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Clique para editar o estilo do título mestre Clique para editar o estilo do subtítulo mestre * * * POEMAS E MAIS POEMAS Teoria da Literatura II Prof. Roberto Bozzetti * * * ALGUNS GOSTAM DE POESIA Wislawa Szymborska Alguns – ou seja nem todos. Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria. Sem contar a escola onde é obrigatório e os próprios poetas seriam talvez uns dois em mil. Gostam – mas também se gosta de canja de galinha, gosta-se de galanteios e da cor azul, gosta-se de um xale velho, gosta-se de fazer o que se tem vontade gosta-se de afagar um cão. De poesia – mas o que é isso, poesia. Muita resposta vaga já foi dada a essa pergunta. Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso como a uma tábua de salvação. (tradução de Regina Przybycien) * * * * * * RECITAL DA AUTORA Wislawa Szymborska (1923-2012) Musa, não ser um boxeador é literalmente não existir. Nos recusaste a multidão ululante. Uma dúzia de pessoas na sala, já é hora de começar a fala. Metade veio porque está chovendo, o resto é parente. Ó Musa. As mulheres adorariam desmaiar nesta noite outonal, e vão, mas só ao assistir uma luta colossal. Só lá as cenas dantescas. E o ascenso aos céus. Ó Musa. Não ser boxeador, ser poeta, estar condenado a duras florbelas, por falta de musculatura mostrar ao mundo a futura leitura escolar – na melhor das hipóteses – Ó Musa. Ó Pégaso, anjo eqüestre. Na primeira fila um velhinho sonha docemente que a finada esposa ressuscitou e assa para ele um bolo com passas. Com fogo, mas não alto, para o bolo não queimar, começamos a leitura. Ó Musa. Tradução de Regina Przybycien SZYMBORSKA, Wislawa. Poemas. SP: Companhia das Letras, 2011. * * * Luís de Camões (1524-1580) Amor é um fogo que arde sem se ver É ferida que dói e não se sente, É um contentamento descontente, É dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem querer, É um andar solitário entre a gente, É nunca contentar-se de contente, É um cuidar que ganha em se perder. É querer estar preso por vontade, É servir, a quem vence, o vencedor É ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo amor? BERARDINELLI, Cleonice (org.). Cinco séculos de sonetos portugueses de Camões a Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013. * * * ODE 1.11 Horácio (65 a.C – 8 a.C) Não busques (é tabu!) saber que fim, Leucónoe, os deuses nos reservam. Põe de lado o horóscopo da Babilônia e aceita: o que há de ser, será, quer nos dê Jove mais invernos, quer só este que em rochas quebra o mar Tirreno. Vive, bebe teu vinho e talha, ao curto prazo, anseios longos. Enquanto eu falo, o tempo evade-se invejoso. Apanha o dia e não confies no amanhã. ASCHER, Nelson. Poesia alheia: 124 poemas traduzidos. Rio de janeiro: Imago, 1998. * * * Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) Não vês, Lise, brincar esse menino Com aquela avezinha? Estende o braço; Deixa-a fugir; mas apertando o laço, A condena outra vez ao seu destino? Nessa mesma figura, eu imagino, Tens minha liberdade; pois ao passo, Que cuido, que estou livre do embaraço, Então me prende mais meus desatino. Em um contínuo giro o pensamento Tanto a precipitar-me se encaminha, Que não vejo onde pare o meu tormento. Mas fora menos mal esta ânsia minha, Se me faltasse a mim o entendimento, Como falta a razão a esta avezinha. COSTA, Cláudio Manuel da. Poemas de Cláudio Manuel da Costa. São Paulo: Cultrix, 1976. * * * Da Divina Comédia, Inferno – Canto V Dante Alighieri (1265-1321) * * * Assim desci do círculo primeiro para o segundo, que já menos cinge mas tem mais dor, que punge o ser inteiro. Minos domina e horrivelmente ringe, pesa a culpa de cada um na entrada, julga e envia segundo a cauda atinge. Digo que, quando a alma indigitada posta-se à sua frente e se confessa, esse fiscal da falta praticada vê que lugar do Inferno dar a essa; a cauda em suas voltas vai marcando quantos graus entender que ela mereça. Diante dele se ajunta todo um bando; cada qual vai seguindo a sua via; dizem, ouvem e cumprem o comando. “Ó tu que vens à triste moradia,” disse Minos a mim, ao ver-me, enquanto parava de contar e advertia: “olha como entras e onde expões teu manto, não tem engane a largueza do lugar!” E o guia a ele: “Por que gritas tanto? * * * * * * Não há como impedir seu caminhar: assim o quer quem pode, ele somente, o que quiser; é inútil contestar.” E já começa o lamentar dolente a se fazer ouvir; eis-me, contudo, andando em meio ao pranto dessa gente. Vim a um lugar que a toda luz é mudo, que muge como o mar sob a tormenta quando o vento ao revés revolve tudo. O tufão infernal nunca se assenta; arrasta as almas com sua rapina e girando e ferindo as atormenta. Quando chegam defronte da ruína aumenta o coro da lamentação; blasfemam contra a perfeição divina. Os que sofrem a pena todos são pecadores da carne – assim o entendo – que ao desejo submetem a razão. Como estorninhos que se vão, batendo, em longo bando, as asas a voar, assim eu via as almas se movendo * * * pra cá, pra lá, acima e baixo, no ar, sem esperança de poder jamais amenizar a pena ou repousar. E como os grous soltando tristes ais em larga fila ao vento que os fustiga, assim foram chegando mais e mais sombras movidas pela mesma briga; e então falei: “Mestre, quem são aquelas almas que o ar negro sem cessar castiga?” “A primeira que eu vejo dentre elas sobressair", disse o guia da jornada, “foi rainha de muitas línguas belas. Ao vício da luxúria tão votada que a libido fez lei e liberou para se ver de freios libertada. Ela é Semíramis, que assassinou o rei Nino e reinou como sua esposa nas terras que o Sultão depois tomou. A outra se matou, por amorosa, quebrando o voto às cinzas de Siqueu; Cleópatra vem logo, luxuriosa. * * * Olha Helena, que a tantos envolveu em guerra,e o grande Aquiles a passar, que o Amor, por fim, um dia combateu. Vê Páris, vê Tristão;” mais de um milhar de sombras me mostrou de uma enfiada que à nossa vida Amor fez renunciar. Depois que o guia nominou a cada antiga dama e nobre cavalheiro, tive pena da gente condenada. Comecei: “Ó Poeta, meu luzeiro, eu falaria àqueles dois que vão pelo ar escuro com andar ligeiro.” E ele: “Quando estiverem perto, então, suplica-lhes que ouçam teu recado pelo amor que os conduz, e eles virão.” Tão logo o ar os levou para o meu lado, movi a voz: “Ó almas a sofrer, vinde falar-nos, se não for vedado!” Como as pombas que o instinto faz volver com a asa aberta ao ninho prometido, movidas pelo vento do querer, * * * * * * elas saíram da fila de Dido a nós mirando pelo ar maligno, tão forte e afetuoso o meu pedido. “Ó animal gracioso, ó ser benigno, que visitando vais pelo ar adverso os que na terra deixam sangue e signo, se nos ouvisse o dono do universo, à tua alma iríamos louvá-la, porque te dóis do nosso mal perverso. Mas se te apraz ouvir a nossa fala, falar e ouvir virão as nossas dores, enquanto o vento para nós se cala. Eu nasci num lugar nos arredores dessa marinha de onde o Pó descende para pacificar seus seguidores. Amor que ao coração gentil apreende prendeu a mim o da bela pessoa que enfim perdi, e o modo ainda me ofende. Amor, que a amado algum amar perdoa, me fez nele sentir prazer tão forte que, como vês, ainda me afeiçoa. * * * Amor nos conduziu à nossa morte. Caína aguarda ao que ceifou as vidas.” Assim falou, contando a sua sorte. Quando escutei as almas ofendidas, baixei o rosto com tamanho intento que o poeta indagou: “De que duvidas?” Em resposta, exclamei: “Ah, que tormento, quanto doce pensar, quanta ansiedade para induzir ao doloroso evento!” Depois voltei-me a ela e com bondade lhe disse então: “Francesca, os teus martírios fazem chorar meus olhos de piedade, mas diz-me: ao tempo dos doces suspiros, por que e como concedeu Amor que conhecesses os seus vãos delírios?” E ela responde: “Não há maior dor que recordar-se do tempo feliz na tristeza, e isso sabe o teu mentor. Mas se queres saber qual a raiz desse amor que nos fez tão desgraçados, farei como esse que, chorando, diz. * * * Nós líamos um dia sossegados como a Sir Lancelote o amor venceu; estávamos a sós e descuidados. Por vezes a leitura surpreendia o olhar no olhar, o rosto embranquecido, mas foi um ponto só o que nos perdeu. Quando lemos que o riso apetecido fora beijado pelo amante ardente, esse que nunca mais de mim divido a boca me beijou, todo tremente. Galeotto foi o livro e o autor, enfim. Nesse dia não lemos novamente.” * * * * * * Enquanto uma alma discorria assim, a outra chorava tanto que, num ai, senti como um morrer dentro de mim: e caí como corpo morto cai. tradução de Augusto de Campos CAMPOS, Augusto de. O anticrítico. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. (as ilustrações não creditadas são de autoria de Gustave Doré) * * * O BOI Domingos Pellegrini (1949) O boi cala a marretada, e estrebucha. Então ali, na antecâmara da morte nos miolos explode um clarão forte de inteligência e dor – o boi pensa e bufa. O nariz entupido de sustos vermelhos dos outros bois antes dependurados, o boi se eletrocuta de medo; o medo é verde, o boi expele medo. Enquanto rola e lhe engancham a pata tonto, vê dentro da cabeça zebuína um filme colorido de hemorragias, açougues, estatísticas e pastos. O gancho sobe e os pensamentos do boi ficam suspensos; e em vômito, convulsão, lembra vacinas e capim colonião, veterinários, riachos, tudo que viu e foi. Então foi para isso que me picotaram com injeções de hormônio feminino: uma arroba de gordura clandestina na balança do lucro me ganharam. * * * Então foi para isso que nasci: comer e engordar meus dias com rações cercado pelo olhar doente dos peões e entre colegas de dor viajar e morrer. Uma lâmina lhe abre na barbela os segredos sebentos do pescoço e o boi se vê no prato dos almoços e nas bocas desiguais das panelas. Lingüiças, mocotó, pentes, botões. Carne. Osso. Quilo. Até miudamente [grama. O boi sente um orgulho que derrama desse músculo incansável, coração. Um braço rápido lhe enterra a faca na gruta do pescoço, o boi percebe: quanto mais sai o sangue, mais leve o pensamento fica, as visões fracas. Mas ainda vê o seu antigo dono riscando contas numa caderneta: a arroba, sal, ração, capim, caneta; com tanto lucro o boi sente sono. No cheiro de banha, vapor das buchadas, o boi lembra seu melhor dia de vida: quando varou a cerca, ruminou ervilhas da roça vizinha, feijão recém plantado. E desmaia pensando em vitaminas: proteínas sou, preço serei, produto nacional e bruto para os navios do mundo, bandeiras de dólar, fome de rapina. A motosserra vai serrando os chifres mas o boi ainda pensa: meus rins virarão patê; meus miolos enfim mais nada pensarão como salsicha. A pata livre escoiceia incompreendida e o boi vê, numa última visão, jantando dívidas, mascando coração, a família brasileira reunida. O boi sente cócegas longínquas: estão esfolando – o couro malhado irá para o destino de ser pisado; para as panelas pobres irá a língua. * * * Boi, boi, boi – pensa o boi na esfola boi virarei filé entre florões; acém perdido na sopa de milhões. Por que não nasci democrática cebola? Boi, boi, boi da cara preta... o boi ouve ecos de cirandas; dedica sua carne a todas as crianças e morre sem sangue; ruminando se cumprirão ou não seu testamento. In: Inéditos n. 2, julho-agosto 1976. Belo Horizonte, MG. * * * PORQUINHO-DA-ÍNDIA Manuel Bandeira (1886-1968) Quando eu tinha seis anos Ganhei um porquinho-da-índia. Que dor de coração me dava Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão! Levava ele pra sala Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos Ele não gostava: Queria era estar debaixo do fogão. Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas... - O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada. BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20ª. ed. São Paulo: Record, s/d. * * * Manuel Bandeira Oswald de Andrade * * * bonde Oswald de Andrade (1890-1954) O transatlântico mesclado Dlendlena e esguicha luz Postretutas e famias sacolejam ANDRADE, Oswald. Obras completas, v. VII. Poesias reunidas. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. * * * EPÍLOGO Charles Baudelaire (1821-1867) De coração contente escalei a montanha, De onde se vê – prisão, hospital, lupanar, Inferno, purgatório – a cidade tamanha, Em que o vício, como uma flor, floresce no ar. Bem sabes, ó Satã, senhor de minha sina, Que eu não vim aqui para lacrimejar. Como o amásio senil de velha concubina, Vim para me embriagar da meretriz enorme, Cujo encanto infernal me remoça e fascina. Quer quando em seus lençóis matinais ela dorme, Rouca, obscura, pesada, ou quando em rosicleres E áureos brilhos venais pompeia multiforme, – Amo-a, a infame capital! Às vezes dais, Ó prostitutas e facínoras, prazeres Que nunca há de entender o comum dos mortais. Tradução de Manuel Bandeira In: BANDEIRA, Manuel. Poesia e prosa, v. 1 (Poesia). Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958. * * * BLUES FÚNEBRES W. H. Auden (1907-1973) Que parem os relógios, cale o telefone, jogue-se ao cão um osso e ele não ladre mais, que emudeça o piano e que o tambor sancione a vinda do caixão com seu cortejo atrás. Que os aviões, gemendo acima em alvoroço, escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu. Que as pombas guardem luto – um laço no pescoço – e os guardas usem finas luvas cor-de-breu. Era meu norte, sul, leste, oeste, enquanto viveu, meus dias úteis, meu fim-de-semana, meu meio-dia, meia-noite, fala e canto; quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana. É hora de apagar estrelas – são molestas – guardar a lua, desmontar o sol brilhante, de despejar o mar, jogar fora as florestas, pois nada mais há de dar certo doravante. Tradução de Nelson Ascher ASCHER, Nelson. Poesia alheia: 124 poemas traduzidos. Rio de janeiro: Imago, 1998. * * * Baudelaire Auden * * * DECLARAÇÃO Antonio Cícero (1945) Quantas vezes lhe declarei o meu amor? Declarei-o verbalmente inúmeras vezes e o declaram todos os meus gestos tendentes a você: a minha língua, a brincar com o som do seu nome, Marcelo, o declara: e o declaram os meus olhos felizes quando o veem chegar feito um presente e de repente elucidar a casa inteira que, conquanto iluminada, permanecia opaca sem você; e quando, tendo apagado todas as lâmpadas, juntos, no terraço, nos consignamos aos traslados dos círculos do relógio do céu noturno ou aos rios de nuvens em que nos miramos e nos perderemos, declaro-o no escuro. CÍCERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de janeiro: Record, 2002. * * * O MAL Arthur Rimbaud (1854-1891) Enquanto esse cuspir vermelho da metralha Silva no céu azul o dia inteiro, e logo, Verdes ou rubros, junto ao Rei que os achincalha, Tombam os batalhões em massa sob o fogo: Enquanto a insânia horrenda arde num fogaréu Cem mil homens e os deixa a fumegar, demente, – Pobres mortos! na relva, ao sol do estio, em teu Seio, Natura, ó tu que os criaste santamente!... – – Existe um Deus, que ri nas toalhas dos altares Num cálice dourado, entre incensos, e nesse Tranqüilo acalentar de hossanas adormece; E acorda quando as mães, morrendo de pesares, Choram de angústia, sob o negro xale imenso, E Lhe dão uma moeda, amarrada no lenço! Tradução de Ivo Barroso RIMBAUD, Arthur. Poesia completa. 3ª. ed. Tradução e comentários de Ivo Barroso… Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. * * * BRINDE Stéphane Mallarmé (1842-1898) Nada, esta espuma, virgem verso A não designar mais que a copa; Ao longe se afoga uma tropa De sereias vária ao inverso. Navegamos, ó meus fraternos Amigos, eu já sobre a popa Vós à proa em pompa que topa A onda de raios e de invernos; Uma embriaguez me faz arauto, Sem medo ao jogo do mar alto, Para erguer, de pé, este brinde Solitude, recife, estrela A não importa o que há no fim de Um branco afã de nossa vela. Tradução de Augusto de Campos CAMPOS, Augusto, PIGNATARI, Décio e CAMOS, Haroldo. Mallarmé. 3ª. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. * * * Mallarmé por E. Manet Rimbaud * * * GRAFITO José Paulo Paes (1926-1998) neste lugar solitário o homem toda manhã tem o porte estatuário de um pensador de rodin neste lugar solitário extravasa sem sursis como num confessionário o mais íntimo de si neste lugar solitário arúspice desentranha o aflito vocabulário de suas próprias entranhas neste lugar solitário faz a conta mais doída: em lançamentos diários a soma de sua vida PAES, José Paulo. Poesia completa. São Paulo: Companhia das letras, 2008. * * * VIAGEM NA FAMÍLIA Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) No deserto de Itabira a sombra de meu pai tomou-me pela mão. Tanto tempo perdido. Porém nada dizia. Não era dia nem noite. Suspiro? Vôo de pássaro? Porém nada dizia. Longamente caminhamos. Aqui havia uma casa. A montanha era maior. Tantos mortos amontoados, o tempo roendo os mortos. E nas casas em ruína, desprezo frio, umidade. Porém nada dizia. A rua que atravessava a cavalo, de galope. Seu relógio. Sua roupa. Seus papéis de circunstância. Suas histórias de amor. Há um abrir de baús e de lembranças violentas. Porém nada dizia. No deserto de Itabira as coisas voltam a existir, irrespiráveis e súbitas. O mercado de desejos expõe seus tristes tesouros: meu anseio de fugir; mulheres nuas; remorso. Porém nada dizia. Pisando livros e cartas viajamos na família. Casamentos; hipotecas; os primos tuberculosos; a tia louca; minha avó traída com as escravas, rangendo sedas na alcova. Porém nada dizia. * * * Que cruel, obscuro instinto movia sua mão pálida sutilmente nos empurrando pelo tempo e pelos lugares defendidos? Olhei-o nos olhos brancos. Gritei-lhe: Fala! Minha voz vibrou no ar um momento, bateu nas pedras. A sombra prosseguia devagar aquela viagem patética através do reino perdido. Porém nada dizia. Vi mágoa, incompreensão e mais de uma velha revolta a dividir-nos no escuro. A mão que eu não quis beijar, o prato que me negaram, recusa em pedir perdão. Orgulho. Terror noturno. Porém nada dizia. Fala fala fala fala. Puxava pelo casaco que se desfazia em barro. Pelas mãos, pelas botinas prendia a sombra severa e a sombra se desprendia sem fuga nem reação. Porém ficava calada. E eram distintos silêncios que se entranhavam no seu. Era meu avô já surdo querendo escutar as aves pintadas no céu da igreja; a minha falta de amigos; a sua falta de beijos; eram nossas difíceis vidas e uma grande separação na pequena área do quarto. * * * A pequena área da vida me aperta contra o seu vulto, e nesse abraço diáfano é como se eu me queimasse todo, de pungente amor. Só hoje nos conhecermos! Óculos, memórias, retratos fluem no rio do sangue. As águas já não permitem distinguir seu rosto longe, para lá de setenta anos... Senti que me perdoava porém nada dizia. As águas cobrem o bigode, a família, Itabira, tudo. ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983. * * * MEMÓRIA Cecília Meireles (1901-1964) A José Osório Minha família anda longe, com trajos de circunstância: uns converteram-se em flores, outros em pedra, água, líquen; alguns, de tanta distância, nem têm vestígios que indiquem uma certa orientação. Minha família anda longe, – na Terra, na Lua, em Marte – uns dançando pelos ares, outros perdidos no chão. Tão longe a minha família! Tão dividida em pedaços! Um pedaço em cada parte... Pelas esquinas do tempo, brincam meus irmãos antigos: uns anjos, outros palhaços... Seus vultos de labareda rompem-se como retratos feitos em papel de seda. Vejo lábios, vejo braços, – por um momento persigo-os; de repente, os mais exatos perdem sua exatidão. Se falo, nada responde. Depois, tudo vira vento, e nem o meu pensamento pode compreender por onde passaram nem onde estão. Minha família anda longe. Mas eu sei reconhecê-la: um cílio dentro do oceano, um pulso sobre uma estrela, uma ruga num caminho caída como pulseira, um joelho em cima da espuma, um movimento sozinho aparecido na poeira... Mas tudo vai sem nenhuma noção de destino humano, de humana recordação. * * * Minha família anda longe. Reflete-se em minha vida, mas não acontece nada: por mais que eu esteja lembrada, ela se faz de esquecida: não há comunicação! Uns são nuvem, outros, lesma... Vejo as asas, sinto os passos de meus anjos e palhaços, numa ambígua trajetória de que sou o espelho e a história. Murmuro para mim mesma: “É tudo imaginação!” Mas sei que tudo é memória... Cecília Meireles. Poesias completas v. 1; Viagem/Vaga música. Civilização Brasileira, 1976. * * * ANIVERSÁRIO Álvaro de Campos (1890-1935) No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, De ser inteligente para entre a família, E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida. Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo, O que fui de coração e parentesco. O que fui de serões de meia-província, O que fui de amarem-me e eu ser menino, O que fui – ai, meu Deus! – o que só hoje sei que fui... A que distância!... (Nem o acho...) O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! * * * O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa, Ponto grelado nas paredes... O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas [lágrimas), O que eu sou hoje é terem vendido a casa, É terem morrido todos, É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio... No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, Por uma viagem metafísica e carnal, Com uma dualidade de eu para mim... Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes! Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui... A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos, O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado – As tias velhas, os primos diferentes e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... In: Fernando Pessoa. Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965. * * * A FELICIDADE DE UNS Jacques Prévert (1900-1977) Peixes amigos amados Amantes dos que foram pescados em tamanha [quantidade Vocês assistiram a esta calamidade A esta coisa horrível A esta coisa terrível A este tremor de terra A pesca milagrosa Peixes amigos amados Amantes dos que foram pescados em tamanha [quantidade Dos que foram pescados cozidos comidos Peixes... peixes... peixes.. Como vocês devem ter rido No dia da crucificação. Tradução de Silviano Santiago PRÉVERT, Jacques. Poemas. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1985 * * * A JESUS CRISTO NOSSO SENHOR Gregório de Matos (1636-1696) Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado, Da vossa alta clemência me despido; Porque, quanto mais tenho delinqüido, Vos tenho a perdoar mais empenhado. Se basta a vos irar tanto pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido: Que a mesma culpa, que vos há ofendido, Vos tem para o perdão lisonjeado. Se uma ovelha perdida e já cobrada Glória tal e prazer tão repentino Vos deu, como afirmais na sacra história, Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, Cobrai-a; e não queirais, pastor divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória. MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos (Seleção, introdução e notas de José Miguel Wisnik). São Paulo: Cultrix, 1976. * * * EXÍLIO Jayro José Xavier (1936) No sexto andar daquele edifício não medravam morangos apenas quatro apartamentos por andar dois banheiros azulejos decorados vista para o parque etc. mas não não medravam morangos nem corriam rios de néctar e leite apenas quatro por andar e da janela debruçados para fora uma nesga, até quando? da baía e uma fuga de Bach para abafar lá dentro o pânico da rua o riso rouco Assim foi que se passou aquele ano até novembro e, de repente, saídas não se sabe de onde, inesperadas borboletas amarelas invadindo toda a casa aquela praga – amarelas e brancas – miudinhas devastando famintas os pesados tomos das obras de Marx e Marcuse Foi então que Anita retomou a leitura dos cantos de Davi e eu me senti sem pátria como quem perde a memória da infância e às vésperas do Natal compramos flores amarelas e brancas para enfeitar o prato de amêndoas e miséria de um mundo vazio de deuses XAVIER, Jayro José. Poemas. Niterói: Edição do Autor, 2007. * * * POEMA DO ALEGRE DESESPERO António Gedeão (1906-1997) Compreende-se que lá para o ano três mil e tal ninguém se lembre de certo Fernão barbudo que plantava couves em Oliveira do Hospital, ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores que tirou um retrato toda vestida de veludo sentada num canapé junto de um vaso com flores. Compreende-se. E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto (o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império) com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil, e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito, e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil, e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras, que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio, e passavam a vida inteira a fazer guerras, e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio, e o resto tudo por aí fora, e a Guerra dos Cem Anos, e a Invencível Armada, e as campanhas de Napoleão, e a bomba de hidrogénio, * * * e os poemas de António Gedeão.* Compreende-se. Mais império menos império, mais faraó menos faraó, será tudo um vastíssimo cemitério, cacos, cinzas e pó. Compreende-se. Lá para o ano três mil e tal. E o nosso sofrimento para que serviu afinal? In: http://dererummundi.blogspot.com.br/2010/11/poema-do-alegre-desespero.html acessado em 17/02/2015 * sem este verso in http://www.escritas.org/pt/poema/1492/poema-do-alegre-desespero acessado em 17/02/2015, bem como na versão dita por Aires Ferreira disponível em https://www.youtube.com/watch?v=hLKqbveXnBI, acessado em 17/02/2015 * * * O PRAZER DO DIFÍCIL William Butler Yeats (1865-1939) O prazer do difícil tem secado A seiva em minhas veias. A alegria Espontânea se foi. O fogo esfria No coração. Algo mantém cerceado Meu potro, como se o divino passo Já não lembrasse o Olimpo, a asa, o espaço, Sob o chicote, trêmulo, prostrado, E carregasse pedras. Diabos levem As peças de sucesso que se escrevem Com cinqüenta montagens e cenários, O mundo de patifes e de otários E a guerra cotidiana com seu gado, Afazer de teatro, afã de gente. Juro que antes que a Aurora se apresente Eu descubro a cancela e abro o cadeado. Tradução de Augusto de Campos In: CAMPOS, Augusto. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006. * * * EM SUMA Dorothy Parker (1893-1967) Navalhas doem, ácido mancha, o rio molha, drogas dão cãibra; arma é ilegal, laço desfaz-se, gás cheira mal. Viva: é mais fácil. Tradução de Nelson Ascher In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia: 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998. * * * O FERRAGEIRO DE CARMONA João Cabral de Melo Neto (1920-1999) Um ferrageiro de Carmona que me informava de um balcão: “Aquilo? É de ferro fundido, foi a fôrma que fez, não a mão. Só trabalho em ferro forjado que é quando se trabalha ferro; então, corpo a corpo com ele, domo-o, dobro-o, até onde quero. O ferro fundido é sem luta, é só derramá-lo na fôrma. Não há nele a queda-de-braço E o cara-a-cara de uma forja. Existe grande diferença do ferro forjado ao fundido; é uma distância tão enorme que não pode medir-se a gritos. * * * Conhece a Giralda em Sevilha? De certo subiu lá em cima. Reparou nas flores de ferro dos quatro jarros das esquinas? Pois aquilo é ferro forjado. Flores criadas numa outra língua. Nada têm das flores de fôrma moldadas pelas das campinas. Dou-lhe aqui humilde receita, ao senhor que dizem ser poeta: o ferro não deve fundir-se nem deve a voz ter diarréia. Forjar: domar o ferro à força, não até uma flor já sabida, mas ao que pode até ser flor se flor parece a quem o diga.” MELO NETO, João Cabral. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003 * * * * * * “SONETO A HELENA” Pierre de Ronsard (1524-1585) Quando fores bem velha, à noite, á luz da vela Junto ao fogo do lar, dobando o fio e fiando, Dirás, ao recitar meus versos e pasmando: Ronsard me celebrou no tempo em que fui bela. E entre as servas então não há de haver aquela Que, já sob o labor do dia dormitando, Se o meu nome escutar não vá logo acordando E abençoando o esplendor que o teu nome [revela. Sob a terra eu irei, fantasma silencioso, Entre as sombras sem fim procurando repouso: E em tua casa irás, velhinha combalida, Chorando o meu amor e o teu cruel desdém. Vive sem esperar pelo dia que vem; Colhe hoje, desde já, colhe as rosas da vida. Tradução de Guilherme de Almeida In: http://revistapandorabrasil.com/pagina_literaria/para_helena.htm acessado em 22/02/2015 * * * EL NUEVO SONETO A HELENA Pablo Neruda (1904-1973) Cuando estés vieja, niña (Ronsard ya te lo dijo), te acordarás de aquellos versos que yo decía. Tendrás los senos tristes de amamantar tus hijos, los últimos retoños de tu vida vacía... Yo estaré tan lejano que tus manos de cera ararán el recuerdo de mis ruinas desnudas. Comprenderás que puede, nevar en primavera y que en la primavera las nieves son más crudas. Yo estaré tan lejano que el amor y la pena que antes vacié en tu vida como un ánfora plena estarán condenados a morir en mis manos... Y será tarde porque se fue mi adolescencia, tarde porque las flores una vez dan esencia y porque aunque me llames yo estaré tan lejano. In: http://revistapandorabrasil.com/pagina_literaria/para_helena.htm acessado em 22/02/2015 * * * PERGUNTAS DE UM TRABALHADOR QUE LÊ Bertolt Brecht (1898-1956) Quem construiu a Tebas de sete portas? Nos livros estão nomes de reis. Arrastaram eles os blocos de pedra? E a Babilônia várias vezes destruída – Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas De Lima dourada moravam os construtores? Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta? A grande Roma está cheia de arcos do triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem Triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio Tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida Os que se afogavam gritavam por seus escravos Na noite em que o mar a tragou. O jovem Alexandre conquistou a Índia. Sozinho? César bateus os gauleses. Não levava sequer um cozinheiro? Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada Naufragou. Ninguém mais chorou? Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos. Quem venceu além dele? * * * Cada página uma vitória. Quem cozinhava o banquete? A cada dez anos um grande homem. Quem pagava a conta? Tantas histórias. Tantas questões. Tradução de Paulo César Souza BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Brasiliense, 1986. * * * S.O.S Chacal (1951) tem gente morrendo de medo tem gente morrendo de esquistossomose tem gente morrendo de hepatite meningite sifilite tem gente morrendo de fome tem gente morrendo por muitas causas nós que não somos médicos, psiquiatras nem ao menos bons cristãos, nos dedicamos a salvar pessoas que como nós sofrem de um mal misterioso: o sufoco. CHACAL. Drops de abril. São Paulo: Brasiliense, 1983. * * * Chacal Paulo Leminski * * * M, DE MEMÓRIA Paulo Leminski (1944-1989) Os livros sabem de cor milhares de poemas. Que memória! Lembrar, assim, vale a pena. Vale a pena o desperdício, Ulisses voltou de Tróia, assim como Dante disse, o céu não vale uma história. Um dia, o diabo veio seduzir um doutor Fausto. Byron era verdadeiro. Fernando, pessoa, era falso. Mallarmé era tão pálido, mais parecia uma página. Rimbaud se mandou pra África, Hemingway de miragens. Os livros sabem de tudo. Já sabem deste dilema. Só não sabem que, no fundo, ler não passa de uma lenda. LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. * * * UM POUCO DE STRAUSS Paulo Henriques Brito (1951) Não escreva versos íntimos, sinceros, como quem mete o dedo no nariz. Lá dentro não há o que compense todo esse trabalho de perfuratriz, só muco e lero-lero. Não faça poesias melodiosas e frágeis como essas caixinhas de música que tocam a “Valsa do Imperador”. É sempre a mesma lengalenga estúpida, sentimental, melosa. * * * Esquece o eu, esse negócio escroto e pegajoso, esse mal sem remédio que suga tudo e não dá nada em troca além de solidão e tédio: escreve pros outros. Mas se de tudo que há no vasto mundo só gostas mesmo é dessa coisa falsa que se disfarça fingindo se expressar, então enfia o dedo no nariz, bem fundo, e escreve, escreve até estourar. E tome [valsa. BRITTO, Paulo Henriques. Trovar claro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. * * * AS APARÊNCIAS REVELAM Antonio Carlos de Brito, Cacaso (1944-1987) Afirma uma Firma que o Brasil confirma: “Vamos substituir o Café pelo Aço”. Vai ser duríssimo descondicionar o paladar. Não há na violência que a linguagem imita algo da violência propriamente dita? BRITO, Antonio Carlos (CACASO). Lero-lero. Rio de Janeiro: 7 Letras; São Paulo: Cosac & Naify, 2002. * * * Dylan Thomas (1914-1953) A mão que assina o ato assassina a cidade. Cinco dedos reais taxam o ar – é a lei. Cevam o morticínio e ceifam um país; Os cinco reis que dão cabo de um rei. A mão que manda mana de um ombro em declínio, Cãibras deduram nós nos dedos que a cal cala. Penas de ganso firmam o assassínio Que pôs fim a uma fala. A mão que assina o pacto traz a peste, Praga e devastação, o gafanhoto e a fome; Grande é a mão que pesa sobre o homem Ao rabisco de um nome. Os cinco reis contam os mortos mas não curam A crosta da ferida e o rosto já sem cor. A mão rege a clemência como a outra os céus. Mãos não têm lágrimas a expor. Tradução de Augusto de Campos In: CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006. * * * Dylan Thomas * * * CONCLUSÃO QUASE NO FIM DA SUBIDA Giorgio Caproni (1912-1990) - Senhor, deve voltar ao vale. O senhor procura à sua frente o que deixou para trás. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini BERNARDINI, Aurora Fornoni (org. e trad.). Agamben comenta Caproni. Florianópolis; Ed. UFSC, 2011. * * * INANIA VERBA Olavo Bilac (1865-1918) Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava, O que a boca não diz, o que a mão não escreve? – Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve, Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava... O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava: A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve... E a Palavra pesada abafa a Idéia leve, Que, perfume e clarão, refulgia e voava... Quem o molde achará para a expressão de tudo? Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta? E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo? E as palavras de fé que nunca foram ditas? E as confissões de amor que morrem na garganta? BILAC, Olavo. Poesias. 5 ed,. São Paulo: Ediouro, s/d. * * * Olavo Bilac por Cassio Loredano Augusto dos Anjos * * * A IDEIA Augusto dos Anjos (1884-1914) De onde ela vem?! De que matéria bruta Vem essa luz que sobre as nebulosas Cai de incógnitas criptas misteriosas Como as estalactites de uma gruta?! Vem da psicogenética e alta luta Do feixe de moléculas nervosas, Que, em desintegrações maravilhosas, Delibera, e depois, quer e executa! Vem do encéfalo absconso que a constringe, Chega, em seguida, às cordas da laringe, Tísica, tênue, mínima, raquítica... Quebra a força centrípeta que a amarra, Mas, de repente, e quase morta, esbarra No molambo da língua paralítica! ANJOS, Augusto dos. Toda a poesia. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. * * * VIGÍLIA Giuseppe Ungaretti (1888-1970) Cima Quatro, 23 de dezembro de 1915 Toda uma noite em claro caído ao lado de um companheiro massacrado com sua boca arreganhada exposta à lua cheia com o hematoma de suas mãos cravado em meu silêncio escrevi cartas cheias de amor Não tinha estado nunca tão aferrado à vida ASCHER, Nelson. Poesia alheia: 124 poemas traduzidos. Rio de janeiro: Imago, 1998. * * * JANDIRA Murilo Mendes (1901- 1975) O mundo começava nos seios de Jandira. Depois surgiram outras peças da criação: surgiram os cabelos para cobrir o corpo, (às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos). E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo. E surgiram sereias da garganta de Jandira: o ar inteirinho ficou rodeado de sons mais palpáveis do que pássaros. E as antenas das mãos de Jandira captavam objetos animados, inanimados, dominavam a rosa, o peixe, a máquina. E os mortos acordavam nos caminhos visíveis do ar quando Jandira penteava a cabeleira... Depois o mundo desvendou-se completamente, foi-se levantando, armado de anúncios luminosos. E Jandira apareceu inteiriça, de cabeça aos pés. Todas as partes do mecanismo tinham importância. E a moça apareceu com o cortejo do seu pai, de sua mãe, de seus irmãos. Eles é que obedecem aos sinais de Jandira crescendo na vida em graça, beleza, violência. Os namorados passavam, cheiravam os seios de Jandira e eram precipitados nas delícias do inferno. * * * Eles jogavam por causa de Jandira, deixavam noivas, esposas, mães, irmãs por causa de Jandira. E Jandira não tinha pedido coisa alguma. E vieram retratos no jornal e apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira. Certos namorados viviam e morriam por causa de um detalhe de Jandira. Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira. Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira. E seus cabelos cresciam furiosamente com a força das máquinas; não caía nem um fio, nem ela os aparava. E sua boca era um disco vermelho tal qual um sol mirim. Em roda do cheiro de Jandira a família andava tonta. As visitas tropeçavam nas conversações por causa de Jandira. E um padre na missa esqueceu de fazer o sinal-da-cruz por causa de Jandira. E Jandira se casou. E seu corpo inaugurou uma vida nova, apareceram ritmos que estavam de reserva, combinações de movimento entre as ancas e os seios. À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas que repetem as formas e os sestros de Jandira desde o princípio do tempo. * * * E o marido de Jandira morreu na epidemia de gripe espanhola. E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela. Desde o terceiro dia o marido fez um grande esforço para ressucitar: não se conforma, no quarto escuro onde está, que Jandira viva sozinha, que os seios, a cabeleira dela transtornem a cidade e que ele fique ali à toa. E as filhas de Jandira inda parecem mais velhas do que ela. E Jandira não morre, espera que os clarins do juízo final venham chamar seu corpo, mas eles não vêm. E mesmo que venham, o corpo de Jandira ressuscitará inda mais belo, mais ágil e transparente. MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. * * * * * * O CORVO Edgar Allan Poe (1809-1849) * * * Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria, A ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais, E, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído, Tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar. "É alguém - fiquei a murmurar - que bate à porta, devagar; Sim, é só isso e nada mais." Ah! claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro E o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais. Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda Algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora - Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora E nome aqui já não tem mais. A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina, Arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais. De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia E a sossegá-lo eu repetia: "É um visitante e pede abrigo. Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo. É apenas isso e nada mais." Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim: "Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais; Mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido, Que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta, Assim de leve, em hora morta." Escancarei então a porta: - Escuridão, e nada mais. * * * * * * Sondei a noite erma e tranqüila, olhei-a a fundo, a perquiri-la, Sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais. Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo, Só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: "Lenora!" E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: "Lenora!" Depois, silêncio e nada mais. Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente, Mais forte, o ruído recomeça e repercute nos vitrais. "É na janela" ? penso então. ? "Por que agitar-me de aflição? Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento, O vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento. É o vento só e nada mais." Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto: - É um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais. Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto, Adeja e pousa sobre o busto - uma escultura de Minerva, Bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva, Empoleirado e nada mais. Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura, Desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais. "Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular" - então lhe digo - "Não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo!" Qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!" E o Corvo disse: "Nunca mais." * * * * * * Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe, Misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais; Pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente, Que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta, Uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta E que se chame "Nunca mais". Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria, Com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais. Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena, Enquanto a mágoa me envenena: "Amigos... sempre vão-se embora. Como a esperança, ao vir a aurora, ELE também há de ir-se embora." E disse o Corvo: "Nunca mais." Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo, Julgo: "É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais. Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura E a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo De seu cantar; do morto anelo, um epitáfio: - o ritornelo De "Nunca, nunca, nunca mais". Como ainda o Corvo me mudasse em um sorriso a triste face, Girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais E, mergulhado no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim, Visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo, Com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo Grasnava sempre: "Nunca mais." * * * Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente, Eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais. Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada Dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente, Dessa poltrona em que ela, ausente, à luz cai suavemente, Já não repousa, ah! Nunca mais... O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso Ali descessem a esparzir turibulários celestiais. "Mísero!, exclamo. Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus, Esquecimento, lá dos céus, para as saudades de Lenora, Sorve o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!" E o Corvo disse: "Nunca mais." "Profeta! -brado. - Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal Que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais, De algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita Mansão de horror, que o horror habita, imploro, dize-mo, em verdade: Existe um bálsamo em Galaad? Imploro! Dize-mo, em verdade!" E o Corvo disse: "Nunca mais." "Profeta!" exclamo. "Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal! Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais, Fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante, Verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora, Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!" E o Corvo disse: "Nunca mais!" * * * * * * "Seja isso a nossa despedida! - ergo-me e grito, alma incendida. - Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais! Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste! Deixa-me só neste ermo agreste! Alça teu vôo dessa porta! Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!" E o Corvo disse: "Nunca mais!" E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio, Sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais. No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme, E a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra. Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra, Não há de erguer-se, ai! nunca mais! Tradução de Milton Amado In: BARROSO, Ivo (org.). Edgar Allan Poe: O Corvo e suas traduções. 3 ed. São Paulo: Leya, 2012. * * * Edgar Allan Poe (as ilustrações do poema são de Gustave Doré) * * * À ESPERA DOS BÁRBAROS Konstantinos Kaváfis (1863-1033) O que esperamos na ágora reunidos? É que os bárbaros chegam hoje. Por que tanta apatia no senado? Os senadores não legislam mais? É que os bárbaros chegam hoje. Que leis hão de fazer os senadores? Os bárbaros que chegam as farão. Por que o imperador se ergueu tão cedo e de coroa solene se assentou em seu trono, à porta magna da cidade? É que os bárbaros chegam hoje. O nosso imperador conta saudar o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe um pergaminho no qual estão escritos muitos nomes e títulos. * * * Por que hoje os dois cônsules e os pretores usam togas de púrpura, bordadas, e pulseiras com grandes ametistas e anéis com tais brilhantes e esmeraldas? Por que hoje empunham bastões tão preciosos, de ouro e prata finamente cravejados? É que os bárbaros chegam hoje, tais coisas os deslumbram. Por que não vêm os dignos oradores derramar o seu verbo como sempre? É que os bárbaros chegam hoje e aborrecem arengas, eloqüências. Por que subitamente esta inquietude? (Que seriedade nas fisionomias!) Por que tão rápido as ruas se esvaziam e todos voltam para casa preocupados? * * * Porque é já noite, os bárbaros não vêm e gente recém-chegada das fronteiras diz que não há mais bárbaros. Sem bárbaros o que será de nós? Ah! eles eram uma solução. Tradução de José Paulo Paes KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982 * * * AS PLACAS Christian Morgenstern (1871-1914) Não se deve zombar das placas que trazem uma mão mostrando o que ali fazem; o nome de um bar que atrai o freguês, os regulamentos que a polícia fez. Elas são, se nada mais fala neste vasto mundo um maravilhoso exemplo, justo e profundo: sua modesta presença é uma lição de cultura: aqui reina o homem, não mais o urso e o miura. Tradução de Montez Magno MORGENSTERN, Christian. Canções da forca. São Paulo: Roswitha Kempf, 1983. * * * Heinrich Heine (1797-1856) Larga as parábolas sagradas, Deixa as hipótese devotas, E põe-te em busca das respostas Para as questões mais complicadas. Por que se arrasta miserável O justo carregando a cruz, Enquanto, impune, em seu cavalo, Desfila o ímpio de arcabuz? De quem é a culpa? Jeová Talvez não seja assim tão forte? Ou será Ele o responsável Por todo o nosso azar e sorte? E perguntamos o porquê, Até que súbito – afinal – Nos calam com a pá de cal Isto é resposta que se dê? Tradução de André Vallias HEINE, Heinrich. Heine hein? Poeta dos contrários. Introd. e trad. André Vallias. São Paulo: Perspectiva, 2011. * * * Marcelo Diniz (1967) Ela jamais de mim pediu soneto, sequer rondó, sequer haikai, balada, em seu vocabulário, é só noitada a fim de sacudir seu esqueleto; quanto à canção, retrato em branco e preto conhece só porque foi regravada numa batida que a deixou bolada no remix de um DJ seu predileto; mas ela dança, sim, sem compromisso com estilo algum, solta no balanço da pista, misturada ao reboliço; e é sempre nesse lance que eu me lanço, submisso, sem saber, ao seu feitiço, cantando o refrão: se ela dança, eu danço. In:http://marcelodinizmaisum.blogspot.com.br/ acessado em 27/02/2015 * * * Marcelo Diniz Glauco Mattoso * * * SONETO 233 SONETADO Glauco Mattoso Já li Lope de Vega e li Gregório, pois ambos sonetaram do soneto, seara na qual minha foice meto, tentando fazer algo meritório. Não quero usar o mesmo palavrório, mas pilho-me, no meio do quarteto, montando a anatomia do esqueleto. No oitavo verso, o alívio é provisório. Contagem regressiva: faltam cinco. Mais quatro, e fico livre do problema. Agora faltam três... Deus, dai-me afinco! Com dois acabo a porra do poema. Caralho! Só mais um! Até já brinco! Gozei! Matei a pau! Que puta tema! MATTOSO, Glauco. Pegadas noturnas (Dissonetos barrockistas). Rio de Janeiro: Lamparina, 2004. * * * AUTOPSICOGRAFIA Fernando Pessoa (1888-1935) O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas da roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama o coração. PESSOA, Fernando. Obra poética. 2 ed. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965. * * * Heine Pessoa Morgenstern XAVIER, Jayro José. Poemas. Niterói: Edição do Autor, 2007.
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