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CLIO História - Textos e Documentos O cinema e o conhecimento da História O filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História Ferro) O cinema se converteu, por méritos próprios, em arquivo vivo das formas do passado ou, por sua função social, em um agudo testemunho de seu tempo e, como tal, em um material imprescindível para o historiador que assim o queira olhá-lo e utilizá-lo. (J. E. Monterde) Por Cristiane Nova As relações existentes entre a história e o cinema não são recentes pois datam do surgimento deste, há um século. No entanto, o seu estudo mais aprofundado remonta há apenas três décadas e ainda se encontra longe de alcançar uma situação de relativo co que concerne à formulação de um arcabouço teórico sólido. Todavia, avanços foram realizados, fixando a guns conceitos fundamentais acerca dessa relação, que não podem ser ignorados pelo historiador ou por qua quer cientista social que deseje pensar a história e o cinema dentro de uma perspectiva histórico Alguns desses conceitos dizem respeito ao enquadr mento do filme enquanto documento historiográfico e como discurso sobre a história. E é exatamente sobre esses dois enfoques que trata este ensaio, estabelece do as fases de um aprofundamento progressivo. Mas, evidentemente, esse corte não exclui a necessidade de se abordar outras questões relativas à relação cinema história — a exemplo do cinema visto como agente do processo histórico —, visto que tais divisões são recu sos da abstração, puramente esquemáticos e não são, de forma alguma, estanques, sendo suas fronteiras e treitas. Em determinadas situações, as problemáticas se interpenetram de forma tal que é impossível estabelecer claramente as linhas que as separam. Qualquer reflexão sobre a relação cinema como verdadeira a premissa de que todo filme é um documento, desde que corresponde a um vestígio de um acontecimento que teve existência no passado, seja ele imediato ou remoto. No entanto, isso não seria suf ciente para que uma película se tornasse um documento válido para a investigação historiográfica. Na verdade, o conceito historiográfico de documento se relaciona fundamentalmente com dois pontos: a concepção de História do pesquisador e o valor intrínseco do doc mento. Foi somente a partir da década de 1970 que o filme começou a ser visto como um possível documento para a investigação histórica. Isso se deu em conseqüência de um processo de reformulação do conceito dos da História, iniciado com o desenvolvimento da Escola dos Anais, na França. O filme, seja qual for, desde Textos e Documentos O cinema e o conhecimento da História O filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História. (M. méritos próprios, em arquivo vivo das formas do passado ou, por sua função social, em um agudo testemunho de seu tempo e, como tal, em um material imprescindível para o historiador que assim (J. E. Monterde) As relações existentes entre a história e o cinema não são recentes pois datam do surgimento deste, há um século. No entanto, o seu estudo mais aprofundado remonta há apenas três décadas e ainda se encontra longe de alcançar uma situação de relativo conforto no que concerne à formulação de um arcabouço teórico sólido. Todavia, avanços foram realizados, fixando al- guns conceitos fundamentais acerca dessa relação, que não podem ser ignorados pelo historiador ou por qual- ar a história e o cinema dentro de uma perspectiva histórico-dialética. Alguns desses conceitos dizem respeito ao enquadra- mento do filme enquanto documento historiográfico e como discurso sobre a história. E é exatamente sobre este ensaio, estabelecen- do as fases de um aprofundamento progressivo. Mas, evidentemente, esse corte não exclui a necessidade de se abordar outras questões relativas à relação cinema- a exemplo do cinema visto como agente do , visto que tais divisões são recur- sos da abstração, puramente esquemáticos e não são, de forma alguma, estanques, sendo suas fronteiras es- treitas. Em determinadas situações, as problemáticas se interpenetram de forma tal que é impossível estabelecer Qualquer reflexão sobre a relação cinema-história toma como verdadeira a premissa de que todo filme é um documento, desde que corresponde a um vestígio de um acontecimento que teve existência no passado, seja u remoto. No entanto, isso não seria sufi- ciente para que uma película se tornasse um documento válido para a investigação historiográfica. Na verdade, o conceito historiográfico de documento se relaciona fundamentalmente com dois pontos: a concepção de tória do pesquisador e o valor intrínseco do docu- Foi somente a partir da década de 1970 que o filme começou a ser visto como um possível documento para a investigação histórica. Isso se deu em conseqüência de um processo de reformulação do conceito e dos méto- dos da História, iniciado com o desenvolvimento da Escola dos Anais, na França. O filme, seja qual for, desde então, passou a ser encarado enquanto testemunho da sociedade que o produziu, como um reflexo to e mecânico — das ideologias, mentalidades coletivas. Como não enxergar, por exe plo, tratando-se do Brasil, elementos da ideologia da esquerda brasileira — influenciada pelo modelo de r flexão da arte e da sociedade adotado pelos Partidos Comunistas em todo o mundo ções do movimento cinemanovista, em início dos anos 60? Ou, em outro exemplo, como não perceber a atmo fera da ideologia macarthista nos filmes produzidos nos Estados Unidos durante as décadas de 1950 e 1960? Poderíamos listar inúmeros títulos que comprovam essa afirmação, tais como: A cortina de ferro (1948, Willian Wellman), Sob controle (1951, Willian Cameron Menz es), O grande Jim Mclaim (1952, John Wayne), Homem no arame (1960, André de Toth) ou Sob o domínio do mal (1962, John Franenheimer). Nessa produção global, existe um tipo de filme que possui uma importância suplementar para o historiador e sobretudo para o professor de História: aquele que possui como temática um fato histórico. A este cham remos, por motivos meramente esq histórico", mesmo que a denominação seja em si insuf ciente e até redundante. Eles podem ser estudados pelo historiador de duas formas: primeiro, como testem nhos da época na qual foram produzidos e segundo, como representações do pass leva a classificar o caráter documental dos filmes em primário e secundário. O filme pode ser utilizado como documento primário quando nele forem analisados os aspectos concernentes à época em que foi produzido. E, como documento secundário, quando o enfoque é dado à sua representação do passado. Esse modelo segue, em linhas gerais, a classificação dada à documentação escr ta pela historiografia tradicional. Dessa forma, pode afirmar que os "filmes históricos" são duplamente d cumentos e podem ser utilizados como tais a depender do enfoque dado pelo sujeito que o investiga. No enta to, pelo seu caráter secundário e de representação, e, portanto, de discurso sobre um passado remoto, os "filmes históricos" desempenham uma função doc mental limitada sobre o período que retratam, princ palmente para a pesquisa, assim como também o fazem os documentos escritos secundários (como os textos que remontam ao passado). Na verdade, esses filmes acabam por falar mais sobre o seu presente, não ob tante seu discurso esteja aparentemente apenas ce trado no passado. Mesmo assim, eles desempenham um papel significativo na divulgação e na polemização do conhecimento histórico. Tomemos, como exemplo, a reação provocada pela estréia do filme Terra e libe (1995, Ken Loach)na Espanha e no restante do mundo: acirrar novas chamas sobre o debate historiográfico da Guerra de Espanha, trazendo à tona temas que parec am estar esquecidos pela História, além de ampliar os limites desse debate até o grande púb cliohistoria@uol.com.br então, passou a ser encarado enquanto testemunho da sociedade que o produziu, como um reflexo — não dire- das ideologias, dos costumes e das mentalidades coletivas. Como não enxergar, por exem- se do Brasil, elementos da ideologia da influenciada pelo modelo de re- flexão da arte e da sociedade adotado pelos Partidos Comunistas em todo o mundo — nas primeiras produ- ções do movimento cinemanovista, em início dos anos 60? Ou, em outro exemplo, como não perceber a atmos- fera da ideologia macarthista nos filmes produzidos nos Estados Unidos durante as décadas de 1950 e 1960? s títulos que comprovam essa afirmação, tais como: A cortina de ferro (1948, Willian Wellman), Sob controle (1951, Willian Cameron Menzi- es), O grande Jim Mclaim (1952, John Wayne), Homem no arame (1960, André de Toth) ou Sob o domínio do anenheimer). Nessa produção global, existe um tipo de filme que possui uma importância suplementar para o historiador e sobretudo para o professor de História: aquele que possui como temática um fato histórico. A este chama- remos, por motivos meramente esquemáticos, de "filme histórico", mesmo que a denominação seja em si insufi- ciente e até redundante. Eles podem ser estudados pelo historiador de duas formas: primeiro, como testemu- nhos da época na qual foram produzidos e segundo, como representações do passado. Essa separação nos leva a classificar o caráter documental dos filmes em primário e secundário. O filme pode ser utilizado como documento primário quando nele forem analisados os aspectos concernentes à época em que foi produzido. E, cundário, quando o enfoque é dado à sua representação do passado. Esse modelo segue, em linhas gerais, a classificação dada à documentação escri- ta pela historiografia tradicional. Dessa forma, pode-se afirmar que os "filmes históricos" são duplamente do- entos e podem ser utilizados como tais a depender do enfoque dado pelo sujeito que o investiga. No entan- to, pelo seu caráter secundário e de representação, e, portanto, de discurso sobre um passado remoto, os "filmes históricos" desempenham uma função docu- mental limitada sobre o período que retratam, princi- palmente para a pesquisa, assim como também o fazem os documentos escritos secundários (como os textos que remontam ao passado). Na verdade, esses filmes acabam por falar mais sobre o seu presente, não obs- tante seu discurso esteja aparentemente apenas cen- trado no passado. Mesmo assim, eles desempenham um papel significativo na divulgação e na polemização do conhecimento histórico. Tomemos, como exemplo, a reação provocada pela estréia do filme Terra e liberdade (1995, Ken Loach) na Espanha e no restante do mundo: acirrar novas chamas sobre o debate historiográfico da Guerra de Espanha, trazendo à tona temas que pareci- am estar esquecidos pela História, além de ampliar os limites desse debate até o grande público. E esse poten- CLIO História - Textos e Documentos cial pode e deve ser aproveitado pelo professor e por qualquer um que deseje refletir sobre a história, sem que, contudo, se perca a dialética entre o passado e o presente, ponto chave para a análise e o entendimento de qualquer "filme histórico". Essa diferenciação (entre documentos primários e s cundários) levou o pioneiro e um dos maiores teóricos da relação cinema-história, o historiador Marc Ferro, a formular a definição das duas vias de leitura do cinema acessíveis ao historiador: a leitura histórica do filme e a leitura cinematográfica da história. A primeira corre ponde à leitura do filme à luz do período em que foi produzido, ou seja, o filme lido através da história, e a segunda à leitura do filme enquanto discurso sobre o passado, isto é, a história lida através do cinema e, em particular, dos "filmes históricos". O filme como testemunho do presente O cinema é um testemunho da sociedade que o prod ziu e, portanto, uma fonte documental para a ciência histórica por excelência. Nenhuma produção cinemat gráfica está livre dos condicionamentos sociais de sua época. Isso nos permite afirmar que todo filme é pass vel de ser utilizado enquanto documento. No entanto, para utilizar-se cientificamente de uma tal assertiva, requer-se cautela e cuidados especiais. A forma como o filme reflete a sociedade não é, em hipótese alguma, direta e jamais apresenta-se de maneira organizada (em circuitos lógicos e coerentes), mesmo que assim o ap rente. Por isso, é necessário que o pesquisador, ao tr tar o filme como fonte documental, distancie concepção mecanicista pela qual o reflexo social é abo dado de forma direta, tão cara ao pensamento vulgar de uma das vertentes da sociologia histórica dita marxista, nos séculos XIX e XX, e que pode ser ide exemplo, nas idéias defendidas por Plekhanov, numa linha de pensamento que se afirmou como dominante no seio da II Internacional e que influenciou bastante a teorização sobre a arte de vários segmentos da esque da em todo o mundo. Outros pensadores, por sua vez, se opuseram à postura plekhanovista, a exemplo de Mehering, para quem a arte, na sua dialética da criação, não constituía um mero reflexo social, valorizando, a sim, o momento subjetivo na teoria estética.(1) Toda produção cinematográfica é um produto coletivo, não apenas por conter elementos comuns a uma colet vidade, mas por ter sido, de fato, realizada por uma equipe (diretor, produtores, financiadores e tantos o tros). No entanto, nem isso, nem os seus condicion mentos sociais eliminam a presença do caráter individ al e artístico de cada obra, cuja análise é, por vezes, dificultada pelo fato da arte nem sempre seguir modelos lógicos e coerentes e possuir um grau elevado de subj tividade. Pense-se, por exemplo, Discreto charme da burguesia (1972, Luis Buñuel) ou O matador (1986, A modóvar). É também necessário ressaltar que a estética Textos e Documentos cial pode e deve ser aproveitado pelo professor e por qualquer um que deseje refletir sobre a história, sem que, contudo, se perca a dialética entre o passado e o presente, ponto chave para a análise e o entendimento Essa diferenciação (entre documentos primários e se- cundários) levou o pioneiro e um dos maiores teóricos história, o historiador Marc Ferro, a formular a definição das duas vias de leitura do cinema leitura histórica do filme e a leitura cinematográfica da história. A primeira corres- ponde à leitura do filme à luz do período em que foi produzido, ou seja, o filme lido através da história, e a segunda à leitura do filme enquanto discurso sobre o o, isto é, a história lida através do cinema e, em O filme como testemunho do presente O cinema é um testemunho da sociedade que o produ- ziu e, portanto, uma fonte documental para a ciência huma produção cinemato- gráfica está livre dos condicionamentos sociais de sua época. Isso nos permite afirmar que todo filme é passí- vel de ser utilizado enquanto documento. No entanto, se cientificamente de uma tal assertiva, e cuidados especiais. A forma como o filme reflete a sociedade não é, em hipótese alguma, se de maneira organizada (em circuitos lógicos e coerentes), mesmo que assim o apa- rente. Por isso, é necessário que o pesquisador, ao tra- r o filme como fonte documental, distancie-se da concepção mecanicista pela qual o reflexo social é abor- dado de forma direta, tão cara ao pensamento vulgar de uma das vertentes da sociologia histórica ditamarxista, nos séculos XIX e XX, e que pode ser identificada, por exemplo, nas idéias defendidas por Plekhanov, numa linha de pensamento que se afirmou como dominante no seio da II Internacional e que influenciou bastante a teorização sobre a arte de vários segmentos da esquer- sadores, por sua vez, se opuseram à postura plekhanovista, a exemplo de Mehering, para quem a arte, na sua dialética da criação, não constituía um mero reflexo social, valorizando, as- sim, o momento subjetivo na teoria estética.(1) áfica é um produto coletivo, não apenas por conter elementos comuns a uma coleti- vidade, mas por ter sido, de fato, realizada por uma equipe (diretor, produtores, financiadores e tantos ou- tros). No entanto, nem isso, nem os seus condiciona- minam a presença do caráter individu- al e artístico de cada obra, cuja análise é, por vezes, dificultada pelo fato da arte nem sempre seguir modelos lógicos e coerentes e possuir um grau elevado de subje- se, por exemplo, Discreto charme da rguesia (1972, Luis Buñuel) ou O matador (1986, Al- modóvar). É também necessário ressaltar que a estética também se encontra condicionada socialmente. E não apenas a estética, como também a própria linguagem cinematográfica como um todo (os movimentos de câmara, os planos, os enquadramentos, a iluminação etc.). Portanto, esses aspectos precisam ser levados em consideração no momento da análise de um filme pelo historiador, o que, na maior parte dos casos, não é uma tarefa fácil, devido à sua falta de prepara Para o melhor aproveitamento do caráter documental do filme, é necessário que o pesquisador, o "analista", saiba dissecar os significados "ocultos" (porém prese tes: não se trata de caminhar na via das elucubrações e especulações) existentes na película. O método de i vestigação consiste, simplificadamente, em buscar os elementos da realidade através da ficção. O valor documental de cada filme está relacionado dir tamente com o olhar e a perspectiva do "analista". Um filme diz tanto quanto for questionado. São infinitas as possibilidades de leitura de cada filme. Algumas pelíc las, por exemplo, podem ser muito úteis na reconstr ção dos gestos, do vestuário, do vocabulário, da arquit tura e dos costumes da sua época, sobretudo aquelas em que o enredo é contemporâneo à sua produção. Mas, para além da representação desses elementos audiovisuais, elas "espelham" a mentalidade da soci dade, incluindo a sua ideologia, através da presença de elementos dos quais, muitas vezes, nem mesmo têm consciência aqueles que produziram essas películas, constituindo-se, assim, como sentencia Ferro, em "zonas ideológicas não-visíveis" da sociedade.(2) Postula assim, que um filme, seja ele qual for, sempre vai além do seu conteúdo, escapando mesmo a quem faz a film gem. Na mesma linha de pensamento, Siegfried Kracauer um dos pioneiros da utilização do cinema como doc mento de investigação histórica filmes refletem não são credos explícitos, mas disposit vos psicológicos, profundas camadas da me coletiva que se situam abaixo da consciência".(3) Os filmes, na verdade, como todo produto humano e, po tanto, histórico, contêm elementos que lhes foram ins ridos de forma consciente e outros que não. Estes últ mos, por sua vez, localizam-se num te, seja do produtor tratado individualmente, seja da coletividade como um todo. Dessa forma, a análise hi tórica do filme permite-nos também introduzir o mét do psicanalítico no estudo de fenômenos históricos, prática ainda pouco trabalhada (teórica e metodolog camente) pelos historiadores que se têm mostrado mu to reticentes com a utilização da psicanálise em suas pesquisas. É bom salientar que, se a sociedade exerce influência sobre a produção cinematográfica, a recíproca também é verdadeira. A ação exercida pelo cinema nos espect cliohistoria@uol.com.br também se encontra condicionada socialmente. E não apenas a estética, como também a própria linguagem cinematográfica como um todo (os movimentos de mara, os planos, os enquadramentos, a iluminação etc.). Portanto, esses aspectos precisam ser levados em consideração no momento da análise de um filme pelo historiador, o que, na maior parte dos casos, não é uma tarefa fácil, devido à sua falta de preparação. Para o melhor aproveitamento do caráter documental do filme, é necessário que o pesquisador, o "analista", saiba dissecar os significados "ocultos" (porém presen- tes: não se trata de caminhar na via das elucubrações e película. O método de in- vestigação consiste, simplificadamente, em buscar os elementos da realidade através da ficção. O valor documental de cada filme está relacionado dire- tamente com o olhar e a perspectiva do "analista". Um uestionado. São infinitas as possibilidades de leitura de cada filme. Algumas pelícu- las, por exemplo, podem ser muito úteis na reconstru- ção dos gestos, do vestuário, do vocabulário, da arquite- tura e dos costumes da sua época, sobretudo aquelas edo é contemporâneo à sua produção. Mas, para além da representação desses elementos audiovisuais, elas "espelham" a mentalidade da socie- dade, incluindo a sua ideologia, através da presença de elementos dos quais, muitas vezes, nem mesmo têm ueles que produziram essas películas, se, assim, como sentencia Ferro, em "zonas visíveis" da sociedade.(2) Postula-se, assim, que um filme, seja ele qual for, sempre vai além do seu conteúdo, escapando mesmo a quem faz a filma- Na mesma linha de pensamento, Siegfried Kracauer — um dos pioneiros da utilização do cinema como docu- mento de investigação histórica — diz que "o que os filmes refletem não são credos explícitos, mas dispositi- vos psicológicos, profundas camadas da mentalidade coletiva que se situam abaixo da consciência".(3) Os filmes, na verdade, como todo produto humano e, por- tanto, histórico, contêm elementos que lhes foram inse- ridos de forma consciente e outros que não. Estes últi- se numa esfera inconscien- te, seja do produtor tratado individualmente, seja da coletividade como um todo. Dessa forma, a análise his- nos também introduzir o méto- do psicanalítico no estudo de fenômenos históricos, hada (teórica e metodologi- camente) pelos historiadores que se têm mostrado mui- to reticentes com a utilização da psicanálise em suas É bom salientar que, se a sociedade exerce influência sobre a produção cinematográfica, a recíproca também dadeira. A ação exercida pelo cinema nos especta- CLIO História - Textos e Documentos dores é um fato inquestionável, não obstante ainda não se tenha chegado a um consenso quanto ao seu grau de ação. Ter consciência desse mecanismo é fundamental para o trabalho analítico, visto que boa parte d údo do filme, sobretudo no cinema dito comercial, é ditada pelos gostos e pelas expectativas do público os quais, por sua vez são influenciados pelos filme, numa relação altamente dialética. Cabe, então, ao pesquis dor, buscar, detectar e diferenciar esses elementos. Mas essa tarefa, por vezes árdua e tortuosa, só pode ser realizada parcialmente, visto que o significado mais totalizante de uma película apenas pode estar presente nela própria. Toda tentativa de análise de um filme i plica em uma redução do seu sentido em conseqüência da impossibilidade de uma análise total e acabada (só alcançável como hipótese). Todo processo de transfo mação (que se configura como uma abstração) das im gens em linguagem escrita ou verbalizada leva sempre ao empobrecimento relativo do seu significado. Em comparação aos documentos escritos, pode mar que, em geral, os filmes possuem um maior grau de espontaneidade, fato que abre, sem dúvida, amplos espaços para a prática da investigação. Isto obriga o historiador a voltar seus olhos não apenas para o ap rentementemais significativo, mas também para o mais "banal", "corriqueiro": o detalhe quase imperceptível. Dessa forma, o cinema, ao lado de outras formas de expressão, acaba construindo uma História diferente da História institucionalizada, à qual Ferro se refere como sendo uma "contra-História". Um exemplo disto pode ser encontrado na produção cinematográfica dos reg mes totalitários e repressivos, nos quais o artista é obr gado a expressar o conteúdo de sua art deslocamentos de discursos. A análise do documento Tentaremos agora construir um modelo geral de análise do filme enquanto documento que, de forma alguma, pretende ser um esquema fechado que venha a se e quadrar em qualquer tipo de estudo. Trata reunir, de forma ordenada, algumas das principais pe guntas pertinentes a uma tentativa de leitura histórica do filme, seja ele "histórico" ou não. Aqui tem-se um quadro que explicita em linhas gerais os procedimentos básicos da leitura histórica do filme que propomos, que serão detalhados em seguida. O primeiro passo a ser dado por um pesquisador que objetive a utilização de filmes como documento, além obviamente de outros aspectos e atividades que envo vem o processo de início de uma pesquisa, é a seleção dos títulos sobre os quais vai trabalhar. A seleção deve ser realizada preferencialmente depois que o objeto e os objetivos da pesquisa estiverem bem definidos. São esses que ditarão os critérios da seleção, que todavia, Textos e Documentos dores é um fato inquestionável, não obstante ainda não se tenha chegado a um consenso quanto ao seu grau de ação. Ter consciência desse mecanismo é fundamental para o trabalho analítico, visto que boa parte do conte- údo do filme, sobretudo no cinema dito comercial, é ditada pelos gostos e pelas expectativas do público os quais, por sua vez são influenciados pelos filme, numa relação altamente dialética. Cabe, então, ao pesquisa- r esses elementos. Mas essa tarefa, por vezes árdua e tortuosa, só pode ser realizada parcialmente, visto que o significado mais totalizante de uma película apenas pode estar presente nela própria. Toda tentativa de análise de um filme im- ão do seu sentido em conseqüência da impossibilidade de uma análise total e acabada (só alcançável como hipótese). Todo processo de transfor- mação (que se configura como uma abstração) das ima- gens em linguagem escrita ou verbalizada leva sempre mento relativo do seu significado. Em comparação aos documentos escritos, pode-se afir- mar que, em geral, os filmes possuem um maior grau de espontaneidade, fato que abre, sem dúvida, amplos espaços para a prática da investigação. Isto obriga o a voltar seus olhos não apenas para o apa- rentemente mais significativo, mas também para o mais "banal", "corriqueiro": o detalhe quase imperceptível. Dessa forma, o cinema, ao lado de outras formas de expressão, acaba construindo uma História diferente da História institucionalizada, à qual Ferro se refere como História". Um exemplo disto pode ser encontrado na produção cinematográfica dos regi- mes totalitários e repressivos, nos quais o artista é obri- e por meio de Tentaremos agora construir um modelo geral de análise do filme enquanto documento que, de forma alguma, pretende ser um esquema fechado que venha a se en- rata-se apenas de reunir, de forma ordenada, algumas das principais per- guntas pertinentes a uma tentativa de leitura histórica se um quadro que explicita em linhas gerais os histórica do filme que propomos, que serão detalhados em seguida. O primeiro passo a ser dado por um pesquisador que objetive a utilização de filmes como documento, além obviamente de outros aspectos e atividades que envol- esquisa, é a seleção dos títulos sobre os quais vai trabalhar. A seleção deve ser realizada preferencialmente depois que o objeto e os objetivos da pesquisa estiverem bem definidos. São esses que ditarão os critérios da seleção, que todavia, devem privilegiar o conteúdo dos filmes em detrimento do seu valor estético ou artístico. Feita a seleção, parte-se para a análise individual de cada filme. A primeira etapa da leitura histórica de uma película deve se concentrar naquilo que denominamos de crítica externa do filme. Esta etapa consiste nas s guintes atividades: resgate da cronologia da produção do filme (período de produção e de lançamento); verif cação e comparação da versão da película a ser utilizada (no caso de existirem mais versões); as alterações zadas pela censura; levantamento da equipe técnica de produção, dos seus custos de produção, das fontes f nanciadoras e de outros fatores importantes (como o público-alvo, por exemplo) do processo de produção. Nesta etapa, parte-se para o estudo, mesm ficial, da biografia dos produtores do filme: a que classe social pertencem, que tipo de filmes já produziram, quais as características mais gerais dessas produções e em que elas se assemelham à película que está sendo pesquisada etc. Só após essa etapa inicial, é possível se partir para a análise, de fato, do conteúdo do filme (crítica interna do documento). Primeiramente, deve conteúdo, tudo aquilo que se coloca de forma explícita, seja nos diálogos, na indumentária, nos gest do e no seu sentido mais geral, ou seja, extrair dele o que é dito de forma direta. Posteriormente, deve passar para a análise do que, no filme, está presente de maneira implícita, isto é, todo o conteúdo existente nas suas entrelinhas, tudo aquilo que os produtores queriam que chegasse ao espectador, mas não o fizeram, por algum motivo particular, direta e claramente. É necess rio salientar que essas duas etapas estão intimamente ligadas às intenções (objetivos conscientes) dos prod tores com a película. A escolha (do produtor ou dos produtores) pela via implícita de representação e de formulação das idéias e conteúdos pode estar relaci nada com a existência das diversas censuras de uma sociedade (política, econômica, moral, religiosa e social e com a sua vontade de burlá cionar com as possíveis vantagens de um conteúdo assimilado de forma indireta pelo público e com as co seqüências provocadas por esse processo ou ainda com uma opção estética. Essa etapa do processo ana muito importante, sobretudo para o estudo da utilização propagandística do cinema e da ideologia presente no conteúdo da propaganda ou para o estudo das formas artísticas de contestação, nos sistemas autoritários, nos quais o artista é obrigado a expressar as suas idéias por meios de mecanismos de ocultação e dissimulação. No entanto, é preciso não se perder de vista que a presença da ideologia não se limita ao processo de inclusão inte cional de elementos na película. A ideologia aqui ente dida como "a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência".(4) cliohistoria@uol.com.br iar o conteúdo dos filmes em detrimento do seu valor estético ou artístico. se para a análise individual de cada filme. A primeira etapa da leitura histórica de uma película deve se concentrar naquilo que denominamos rna do filme. Esta etapa consiste nas se- guintes atividades: resgate da cronologia da produção do filme (período de produção e de lançamento); verifi- cação e comparação da versão da película a ser utilizada (no caso de existirem mais versões); as alterações reali- zadas pela censura; levantamento da equipe técnica de produção, dos seus custos de produção, das fontes fi- nanciadoras e de outros fatores importantes (como o alvo, por exemplo) do processo de produção. se para o estudo, mesmo que super- ficial, da biografia dos produtores do filme: a que classe social pertencem, que tipo de filmes já produziram, quais as característicasmais gerais dessas produções e em que elas se assemelham à película que está sendo ssa etapa inicial, é possível se partir para a análise, de fato, do conteúdo do filme (crítica interna do documento). Primeiramente, deve-se buscar, no seu conteúdo, tudo aquilo que se coloca de forma explícita, seja nos diálogos, na indumentária, nos gestos, no enre- do e no seu sentido mais geral, ou seja, extrair dele o que é dito de forma direta. Posteriormente, deve-se passar para a análise do que, no filme, está presente de maneira implícita, isto é, todo o conteúdo existente nas aquilo que os produtores queriam que chegasse ao espectador, mas não o fizeram, por algum motivo particular, direta e claramente. É necessá- rio salientar que essas duas etapas estão intimamente ligadas às intenções (objetivos conscientes) dos produ- a película. A escolha (do produtor ou dos produtores) pela via implícita de representação e de formulação das idéias e conteúdos pode estar relacio- nada com a existência das diversas censuras de uma sociedade (política, econômica, moral, religiosa e social) e com a sua vontade de burlá-la. Pode também se rela- cionar com as possíveis vantagens de um conteúdo assimilado de forma indireta pelo público e com as con- seqüências provocadas por esse processo ou ainda com uma opção estética. Essa etapa do processo analítico é muito importante, sobretudo para o estudo da utilização propagandística do cinema e da ideologia presente no conteúdo da propaganda ou para o estudo das formas artísticas de contestação, nos sistemas autoritários, nos expressar as suas idéias por meios de mecanismos de ocultação e dissimulação. No entanto, é preciso não se perder de vista que a presença da ideologia não se limita ao processo de inclusão inten- cional de elementos na película. A ideologia aqui enten- mo "a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência".(4) CLIO História - Textos e Documentos A terceira etapa da análise diz respeito à descoberta dos elementos inconscientes existentes no filme, ou seja, a tudo o que existe na película que escapou à atenção ou ultrapassou as intenções de quem a produziu. Nesta, devem ser buscados tanto os elementos inconscientes presentes no filme que documentem em nível individual o autor, como, em nível mais geral, a sociedade. É nesta etapa que a ideologia deve ser decodificada mais intensa. Afinal de contas, o processo de ideologiz ção de uma sociedade ultrapassa a esfera da consciência plena e só se consubstancializa no momento em que a ideologia é interiorizada e passa a fazer parte daquele universo ao qual se denomina comumente de "normal" (quando passa, então, a ser dominante) e do qual po cos são conscientes. E a essa falta de consciência plena também estão submetidos os produtores de cinema, mesmo aqueles que se posicionam abertamente contra a ideologia dominante. Esses elementos inconscientes devem ser buscados tanto no sentido mais geral do filme como nos seus detalhes. Nesse percurso, o "anali ta" deve procurar se distanciar o máximo possível dos seus próprios condicionamentos ideológicos, mesmo que isso não possa ser alcançado plenamente, como sabemos. A todas essas etapas do processo analítico devem ta bém estar submetidos os elementos estéticos e pur mente cinematográficos que, em grande medida, ta bém são influenciados pelos condicionamentos ideológ cos e pelo contexto sócial, econômico, político e cultural de sua época. Após a realização de tais etapas, o "analista" deve partir para uma última que consiste na comparação do cont údo apreendido do filme com os conhecimentos histór co-sociológicos acerca da sociedade que produziu o filme e com outros tipos de filme, para então sintetizar os pontos em que o filme reproduz esses conhecimentos e, por outro lado, os elementos novos que ele apresenta para a compreensão histórica da mesma. Só então o filme transformar-se-á em documento historiográfico utilizável. Evidentemente, a profundidade de cada etapa da anál se deve estar relacionada com os objetivos do "anali ta". Em alguns casos, a análise pode se esgotar em uma película apenas, mas em outros (como é mais c ela pode estender-se à produção cinematográfica global ou parcial de um período específico ou a determinado gênero ou tipo de filme. A leitura histórica dos filmes não exclui a possibilidade de análise de extratos e fragmentos de filmes. Todavia, é necessária muita precaução contra os perigos das fáceis deduções gerais realizadas a partir de elementos isol dos dos filmes. Para evitar esse perigo — tornando uma "tentação" no bojo do processo analítico, não apenas no tratamento dos fragmentos (em que o Textos e Documentos A terceira etapa da análise diz respeito à descoberta dos elementos inconscientes existentes no filme, ou seja, a tudo o que existe na película que escapou à atenção ou trapassou as intenções de quem a produziu. Nesta, devem ser buscados tanto os elementos inconscientes presentes no filme que documentem em nível individual o autor, como, em nível mais geral, a sociedade. É nesta etapa que a ideologia deve ser decodificada de forma mais intensa. Afinal de contas, o processo de ideologiza- ção de uma sociedade ultrapassa a esfera da consciência plena e só se consubstancializa no momento em que a ideologia é interiorizada e passa a fazer parte daquele na comumente de "normal" (quando passa, então, a ser dominante) e do qual pou- cos são conscientes. E a essa falta de consciência plena também estão submetidos os produtores de cinema, mesmo aqueles que se posicionam abertamente contra Esses elementos inconscientes devem ser buscados tanto no sentido mais geral do filme como nos seus detalhes. Nesse percurso, o "analis- ta" deve procurar se distanciar o máximo possível dos seus próprios condicionamentos ideológicos, mesmo sa ser alcançado plenamente, como A todas essas etapas do processo analítico devem tam- bém estar submetidos os elementos estéticos e pura- mente cinematográficos que, em grande medida, tam- bém são influenciados pelos condicionamentos ideológi- pelo contexto sócial, econômico, político e cultural Após a realização de tais etapas, o "analista" deve partir para uma última que consiste na comparação do conte- údo apreendido do filme com os conhecimentos históri- sociedade que produziu o filme e com outros tipos de filme, para então sintetizar os pontos em que o filme reproduz esses conhecimentos e, por outro lado, os elementos novos que ele apresenta para a compreensão histórica da mesma. Só então o á em documento historiográfico Evidentemente, a profundidade de cada etapa da análi- se deve estar relacionada com os objetivos do "analis- ta". Em alguns casos, a análise pode se esgotar em uma película apenas, mas em outros (como é mais comum), se à produção cinematográfica global ou parcial de um período específico ou a determinado A leitura histórica dos filmes não exclui a possibilidade de análise de extratos e fragmentos de filmes. Todavia, é necessária muita precaução contra os perigos das fáceis deduções gerais realizadas a partir de elementos isola- — que acaba se tornando uma "tentação" no bojo do processo analítico, ntos (em que o perigo de fato é maior) —, é muito importante (diríamos mesmo fundamental) a consulta a outras fontes de pe quisa e o seu conseqüente cruzamento. A documentação escrita sobre filmes não é muito num rosa e muitas vezes é de difícil acesso, m deve ser consultada quando possível, sobretudo para a primeira parte da análise. Além da bibliografia que, porventura, possa haver, existem todos os documentos que envolvem a produção e distribuiçãodo filme, os roteiros (inclusive os originais) e, ainda, as críticas cin matográficas que podem ser muito úteis ao pesquisador que deseja contextualizar o filme, assim como tomar conhecimento da sua repercussão. Mas é preciso salie tar que esses documentos também devem ser submet dos ao processo de crítica. Todas essas questões nos permitem afirmar que, e quanto documento histórico primário, qualquer filme também pode ser utilizado didaticamente, como in trumento auxiliar do ensino da História, por meio da realização da sua leitura histórica, em apreensão e discussão dos seus elementos constitutivos. No entanto, para o sucesso de tal empreendimento é necessário, na maior parte dos casos, que sejam forn cidos aos estudantes os princípios básicos da relação cinema-história, e, além disso, que eles já estejam fam liarizados com noções do tipo: documento histórico, objetividade e subjetividade na História, a relação dial tica entre passado e presente, ideologia etc. Portanto, esse tipo específico de utilização didática de filmes, ou seja, como documentos primários, deve aplicar ao ensino universitário e, só em casos particulares, deve ser dirigido ao ensino secundário. Um outro limite dessa utilização diz respeito ao objeto de ensino que, neste caso, se restringe, cronologicam lo XX. O filme como discurso sobre o passado Desde um passado muito remoto, a história vem servi do de inspiração temática para muitas formas de repr sentação, seja ela lendária, a exemplo das epopéias narradas por Homero, teatral, tragédias de Ésquilo ou Aristófanes, literária, plásticas e tantas outras. Essa tendência foi cristalizada após a Revolução Francesa e a difusão do Romantismo. Com o advento do cinema e a sua popularização (leia formação em meio de comunicação de massa), essa característica adquiriu contornos muito mais abrange tes. Não é por acaso que um número muito elevado dos filmes produzidos mundialmente possui um referente histórico. Dessa forma, pode-se afirmar que o "filme histórico" como detentor de um discurso sobre o passado, coinc de com a História no que concerne à sua condição di cursiva. Portanto, não é absurdo considerar que o cin asta, ao realizar um "filme histórico", assume a posição cliohistoria@uol.com.br , é muito importante (diríamos mesmo fundamental) a consulta a outras fontes de pes- quisa e o seu conseqüente cruzamento. A documentação escrita sobre filmes não é muito nume- rosa e muitas vezes é de difícil acesso, mas ela existe e deve ser consultada quando possível, sobretudo para a primeira parte da análise. Além da bibliografia que, porventura, possa haver, existem todos os documentos que envolvem a produção e distribuição do filme, os nais) e, ainda, as críticas cine- matográficas que podem ser muito úteis ao pesquisador que deseja contextualizar o filme, assim como tomar conhecimento da sua repercussão. Mas é preciso salien- tar que esses documentos também devem ser submeti- Todas essas questões nos permitem afirmar que, en- quanto documento histórico primário, qualquer filme também pode ser utilizado didaticamente, como ins- trumento auxiliar do ensino da História, por meio da realização da sua leitura histórica, em sala de aula, e da apreensão e discussão dos seus elementos constitutivos. No entanto, para o sucesso de tal empreendimento é necessário, na maior parte dos casos, que sejam forne- cidos aos estudantes os princípios básicos da relação m disso, que eles já estejam fami- liarizados com noções do tipo: documento histórico, objetividade e subjetividade na História, a relação dialé- tica entre passado e presente, ideologia etc. Portanto, esse tipo específico de utilização didática de filmes, ou seja, como documentos primários, deve aplicar-se mais ao ensino universitário e, só em casos particulares, deve ser dirigido ao ensino secundário. Um outro limite dessa utilização diz respeito ao objeto de ensino que, neste caso, se restringe, cronologicamente, à história do sécu- O filme como discurso sobre o passado Desde um passado muito remoto, a história vem servin- do de inspiração temática para muitas formas de repre- sentação, seja ela lendária, a exemplo das epopéias narradas por Homero, teatral, como, por exemplo, as tragédias de Ésquilo ou Aristófanes, literária, plásticas e tantas outras. Essa tendência foi cristalizada após a Revolução Francesa e a difusão do Romantismo. Com o advento do cinema e a sua popularização (leia-se trans- eio de comunicação de massa), essa característica adquiriu contornos muito mais abrangen- tes. Não é por acaso que um número muito elevado dos filmes produzidos mundialmente possui um referente se afirmar que o "filme histórico", como detentor de um discurso sobre o passado, coinci- de com a História no que concerne à sua condição dis- cursiva. Portanto, não é absurdo considerar que o cine- asta, ao realizar um "filme histórico", assume a posição CLIO História - Textos e Documentos de historiador, mesmo que não carregue metodológico do trabalho historiográfico. O grande público, hoje, tem mais acesso à História atr vés das telas do que pela via da leitura e do ensino nas escolas secundárias. Essa é uma verdade incontestável no mundo contemporâneo, no qual, de mais a mais, a imagem domina as esferas do cotidiano do indivíduo urbano. E, em grande medida, esse fato se deve à exi tência e à popularização dos filmes ditos históricos. No entanto, esses filmes encontram uma grande reação negativa por parte do público dito "culto", incluindo uma boa parcela dos historiadores, que enxerga nessas produções apenas um meio de vulgarização da História, o que não se constitui, na sua totalidade, numa crítica verdadeira. Colocando-se contra essa postura, o histor ador não deve menosprezar, nem ficar à margem desse processo de difusão do saber histórico através do cin ma e, atualmente, também da televisão e do videoca sete, mas sim aproveitar o seu potencial (que pode ser documental ou didático, se aplicado ao ensino da Hi ria), contribuindo, dessa forma, para o desenvolvimento de uma leitura cinematográfica da história eficiente e formadora de conhecimento científico e consciência histórica. Com os avanços tecnológicos e científicos alcançados pela humanidade, em especial no domínio da comunic ção, neste fim de milênio, modificaram- tipos de relações sociais empreendidas pelo homem. E desta nova era que se esboça, com contornos ainda indefinidos, o cientista social não se pode distanciar, sob o risco de se encontrar inteiramente fora da realidade do processo histórico em curso. Nesse sentido, assiste se ao surgimento de uma necessidade (histórica) imp rativa para as ciências que estudam o homem e as suas relações: sua modernização, por meio da integração com os novos recursos da comunicação e, no nosso caso em particular, com o cinema. Os "filmes históricos", ou seja, aqueles em que o seu enredo se reporta a épocas passadas (em relação ao período em que foi produzido, e não ao do espectador) são, como quaisquer outros, como já dissemos acima, também documentos do período de sua produção. E esse enfoque jamais pode ser perdido, mesmo que o interesse do observador não se concentre nesse perí do. Esses filmes também são documentos secundários do fenômeno que abordam em seu enredo e, não ob tante possuam uma utilidade limitada para o pesquis dor (no que concerne ao seu interesse sobre o período retratado), eles podem se tornar muito importantes para o processo de ensino-aprendizagem da História. Mas a sua utilização deve levar em consideração uma série de questões, das quais levantaremos algumas, consideradas fundamentais. Textos e Documentosde historiador, mesmo que não carregue consigo o rigor metodológico do trabalho historiográfico. O grande público, hoje, tem mais acesso à História atra- vés das telas do que pela via da leitura e do ensino nas escolas secundárias. Essa é uma verdade incontestável , de mais a mais, a imagem domina as esferas do cotidiano do indivíduo urbano. E, em grande medida, esse fato se deve à exis- tência e à popularização dos filmes ditos históricos. No entanto, esses filmes encontram uma grande reação blico dito "culto", incluindo uma boa parcela dos historiadores, que enxerga nessas produções apenas um meio de vulgarização da História, o que não se constitui, na sua totalidade, numa crítica se contra essa postura, o histori- o deve menosprezar, nem ficar à margem desse processo de difusão do saber histórico através do cine- ma e, atualmente, também da televisão e do videocas- sete, mas sim aproveitar o seu potencial (que pode ser documental ou didático, se aplicado ao ensino da Histó- ria), contribuindo, dessa forma, para o desenvolvimento de uma leitura cinematográfica da história eficiente e formadora de conhecimento científico e consciência Com os avanços tecnológicos e científicos alcançados al no domínio da comunica- -se bastante os tipos de relações sociais empreendidas pelo homem. E desta nova era que se esboça, com contornos ainda indefinidos, o cientista social não se pode distanciar, sob encontrar inteiramente fora da realidade do processo histórico em curso. Nesse sentido, assiste- se ao surgimento de uma necessidade (histórica) impe- rativa para as ciências que estudam o homem e as suas relações: sua modernização, por meio da integração os novos recursos da comunicação e, no nosso caso Os "filmes históricos", ou seja, aqueles em que o seu enredo se reporta a épocas passadas (em relação ao período em que foi produzido, e não ao do espectador) uer outros, como já dissemos acima, também documentos do período de sua produção. E esse enfoque jamais pode ser perdido, mesmo que o interesse do observador não se concentre nesse perío- do. Esses filmes também são documentos secundários rdam em seu enredo e, não obs- tante possuam uma utilidade limitada para o pesquisa- dor (no que concerne ao seu interesse sobre o período retratado), eles podem se tornar muito importantes aprendizagem da História. ão deve levar em consideração uma série de questões, das quais levantaremos algumas, A primeira questão a ser levantada diz respeito exat mente à relação passado-presente contida no filme. Qualquer representação do passado exist está intimamente relacionada com o período em que este foi produzido. Por exemplo, a escolha de um tema histórico e a forma como ele é representado em uma película são sempre ditadas por influências do presente. Neste sentido, pode-se falar d construção histórico-cinematográfica, fenômeno já ass nalado por filósofos da história, como Benedetto Croce, e historiadores, como Collingwood, em relação ao di curso histórico. Em muitos casos, o retorno ao passado funciona como um instrumento de ocultação de um conteúdo presente que se deseja passar para o espect dor. O que dizermos, por exemplo, da relação passado presente existente no filme Alexandre Nevsky de Se guey Eisenstein? Não seria o retorno ao século XIII (d rante um episódio histórico no qual a "grande" Rússia é atacada de surpresa pelos cruéis exércitos teutônicos isto é, germânicos —, mas, pela mobilização popular, consegue defender-se e rechaçar os alemães, consol dando sua força) um instrumento ideológico que visava claramente agir sobre a consciência dos indivíduos do seu tempo? Ou seriam pura e simples coincidência as semelhanças entre as conjunturas político 1242 e 1938? A resposta nos parece bastante clara e pode ser comprovada pelos próprios fatos que ram à finalização do filme: ele foi censurado até 1941, em conseqüência da assinatura do Pacto Germano Soviético, e só foi liberado após a invasão do território russo pelos exércitos nazistas. Mas, na maioria das v zes, a relação passado-presente direta e consciente. Por isso, a utilização dos "filmes históricos" não pode prescindir de uma leitura histórica, ainda que esta não seja realizada de forma tão minuci sa (quanto seria para sua utilização como documento primário). Todo "filme histórico" é uma representação do passado e, portanto, um discurso sobre o mesmo e, como tal, está imbuído de subjetividade. Para se captar o seu conteúdo histórico é necessário que o historiador, pr meira e momentaneamente, renuncie à busca objet da "verdade histórica". Na película, ele apenas encontr rá uma visão sobre um objeto passado, que pode conter "verdades" e "inverdades" parciais. Um filme nunca poderia conter a verdade plena de um acontecimento histórico, mesmo se assim o desejasse o da que aborde fatos reais, nunca abandonará a sua co dição de representação e, portanto, de algo que, no máximo, apenas representa o real e que não coincide com este. E esta afirmativa também se aplica aos doc mentários. A realização de um "f implica em seleções, montagens, generalizações, co densações, ocultações quando não em invenções ou mesmo falsificações. Dessa forma, o que deve ser bu cado em um "filme histórico" não é a "verdade histór cliohistoria@uol.com.br A primeira questão a ser levantada diz respeito exata- presente contida no filme. Qualquer representação do passado existente no filme está intimamente relacionada com o período em que este foi produzido. Por exemplo, a escolha de um tema histórico e a forma como ele é representado em uma película são sempre ditadas por influências do presente. se falar de um presentismo na cinematográfica, fenômeno já assi- nalado por filósofos da história, como Benedetto Croce, e historiadores, como Collingwood, em relação ao dis- curso histórico. Em muitos casos, o retorno ao passado strumento de ocultação de um conteúdo presente que se deseja passar para o especta- dor. O que dizermos, por exemplo, da relação passado- presente existente no filme Alexandre Nevsky de Ser- guey Eisenstein? Não seria o retorno ao século XIII (du- io histórico no qual a "grande" Rússia é atacada de surpresa pelos cruéis exércitos teutônicos — , mas, pela mobilização popular, se e rechaçar os alemães, consoli- dando sua força) um instrumento ideológico que visava laramente agir sobre a consciência dos indivíduos do seu tempo? Ou seriam pura e simples coincidência as semelhanças entre as conjunturas político-militares de 1242 e 1938? A resposta nos parece bastante clara e pode ser comprovada pelos próprios fatos que se segui- ram à finalização do filme: ele foi censurado até 1941, em conseqüência da assinatura do Pacto Germano- Soviético, e só foi liberado após a invasão do território russo pelos exércitos nazistas. Mas, na maioria das ve- presente se dá de forma menos direta e consciente. Por isso, a utilização dos "filmes históricos" não pode prescindir de uma leitura histórica, ainda que esta não seja realizada de forma tão minucio- sa (quanto seria para sua utilização como documento o "filme histórico" é uma representação do passado e, portanto, um discurso sobre o mesmo e, como tal, está imbuído de subjetividade. Para se captar o seu conteúdo histórico é necessário que o historiador, pri- meira e momentaneamente, renuncie à busca objetiva da "verdade histórica". Na película, ele apenas encontra- rá uma visão sobre um objeto passado, que pode conter "verdades" e "inverdades" parciais. Um filme nunca poderia conter a verdade plena de um acontecimento histórico, mesmo se assim o desejasse o seu autor. Ain- da que aborde fatos reais, nunca abandonará a sua con- dição de representação e, portanto, de algo que, no máximo, apenas representa o real e que nãocoincide com este. E esta afirmativa também se aplica aos docu- mentários. A realização de um "filme histórico" sempre implica em seleções, montagens, generalizações, con- densações, ocultações quando não em invenções ou mesmo falsificações. Dessa forma, o que deve ser bus- cado em um "filme histórico" não é a "verdade históri- CLIO História - Textos e Documentos ca" contida nele, mas a verossimilhança com o fenôm no histórico que retrata.(5) Mas, sob a denominação de "filmes históricos", coexi tem numerosos tipos de filmes que se diferenciam ba tante quanto ao seu conteúdo, forma e suas possibilid des de tratamento e utilização. Isso gera dade de se criar uma classificação para os "filmes hist ricos". A primeira e mais geral classificação, por nós proposta, dos "filmes históricos" consiste na diferenci ção entre documentários e não-documentários. Os d cumentários são os filmes cujo enredo não se baseia numa trama representativa (com atores representando personagens históricos), mas no relato, na descrição ou na análise de um acontecimento histórico. Em geral, esses filmes são realizados através de montagens de imagens do passado, de documentos filmados e de c nas do presente, que possuem um texto de fundo na rado e são, muitas vezes, intercaladas por entrevistas realizadas contemporaneamente à produção do filme. Os não-documentários correspondem a todos os filmes cujo enredo possui uma história, uma trama. É preciso que se tenha em mente que essa classificação não é estanque e absoluta e que muitas produções podem se enquadrar concomitantemente nos dois tipos de filmes. Como exemplos, podemos citar alguns documentários que utilizam imagens reconstruídas (ficcionais), como Paris 1900 (1947, Vedrés). Como exemplo também int ressante, temos vários documentários que tratam da Revolução Russa que utilizam imagens do filme Outubro (1927, Eisenstein), alguns até sem lhe fazer referências, ao lado de imagens reais. Por outro lado, existem aqu les filmes de ficção que se utilizam de imagens reais, a exemplo de O homem de mármore (1977, Wadja) ou do mais recente JFK: a pergunta que não quer calar (1991, Oliver Stone). É importante ainda diferen históricos" dos filmes que tratam de acontecimentos, hoje históricos, mas que no momento de sua produção lhes eram contemporâneos. Esses filmes podem ser perfeitamente utilizados enquanto recursos didáticos, mas não podemos lhes atribuir a condição de discurso histórico. Por exemplo, um documentário produzido no bojo de uma guerra, com imagens do conflito, não se constitui em um "filme histórico", mesmo que, atua mente, possua um valor histórico. No entanto, um d cumentário produzido na década de 1970, utilizando as mesmas imagens, é um "filme histórico". Uma das características fundamentais do "filme histór co" tradicional, principalmente o hollywoodiano é o mais difundido e popular e cujo modelo se estende, em maior ou menor grau, a outros centros de produção que por ele são direta ou indiretamente influenciados , é a primazia dada à emoção em detrimento do aspecto racional.(6) Isso ocorre, como bem argumenta Monte de, devido à presença dominante do "espetáculo" no universo cinematográfico.(7) Esse fato, muitas vezes, acaba por dar ênfase a aspectos pitorescos do passado e Textos e Documentos ssimilhança com o fenôme- Mas, sob a denominação de "filmes históricos", coexis- tem numerosos tipos de filmes que se diferenciam bas- tante quanto ao seu conteúdo, forma e suas possibilida- des de tratamento e utilização. Isso gera uma necessi- dade de se criar uma classificação para os "filmes histó- ricos". A primeira e mais geral classificação, por nós proposta, dos "filmes históricos" consiste na diferencia- documentários. Os do- jo enredo não se baseia numa trama representativa (com atores representando personagens históricos), mas no relato, na descrição ou na análise de um acontecimento histórico. Em geral, esses filmes são realizados através de montagens de de documentos filmados e de ce- nas do presente, que possuem um texto de fundo nar- rado e são, muitas vezes, intercaladas por entrevistas realizadas contemporaneamente à produção do filme. documentários correspondem a todos os filmes uma história, uma trama. É preciso que se tenha em mente que essa classificação não é estanque e absoluta e que muitas produções podem se enquadrar concomitantemente nos dois tipos de filmes. Como exemplos, podemos citar alguns documentários imagens reconstruídas (ficcionais), como Paris 1900 (1947, Vedrés). Como exemplo também inte- ressante, temos vários documentários que tratam da Revolução Russa que utilizam imagens do filme Outubro (1927, Eisenstein), alguns até sem lhe fazer referências, o lado de imagens reais. Por outro lado, existem aque- les filmes de ficção que se utilizam de imagens reais, a exemplo de O homem de mármore (1977, Wadja) ou do mais recente JFK: a pergunta que não quer calar (1991, Oliver Stone). É importante ainda diferenciar os "filmes históricos" dos filmes que tratam de acontecimentos, hoje históricos, mas que no momento de sua produção lhes eram contemporâneos. Esses filmes podem ser perfeitamente utilizados enquanto recursos didáticos, condição de discurso histórico. Por exemplo, um documentário produzido no bojo de uma guerra, com imagens do conflito, não se constitui em um "filme histórico", mesmo que, atual- mente, possua um valor histórico. No entanto, um do- da de 1970, utilizando as mesmas imagens, é um "filme histórico". Uma das características fundamentais do "filme históri- co" tradicional, principalmente o hollywoodiano — que é o mais difundido e popular e cujo modelo se estende, outros centros de produção que por ele são direta ou indiretamente influenciados — , é a primazia dada à emoção em detrimento do aspecto racional.(6) Isso ocorre, como bem argumenta Monter- de, devido à presença dominante do "espetáculo" no ráfico.(7) Esse fato, muitas vezes, acaba por dar ênfase a aspectos pitorescos do passado e por facilitar a manipulação ideológica do espectador. Uma outra característica dos "filmes históricos" é a pr sença da ideologia de representação burguesa, herdada dos modelos renascentistas, que se baseia na perspect va central como ponto chave para a construção de uma linguagem linear. Esse modelo, mesmo que se tenha mantido dominante ao longo do século, foi duramente contestado por diversos movimentos cinematográf sendo, dentre estes, o surrealista aquele que mais se opôs, apresentando uma proposta de cinema inteir mente nova, inclusive no âmbito do cinema histórico. Uma outra questão de suma importância que deve ser levantada ao se abordar os "filmes históri to à sua relação com a história escrita. Teriam os "filmes históricos" autonomia em relação à historiografia escr ta? Seriam eles criadores de um saber histórico científ co específico? Essa é uma questão bastante polêmica e difícil de ser respondida até as últimas conseqüências. Para Ferro, esses filmes contribuem para a difusão dos conhecimentos históricos (função pedagógica), mas pouco intervêm como contribuição "científica" do cin ma para a inteligibilidade dos fenômenos históricos. Constituem uma transcrição cinematográfica de uma visão histórica que foi concebida por outros. Ele minim za o valor do filme como discurso sobre o passado afi mando que "nos filmes que tratam do passado, nosso interesse não está, particularmente, na sua represe ção do passado, mas na escolha dos temas, nos gostos da época, nas necessidades de produção, nos lapsos do criador".(8) Ao mesmo tempo, Ferro acaba por valorizar a função de documento primário dos filmes, quando diz que o historiador deve"partir da ima Não buscar nelas somente ilustração, confirmação ou o desmentido de outro saber que é o da tradição escr ta".(9) Já R. Rosenstone afirma o oposto: "o cinema ao assumir tarefas da História: narrar, explicar e inte pretar o passado —, nos diz coisas muito distintas das que figuram nos livros".(10) Este canteiro parece estar totalmente aberto à investigação. Os documentários Os documentários, não obstante a sua aparente objet vidade, também são representações sobre o passado e como tais devem ser tratados. A seleção do tema, dos fatos abordados, das imagens e o seu encadeamento, a música utilizada, o conteúdo do texto narrado e a sua inserção, tudo isso faz parte do universo de subjetivid de presente no filme, que deve ser abordado à luz da relação passado-presente. A aparência de objetividade e de neutralidade dos d cumentários acaba por facilitar a sua utilização prop gandística que cria seus próprios mecanismos de ind ção, ocultação e falsificação dos fenômenos históricos, aos quais o historiador deve estar muito atento. A fals ficação das imagens nos documentários, durante o séc lo XX, foi um instrumento de manipulação bastante cliohistoria@uol.com.br por facilitar a manipulação ideológica do espectador. Uma outra característica dos "filmes históricos" é a pre- sença da ideologia de representação burguesa, herdada dos modelos renascentistas, que se baseia na perspecti- va central como ponto chave para a construção de uma linguagem linear. Esse modelo, mesmo que se tenha mantido dominante ao longo do século, foi duramente contestado por diversos movimentos cinematográficos, sendo, dentre estes, o surrealista aquele que mais se opôs, apresentando uma proposta de cinema inteira- mente nova, inclusive no âmbito do cinema histórico. Uma outra questão de suma importância que deve ser levantada ao se abordar os "filmes históricos" diz respei- to à sua relação com a história escrita. Teriam os "filmes históricos" autonomia em relação à historiografia escri- ta? Seriam eles criadores de um saber histórico científi- co específico? Essa é uma questão bastante polêmica e spondida até as últimas conseqüências. Para Ferro, esses filmes contribuem para a difusão dos conhecimentos históricos (função pedagógica), mas pouco intervêm como contribuição "científica" do cine- ma para a inteligibilidade dos fenômenos históricos. tuem uma transcrição cinematográfica de uma visão histórica que foi concebida por outros. Ele minimi- za o valor do filme como discurso sobre o passado afir- mando que "nos filmes que tratam do passado, nosso interesse não está, particularmente, na sua representa- ção do passado, mas na escolha dos temas, nos gostos da época, nas necessidades de produção, nos lapsos do criador".(8) Ao mesmo tempo, Ferro acaba por valorizar a função de documento primário dos filmes, quando diz que o historiador deve "partir da imagem, das imagens. Não buscar nelas somente ilustração, confirmação ou o desmentido de outro saber que é o da tradição escri- ta".(9) Já R. Rosenstone afirma o oposto: "o cinema — ao assumir tarefas da História: narrar, explicar e inter- diz coisas muito distintas das que figuram nos livros".(10) Este canteiro parece estar totalmente aberto à investigação. Os documentários, não obstante a sua aparente objeti- vidade, também são representações sobre o passado e vem ser tratados. A seleção do tema, dos fatos abordados, das imagens e o seu encadeamento, a música utilizada, o conteúdo do texto narrado e a sua inserção, tudo isso faz parte do universo de subjetivida- de presente no filme, que deve ser abordado à luz da A aparência de objetividade e de neutralidade dos do- cumentários acaba por facilitar a sua utilização propa- gandística que cria seus próprios mecanismos de indu- ção, ocultação e falsificação dos fenômenos históricos, storiador deve estar muito atento. A falsi- ficação das imagens nos documentários, durante o sécu- lo XX, foi um instrumento de manipulação bastante CLIO História - Textos e Documentos utilizado, sobretudo nos contextos bélicos. Durante as duas Grandes Guerras, por exemplo, muitas imagens falsas de vitórias dos aliados e derrotas dos adversários foram apresentadas aos exércitos de ambos os lados como instrumento de manipulação. Todo documentário, para além dos fatos históricos na rados, cuja veracidade deve ser avaliada, revela uma visão da História e possui uma interpretação para o objeto histórico sobre o qual se debruça. E estes pontos devem ser detectados e analisados pelo historiador. Muitas vezes, um documentário contém um texto e tremamente verdadeiro no que consiste à narração dos fatos, mas a interpretação geral que este dá ao fenôm no se encontra comprometida. Os documentários podem ser úteis ao professor de História, tanto àquele que deseja apenas aproveitar o potencial narrativo da linguagem cinematográfica qua to àquele, principalmente, que deseja polemizar sobre as causas e o sentido de um acontecimento histórico. Todos esses elementos não minimizam o valor doc mental intrínseco (como registro direto de um fato hi tórico real) das imagens apresentadas em um docume tário, sobretudo aquelas que foram gravadas no bojo do acontecimento narrado. No entanto, o valor do doc mentário pode ficar comprometido pela forma como as imagens são apresentadas e por todos os elementos subjetivos que acompanham a sua produção. Ao longo do século XX, duas correntes cinematográficas se manifestaram na produção de documentários: uma delas via nas imagens apenas um testemunho direto de um acontecimento histórico, considerando que o seu valor se limitava à função de registro. Como exemplo desse tipo de perspectiva, podemos citar o movimento cinematográfico russo, encabeçado por Dziga Vertov, denominado "cinema-olho", que influenciou muitos outros cineastas no mundo; a outra considerava a câm ra apenas como instrumento para a criação de um di curso histórico próprio, exterior ao conteúdo intrínseco das imagens. Esta última pode ser encontrada, por xemplo, na produção do cineasta Jean Vigo. Os não-documentários Existe uma infinidade de filmes não-documentários que se reportam ao passado. Todavia, eles se difer tante uns dos outros, fato que dificulta que lhes seja dado um tratamento científico e sistemático. É pensa do nessa dificuldade que propomos uma classificação para os "filmes históricos" não-documentários, baseada em critérios que consideram o conteúdo histórico dos mesmos e que compreende os seguintes tipos: Reconstrução histórica: corresponde aos filmes que abordam acontecimentos históricos cuja existência é comprovada pela historiografia e que contam com a presença de personagens históricos reais Textos e Documentos utilizado, sobretudo nos contextos bélicos. Durante as duas Grandes Guerras, por exemplo, muitas imagens de vitórias dos aliados e derrotas dos adversários foram apresentadas aos exércitos de ambos os lados Todo documentário, para além dos fatos históricos nar- rados, cuja veracidade deve ser avaliada, revela uma ória e possui uma interpretação para o objeto histórico sobre o qual se debruça. E estes pontos devem ser detectados e analisados pelo historiador. Muitas vezes, um documentário contém um texto ex- tremamente verdadeiro no que consiste à narração dos mas a interpretação geral que este dá ao fenôme- Os documentários podem ser úteis ao professor de História, tanto àquele que deseja apenas aproveitar o potencial narrativo da linguagem cinematográfica quan- te, que deseja polemizar sobre as causas e o sentido de um acontecimento histórico. Todos esses elementos não minimizam o valor docu- mentalintrínseco (como registro direto de um fato his- tórico real) das imagens apresentadas em um documen- uelas que foram gravadas no bojo do acontecimento narrado. No entanto, o valor do docu- mentário pode ficar comprometido pela forma como as imagens são apresentadas e por todos os elementos subjetivos que acompanham a sua produção. as correntes cinematográficas se manifestaram na produção de documentários: uma delas via nas imagens apenas um testemunho direto de um acontecimento histórico, considerando que o seu valor se limitava à função de registro. Como exemplo ectiva, podemos citar o movimento cinematográfico russo, encabeçado por Dziga Vertov, olho", que influenciou muitos outros cineastas no mundo; a outra considerava a câme- ra apenas como instrumento para a criação de um dis- róprio, exterior ao conteúdo intrínseco das imagens. Esta última pode ser encontrada, por e- xemplo, na produção do cineasta Jean Vigo. documentários que se reportam ao passado. Todavia, eles se diferem bas- tante uns dos outros, fato que dificulta que lhes seja dado um tratamento científico e sistemático. É pensan- do nessa dificuldade que propomos uma classificação documentários, baseada údo histórico dos mesmos e que compreende os seguintes tipos: : corresponde aos filmes que abordam acontecimentos históricos cuja existência é comprovada pela historiografia e que contam com a presença de personagens históricos reais no seu enredo (interpretados por atores), cuja fidelidade é relativa e se modifica de um filme para outro. Não se trata apenas dos filmes em que se realiza uma reconstrução audiov sual do passado (o que dificilmente é levado às últimas conseqüências) ou mesmo dos fatos, mas também d queles em que são esboçadas interpretações históricas, utilizando fatos comprovadamente reais. Como exe plos de reconstruções históricas, podemos citar Outubro (1927, S. Eisenstein), A lista de Schindler (1993, S. Spi berg), Spartacus (1960, S. Kubrick), 1 paraíso (1992, Ridley Scott) ou A rainha Margot (1994, Patrice Chéreau). Biografia histórica: trata-se dos filmes que se debruçam sobre a vida de um indivíduo e as sua relações com os processos históricos. Na maior parte dos casos, esses filmes se limitam à abordagem da vida dos chamados "grandes homens", ou seja, aqueles indivíduos destac dos pela historiografia escrita e, principalmente, a trad cional. Como exemplos, citamos Napoleão (1927, Abel Gance), Cromwel (1970, Ken Hughes), Lamarca (1994, Sérgio Resende) ou Rosa Luxemburgo (1986, Margareth von Trotta). Filme de época: compreende aqueles filmes cujo ref rente histórico não passa de um elemento pitoresco e alegórico, e cujo argumento nada possui de sentido mais amplo do termo. São inúmeros os exe plos de filmes de época: Sissi (1955, Ernst Marishka), A amante do rei (1990, Axel Corti) ou Angélica e o rei (1965, Borderie). Mesmo assim, alguns deles podem possuir elementos interessantes pa principalmente aqueles em que existe uma preocupação formal maior com a reconstrução ambiental e dos co tumes, como é o caso de Ligações perigosas (1988, Ste ven Frears), por exemplo. Ficção histórica: abarca os filmes cujo enredo é ficcional, mas que, ao mesmo tempo, possui um sentido histórico real. Como exemplo deste tipo de filme, podemos citar O nome da rosa (1986, Jean- (1923, Eisenstein), A guerra do fogo (1981, Jean Annaud), Lili Marlene (1980, Fassbinder) etc. Filme-mito: são aqueles filmes que se debruçam sobre a mitologia e que podem conter elementos importantes para a reflexão histórica. Muitas vezes, o mito é apr sentado em paralelo a fenômenos históricos demos citar, por exemplo, El Cid (1961, Ant e A guerra de Tróia (1961, Giorgio Ferroni). Filme etnográfico: agrupa os filmes realizados com int resses científico-antropológicos. Como exemplo, pod mos citar a produção pioneira de Flaher esquimó). Adaptações literárias e teatrais são oriundos de uma adaptação de obras literárias e cliohistoria@uol.com.br (interpretados por atores), cuja fidelidade é relativa e se modifica de um filme para outro. Não se trata apenas dos filmes em que se realiza uma reconstrução audiovi- sual do passado (o que dificilmente é levado às últimas esmo dos fatos, mas também da- queles em que são esboçadas interpretações históricas, utilizando fatos comprovadamente reais. Como exem- plos de reconstruções históricas, podemos citar Outubro (1927, S. Eisenstein), A lista de Schindler (1993, S. Spil- artacus (1960, S. Kubrick), 1492: a conquista do paraíso (1992, Ridley Scott) ou A rainha Margot (1994, se dos filmes que se debruçam sobre a vida de um indivíduo e as sua relações com os Na maior parte dos casos, esses filmes se limitam à abordagem da vida dos chamados "grandes homens", ou seja, aqueles indivíduos destaca- dos pela historiografia escrita e, principalmente, a tradi- cional. Como exemplos, citamos Napoleão (1927, Abel romwel (1970, Ken Hughes), Lamarca (1994, Sérgio Resende) ou Rosa Luxemburgo (1986, Margareth : compreende aqueles filmes cujo refe- rente histórico não passa de um elemento pitoresco e alegórico, e cujo argumento nada possui de histórico no sentido mais amplo do termo. São inúmeros os exem- plos de filmes de época: Sissi (1955, Ernst Marishka), A amante do rei (1990, Axel Corti) ou Angélica e o rei (1965, Borderie). Mesmo assim, alguns deles podem possuir elementos interessantes para o historiador, principalmente aqueles em que existe uma preocupação formal maior com a reconstrução ambiental e dos cos- tumes, como é o caso de Ligações perigosas (1988, Stea- : abarca os filmes cujo enredo é ficcional, mas que, ao mesmo tempo, possui um sentido histórico real. Como exemplo deste tipo de filme, podemos citar -Jaques Annaud), A greve (1923, Eisenstein), A guerra do fogo (1981, Jean-Jaques Annaud), Lili Marlene (1980, Fassbinder) etc. : são aqueles filmes que se debruçam sobre a mitologia e que podem conter elementos importantes para a reflexão histórica. Muitas vezes, o mito é apre- sentado em paralelo a fenômenos históricos reais. Po- demos citar, por exemplo, El Cid (1961, Anthony Mann) e A guerra de Tróia (1961, Giorgio Ferroni). : agrupa os filmes realizados com inte- antropológicos. Como exemplo, pode- mos citar a produção pioneira de Flaherty (Nanouk, o daptações literárias e teatrais: engloba os filme que são oriundos de uma adaptação de obras literárias e CLIO História - Textos e Documentos teatrais do passado. Alguns exemplos são Germinal (1995, Claude Berri) , Luciola: o anjo pecador (1975, Alfredo Sternheim), Os miseráveis (1978, Gleal Joadan), Hamlet (1990, F. Zeffirelli), Henrique V (1945, Laurence Olivier), 1984 de Orwell (1984, Michael Readford). Como se pode ver, são inúmeros os tipos de "filmes históricos" e essa classificação poderia ser muito mais extensa caso este fosse o nosso objetivo. Essa classific ção, aqui, tem apenas o objetivo de exemplificar um pouco as possíveis diferenças dos "filmes históricos" que exigem, por sua vez, tratamentos diferenciados. É importante ressaltar ainda a discussão a referentes históricos nos quais se basearam os produt res do filme no momento da sua realização. Os refere tes históricos de um "filme histórico" podem ter várias origens: a historiografia escrita, a mitologia, o conhec mento histórico popular, uma pesquisa própria do cin asta e, o que é muito importante, sobretudo para o cinema dito comercial, a concepção da história (simból ca audiovisual e de conteúdo) do espectador sido modulada, ao longo da sua existência, pelos el mentos referenciais enunciados acima, mas também pelo próprio cinema que acaba, pelo processo de repet ção, criando modelos históricos específicos. O questionamento do "filme
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