, encontra suas raízes na filosofia, mais precisamente dentro do pensamento de Tomás de Aquino. Pretendeu-se demonstrar como a filosofia pode, e ajuda, o jurista não apenas a entender uma lei ou um princípio, mas a encontrar as bases filosóficas as quais, tal preceitos legal está assentado. Sem buscar tal origem, fica o jurista dentro de uma redoma de mediocridade, acreditando que a fundamentação de um instituto seria apenas legal, quando na verdade é muito mais sofisticada. Não se propõe a substituição da ciência do Direito pela filosofia, pelo contrário. A filosofia deve servir como auxílio do jurista, abrindo sua mente para buscar sempre as bases, a fundamentação daquele instituto, que muitas vezes é encontrado em uma obra do baixo medievo, como a Suma Teológica de Tomás de Aquino, ou as vezes nos clássicos gregos. Com a leitura da Suma Teológica, se encontra a fundamentação do princípio da bagatela, e com isso se compreende com exatidão o preceito moral e religioso que influenciou Aquino ao defender a oculta compensatio. III – Considerações Finais 17 www.novoliceu.com Tais preceitos, de coadunar uma lei humana com uma lei natural, defendida por Aquino, parece ainda ser atual com a obrigatoriedade de coadunar uma lei positiva com os direitos humanos. Assim, a filosofia tem e muito a contribuir com o desenvolvimento do Direito e principalmente do cientista do Direito. Em pleno início do século XXI, o cientista do Direito deve cada vez mais possuir um conhecimento aprofundado da ciência do Direito, sem olvidar a importância de um conhecimento holístico. Deve unir outros ramos do saber, em especial a filosofia, na busca do que há de mais importante na vida, que são os momentos felizes, que é levar uma vida minimamente digna à todas as pessoas, conforme determina o texto constitucional de 1988. A ADPF 54 E A ANENCEFAL IA – BREVES CONSIDERAÇÕES F ILOSÓFICAS CAPÍTULO I I O Supremo Tribunal Federal – STF, em 12 de abril de 2012, decidiu pela possibilidade da interrupção da gestação do feto anencéfalo, através da ADPF (1) nº54, por ampla maioria, ficando vencidos os ministros Ricardo Lewandowsky e Cesar Peluso que conheciam da ação, mas julgavam-na improcedente. Nessa decisão histórica, com base no voto do ministro relator Marco Aurélio de Mello, o STF passou a entender ser vedado a interpretação segundo a qual a gestante de feto anencéfalo incorreria no crime de aborto, previsto no artigo 128 do Código Penal – CP, ou seja, interromper a gestação nessa hipótese deixou de ser considerado crime de aborto. Mais do que analisar se a decisão está ou não correta juridicamente, o objetivo do presente ensaio é analisar alguns argumentos do ministro relator à luz da filosofia, para entender como o Excelso Pretório chegou a referida decisão. Com isso, procurar-se-á demonstrar que a decisão, apesar de jurídica, encontra CAPÍTULO I I 19 www.novoliceu.com A A D P F 5 4 e a a n e n c e f a l i a – b r e v e s c o n s i d e r a ç õ e s f i l o s ó f i c a s Introdução (1) A ADPF é a sigla para uma ação prevista na CRFB/88 em seu artigo 102, §1º denominada Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental. seu fundamento longe da ciência do Direito, mas sim em outras áreas do conhecimento humano, no presente caso na filosofia, mostrando assim, que o Direito está muito mais próximo da teoria dos sistemas luhmiana (2) do que da teoria pura kelseniana (3) . Assim, serão abordados fundamentos do STF com a natureza de um não ser atribuída ao anencéfalo, o argumento do Estado laico e do afastamento dos ministros de valores religiosos e, por fim, sobre a incongruência da vedação a doação de órgãos do anencéfalo em razão da opção pela liberação da interrupção (ou será aborto) da gestação. 20 www.novoliceu.com (2) Para Nicklas Luhmann, o Direito seria um sistema operativamente fechado, pois possui um regramento próprio, mas seria cognitivamente aberto, ou seja, o Direito muitas das vezes necessita buscar em outras áreas do conhecimento humano elementos essenciais para dirimir uma questão. (3) Hans Kelsen acreditava na ideia de uma pureza do Direito, onde o grande objetivo seria encontrar o objeto de investigação da ciência do Direito. Para isso criou uma metodologia que objetivava “blindar” o Direito dos outros ramos do saber humano, como a filosofia, moralidade, religião, psicologia, etc, ficando conhecida essa corrente jus filosófica de positivismo jurídico legalista (ou normativista). Com o advento dos acontecimentos do holocausto da 2ª Guerra Mundial, boa parte da comunidade científica entendeu que não se poderia pensar o Direito dessa forma pura, pois o Direito é na verdade uma ciência social aplicada, e, portanto, elementos exteriores a ele, acabariam por também fazer parte do Direito. Assista à aula sobre os pensamentos de Luhman e Kelsen, disponível no canal do YouTube e no site do Novo Liceu: www.novoliceu.com 21 www.novoliceu.com (4) Aborto é um vocábulo que deriva da palavra orior, que em latim quer dizer nascer, e seu contrário, não nascer, seria aborior, derivando até a língua portuguesa como aborto. I – Opção pelo termo interrupção e não aborto – o anencéfalo, segundo o STF seria um não ser. Desde a proposta da referida ADPF, pelo advogado da ação e hoje ministro do STF, Luiz Roberto Barroso, optou-se por utilizar a nomenclatura interrupção ao invés do vocábulo clássico usado para tais casos, que sempre foi aborto (4) . E qual o motivo para essa escolha e seus fundamentos filosóficos? A palavra aborto soa muito forte em uma sociedade com ampla maioria cristã como a brasileira, logo, para que a teoria a ser defendida não ganhasse nos primeiros momentos inúmeros opositores, optou-se a época pela substituição de aborto por interrupção da gestação. Essa troca pareceu muito mais uma opção com o intuito de vencer a querela do que em se buscar um debate amplo, honesto e sincero. Somente se fala em aborto, ou seja, não nascimento, de um alguém que esteja vivo, mesmo que intrauterino. Já na interrupção da gestação, a ideia é que não existe vida dentro do útero materno, logo, não há aborto, mas a interrupção de uma gestação que irá gerar um natimorto. Portanto, o anencéfalo não seria um ser, filosoficamente falando, mas um não ser! Sobre a distinção do ser e do não ser, Parmênides (sem data, p.1) afirma, em seus fragmentos que chegaram até nós que: Pois bem, agora vou eu falar, e tu, prestes atenção ouvindo a palavra acerca das únicas vias de questionamento que são a pensar: uma, para o que é e, como tal, não é para não ser, é o caminho de persuasão — pois segue pela Verdade —, outra, para o que não é e, como tal, é preciso não ser, esta via afirmo-te que é uma trilha inteiramente insondável; pois nem ao menos se conheceria o não ente, pois não é realizável, nem tampouco se diria: (...) pois o mesmo é a pensar e a ser. 22 www.novoliceu.com Conforme Parmênides afirma, só podemos falar do ser, mas nuncado não ser, pois o não ser não sendo, nada se tem como falar. Foi exatamente essa regra de lógica que foi aplicada na decisão do STF. Qual a fundamentação utilizada para usar o termo aborto? A fundamentação seria que o anencéfalo seria um não ser, e como do não ser nada se pode ao menos falar, não se poderia atribuir a ele sofrer um aborto, pois nada dele se pode falar, principalmente que possui vida. Assim, estaríamos diante de um não ser, pois o anencéfalo não possui uma condição básica para ser um ser, que é possuir vida, pensar minimamente. Em relação a brevidade do presente ensaio, não será objeto de análise os argumentos contrários a essa teoria de que o anencéfalo seria um não ser, teoria aliás a qual me filio, pois, o intuito no momento é de apresentar alguns argumentos filosóficos contidos na decisão da ADPF nº 54. 23 www.novoliceu.com II – O Brasil é um Estado Laico, mas não ateu. Praticamente todos os Estados ocidentais são laicos, mas entender o que isso significa é de suma importância. Laicidade de um Estado não pode ser confundida com a ideia de um Estado ateu. Naquele, simplesmente o Estado não professa nenhuma crença específica, ou seja, não existem normas religiosas que pairam acima de um texto constitucional, sendo permitido que os cidadãos, dentro de uma razoabilidade, professem qualquer credo sem distinção. No segundo, não só o Estado não possuiu uma religião que norteia sua atuação como proíbe seus cidadãos que professem qualquer credo. O Brasil, por força do artigo 5º VI da CRFB/88, é um país laico, onde “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Sendo assim, a religiosidade é um elemento cultural respeitado e defendido dentro do texto constitucional. Logo, argumentos religiosos podem perfeitamente estar dentro da discussão sobre anencefalia, qualquer que seja a religião, pois faz parte do sentimento de pertencimento do cidadão. Não se está defendendo que apenas argumentos religiosos sejam utilizados, mas a forma pela qual o STF defendeu a ideia de Estado laico, ideia essa que em momento algum nem mesmo as entidades que atuaram como amicus curea nesse julgamento defenderam. 24 www.novoliceu.com Se não existe ou ao menos não temos como afirmar ser verdadeiro ou falso uma existência metafísica, o que temos então seria o dasein, expressão criada por Heidegger para dizer que o que existe é um ser aí, o ser inserido no mundo, e não um ser metafísico, ou mesmo virtudes metafísicas perfeitas existentes em um mundo perfeito, como idealizava Platão em seu mundo das ideias. Percebe-se facilmente a tentativa de escamotear o que é realmente nessa discussão, talvez pela culpa religiosa (que a influência tanto quer esconder), que seria uma discussão sobre o aborto efetivamente. O medo de desagradar parentes, sociedade, religião e afins parece soar mais alto, e assim, cria-se subterfúgios para não se admitir uma opção justificável pró aborto. Mas dizer-se-pró-aborto leva contra si toda uma moralidade dominante. Não se está aqui defendendo o aborto em si, mas simplesmente tentando mostrar que a opção em si, não parece ter sido imbuída de sinceridade, mas de uma saída jurídica para um problema moral dos ministros, e de muitos outros. Assista à aula disponível no site www.novoliceu.com sobre a alegoria da caverna de Platão que explica essa visão dual platônica sobre a existência de mundos distintos. 25 www.novoliceu.com Do outro lado temos a gestante, sofrida, carregando um ser (ou será um não ser) que, na melhor das hipóteses, ficará menor tempo encarnado do que se poderia esperar. Não se pode esquecer essa gestante, pois é ela quem passará por todos os estágios da gestação. Muitas delas também carregarão esse sentimento de culpa, antes, durante e depois do cometimento da interrupção da gestação (ou será aborto?). Portanto, essa criação da figura da interrupção da gestação foi uma criação inteligente, pois conseguiu satisfazer a culpa daqueles que gostariam de defender o aborto, mas não possuem a coragem para dize-lo. 26 www.novoliceu.com Essa culpa, que nos é colocada desde a mais tenra idade, denunciada por Nietzsche em praticamente todas as suas obras, encontrou na decisão da ADPF nº54 o seu melhor exemplo. Daí o risco sempre recorrente de julgarmos de acordo com nossas idiossincrasias, com nossos valores, com nossos medos e temores. Como Nietzsche (2010, aforismo 133) afirma provavelmente restará ainda aquele pesar que é aparentado e se acha misturado ao medo das punições da justiça profana ou do desprezo dos homens; ao menos o pesar dos remorsos, o aguilhão mais agudo do sentimento de culpa, é atenuado, quando percebemos que com nossos atos violamos a tradição humana, as leis e ordenações humanas, mas ainda não colocamos em perigo "a eterna salvação da alma" e sua relação com a divindade. Merece ser mencionado que, um tema complexo como esse, sem qualquer previsão expressa na constituição, é no mínimo de grande risco ser julgado por julgadores alçados ao posto máximo por um processo de escolha indireta, ou seja, com um déficit democrático. Além disso, é recorrente o equívoco hermenêutico, que será brevemente mencionado em ensaio a seguir, sobre como os julgadores cometem o erro de decidir com suas pré-compreensões, ao invés de passar por todo o círculo (ou espiral) hermenêutico. 27 www.novoliceu.com III – Sobre a doação de órgãos do anencéfalo Durante o voto do Min. Relator Marco Aurélio, o mesmo mencionou por diversas vezes que não se poderia obrigar uma gestante a doar os órgãos do anencéfalo, e para isso citou o pensamento de Kant, afirmando que, sendo a gestante obrigada a tal gesto, estaria se “coisificando” a mesma, ou seja, estar-se-ia tratando-a como meio para uma outra finalidade, sendo que ela deveria ser tratada sempre como um fim e si mesma. Em relação a tal afirmativa, não há que discordar, inclusive em relação aos argumentos aduzidos pelo relator. Entretanto, a discussão não deveria ser essa! Não se deveria discutir tal obrigatoriedade da gestante, pois seria absurda tal obrigatoriedade, mas sim se a mesma poderia doar. O caso hipotético a ser analisado seria se uma gestante, utilizando sua autonomia da vontade, optasse em levar sua gestação até o final e então decidisse por doar seus órgãos. O laudo médico contrário à doação afirma que a maioria dos órgãos dos anencéfalos não serviria por problemas congênitos, entretanto tal posição não é só pacífica como mesmo essa posição afirma que a maioria e não a totalidade. Em posição contrária, o próprio Conselho Federal de Medicina – CFM que emitiu a Resolução 1.752 de 8 de setembro de 2004 que autorizaria os médicos a realizarem a retirada e consequente transplante dos órgãos do anencéfalo. 28 www.novoliceu.com Portanto, o próprio CFM reconhece a possibilidade fática de doação de órgãos de anencéfalos. O que torna essa questão ainda mais complexa é justamente o parecer nº 24 de 2003 do CFM que dá as diretrizes para a doação, e que acaba por afirmar a dificuldade em se precisar o momento da morte do anencéfalo. É aí que se percebe o problema lógico da decisão do STF. No primeiro item do presente ensaio demonstrou-se que o STF entendeu o anencéfalo como sendo um não ser, justamente por nunca ter tido efetivamente vida, até por isso denominou de interrupção e não de aborto. Contudo, o parecer nº24/2003 do CFM discorre sobre a dificuldade em se precisar o momento da morte do anencéfalo. Ora, se oparecer do CFM afirma não conseguir definir o momento de morte do anencéfalo, é porque antes existia vida no mesmo, e existindo vida, estar-se-ia falando de aborto e não de interrupção. Percebe-se, portanto, claramente que mesmo diante dos argumentos do CFM, que por óbvio serão muito mais robustos do que um parecer de outro médico, o ministro relator e a maioria dos ministros do STF preferiu escolher os fundamentos que melhor se coadunavam com sua opção moral, querendo, entretanto, dar uma roupagem científica, que na verdade, como toda ciência, nem absoluta é. Foi simplesmente uma opção tomada, não uma verdade universal nos moldes platônicos ou kantianos. 29 www.novoliceu.com Não haveria nenhuma afronta a dignidade do anencéfalo doar seus órgãos, já que ele não seria um ser, mas um não ser. Entretanto, como não existe um mínimo de certeza no que diz respeito ao final da vida do anencéfalo, melhor seria aplicar a teoria ética do cuidado, de preservar o anencéfalo, impedindo a doação de seus órgãos justamente por não se precisar o momento de sua morte. Contudo, defender que ele é um não ser, por isso não ensejaria a proteção contra o aborto contida no artigo 128 do Código Penal e também vedar a doação de órgãos, é uma total afronta a lógica. Uma escolha anula a outra! Ele não pode ser um não ser em relação ao aborto, mas um ser para a doação de órgãos. Em razão disso que se espera que um julgado sempre aplica o círculo (ou espiral) hermenêutico na hora de decidir, pois decidir apenas com base em uma pré- compreensão e ainda procurando uma fundamentação para livrar a mente da culpa por um suposto pecado, não tem como dar certo. Quando o juiz pretende decidir de forma pessoal, solipsista, ignorando a constituição e os demais textos legais, a decisão será nos moldes do entendimento do próprio julgador, com base em seus valores pessoais, a decisão será eivada de erro, de vício, pois sempre deverá ser a constituição o norte hermenêutico seguro a ser perquirido, conforme ensina Lenio Streck (2013). 30 www.novoliceu.com Esses foram apenas alguns argumentos defendidos pelo Min. Relator Marco Aurélio para embasar seu voto, acompanhado pela maioria do STF autorizando a chamada interrupção da gestação do feto anencéfalo. Existiriam vários outros argumentos que poderiam ser analisados à luz da filosofia, mas que pela brevidade do presente ensaio não comportaria. Contudo, alguns elementos interessantes podem ser extraídos do presente escrito. Primeiro, o STF optou pelo perigoso caminho trilhado pelo advogado, hoje Ministro do próprio STF Luiz Roberto Barroso, de considerar o anencéfalo um não ser, e por isso não merecedor da proteção legal e constitucional legada aos demais fetos que não sofrem dessa má formação. Conforme mencionado, Parmênides já ensinava que do não ser, nada se pode dizer, muito menos legislar ou proteger. Sendo assim, o anencéfalo não faria juiz a referida guarida constitucional e legal, nos termos do voto do ministro relator. Interessante também a fúria pela qual os ministros corriam em afirmar a laicidade do Estado, como que mostrando que eles não iriam utilizar de seus próprios valores religiosos naquele julgamento. Parecia que os valores religiosos, qualquer que fossem, seriam menos importantes do que qualquer outros dado, principalmente científico, que seria trazido. Essa visão demonstra de forma indelével a correção das críticas nietzschianas ao apego pela ciência, como se ela pudesse nos dar o único caminho seguro a seguir, esquecendo que a ciência se faz com acerto e erro, e que uma teoria científica sempre possuirá alguma, mesmo que mínima, chance de Considerações Finais 31 www.novoliceu.com estar errada. Portanto, os valores e argumentos religiosos devem receber tratamento digno no momento das discussões justamente por fazerem parte da sociedade. Além disso, Nietzsche denunciava que a ciência não seria neutra e pura nos moldes idealizados pelos modernos, justamente por ser feita por homens, assim como o Direito também nunca foi nem será neutro. Sempre haverão valores por trás das pesquisas científicas, e essa não é uma crítica, mas simplesmente uma constatação, e em razão disso, dever-se-á lidar com isso. Não existe a possibilidade de uma “blindagem” do cientista, e muito menos do jurista e ministro, justamente porque todos estamos inseridos no mundo, como já denunciava Heidegger. Tentar esconder esse fato não parece o mais correto. Por isso Lenio Streck propõe a hermenêutica filosófica aplicada ao Direito, onde o hermeneuta sempre deverá procurar atribuir o sentido ao texto legal aquele sentido que melhor se coadune com os princípios constitucionais. Quando saímos desse paradigma constitucional, corremos sério risco de cair em um paradigma pior do que o positivista jurídico (qualquer um), pois cairemos em um paradigma eminentemente decisionista, onde o julgador decide com base no que ele entende por correto, com base em seus próprios valores morais, suas idiossincrasias, seus traumas, medos e afins. AS CONDUÇÕES COERCIT IVAS E O MEDO DO PODER JUDIC IÁRIO NO BRASIL – COMO A F ILOSOFIA PODE CONTRIBUIR PARA PROTEÇÃO DO CIDADÃO CAPÍTULO I I I A presente pesquisa nasceu após uma inquietação com tantas conduções coercitivas nos últimos 2 anos em solo brasileiro. Com a decisão do Ministro Gilmar Mendes em relação a pedidos de liminar em sede de ADPFs limitando tais conduções, o momento para tecer algumas linhas gerais sobre o assunto se fazia presente. A defesa do Estado de Direito é missão de todo estudioso do Direito, juramento feito sempre no ato de colação de grau em um bacharelado em ciências jurídicas. Sendo assim, não poderia me furtar ao tema. E esse tema parece bastante espinhoso, pois uma parte significativa da população acaba por concordar com tais práticas, cansados da corrupção galopante que, se sempre existiu no Brasil, parece que tomou uma proporção nunca antes vista , ou descoberta, nos últimos 5 anos. CAPÍTULO I I I 33 www.novoliceu.com A s c o n d u ç õ e s C o e r c i t i v a s e o M e d o d o P o d e r J u d i c i á r i o n o B r a s i l – c o m o a f i l o s o f i a p o d e c o n t r i b u i r p a r a p r o t e ç ã o d o c i d a d ã o Introdução Após procurar compreender bem o tema, procurou-se interpretar o artigo 260 do CPP, que trata das conduções coercitivas, à luz da CRFB/88. Assim, além da constitucionalidade como um todo do dispositivo ser bem questionável, o descumprimento do rito previsto parece fulminar de morte as decisões admitindo das conduções. Com isso, investigados, que nem réus são ainda, muito menos culpados, são tratados como criminosos, sendo humilhados em rede nacional, com seus nomes e rostos mostrados nos principais jornais televisivos, nos jornais e agora, nas redes sociais. Isso quer dizer que um investigado conduzido coercitivamente acabará por ter seu nome tão fortemente ligado ao delito imputado que, mesmo se provar sua inocência, sua vida poderá já estar em ruinas. O princípio ad razoabilidade e proporcionalidade devem sempre andar juntos com o juiz(a), para que sempre tenham em mente a gravidade do ato que vão praticar. Assim, se a recpção do artigo 260 do CPP já possui inúmeras dúvidas, o respeito ao tramite previsto na legislação é o mínimo a ser exigido às partes e ao Estado como um tudo. Com isso, em um primeiro momento será analisado o próprio instituto da condução coercitiva. Em um segundo momento , o pensamento de Foucault será preciso para demonstrar que a sociedade e o Estado ainda buscam a humilhação públicado investigado. Por fim, serão utilizados Kant e depois Streck para fundamentar a resposta correta sobre as conduções coercitivas, especialmente as que não obedecem o tramite previsto no artigo 260 do CPP. 34 www.novoliceu.com O instituto da condução coercitiva nasce efetivamente no ordenamento jurídico brasileiro a partir do artigo 260 do Código de Processo Penal – CPP de 1941, ao afirmar que “Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença ”. A condução coercitiva era um instituto não muito aplicado, especialmente para realização de interrogatório de investigado, até o início das grandes operações contra crimes ligados a corrupção, principalmente na chamada “operação lava à jato”, e a partir dela, muitas outras. A primeira questão que não se pode olvidar é que o instituto da condução coercitiva data de 1941, portanto, deverá obrigatoriamente passar por um filtro hermenêutico constitucional, ou seja, analisa-lo à luz das atuais normas constitucionais brasileiras. De acordo com uma interpretação meramente gramatical do instituto em comento, percebe-se que a condução coercitiva apenas poderá ocorrer após a devida intimação do acusado, e por óbvio, desde que ele não compareça. Essa é a ideia básica e que uma simples leitura é capaz de demonstrar as regras idealizadas pelo legislador infraconstitucional da época. 35 www.novoliceu.com I – A Condução Coercitiva Atualmente, é discutível a possibilidade de conduções coercitivas de investigados mesmo que devidamente intimados, sem falar quando há ausência de intimação. A questão da condução coercitiva para interrogatório ganhou ainda mais destaque em razão de recente decisão do Ministro Gilmar Mendes que, analisando liminar ad referendum em sede das ADPF nºs 444 e 395, de propositura do Conselho Federal da OAB e do Partido dos Trabalhadores respectivamente, proibiu tal prática até decisão final do Pleno do STF. Assim, a condução coercitiva pode ser conceituada como sendo um instituto que, autorizado por um juiz, faz com que um investigado seja levado de forma coercitiva para prestar esclarecimentos sobre fatos que estão sendo investigados. Cumpre mencionar que, apesar de existir expressa previsão legal, os magistrados têm autorizado a condução coercitiva mesmo inexistindo recusa do investigado em comparecer ao interrogatório. Será em item subsequente que as críticas de Foucault continuam bem atuais, onde o Estado e o grosso da população ainda se regozijam pelas humilhações impingidas ao condenado. Além disso, os pensamentos de Kant e Streck serão utiliziados para, primeiramente denunciar demonstrar os equívocos das teorias exigência e qual o caminho seguro a ser seguido. A condução coercitiva por si só já poderia ser objeto de profunda análise, mas será aqui, nestas breves linhas, melhor discutida, quando inexiste recusa ao comparecimento do investigado. 36 www.novoliceu.com Em item subsequente será analisado qual o intuito do Estado-juiz em determinar tal condução, principalmente com informações “vasadas” à imprensa, provocando não apenas desconforto, mas verdadeira humilhação pública para cidadãos que, por hora, nem acusados são, mas apenas investigados. 37 www.novoliceu.com II – A quem interessa uma condução coercitiva sem prévia intimação? Os contratualistas como Hobbes, Rousseau, Locke, e outros, apesar de divergirem em relação a aspectos da própria teoria em si, concordam sobre a importância do Estado e principalmente, que o Estado, em alguma medida, será necessário para a evolução do ser humano (1). Portanto, a visão contratualista, principalmente com o fim o ancient régime, passa a ver um novo Estado, livre das amarrar do absolutismo monárquico, e pronto para uma nova realidade, onde após os primeiros momentos de extrema violência revolucionária, permitiu o desenvolvimento dos direitos fundamentais de 1ª dimensão. Tais direitos também chamados de direitos negativos, por proteger o cidadão contra ações do Estado. Com isso, o Estado apenas podia prender, tomar bens, tomar terras, tributar, etc., se existisse lei autorizando aquela ação, caso (1) Interessante observar a visão diametralmente oposta de Nietzsche em relação ao Estado. Para ele, todo e qualquer Estado nasceu com “sangue nas mãos”, ou seja, fruto da opressão de um grupo pelo outro. Nietzsche vai descortinar a visão romântica que os contratualistas tinham em relação ao Estado, pois acredita que ele sempre foi uma forma de dominação do homem pelo homem, e nunca teve tem terá qualquer ideia de uma igualdade ou ao menos de levar o bem estar para todos. A visão de Nietzsche é centrada na ideia de vontade de poder. Essa vontade é que nos move, é que nos faz sair da cama todos os dias. Aqueles que realmente tem maior tal vontade e buscam elevar-se enquanto homens, superando ressentimentos e sentimentos considerados por Nietzsche como inferiores e encontrando seus valores éticos em detrimento dos valores morais (da sociedade, do Estado, da família, da religião, etc.), esse conseguirá dominar outros seres humanos que não possuem tal vontade, pois nasceram para serem rebanho, para seguir e não para comandar. Isso nãos seria errado ou ruim em si, para Nietzsche, mas sim essa hipocrisia do Estado objetivar o bem para todos, pois quem está no poder quer realmente é se perpetuar no poder, e fará de tudo para isso. Essa ideia não é realmente original em Nietzsche, pois séculos antes Maquiavel, em sua obra O Príncipe, já trazia alguns conceitos muito próximos. contrário, se inexistisse e mesmo assim praticasse tais atos, existiriam remédios legais como Habeas Corpus (que é inclusive muito mais antigo e remonta ao direito inglês do alto medievo), Mandado de Segurança, dentre outros, para salvaguardar os direitos do cidadão contra tais violações. A partir então da modernidade, por volta do final do século XVIII, o Estado encontrou sérios limites para sua atuação, e os cidadãos ganharam o princípio da legalidade para uma maior proteção. Se desde o século XVIII já existia tal proteção contra abusos do Estado, como em pleno século XXI discutimos sobre a possibilidade de uma medida como a condução coercitiva fora dos limites e do rito previsto? Tempos sombrios! Contudo, é missão dos estudiosos do Direito procurarem entender o fenômeno, de forma crítica, e buscarem soluções para dirimir tal controvérsia hermenêutica. Conforme mencionado, apesar de existirem sérias dúvidas sobre a recepção do instituto em si da condução coercitiva de um investigado para depor, será analisando apenas a questão da desobediência ao rito previsto no CPP, de primeiro intimar o investigado a comparecer antes da condução coercitiva e si. O CPP em seu artigo 260 traz previsão expressa da intimação prévia e a consecutiva ausência do investigado antes da condução coercitiva. Quando magistrados optam por, deliberadamente ignorarem a disposição legal por entenderem possuir poderes para tal, o risco de abusos é muito grave. No caso em tela, qual seria o intuito de tal desrespeito? 38 www.novoliceu.com A questão se agrava em razão de vivermos em uma sociedade de informação, onde os acontecimentos são transmitidos quase que em tempo real. Assim, uma condução coercitiva acaba sendo transmitida pelas principais redes televisivas (abertas e por assinaturas), redes de rádio, internet e redes sociais. Parece que Foucault estava certo quando em sua obra Vigiar e Punir (1987), já denunciava, através do seu método arqueológico, que o Estado usou (e continua usando) sua força de persecução penalcomo forma de intimidação e principalmente de humilhação pública. Parece que o pensamento de Foucault ainda (infelizmente) se mostra adequado à analise das conduções coercitivas (especialmente às se intimação prévia). 39 www.novoliceu.com Quando o magistrado opta por tal caminho, não há outra coisa a se pensar a não ser o intuito de expor o investigado a uma humilhação pública. Vai colocar o investigado em posição de dominado, cabeça baixa, diante muitas vezes de uma população com desejo de vingança por vários motivos sociais, e que vê naquele momento, naquele indivíduo, a oportunidade de colocar suas angústias, decepções e recalques para fora. Sobre isso Foucault (1987, p. 73) afirmará que 40 www.novoliceu.com “na medida em que a punição põe em cena, aos olhos de todos, o crime em toda a sua severidade, deve assumir essa atrocidade: deve trazê-la à luz por meio de confissões, discursos, inscrições que a tornem pública; deve reproduzi-la em cerimônias que a apliquem ao corpo do culpado sob forma de humilhação e de sofrimento. A atrocidade é essa parte do crime que o castigo torna em suplício para fazer brilhar em plena luz: figura inerente ao mecanismo que produz, no próprio coração da punição, a verdade visível do crime. O suplício faz parte do procedimento que estabelece a realidade do que é punido”. O juiz, vendo pelas redes televisivas o suplício do acusado, lendo pelas redes sociais o apoio do senso comum, se regozija, pois sente como o bastião da moralidade, como um enviado de Deus para fazer valer uma justiça divina (não lembra a Santa Inquisição?). O soberano, o Estado, através da figura do juiz, mostra a mesma violência contra o acusado. Ele vence e humilha o acusado. 41 www.novoliceu.com Mas não é só: a atrocidade de um crime é também a violência do desafio lançado ao soberano: é o que vai provocar da parte dele uma réplica que tem por função ir mais longe que essa atrocidade, dominá-la, vencê-la por um excesso que a anula. A atrocidade que paira sobre o suplício desempenha portanto um duplo papel: sendo princípio da comunicação do crime com a pena, ela é por outro lado a exasperação do castigo em relação ao crime. Realiza ao mesmo tempo a ostentação da verdade e do poder; é o ritual do inquérito que termina e da cerimônia onde (FOUCAULT, 1987, p.73) Quando a força policial, a mando de um juiz, chega na residência de um investigado (atualmente o caso parece ser ainda mais grave, pois era muito comum suplícios contra o condenado ou acusado, e o infeliz ainda é apenas investigado) para realizar a condução coercitiva, chega com todo o seu aparato. Inúmeros carros, armas de grosso calibre, tocas ninjas, coletes à prova de bala, ostentando sua força diante de um acusado que normalmente ainda está usando pijamas, ao ser acordado em sua residência para a referida condução coercitiva. O investigado é forçado a pegar qualquer roupa, entrar em um veículo policial e fazer todo o percurso até uma delegacia com todo o aparato policial mencionado. Chegando, na maioria das vezes, já se encontram inúmeros repórteres, cinegrafistas, fotógrafos e cidadãos, estes últimos apenas para acompanhar a humilhação e o suplício do acusado, pois, como afirma Foucault (1987, p. 76) 42 www.novoliceu.com o povo reivindica seu direito de constatar o suplício e quem é supliciado. Tem direito também de tomar parte. O condenado, depois de ter andado muito tempo, exposto, humilhado, várias vezes lembrado do horror de seu crime, é oferecido aos insultos, às vezes aos ataques dos espectadores. O tempo passa, mas a sociedade e o Estado continuam empregando o que há de mais humilhante em seu tempo. Se antes era passar com o condenado pelo público para que fosse xingado e humilhado para começar sua expiação da pena, hoje a humilhação é ainda maior, pois uma simples foto pode chegar a todos os cantos do globo em questão de segundos. Portanto, mesmo sendo apenas investigado, esse cidadão já foi condenado pela sociedade, e dificilmente conseguirá se reerguer. III – A virada kantiana ainda não chegou ao Brasil Com o final da 2ª Guerra Mundial, vários jus filósofos do Direito começaram a criticar a ideia do modelo positivista jurídico (2) de excluir o que era meta jurídico de dentro do objeto de investigação do Direito, especialmente a moralidade. Assim, Kant (3) voltava ao centro das discussões sobre teoria do Direito, especialmente seus estudos sobre a relação entre racionalidade e moralidade, que (2) Existem vários modelos positivistas jurídicos, e o modelo mais criticado, por ser o de maior importância para o século XX, especialmente no Brasil, é o modelo positivista jurídico legalista ou normativista de Hans Kelsen. (3)Pode parecer estranha a opção de usar o pensamento de Immanuel Kant após usar o pensamento de Michel Foucault, tendo em vista o abismo existente entre esses dois filósofos. Contudo, o presente estudo busca analisar o momento atual, não com um dever ser extremamente hipotético e idealizado, mas com construções que já existem e que, mesmo estando longe do que poderia ser o ideal para Foucault e Nietzsche, já seriam muito melhores para o Brasil. 43 www.novoliceu.com culminou com toda uma construção teórica dos Direitos Humanos, servindo de base para própria criação das Nações Unidas. Quando Kelsen escreveu sua Teoria Pura do Direito (1999), ele está objetivando, mesmo que teoricamente, um Estado onde as leis, desde que de acordo com o texto constitucional, deveriam ser de respeito obrigatório por todos, especialmente pelos chamados por ele de intérpretes autênticos, que seriam os magistrados. Quando um magistrado ignora o rito previsto em uma lei ao seu prazer, mostra que ainda estamos em uma fase pré-positivista. Quando vemos tal prática, somos forçados a concordar com um magistrado federal fluminense que afirmou em uma entrevista a um jornal de grande circulação que o cidadão deve temer a justiça. Voltamos a Maquiavel! Entre ser amado ou temido pelos seus súditos, o soberano deve sempre optar por ser temido, pois o amor é volúvel, mas o medo permanece! Essas são ensinamentos que parecem perdurar até os dias de Hoje. Quando Maquiavel (2006) escreve O Príncipe, talvez não pudesse imaginar que em pelo século XXI, seus ensinamentos continuariam sendo aplicados. Por óbvio que tais ensinamentos não se coadunam com o pensamento kantiano, e por conseguinte com os da virada kantiana. A aposta de Kant (e dos adeptos da virada kantiana) é na racionalidade, ou seja, que a razão é a única capaz de nos levar a uma existência pacífica e feliz, tanto em termos pessoais quanto coletivo. 44 www.novoliceu.com E claro, a racionalidade não é um ato isolado de um indivíduo, a racionalidade é universal. Logo, quando um juiz se arvora em decidir conforme sua consciência, de forma absurdamente solipsista, está na verdade agindo como se um tirano fosse. Por óbvio que tais ensinamentos não se coadunam com o pensamento kantiano, e por conseguinte com os da virada kantiana. A aposta de Kant (e dos adeptos da virada kantiana) é na racionalidade, ou seja, que a razão é a única capaz de nos levar a uma existência pacífica e feliz, tanto em termos pessoais quanto coletivo. E claro, a racionalidade não é um ato isolado de um indivíduo, a racionalidade é universal. Logo, quando um juiz se arvora em decidir conforme sua consciência, de forma absurdamente solipsista, está na verdade agindo como se um tirano fosse. Mesmo partindo do pressuposto que esse juiz esteja agindo de boa fé, está praticando um ato seríssimo contra o Estado de Direito. Montesquieu (1996, p.199) já afirmavaque seria melhor ser julgado e condenado em um dia dentro de um Estado com as melhores leis do que viver como um Paxá na Turquia, pois esse condenado seria mais livre. E claro que Montesquieu está pensando que tais leis serão cumpridas e não descumpridas por qualquer magistrado. Quando os membros da virada kantiana reintroduziram a moralidade no Direito, e procuraram, dentro de uma razoabilidade, aplicar Kant, o Direito avançou, principalmente na Europa e Estados Unidos. Apesar da teoria kantiana não resolver todos os problemas como ele supunha, aplicando sua teoria dos imperativos hipotético e categórico nas questões das conduções coercitivas, mostrariam que universalizar tal prática nunca nos levaria à resposta correta. 45 www.novoliceu.com Nesse ponto, Lenio Streck demonstra que a resposta correta está dentro do texto da constituição. Logo, é um direito fundamental do cidadão ter os seus direitos constitucionais de presunção da inocência, da não incriminação, dentre outros, violados pela condução coercitiva. Defender o respeito ao Direito Positivo não pode nunca ser confundido como defesa do positivismo jurídico, seja qual vertente for. Portanto, com facilidade verifica-se que o Ministro Gilmar Mendes acertou ao conceder a liminar em sede da ADPF pois tais conduções coercitivas para interrogatórios de investigados estavam violando não apenas o CPP mas principalmente a CRFB/88. Por isso Kant (2003, p. 160) asseverava que A felicidade de um Estado consiste na sua união. Pela felicidade do Estado não se deve entender o bem estar de seus cidadãos e a felicidade destes, pois a felicidade talvez os atinja mais facilmente e, como o apreciariam, num estado de natureza (como assevera Rousseau) ou mesmo num governo despótico. Por felicidade do Estado entende-se, em lugar disso, a condição na qual sua constituição se conforma o mais plenamente aos princípios do direito; é por esta condição que a razão, mediante um imperativo categórico, nos obriga a lutar. 46 www.novoliceu.com Com isso, as críticas de Streck (2017) são corretas ao afirmar que, quando o Poder Judiciário não respeita a Constituição nem a legislação vigente, decidindo de forma solipsista, devemos temer a “Justiça”, pois o grau de imprevisibilidade das decisões judiciais será altíssimo. E o cidadão, acaba por ficar refém desse novo Leviatã, que se um dia foi o Executivo por força do ancient régime, hoje se mostra através do pseudo ativismo judicial, que nada mais é do que a usurpação das funções dos outros Poder estatais. O Poder Judiciário está se tornando um novo Poder Moderador. Considerações finais O presente estudo teve início a partir de algumas inquietações relacionadas ao momento atual, onde o ativismo judicial vem ultrapassando quaisquer limites dentro do razoável, onde juízes optam deliberadamente em ignorar o texto constitucional e legal, fazendo um direito próprio. Como se isso já não bastasse, vemos magistrados concedendo entrevistas (o que não é proibido, mas estranho pois normalmente um juiz não deve ter assuntos tão interessantes para jornalistas) e nestas, afirmando, sem o menos constrangimento, que o Poder Judiciário deve ser temido. Muito provavelmente o que quis dizer o magistrado em comento é que os supostos criminosos devem temer o Poder Judiciário, querendo passar uma ideia de que não há mais espaço para impunidade. 47 www.novoliceu.com Entretanto, tal afirmação foi ruim, muito ruim, pois mesmo para supostos criminosos, o Judiciário não pode ser algo para ser temido, no máximo respeitado. Mas esse respeito deriva da sua correção em observar os preceitos constitucionais e legais, aplicando de forma correta a lei, punindo quem deve ser punido, mas sempre dentro dos estreitos limites de atuação do Estado delimitados pelo princípio da legalidade. Para deixar o momento atual ainda mais conturbado, alguns juízes passaram a ter uma interpretação muito própria do artigo 260 do CPP, determinando conduções coercitivas (de recepção pela CRFB/88 duvidosa), e ainda por cima, desrespeitando o tramite previsto, ou seja, o respeito à intimação prévia do investigado. Em razão disso, foram propostas as ADPF nºs 444 e 395, de relatoria do Ministro do STF Gilmar Mendes, objetivando a decisão pelo tribunal da não recepção do artigo 260 do CPP, e consequentemente o fim das conduções coercitivas, principalmente de investigados, no mérito. Além disso, foi requerido a concessão de liminar, que foi concedida ad referendum, para que todos os juízes brasileiros se abstenham de determinar as conduções coercitivas inobservando o trâmite previsto no artigo 260 do CPP, até que o pleno do tribunal analise a liminar, podendo referenda-la ou cassa-la, até o julgamento do mérito das ADPFs. Procurou-se demonstrar que, ao que parece, o único objetivo de tais conduções seria o de humilhar os investigados, nos moldes já denunciados por Michel Foucault em seu Vigiar e Punir. 48 www.novoliceu.com Tal atitude por óbvio não se coaduna com princípios basilares da CRFB/88, como o que veda a autoincriminação, da ampla defesa, e até da dignidade da pessoa humana. O pensamento de Immanuel Kant foi utilizado para demonstrar que desde o final da 2ª Guerra Mundial a moralidade começou a voltar a fazer parte do objeto de investigação da ciência do Direito, e portanto, a prática da condução coercitiva deixa de tratar o ser humano com a dignidade que ele merece, violando os imperativos kantianos, pois alguns juízes vem demonstrando um tratamento diferenciado de acordo com o réu, o que violaria os preceitos de universalização de Kant, e até os do positivismo jurídico legalista de Kelsen. Por fim, foi utilizado o pensamento de Lenio Streck para demonstrar que a resposta ao presente caso é simplesmente o respeito ao texto constitucional e ao texto legal. Não há espaço hermenêutico de criação para o juiz, e mesmo que existisse, tal espaço não pode ser entendido para que o juiz diga qualquer coisa sobre qualquer coisa. Há um compromisso com os princípios constitucionais, pois estes deverão sempre nortear toda e qualquer hermenêutica constitucional. Por fim, foi afirmado a correção na decisão do ministro relator das ADPFs ao conceder as liminares, restringindo o uso até então indiscriminado de conduções coercitivas, obedecendo os ditames constitucionais que tem, no ser humano e na sua dignidade, o único caminho possível a ser trilhado dentro de uma Estado Democrático de Direito, onde a separação dos Poder (ou das atribuições) é respeitada. Não há mais espaço para um novo Leviatã, agora chamado de Poder Judiciário. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção: Os pensadores. São Paulo: Víctor Cívita, 1984. _____________. Política. Brasília: Editora UNB Editora, 1985. AQUINO, Tomás. Suma Teológica. Vols. I e VI. São Paulo: Loyola, 2012. BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm. Acesso em 14.01.2018. FERRAZ, Danilo Marcondes. Iniciação à História da Filosofia - Dos Pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. FOUCAULT, Michel. 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