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ÁREA DO DIREITO: Civil, Obrigações, Responsabilidade Civil Os fundamentos da responsabilidade civil: a culpa, o risco e a garantia Rogério Andrade Cavalcanti Araújo Procurador do Distrito Federal. Professor de Direito Civil do Uniceub. Advogado Resumo. A responsabilidade civil é dos mais tormentosos temas de direito privado, enfrentando, não raro, díspares soluções doutrinárias quanto à sua aplicação. A abordagem dos seus fundamentos, portanto, mostra-se adequada para a compreensão das hipóteses de incidência do instituto. Palavras chave: responsabilidade civil, responsabilidade objetiva, responsabilidade subjetiva, teoria da culpa, teoria do risco, responsabilidade contratual responsabilidade extracontratural. 1. INTRODUÇÃO A responsabilidade civil, em linhas gerais, refere-se às conseqüências provocadas por uma conduta humana que tenha redundado em dano para esferas jurídicas alheias1. A aparente simplicidade deste conceito encobre as dificuldades que sua aplicação prática pode revelar. Nesta esteira, quando uma lesão a direito decorre de conduta alheia, inúmeras são as questões levantadas: haveria algum instituto jurídico a tratar da eventual satisfação pelos danos sofridos? Como se poderia classificar o dever de se reparar prejuízos, ou seja, seria aplicável o conceito de obrigação primária e secundária para a espécie? A reparação dos danos teria como pressuposto a ilicitude da conduta alheia? Quais seriam, enfim, os fundamentos da necessidade de reparação dos prejuízos aqui tratados? A resposta a tais questões enceta o estudo da responsabilidade civil, ensejando a subseqüente abordagem de algumas suas espécies, entre as quais a responsabilidade civil objetiva e subjetiva. 2 A RESPONSABILIDADE CIVIL, SUA NATUREZA E A SUA RELAÇÃO COM A ILICITIDE 1 PONZANELLI, Giulio. La responsabilità civile. Milão: Il Mulino, 1992, p. 10. Fernando de Sandy Lopes Pessoa Jorge2 lembra que o termo responsabilidade implica a idéia de “responder, prestar contas”. Pode, portanto, a mencionada expressão assumir dois coloridos diversos: “a susceptibilidade de imputar, dum ponto de vista ético lato sensu, determinado acto e seus efeitos ao agente, e a possibilidade de fazer sujeitar alguém ou alguma coisa às conseqüências de certo comportamento.” Analisando-se a primeira acepção da expressão3, tem-se que esta se reveste de significado normativo, indicando a exigibilidade de que o agente preste contas, apresente justificativa para o seu ato, restando clara, nestes termos, a necessidade de que o causador de um dano, para responder por ele, tenha que ser livre, racional e atue no pleno gozo de suas faculdades mentais – vale dizer – deve ser imputável. Em sua segunda vertente, porém, assume o significado de atribuição de conseqüências danosas a alguém, assumindo feição nitidamente econômica e factual. Convém ressaltar, de toda a sorte, que as duas utilizações da expressão responsabilidade imbricam-se, defluindo, via de regra, a segunda delas da primeira4. Qual seria, pois, o mecanismo da responsabilidade civil? Seria um dever imputável a alguém? Seria uma mera regra de atribuição? O que prevaleceria? Útil que se ocupe, desta feita, das respostas a tais questionamentos. 2.1 A natureza jurídica da responsabilidade civil: dever primário e dever secundário, obrigação e responsabilidade. Dever jurídico, segundo Sérgio Cavalieri Filho5, seria “a conduta externa de uma pessoa imposta pelo Direito Positivo por exigência da convivência social.” Em apertada síntese, sustenta a existência de deveres jurídicos primários e secundários. Aqueles, quando violados, engendrariam, conseqüentemente, a necessidade de reparação dos prejuízos causados, por meio de um novo dever jurídico, desta feita o secundário. Assim, a obrigação corresponderia ao dever jurídico primário, enquanto a responsabilidade seria um dever jurídico secundário6. 2 PESSOA JORGE, Fernando de Sandy Lopes. Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 1995, p. 34. 3 Op. cit., p. 34. 4 Op. cit., p. 35. 5 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 1. 6 Op. cit., p. 2. A fórmula esboçada mostra-se engenhosa. Em realidade não se afasta muito do entendimento de José de Aguiar Dias7, quando afirma: “Digamos, então, que responsável, responsabilidade, assim como, enfim, todos os vocábulos cognatos, exprimem idéia de equivalência de contraprestação, de correspondência. É possível, diante disso, fixar uma noção, sem dúvida ainda imperfeita, de responsabilidade no sentido de repercussão obrigacional (não interessa investigar a repercussão inócua) da atividade do homem. Como esta varia até o infinito, é lógico concluir que são também inúmeras as espécies de responsabilidade, conforme o campo em que se apresenta o problema: na moral, nas relações jurídicas, de direito público ou privado.” Adiante arremata8: “MARTON estabelece com muita lucidez a boa solução, quando define responsabilidade como a situação de quem, tendo violado uma norma qualquer, se vê exposto às conseqüências desagradáveis decorrentes dessa violação, traduzidas em medidas que a autoridade encarregada de velar pela observação do preceito imponha, providências essas que podem, ou não estar previstas.” Restaria, porém, uma questão a ser enfrentada: responsabilidade e obrigação são idéias que podem existir insuladas entre si, ou estariam inexoravelmente coligadas? José M. Lete del Río9, após apresentar as noções básicas do significado de débito (“relação de dever ou de dever cumprir”) e responsabilidade (relação de sujeição ou sbmissão de um sujeito ou coisa a um sacrifício patrimonial) cerra fileiras com os que entendem estarem inegavelmente imbricados os termos responsabilidade e obrigação:: 7 AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. Vol. 1. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1954, p. 6. 8 AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. Vol. 1. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1954, p.7. 9 LETE DEL RÍO, José M. Derecho de obligaciones – la relación obligatória en general. Vol. 1. 4 ed. Madri: Tecnos, 2000, p. 29/30. Tradução livre do texto: “La teoria de la distinción del débito y la responsabilidad olvida que el concepto plenamente desenvuelto de la obligación supone un vínculo o relación en el que ambos elementos (débito y responsabilidad) concurren siempre, y no son separables más que conceptualemente, para explicar mejor el fenómeno obligatório.En nuestro Derecho, el artículo 1.911 del C.c. establece taxativamente y con carácter general que << del cumplimiento de las obligaciones responde el dedudor con todos sus bienes, presentes y futuros>>; lo que quiere decir que el deudor responde porque debe y que no existe nunca responsabilidad sin deuda (cfr. sentencia de 2 de abril de 1990). Por ello tiene razón Castán, cuando afirma que << la distinción entre la deuda y la responsabilidad no tiene gran aplicación práctica ni debe ser sacada de sus límites racionales>>. “A teoria da distinção do débito e da responsabilidade olvida que o conceito plenamente desenvolvido da obrigação supõe um vínculo ou relação em que ambos os elementos (débito e responsabilidade) concorrem sempre e não separáveis mais que conceitualmente, para explicar melhor o fenômeno obrigacional. Em nosso Direito, o artigo 1.911 do C.c. estabelece taxativamente e com caráter geral que <<pelo cumprimento das obrigações responde o devedor com todos os seus bens, presentes e futuros>>; o que quer dizer que o devedor responde porquedeve e que não existe nunca responsabilidade sem dívida (cfr. sentença de 2 de abril de 1990). Por isso tem razão Castán, quando afirma que << a distinção entre a dívida e a responsabilidade não tem grande aplicação prática, nem deve ser extrapolada de seus limites naturais>>.” No direito brasileiro, porém, conclui Orosimbo Nonato10 em sentido diverso: “A literatura jurídica nacional deixa de oferecer escote copioso ao tema. Alguns dos nossos juristas modernos, entretanto, o têm versado e ALCINO PINTO FALCÃO o considera o mais abstrato do direito de obrigação, tratando-se da separabilidade ou inseparabilidade dos elementos mencionados – Schuld e Haftung. Historicamente, pelo menos no velho direito germânico, em face das pesquisas acima aludidas, parece racionável concluir que a distinção se estabeleceu. Mas essa circunstância não parece ter grande alcance, ou melhor, alcance decisivo no plano dogmático. ALCINO PINTO FALCÃO, no citado estudo, admite a concepção dualista, forte em exemplos da obrigação solidária, do falso procurador e do terceiro que presta garantia real por dívida alheia, por débito a que é estranho, nos termos do art. 764 do Código Civil, verbis: ‘Salvo cláusula expressa, o terceiro que presta garantia real por dívida alheia, não fica obrigado a substituí-la ou reforça-la, quando, sem culpa sua, se perca, deteriore, ou desvalie.’ 10 NONATO, Orosimbo. Curso de obrigações (generalidades – espécies). Vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 124. Este último caso parece o único decisivo e incontendível. E é singular, solus peregrinus no nosso Código Civil. Exclui-se o da obligatio naturalis, por se tratar de figura jurídica indefinida e em que se torna viável, onipatente a imperfeição do vínculo. (...) Pode, na real verdade, o terceiro garantir com coisa sua dívida alheia, dívida de terceiros – ‘dare autem quis hypothecam potest, sive pro sua obligationem sive pro aliena’. Neste último caso, responsável, é, não porém, devedor, em seus próprios termos do citado art. 764. Sua responsabilidade existe sem débito seu, e incide em parte destacada de seu patrimônio. (...) Assim, no plano doutrinário e abstrato, os dois conceitos – débito e responsabilidade – Schuld e Haftung não se mostram insécteis, não se apresentam irremediavelmente inseparáveis. E o nosso direito positivo recebe essa separação, pelo menos em um caso.” O artigo 764 do Código de 1916, citado por Orosimbo Nonato, corresponde ao atual artigo 1427 do Código Civil. Assim as conclusões esboçadas no mencionado texto ainda se mostram atuais. Responsabilidade e obrigação, portanto, são conceitos, ao menos teoricamente, cindíveis. Sendo, portanto, institutos distintos, é possível imaginar a responsabilidade como uma obrigação derivada, assistindo razão a Sérgio Cavalieri Filho11, quando afirma: “Alguns autores sustentam que, excepcionalmente, haverá responsabilidade sem obrigação, como no caso da fiança e outras situações (Orlando Gomes, Obrigações, 11a ed., Forense, p. 12; Álvaro Villaça Azevedo, Teoria geral das obrigações, 5a ed., Ed. RT, p. 37). Tenho para mim que a questão é de enfoque, pois, como veremos, além da responsabilidade direta, pessoal, por fato próprio, há também a responsabilidade indireta, pelo fato de outrem. Na primeira – responsabilidade direta – o agente responde pelo descumprimento de obrigação pessoal; na segunda – responsabilidade indireta – o responsável responde pelo descumprimento de obrigação de outrem, de sorte que a responsabilidade, mesmo neste caso, corresponde ao descumprimento de uma 11 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 1. obrigação. É o que ocorre com o fiador que responde pelo inadimplemento do afiançado em relação à obrigação originária por ele assumida.” Assentada, pois, a noção de responsabilidade como uma obrigação derivada, oportuno indagar-se se esta obrigação sempre coincidiria com a ocorrência de um ato ilícito. 2.2 Atos Ilícitos A expressão “ato ilícito” comporta hoje uma multiplicidade de significados, todos guardando entre si um ponto comum: a contrariedade ao Direito. Não obstante as divergências conceituais que sobre o termo recaem, a opção por sua utilização, ao invés de outros assemelhadas, como por exemplo “delito”, reflete uma escolha ideológica, nascida no Iluminismo, como assevera Hans Hattenhauer12, de se criar um superconceito aplicável às atuações livres do homem, por meio das quais este contrariava o ordenamento vigente: “A partir de então, a teoria do ato como realização da liberdade humana é a pedra angular do direito delitual. O homem pode decidir livremente de que modo deseja alterar seu entorno, porém, como o ato é liberdade feita realidade, tem que responder por ele, e esta responsabilidade culmina no dever de evitar por completo as conseqüências danosas de um inadequado uso da liberdade. Se o ato é uma afirmação da liberdade, será <<ilícito>> onde começa a liberdade dos outros. Por outro lado, há que se regular com exatidão as conseqüências do ato ilícito, de modo que um exagero nas sanções não limite inadequadamente a liberdade do agente, deixando-o prostrado na inação. O que traduzia na prática kantiana do Direito como organização e delimitação do âmbito de liberdade. A fronteira entre ato lícito e ilícito devia ser reconhecível para o leigo no Direito, o que conferia importância prática à lei proibitiva como pedra de toque para a proteção tanto da liberdade alheia como dos direitos subjetivos.” 12 HATTENHAUER, Hans. Conceptos fundamentales del derecho civil. Barcelona: Ariel Derecho, 1987, p. 100/101. Tradução livre de A partir de entonces, la teoría del acto como realización de la libertad humana, es la piedra angular del Derecho delictual. El hombre puede decidir libremente de qué modo desea alterar su entorno, pero, como el acto es libertad hecha realidad, hay que responder de él, y esta responsabilidad culmina en el deber de evitar por completo las consecuencias dañosas de un inadecuado uso de la libertad. Si el acto es una afirmación de la libertad, será <<ilícito>> donde comience la libertad de los demás. Por otra parte, hay que regular con exactitud las consecuencias del acto ilícito, de modo que una exageración de las sanciones no limite inadecuadamente la libertad del actuante dejándole postrado en la inacción. Lo que traducía en la práctica kantiana del Derecho como organización y delimitación del ámbito de libertad. La frontera entre acto lícito e ilícito debía ser reconocible para el lego en Derecho, lo que confería importancia práctica a la ley prohibitiva como piedra de toque para la protección tanto de la libertad ajena como de los derechos subjetivos. Assentadas as bases ideológicas do conceito, nem por isso se pode afirmar estarem superadas as divergências quanto ao seu correto significado. Hugo R. Zuleta13 aponta algumas divergências quanto à definição de ato ilícito. Na tradição jusnaturalista, assim doutrina, atribuir ao ato o título de ilícito seria uma forma de adjetiva-lo como mau, podendo este mau ser contrário ao direito natural (mala in se) ou pode haver sido obstado pela ordem social positiva (mala prohibita). Os positivistas, ao seu turno, apenas reputariam ilícitos os atos proibidos pelo ordenamento jurídico, ao contrário do posicionamento que reputa acertado, ou seja, a do ato ilícito como sanção, porquanto seria inviável, pelo ponto de vista lógico, admitir-se a possibilidade de contradição lógica entre uma norma que impõe uma conduta e o comportamento,de fato, dos seus destinatários. Assim, ilícito seria o ato, teoricamente previsto no ordenamento, como pressuposto da aplicação de uma sanção. Os problemas não se exaurem aí. Foram arroladas, entre tantos, três possíveis conceitos de ilicitude. Não se pode duvidar que a definição que se impôs foi aquela que identifica como um dos elementos da ilicitude a contrariedade ao direito. Esta idéia, inclusive, inspira a legislação brasileira, quando, no artigo 186 do Código Civil, se afirma que pratica ato ilícito todo aquele que “viola direito” alheio. Mas, como assevera Fernando de Sandy Lopes Pessoa Jorge14, ainda quando se trabalha com esta definição, ou seja, de ilicitude como contrariedade ao direito, importa reconhecer que ela se divide em duas correntes: a subjetivista e a objetivista. A última reconhece a ilicitude na automática contrariedade ao ordenamento, ao passo que a primeira o faz somente quando realizado um juízo de valor, por meio do qual se reconhece como ilícita a conduta derivada de ato humano livre e consciente. Explana ainda Fernando de Sandy Lopes Pessoa Jorge15 que abraçar a teoria objetivista importa reconhecer, na norma, um caráter meramente valorativo. Assim, quando um amental deliberadamente ceifasse vida alheia, sua conduta feriria uma valor caro ao ordenamento. Seu ato, para os objetivistas, seria, portanto, ilícito pois estaria por ferir um valor consagrado na lei. 13 ZULETA, Hugo R. Ilícito. In: GARZÓN VALDÉS, Ernesto; LAPORTA, Francisco J (coord). El derecho y la justicia. 2 ed. Madrid: Trotta, 2000, p. 334-340. 14 PESSOA JORGE, Fernando de Sandy Lopes. Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 1995, p. 63. 15 PESSOA JORGE, Fernando de Sandy Lopes. Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 1995, p. 66. Contudo, prossegue o Autor, este juízo de valor não seria suficiente, pois a ele, outro deveria se seguir, desta feita relativo ao agente (a se averiguar, por meio da análise de sua conduta livre e consciente, o atendimento ou não da função imperativa da norma). Na mesma esteira, a diferenciar os parâmetros objetivo e subjetivo de reconhecimento da ilicitude, pode-se lembrar das lições Jorge Mosset Iturraspe16, quando afirma: “c) Antijuridicidade subjetiva. É um critério diferente, oposto pode-se dizer, enquanto na busca a que estamos empenhados, abandona o atalho da desaprovação do ato ou fato, para avançar sobre a desaprovação da conduta do autor ou agente. A antijuridicidade se encontra na culpa, a famosa faute da doutrina francesa. As culpas ou os erros de conduta não aparecem, está claro, tipificados; são os juízos os encarregados de julgar de acordo com modelos de condutas por eles construídos. O que procede, afirmam os que apóiam esta interpretação, é perguntar-se qual é o tipo de ser humano e de conduta humana que o juiz deve ter em conta como modelo de referência, quando tenha que formar critério sobre a existência ou inexistência da culpa. d) Antijuridicidade objetiva. Para este critério, que com o qual partilhamos, o juízo de aprovação ou de desaprovação e a conseguinte condenação a reparar atenta exclusivamente ao ato ou fato e, em particular, a seu resultado; o dano causado. A antijuridicidade não mira o agente, senão a vítima, daí que se tenha dano injusto ainda quando se interceda involutariamente no obrar ou bem falte a culpabilidade. A idéia central é que, ao menos como regra, todo dano é injusto enquanto lesiona um interesse merecedor de tutela e, por sua vez, viola o genérico dever jurídico de não causar dano a outro, alterum non laedere” 16 ITURRASPE, Jorge Mosset. In: CARLUCCI, Aida Kemelmajer de (coord). Responsabilidad civil. Buenos Aires: Hammurabi, 1993, p. 61/62. Tradução livre de “c) Antijuridicidad subjetiva. Es um critério diferente, opuesto puede decirse, em cuanto em la búsqueda a que estamos empenados, abandona el Sendero de la desaprobación del acto o hecho, para avanzar sobre la desaprobación de la condutcta del autor o agente. La antijuridicidad se encuentra en la culpa, la famosa faute de la doctrina francesa. Las culpas o los errores de conducta no aparecen, claro está, tipificados; son los jueces los encargados de juzgar de acuerdo con modelos de conductas por ellos construidos. Lo que procede, afirman los sostenedores de esta interpretación, es preguntar-se cuál es el tipo de ser humano y de conducta humana, que el juez debe tener en cuenta como modelo de referencia, cuando tenga que formar criterio sobre la existencia o inexistencia de culpa. (…). d) Antijuridicidad objetiva. Para este criterio, que compartimos, el juicio de aprobación o de desaprobación y la consiguiente condena a reparar, atiende exclusivamente al acto o hecho y, en particular a su resultado, el daño causado. La antijuridicidad no mira al agente sino a la víctima; de ahí que haya daño injusto aun cuando medie involuntariamente en el obrar o bien falte la culpabilidad. La idea central es que, al menos como regla, todo daño es injusto en cuanto lesiona un interés merecedor de tutela y, a la vez, viola el genérico deber jurídico de no causar daño a otro, alterum non laedere. Desenhados, assim, os conceitos objetivista e subjetivista de ato ilícito, convém averiguar sua aceitação doutrinária. Há aqueles, como Aurelio Candian17, nitidamente influenciados pela corrente subjetivista: “69. Ato ilícito: definição. Ato ilícito é o que, entre os atos jurídicos, tem por conteúdo ou evento a lesão injusta de um interesse alheio. A indicação de seus pressupostos e elementos constitutivos tem sido feita ao se tratar do ato jurídico em geral e, portanto, a respeito dele me remeto pura e simplesmente a aquela explicação. 70. A regra geral: consciência e vontade como pressuposto da imputabilidade. Também para o ato ilícito serve o princípio de que a “ação”, ou seja, a energia em atuação do sujeito ativo, compõe-se por um elemento físico e por um elemento psíquico que pressupõe a consciência e a vontade.” Na mesma esteira segue José de Oliveira Ascensão18: “III – O ato pode ser ilícito. A ilicitude representa uma qualificação fundamental. Mas não se basta com a mera desconformidade à lei. Supõe uma posição subjetiva do agente, negativamente valorada pela ordem jurídica. Essa posição negativa traduz-se no dolo ou na negligência. Se o agente se não encontrar numa destas situações pode ter atuado desconformemente ao previsto pela ordem jurídica, mas não praticou ato ilícito. 17 CANDIAN, Aurelio. Instituciones de derecho privado. México: Uteha, 1961, p. 114. Tradução livre de “69. Acto ilícitos: definición. Acto ilícito es el que, entre los actos jurídicos, tiene por contenido o evento la lesión injusta de um interes ajeno. La indicación de sus presupuestos y elementos constitutivos há sido hecha al tratar e lacto jurídico em general y, por lo tanto, respecto a esto me remito pura y simplemente a aquella explcicaión. 70. La regla general: conciencia y voluntad como presupuesto de la imputabilidad. También para el acto ilícito sirve el principio de que la “acción”, o sea, la energia em actuación del sujeto agente, consta de um elemento físico y de um elemento psíquico que presupone la conciencia y la voluntad. Pero el principio no sirve ilimitadamente em el derecho privado; del fundamento y de la identidad de las situaciones que hacen excepción, conviene aqui hablar rapidamente. 18 ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 70. O ato ilícito ocupalugar central na responsabilidade civil, proporcionando a indenização de perdas e danos, e na responsabilidade criminal, pois só é crime a ação tipicamente ilícita.” Pontes de Miranda19, ao seu turno, não parece aderir incondicionalmente à teoria subjetiva, mormente ao admitir a existência da categoria dos atos-fatos ilícitos e dos fatos jurídicos, em sentido estrito, ilícitos: “1. Definição. Os atos ilícitos lato sensu são atos humanos que entram no mundo jurídico para serem superadas as suas conseqüências danosas: ou pela indenização do dano extranegocial (reparação), ou pelas caducidades, ou ela prestação (o que também repara) do equivalente, ou outra execução. O que se exige, a todos, além do ato (e às vezes da culpa) é a contrariedade à lei. Ora, ninguém é permitido ignorar a lei (...); porque, se se ignora a lei, nem por isso se deixa de infringi-la: o ato é ilícito, objetivamente; o elemento culpa, se aparece, não diz respeito à lei, mas ao ato em si. Por isso mesmo, se se exige culpa, no suporte fático em que está o ato do absolutamente incapaz, há a contrariedade ao direito, falta a culpa, que a não-imputabilidade do agente exclui. O ato do absolutamente incapaz contra a lei é contrário ao direito; o seu ato não é imputável, nem culposo. No elemento culpa, e não no elemento ilicitude ou contrariedade a direito, é que está a falta de elemento do suporte fático.” Esta mesma insurgência quanto ao conceito subjetivista parece ser compartilhado por parte da doutrina italiana. Pietro Rescigno20 assim enfrenta a questão: 19 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Vol. 2. Campinas: Bookseller, 2000, p. 247. 20 RESCIGNO, Pietro. Manuale del diritto privato italiano. 11 ed. Nápoles: Jovene, 1997, p. 750/751. Tradução livre de: “Intanto la norma adopera a proposito dell’illecito la parola <<fatto>> che la dottrina corrente ritiene debba essere corretta e sostituita col termine <<atto>>, proprio dei fatti umani sorretti da volontà e consapevolezza del soggetto.(...) .Ma l’uso del termine fatto, nella norma generale che apre il titolo <<dei fatti illeciti>> e in talune norme successive (<<fatto illecito>> negli artt. 2048, 1o co. e 2049, <<fatto dannoso>> negli artt. 2045, 2046, 2055, 1o co.), risponde in verità ad una più correta considerazione dell’intera categoria dei fatti produttivi di responsabilità. Quest’ultima, intesa come dovere di riparare il danno, no deriva sempre e solamente da fatti della persona compiuti com la previsione e la volontà delle conseguenze (dolo), o addebitabili a negligenza (colpa). Nell’ambiente sociale e nel sistema delle relazioni economiche quali erano conosciuti in epoche passate, la responsabilità per fatto illecito poteva riportarsi nella normalità dei casi al dolo o alla colpa del soggetto; ma ora i mutati rapporti tra gli uomini, il moltiplicarsi delle attività e lo sviluppo della técnica hanno accresciuto il numero e la misura di danni che non sono riconducibili al fato volontario di una persona. E continuare a parlare, come spesso si fa, in termini di colpa, com l’addebitare alla persona l’omessa o manchevole vigilanza sulle cose o i soggetti che egli dovrebbe controllare, si risolve in una ingiustificata insistenza su costruzioni e premesse che l’ordinamento stesso contraddice quando regola (a partire dall’art. 2047) una serie di fatti generatori di responsabilità che non rientrano negli stretti confini della iniziale previsione del <<fato doloso o colposo>>. “Enquanto isso, a norma serve-se, a propósito do ilícito, da palavra <<fato>> que a doutrina reputa deva ser corrigida e substituída pelo termo <<ato>>, próprio dos fatos humanos sustentados pela vontade e consciência do sujeito. (...) Mas o uso do termo fato, na norma geral que abre o título <<dos fatos ilícitos>> e em algumas normas sucessivas (<<fato ilícito>> nos artigos 2048, 1o, 2045, 2046, 2055, 1o par.), corresponde, em realidade, a uma mais correta consideração de toda a categoria de fatos produtores de responsabilidade. Esta última, relacionada a como se deve reparar o dano, não deriva sempre e somente de fatos da pessoa realizados com a previsão e a vontade de conseqüências (dolo), ou debitados à negligência (culpa). No ambiente social e no sistema das relações econômicas, como eram conhecidas em épocas passadas, a responsabilidade por fato ilícito podia reportar-se, na normalidade dos casos, ao dolo ou à culpa do sujeito; mas agora as mudanças nas relações entre os homens, o multiplicar-se de atividades, o desenvolvimento da técnica aumentaram o número e a medida de danos que não são reconduzíveis ao fato voluntário de uma pessoa. E continuar a falar, como freqüentemente se faz, em termos de culpa, como o culpar à pessoa a vigilância omitida ou faltante sobre as coisas ou sujeitos que ela deveria controlar, resolve-se numa injustificada insistência sobre construções e premissas que o próprio ordenamento contradiz quando regula (a partir do artigo 2047) uma série de fatos geradores de responsabilidade que não retornam aos estreitos limites da previsão incial do <<fato doloso ou culposo>>” Como, portanto, a questão pode ser compreendida no direito nacional? Possível averiguar-se a existência das duas concepções no Código Civil do Brasil. A corrente subjetivista estriba-se no artigo 186 do Código, que determina: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” Por outro lado, o artigo 187 consagra modalidade de ilicitude despojado da análise subjetiva da culpa ou do dolo: “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” Desta forma, ao permitir o Código Civil do Brasil a existência de modalidades de atos ilícitos desprovidos da análise da culpabilidade, pode-se concluir, ao menos em tese, assistir razão à corrente objetivista que aponta, para ilicitude, como verdadeiro elemento imprescindível, a contrariedade ao Direito, devendo a culpabilidade ser apontada como elemento integrante de algumas, mas não todas, espécies de antijuridicidade. Esta conclusão, todavia, destina-se apenas à fixação dos exatos limites do conceito de ilicitude. Definidos tais limites, impõe-se analisar se responsabilidade civil e ilicitude civil são idéias perfeitamente superponíveis. 2.3. Responsabilidade civil e ilicitude: seriam conceitos superponíveis? Fixados os limites conceituais da ilicitude, remanesce uma pergunta: seria este conceito e o de reparação civil superponíveis? A resposta a esta questão passa pela análise das conseqüências da prática de atos ilícitos e pelos fundamentos que ensejam a reparação civil. Não se pode olvidar que, no Brasil, a doutrina tradicional identificava o dever de indenizar como conseqüência imediata da ilicitude. Neste sentido, aponta Felipe Peixoto Braga Netto21: “A associação da eficácia dos ilícitos civis ao dever de indenizar é tão marcante que ofuscou os demais modos de eficácia. Não houve, em verdade, esforço de investigação para buscar outras eficácias possíveis, decorrentes de ilícitos civis. Imaginou-se, sem análise crítica, que o ilícito se define pelo efeito, e o tema como que se esgotou.” Outros, além do dever de indenizar, podem ser os efeitos da ilicitude. Esclarece Pontes de Miranda22, que a juridicização do ato ilícito pode levar à perda da eficácia de determinadonegócio jurídico (eficácia caducificante), à caracterização de infrações culposa de deveres contratuais, ou à nulificação de determinados atos. Pode-se, portanto, antever quatro grandes conseqüências para a ilicitude: a responsabilização civil, na hipótese de caracterização de danos morais ou materiais 21 BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilícitos civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 86. 22 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Vol. 2. Campinas: Bookseller, 2000, p. 241. decorrentes do ato antijurídico; a perda de um direito, pretensão ou ação (como a perda do poder familiar nas hipóteses descritas em lei); a retirada de eficácia dos negócios jurídicos quando a eles se segue a ilicitude contratual e; por fim, a nulidade decorrente do descumprimento de normas imperativas, sem que a lei comine outra sanção específica para a hipótese (artigo 166, VII do Código Civil). Ora, quatro sendo as possíveis conseqüências do cometimento de uma ilicitude, tem-se por inarredável conclusão de que este conceito e o de reparação civil não são superponíveis. Tal entendimento, todavia, demonstra apenas que onde existir ato ilícito, não haverá como conseqüência necessária a reparação civil, mas será que, quando houver responsabilidade civil, forçosamente como antecedente lógico haverá uma ilicitude? Esta indagação demanda o necessário estudo dos fundamentos da responsabilidade civil. 3. FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL 3.1. Conceito e importância dos fundamentos da responsabilidade civil Os contornos modernos da Responsabilidade Civil devem-se, em grande medida, aos esforços da doutrina e jurisprudência francesas, que, a partir do Artigo 1382 do Código de Napoleão, encetaram grande esforço interpretativo, redundando nos atuais regramentos da disciplina. Os principais estudos voltados para o tema buscaram, pois, encontrar os fundamentos da responsabilidade civil. A importância da compreensão do fundamento de um instituto se dá para que se delimite o regime de sua aplicação, como indica Judith Martins Costa23: O fundamento, seja de uma regra, de um instituto, ou de uma instituição é a razão que a justifica e pela qual se estabelece a medida de conformidade dessa regra com os ideais de Justiça vigentes em uma determinada sociedade, em um determinado momento de sua história. Em outras palavras, é a busca do porquê alguém que causa um prejuízo deve repará-lo, como mencionam Planiol e Ripert24 : 23 COSTA, Judith Martins. Os fundamentos da responsabilidade civil. Revista trimestral de jurisprudência dos estados. São Paulo: Velenich, 93, ano 15, out./91, p.31. 24 PLANIOL, Marcel; RIPERT, Georges. Tratado Practico de Derecho Civil Francês. t. VI. Havana: Cultural, 1946, p.665/666. Tradução livre do seguinte trecho: “476. El problema de la responsabilidad civil. – El problema de la responsabilidad civil debe plantearse sin subordinarlo al filosófico de la responsabilidad moral. El derecho descansa em la idea de que el hombre es responsable de sus actos y que, por consiguiente, el autor de um acto perjudicial no puede ampararse en uma concepción fatalista o “476. O problema da responsabilidade civil. – O problema da responsabilidade civil deve ser colocado sem subordiná-lo à questão filosófica da responsabilidade moral. O direito repousa na idéia de que o homem é responsável por seus atos e que, por conseguinte, o autor de um prejuízo não se pode amparar na concepção fatalista do mundo, a fim de livrar-se das conseqüências de sua atuação. (...) O problema da responsabilidade civil consiste em perguntar-se por que aquele que causa dano a outra pessoa deve repará-lo; essa investigação não é de interesse puramente teórico, já que o fundamento da responsabilidade influi necessariamente na extensão e condições da regra que haverá de seguir.” 3.2. A evolução da responsabilidade civil: da Antigüidade ao Código de Napoleão Louis Josserand afirma que a responsabilidade civil conheceu movimento pendular, dispensando, na Antigüidade, a noção de culpa, para abraçá-la novamente nos períodos históricos subseqëuentes (Derecho Civil – t. II, v I, Bosch Y CIA, Buenos Aires, 1950, p. 295) 25: “412. Evolução. – As soluções que se podem dar a este problema hão dividido e dividem cada vez mais as opiniões. Desde a origem do direito romano, até nossos dias, tem-se produzido uma dupla evolução, que se reduz a um movimento de vaivém; depois de se haver distanciado do ponto de partida, a teoria da responsabilidade tende a voltar a ele; dupla evolução que gravita ao derredor destas noções cardeais: a culpa e o risco; determinista del mundo a fin de librarse de lãs consecuencias de su actuación.(...) El problema de la responsabilidad civil consiste em preguntarse por qué el que causa um dano a outra persona debe repararlo; esa investigación no es de interes puramente teórico, ya que el fundamento de la responsabilidad influye necesariamente em la extensión y condiciones de la regla que habrá que seguir” 25 JOSSERAND, Louis. Derecho civil, t. II, v. I. Buenos Aires: Bosh y Cia, 1950, p. 295. Tradução livre do seguinte trecho: “412. Evolución – Las soluciones que pueden darse a este problema han dividio y dividen cada vez más las opiniones. Desde el origen del derecho romano hasta nuestros dias, se há producido uma doble evolución, que se reduce a um movimento de vaivé; después de haberse alejado del punto de partida, la teoria de la responsabilidad tiende a volver a él; doble evolución que gravita em derredor de estas dos nociones cardinales: la culpa y el riesgo; com la primera, la responsabilidade s subjetiva; bajo la influencia de la segunda, se hace objetiva. A. Em el antiguo derecho romano, la resonsabilidad era objetiva; quedaba comprometida independientemente de toda idea de culpa; se presentaba como uma reacción de la víctima contra la causa aparente del dano; de la misma manera que um nino se vuelve contra el objeto que lo há herido, así el hombre de poça cultura exige reparación de todo atentado a su persona o a los suyos; vuelve golpe por golpe, sin preocuparse de la cuestión de imputabilidad y por más que tenga que habérselas com um nino, um animal o um objeto inanimado, así se explica el juego de las acciones noxales tendientes al abandono, em poder de la víctima, del agente del dano, esclavo, animal, cosa inanimable: la responsabilidad era la expresión jurídica de la vindicta privada.” com a primeira, a responsabilidade é subjetiva sob a influência da segunda, faz-se objetiva. A. No antigo direito romano, a responsabilidade era objetiva; quedava comprometida independentemente de toda a idéia de culpa, apresentava-se como uma reação da vítima contra a causa aparente do dano; da mesma maneira que uma criança se volta contra o objeto que a tenha ferido, assim o homem de pouca cultura exige reparação de todo atentado à sua pessoa o aos seus; volve golpe por golpe, sem se preocupar com a questão da imputabilidade, por mais que se tenha que haver com uma criança, um animal ou um objeto inanimado; assim se explica o jogo das ações noxais tendentes ao abandono, em poder da vítima, do agente do dano, escravo, animal, coisa inanimada: a responsabilidade era a expressão jurídica da vingança privada.” Demonstra, portanto, Louis Josserand, que, na Antigüidade Romana, ao menos em seus primórdios, a vingança era a pedra de toque a inspirar a idéia de reparação civil. Reinava, naquela época, como ensina a Professora Judith Martins Costa26, a noção de equilíbrioentre os membros da sociedade, como fundamento para a justiça. Rompido o equilíbrio, este deveria ser restaurado, a fim de que se obtivesse a justiça. Tal fenômeno só poderia ocorrer com a responsabilização daqueles que trouxessem prejuízos a terceiros, como se compreende da seguinte passagem: “(...) O sistema de reparação ou repressão de danos repousa, precisamente, na noção de justiça enquanto equilíbrio, epicikia, relação harmoniosa entre o todo e as partes. A distribuição igual, vale dizer, harmoniosa da justiça é, para aquele sistema, um dos objetivos do direito. Se a justiça é equilíbrio, o seu contrário, a injustiça, iniuria, será o desequilíbrio. E, a função primordial da justiça será a de restabelecer o equilíbrio fraudado, anotando Villey que, à essa idéia possivelmente subjaz a noção aristotélica de synalagmata expressa no Livro V da Ética”. Cumpre, por outro lado, ressaltar que, lentamente, após o período inicial, em que imperou a noção de justiça como equilíbrio – o que redundou na adoção de uma responsabilidade objetiva – a idéia de culpa foi ganhando força no sistema jurídico 26 COSTA, Judith Martins. Os fundamentos da responsabilidade civil. Revista trimestral de jurisprudência dos estados. São Paulo: Velenich, 93, ano 15, out./91, p.35. romano, culminando com a edição da Lex Aquilia. As Institutas de Justiniano reforçam o caráter subjetivo da aferição de responsabilidade derivada da Lei Aquília: A ação de dano injustamente causado é fundada sobre a lei Aquília. Pelo capítulo primeiro desta lei, “quem mata injustamente o escravo alheio, o ou quadrúpede alheio, dos que se consideram gado, será condenado a pagar ao dono o maior valor que a coisa tiver tido no ano.(...)” Nasce, neste momento, uma mudança de paradigma, aprofundada na Idade Média e Moderna, como notado por Prof. Judith Martins Costa27: “Enquanto a moral romana era fundamentalmente a moral do justo (aequitas, epicikia), a moral moderna, instaurada pela Escola do Direito Natural será a moral da conduta humana, conduta a ser julgada através de um filtro específico, o filtro do julgamento de Deus, para os religiosos, ou do foro íntimo, para os laicos, ambos operando, estruturalmente, da mesma forma porquanto os preceitos da lei divina ‘não se desprrendem da noção de sanção’. (...) Ora, são exatamente essas assertivas – ‘cada um deve reparar o mal que causou’, ou ‘cada um é responsável pelos danos cometidos’ – que vão servir de base à teoria da responsabilidade civil, construção acadêmica, elaborada a partir do séc. XVIII e que no séc. XIX durante o processo de codificação então levado a efeito penetra no direito legislado: por essa via e sob conotações acima referidas, a culpa chega aos códigos como fundamento da responsabilidade civil.” O fundamento moral da reparabilidade civil deslocou-se do equilíbrio (epicikia) para a culpa. E não poderia ser diferente. Fruto da evolução do cristianismo era o combate ao “pecado”. A culpa era a exigência mínima para que os atos pecaminosos fossem punidos. Não havendo culpa, não existiria nada a reparar... O Direito dos povos cristãos, portanto, abraçou tal premissa, ao ponto de incorporá-la ao Código Francês, o que redundou, a partir de então, em inegável efeito multiplicador. Breves, mas precisas, são as lições do Caio Mário da Silva Pereira28 a respeito do assunto: 27 Op. cit., p.38. 28 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.14. “13. A doutrina da culpa assume toda as veras de uma fundamentação ostensiva e franca com o Código Napoleão. No art. 1.382 ficou terminantemente explícita: ‘Tout fait quelconque de l’home, qui cause à autrui um dommage, oblige celui par faute duquel il est arrivè, à le réparer. Sobre este preceito a corrente exegética assentou que o fundamento da reparação do dano é a culpa. Os autores franceses desenvolveram-na em seus caracteres e construíram por todo o século passado, e ainda neste século, a doutrina subjetiva.” 3.3. O advento da teoria do risco Este quadro, todavia, experimentou mudanças clamadas pelo avanço social. Ora, definir responsabilidade é atribuir o dever de suportar prejuízos ou de repará-los, conforme o caso. Quando a responsabilidade é subjetiva, consagra-se o entendimento de que a vítima, quando sofre prejuízos por condutas isentas de culpa, figura, em realidade, como uma vítima do acaso, uma desafortunada alma que deve suportar o peso da ação ou da omissão alheia. Por outro lado, quando a responsabilidade se objetiva, fundando-se na idéia de risco, o paradigma muda. A vítima merece ser reparada por restar rompido o equilíbrio social quando uma atividade potencialmente lesiva a alcança. Tudo se refere, portanto, a uma opção atributiva do ordenamento jurídico: a quem impor o ônus de suportar os prejuízos causados – ao autor deles ou à vítima? Esta questão, aliás, faz-se clara nos ensinamentos de Georges Ripert29 A regra moral nas obrigações civil, 2 ed., Bookseller, Campinas, 2002): “Por que motivo, pois, não conseguiu a teoria do risco dominar mais completamente os espíritos? Notaram-se as dificuldades técnicas que pode apresentar a aplicação dum princípio demasiado geral. Mas, se o princípio é justo, deve ser relativamente fácil pô-lo em forma e encontrar-lhe um instrumento de apoio. A realidade é outra. Se a teoria do risco não pôde conquistar a força jurídica que se pedia para ela, é porque ela, na realidade, tira à responsabilidade civil o elemento moral de que este princípio extrai a sua força e regula a sua limitação. Quando a lei de responsabilidade apareceu como uma lei física de criação de riscos, tornou-se inadmissível. 29 RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis. 2 ed. Campinas: Bookseller, 2002, p. Foi defendida, sem dúvida, em nome da justiça com a idéia da escolha necessária entre o autor e a vítima. Quando o prejuízo se dá, não há mais, diz-se, que uma questão de atribuição a regular; não admitir o direito à reparação é condenar a vítima, por que a vítima e não o autor? Na realidade, a escolha foi feita pela força obscura do destino. A vítima foi escolhida. Os homens estão habituados a curvar-se ante a fatalidade. Admitir a ação de responsabilidade, não é atribuir o prejuízo é modificar a sua atribuição natural. Ora as qualidades de autor e de vítima foram estabelecidas pelo acaso e, pela sua própria qualidade, a vítima não aparece como preferível ao autor. É preciso, pois, uma razão para a atribuição do prejuízo ao autor: onde encontrá-la?” A intrigante pergunta final de Ripert reflete nitidamente a sua preocupação para que a teoria do risco não se cristalize como regra geral da responsabilidade civil. Acontece que, em alguns casos, ela se mostra justificável, como o próprio autor reconhece. Clássico exemplo é o que possibilitou o nascimento da teoria na França. Neste sentido, ponderáveis as lições de Planiol e Ripert30: 30 PLANIOL, Marcel; RIPERT, Georges. Tratado Practico de Derecho Civil Francês. t. VI. Havana: Cultural, 1946, p. 667/669. Tradução livre do seguinte trecho: “478. Teoria del riesgo – La ineficácia de la teoria de la resonsabilidad subjetiva, aun estableciendo las presunciones de culpa mencionada anteriormente, para asegurar la indemnización de las víctimas em ciertos casos em que se estima necesaria, há llevado a ciertos tratadistas a contra-ponerle uma doctrina em que la culpa no es ya necesaria da responsabilidad objetiva. Bajo su aspectomás sencillo consiste em eliminar la idea de culpa em la responsabilidad, admitiéndose que todo riesgo creado debe ser de cargo de la actividad que lo origina. Esa teoria se há ideado primeramente a fin de asegurar la reparación de los accidentes del trabajo em uma época em que el legislador se daba al estúdio del problema sin ofrecer soluciones y después de haber fracasado del intento de aplicar a estas matérias la responsabilidad contractual. El desarrollo del empleo de maquinarias em las industrias em el siglo XIX ocasiono hacia su terminación um aumento considerable de los accidentes perjudiciales a los obreros; muchas veces la causa de ellos quedaba em el mistério. Y aun cuando consistiera em vícios de la maquinaria misma, su existência no podia imputarse al patrono, quien, ignorante de ellos, la había adquirido y la hacía funcionar em las condiciones normales; se decía que el accidente era ‘anónimo’. El espectáculo de las víctimas privadas de recursos commovió la opinión pública y ciertos jursistas, sin intentar obtener uma reforma legislativa, que demoraria mucho, propusieron nuevas interpretaciones jursisprudenciales, todas las cuales tenían como denominador común el traslado de la obligación de probar, que, de la víctima, pasaba a ser incumbência del patrono. De esa suerte fueron llevados a colocarse em el terreno de la responsabilidad del derecho común, a la que, em cierta forma, daban uma orientación nueva. Toda actividade, se dijo, implica algún riesgo para los terceros, al próprio tiempo que para el que actúa; es justo que este sufra las consecuencias reparando los daños causados por sua acción, aun cuando no pueda reprochársele culpa de ningún género. Y ello es debido a que crea los riesgos para su próprio provecho, com la finalidad de obtener ganancias o una satisfacción. Ya que em su favor se inclinan los benefícios eventuales, las buenas probabilidades, debe sufrir las malas. Ubi emolumentum, ibi ônus. Bastará, por tanto, para producir la responsabilidad, que exista uma relación de causalidad entre la actividad del demandado y el perjuiicio sufrido por el actor. ” “478. Teoria do risco. – A ineficácia da teoria da responsabilidade subjetiva, ainda estabelecendo as presunções de culpa mencionadas anteriormente, para assegurar indenização das vítimas em certos casos em que se estima necessária, tem levado certos tratadistas a contraporem-se a ela uma doutrina em que a culpa não é já necessária para a existência da responsabilidade. Tal é a chamada responsabilidade objetiva. Sob seu aspecto mais simples consiste em eliminar a idéia de culpa na responsabilidade, admitindo-se que todo risco criado deve ser compreendido pela atividade que o origina. Essa teoria idealizou-se a fim de assegurar a reparação dos acidentes de trabalho em uma época em que o legislador se dava ao estudo do problema sem oferecer soluções e depois de haver fracassado no intento de aplicar a estas matérias a responsabilidade contratual. O desenvolvimento do emprego de maquinários nas indústrias no século XIX ocasionou no seu final um aumento considerável dos acidentes prejudiciais aos obreiros; muitas vezes a causa deles quedava em mistério. E ainda quando consistia em vícios do próprio maquinário, sua existência não se podia imputar ao patrão, que ignorante deles, adquiriu-o e já fazia funcionar em condições normais; dizia-se que o acidente era ‘anônimo’. O espetáculo das vítimas privadas de recursos comoveu a opinião pública e certos juristas, que, sem tentar obter uma reforma legislativa, que demoraria muito, propuseram novas interpretações jurisprudenciais, todas as quais tinham como denominador comum o traslado da obrigação de provar, que, da vítima, passava a ser incumbência do patrão. Destarte foram levados a colocar-se no terreno da responsabilidade do direito comum, à que, de certa forma, davam uma orientação nova. Toda atividade, diz-se, implica algum risco para os terceiros, ao mesmo tempo que para aquele que atua; é justo que este sofra as conseqüências reparando os danos causados por sua ação, ainda quando não possa censurá-la por culpa de nenhum gênero. E isso é devido por quem cria os riscos para seu próprio proveito, com a finalidade de obter lucro ou uma satisfação. Já que em seu favor se inclinam benefícios eventuais, as boas probabilidades, deve sofrer as más. Ubi emolumentum, ibi onus. Bastará, portanto, para produzir a responsabilidade, que exista uma relação de causalidade entre a atividade do demandado e o prejuízo sofrido pelo autor.” A teoria do risco logrou importante aceitação. Não tardaram, todavia, algumas críticas a ela, passíveis de serem resumidas em quatro31: a) retorna o problema à regra primitiva (Antigüidade), que cinge a apreciação da responsabilidade à análise de causalidade, porquanto excluiria a questão da culpa de seus elementos constitutivos; b) a idéia de risco criado não pode ser estendida a todas as atividades, pois terminaria por aniquilar o espírito humano de iniciativa; c) quando se atesta decorrer a teoria do risco da solidariedade social, tem-se em mente apenas a figura da vítima, mas se olvida a do causador do dano, como se este também dela não fosse merecedor; d) acaba por suprimir a idéia moral que permeia as noções de responsabilidade civil e justiça de suas conseqüências, erigida lentamente ao se insculpir a culpa como elemento ensejador da reparação. As ressalvas acima formuladas merecem ser recebidas com reservas. Inicialmente atente-se que servem apenas para infirmar a responsabilidade objetiva como a única aceitável nos dias de hoje, ou seja, elas indicam que não se pode ainda preterir da teoria da culpa para uma infinidade de hipóteses. Não bastasse isso, o fato de se suprimir a culpa da análise da reparação não implicar olvidar-se o fundamento moral da obrigação de reparar, mas, em realidade, trata-se da busca de novos fundamentos, como o justo equilíbrio das relações humanas (epicikia). Neste sentido, portanto, tem-se que a teoria do risco, como hipótese de responsabilidade objetiva, jamais foi a única a ser exclusivamente aceita. Viu-se, desde o seu advento, obrigada a compartilhar espaço, nos diversos sistemas jurídicos, com a teoria da culpa. Esta realidade reflete-se na atual redação do Artigo 927 do Código Civil do Brasil. O advento da teoria do risco representa, portanto, o abandono da exclusiva adoção da teoria da culpa. É o sinal de que, em determinadas hipóteses, quando a legislação reputa conveniente, no juízo de atribuição de prejuízos e responsabilidades, deve-se proteger a vítima do dano, como sói acontecer nas hipóteses de responsabilidade civil do Estado e responsabilidade civil decorrente de relações de consumo. 31 RIPERT, Georges e PLANIOL, Marcel. Tratado practico de derecho civil frances. T. VI – Las oblicagiones. Havana: Cultural, 1946, p. 670/672. O avanço da sistematização da teoria do risco levou à sua categorização pelas seguintes espécies32: risco-proveito (por meio do qual se responsabiliza que se aproveita da atividade danosa), risco-profissional (quando o dano decorre da atividade profissional da vítima), risco-excepcional (o dano decorre de atividade excessivamente perigosa, com acontece com acidentes decorrentes do armazenamento de fogos de artifício), risco criado (decorre da necessidade de se indenizar prejuízos advindos do exercício de determinadas atividades ainda que não gerem proveito para quem a explora, mas criem perigo para as pessoas a elas expostas) e risco integral (que decorre da automática verificação de dano, sem se perquirir sobre a existência de efetivo nexo causal). O sucesso experimentado pela teoria do risco sugeriu que, combinadocom a teoria da culpa, lograria explicar as hipóteses hodiernas de responsabilização civil. O casamento, todavia, entre culpa e risco, segundo Boris Starck33, seria uma espécie de casamento forçado, devendo, pois ser rechaçado. Sugere, assim, uma nova teoria para fundamentar a responsabilidade civil, de cunho objetivo: a teoria da garantia. Leciona o mencionado Autor34: 32 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 128/131. 33 STARCK, Boris. Droit civil - obligations. Paris: Techiniques, 1972, p. 32. 34 STARCK, Boris. Droit civil - obligations. Paris: Techiniques, 1972, p. 35. Tradução livre de “58. – Selon cette théorie, on a eu tort d’enfermer lê problème du fondement de la responsabilité civile lê dilemme: << Faute >> ou << Risque >>. C’est là lê type du faux dilemme qui provient du fait que lê problème a été mal pose. Jusqu’ici, pour répondre à la question: pourquoi faut-il réparer lês dommages causes à autrui, lês réponses étaient recherchées du seul cote de l’auteur de ces dommages: << parce qu’il a commis une faute >>, disent lês uns; <<parce qu’il profite d’une activité don til dói assumer lês risques >> , déclarent lês autres. On a eu raison d’observer que la théorie du risque, comme celle de la faute, sont toutes lês dexus << subjectives >>, em ce sens qu’elles recerceht lês raisons de condamner du cote de l’auteur du dommage. 59. – Cette façon de raisonner est incompléte, car elle omet lê point de vue de la victime. Or, par hypothèse, la victime du dommage a subi une atteinte à sés droits. Chacun a droit à as vie et à son intègrité corporelle – ainsi qu’á celles de sés << proches >>; chacun a droit a l’integrité matérielle des biens qui lui appartiennent, et, plus généralement, à sa sécurité matérielle et morale. Ces droits, il est vrai, ne sont pás definis et consacrés expressément par la loi, mais on ne saurait en méconnaître l’existence sans nier lês impératifs élémentaires de la vie sociale. 60. – Si ce <<droits >> existent – formulons-en, pour l’instant, l’hypothèse – ne doivent-ils pás être protégés, c’est-à-dire garantis par lê droit? Et les dommages que l’on souffre par le fait d’autrui: blessures, mort, destructions d’objects, etc., ne sont-ils pás des atteintes à ces droits? Or, l’atteinte à um droit protege (c’est, d’aillerus, là um pléonasme, um droit étant nécessairement protege, sans cela ce ne serait pás um droit), est une raison suffisante pour prononcer une sanction. Cette sanction n’est autre que l’obligation de réparer, c’est-à-dire la responsabilité de celui qui a causé le dommage, qui a, de ce fait, porte atteinte aux droits d’autrui.” “58 – Conforme esta teoria, é equivocado confinar o problema da responsabilidade civil no dilema: << Culpa >> ou << Risco >>. É um tipo de falso dilema que advém do fato do problema ter sido mal colocado. Até então, para responder à questão “por que se deve reparar os danos casuados a outrem” as respostas eram analisadas apenas pelo prisma do autor destes danos: <<porque cometeu uma falha>>, dizem uns; << porque se aproveitou de uma atividade em que deve assumir os riscos >> declaram os outros. Temos razão de observar que a teoria do risco, como também a da culpa, são ambas << subjetivas >>, tendo em vista que as duas procuram razão para condenar o autor do dano. Este modo de raciocinar é incompleto, pois omite o ponto de vista da vítima. Ora, por hipótese, a vítima do dano sofreu um ataque a seus direitos. Todos têm direito à sua vida e à sua integridade corporal – assim como os que lhe são próximos; todos têm direito à integridade material dos bens que lhe tocam, e, mais genericamente, à sua segurança material e moral. Estes direitos, evidentemente, não são definidos e consagrados expressamente pela lei, mas não se saberia ignorar sua existência sem se estar a negar os imperativos elementares da vida social. 60. Se estes << direitos >> existem – formulemos, por hora, a hipótese – não deveriam ser protegidos, ou seja, garantidos pela lei? E os danos que sofremos por fato de outrem: ferimentos, morte, destruição de objetos, etc., não são eles infrações a estes direitos? Ora, a infração a um direito protegido (isto é, por outro lado, um pleonasmo – um direito é necessariamente protegido, de outra forma não seria um direito) é razão suficiente para impor uma sanção. Esta sanção não é outra senão a obrigação de reparar, quer dizer a responsabilidade de quem causou o dano, o qual, por resultado, violou direitos alheios.” Serpa Lopes35, ao comentar o pensamento de Boris Starck, arremata sobre a teoria do risco: “Sobre o verdadeiro sentido da idéia de segurança ressalta que se, de um lado, há liberdade de ação, de outro, porém, existe um direito de segurança. Pretende uma distinção sensível entre a sua teoria e a do risco; nesta, a obrigação de reparar decorre de 35 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil – v. 5. Fontes acontratuais das obrigações, responsabilidade civil. 4 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1995, p. 173. uma contraprestação necessária e correspondente às vantagens que ao demandado é facultado haurir de sua atividade; na da garantia, a obrigação de indenizar parte da idéia de violação dos direitos da vítima.” A violação a direitos protegidos e a sanção acarretada a este evento, sem se perquirir, todavia, sobre a culpa do agente causador, são as pedras de toque da teoria da garantia, que, todavia, não logrou suplantar, ao menos entre os juristas brasileiros, a teoria do risco aplicada em conjunto com a teoria da culpa. Estes, portanto, em apertada síntese, são os fundamentos principais das mais importantes teorias da responsabilidade civil: a subjetiva (teoria da culpa) e a objetiva (gênero que contempla a teoria do risco e a teoria da garantia). 4. CONCLUSÃO Conclui-se, portanto, ser a responsabilidade uma obrigação derivada, nascida da violação, culposa ou não, de uma obrigação primária. Esta violação, todavia, não representa sempre o cometimento de ato ilícito, seja por seu conceito objetivo ou subjetivo. Logo, há que se refutar uma perfeita superponibilidade entre responsabilidade civil e atos ilícitos. Por fim, percebe-se ser fato a coexistência, no próprio Código Civil do Brasil, dispositivos que abraçam a responsabilidade civil subjetiva e a objetiva, o que forçosamente aponta para a pluralidade de fundamentos a justificar o dever de reparar, que ora podem se assentar na idéia de culpa, ora podem estar calcadas na premissa de proteção às vítimas de atividades potencialmente perigosas (risco). A compreensão dos fundamentos da responsabilidade delimita o campo de sua incidência, levando o operador do direito a deixar de aplicá-la nas hipóteses em que seus fundamentos não se encontram presente. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001 AGUIAR DIAS, José de. 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