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de dois gozos deixa um vazio irredutível. É então que só o apoio da beleza permite não recuar e amar o próximo fazendo-se o próximo de seu próprio gozo. Assim, Lacan, falando da arte de Sófocles, que se dirigia ao pú blico através de Antígona, dizia: “Função da beleza: barreira extrema a proibir o acesso a um horror fundamental21 O FIM DA ANÁLISE Assim, o fim da análise em caso de neurose obsessiva é a passa gem da segunda à terceira lei. As interrogações de Freud sobre o Supereu 20 Ed. de Minuit, 1957, p. 118. 21 É m is, p. 776. 159 Psicose, perversão, neurose nos levam, portanto, a concluir com Lacan que essa neurose, longe de ser patológica, tem a ver, ao contrário, com a normalidade coletiva. Nada mais preocupado com normatividade que o obsessivo. Com efeito, essa neurose é o sintoma das exigências da moral civilizada. Essa normatividade pode bem suportar-se durante um certo tem po, até o dia em que a fraqueza do Eu se revela diante das exigências do Supereu. E assim que a psicanálise pode tomar lugar. Mas para levar aonde? Não recusar responder é reconhecer que a psicanálise costuma parar no meio do caminho: supressão de algu mas defesas do Eu, sentimento menor de culpa. Por isso é que o fim da análise pode então se resumir nesta fórmula: passagem do Supereu do ter ao ser. O Supereu que o sujeito tinha em relação a si mesmo toma-se aquele que o sujeito se tom ou em relação à família, à profissão, à política... e à religião eventualmente! E este o alívio do Supereu após uma meia análise. Em vez de ser constrangido, esmagado, culpado, o sujeito constrange, esmaga, culpa os outros; assim, ele se sente melhor. Ele impõe à sua volta sua hiperatividade e censura os outros por per derem tempo e se deixarem levar. Por isso é que quando dois obsessivos se encontram para um mesmo trabalho é a guerra. Com efeito, não há receptividade possível do discurso do outro. Este só pode parecer insensato. Assim, Lacan podia dizer: E inconcebível que um obsessivo não possa dar o mínimo sen tido ao discurso de outro obsessivo. É mesmo daí que partem as guerras de religião22. E o “religioso” pode ser encontrado em toda parte... até na comunidade analítica23. — “Introdução à edição alemã dos Escritos”, Paris, Le Seuil, Scilicet, 5, p. 16. 23 Assim, qualificaremos a experiência analítica de “trabalho” no esquecimento de que sua etimologia de tripalium significa um instrumento de tortura. Não é a ordem de ferro do Supereu? 160 O RECUO DE FREUD Ao contrário, ir até o final da análise é descobrir outra lei, a do desejo, com o que o gozo pode ser atingido a partir mesmo do interdi to no risco da perda de domínio e de normalidade social. Í 6 Í IV Histeria 1 A subversão histérica Pode-se ainda falar de histeria? Como defim-la? Cada defini ção não é efêmera e incessantemente questionada em função do con texto social? N o entanto, aqueles que usam essa nomeação não devem saber, enfim, após tantos séculos de pesquisa... e de tratamento terapêutico? A histeria desorienta primeiramente por seus sintomas, que lhe são atribuídos. Com efeito, eles são contraditórios: os risos e os cho ros, a depressão e a euforia, a frigidez e o calor, a hiperestesia e a anestesia, a afasia e a volubilidade, anorexia e a bulimia, as convulsões e as paralisias, a epilepsia e a contração, etc. Mas e quanto à causa deles? Que resposta de ordem etiológica? ✓ E impressionante constatar sobre esse ponto uma constante na resposta daqueles que sabem: a causa seria da ordem de uma força, de uma potência a um só tempo interna e externa, que, tomada livre, vem transtornar à nossa revelia nossas sensações, nossos pensamentos e nos sos atos. Essa força foi designada por nomes diversos ao longo dos séculos, e a história da histeria é a de uma sinonímia. N a A n t ig ü id a d e Desde a época dos médicos e filósofos gregos até o século x v ii, a patologia histérica (ta hysterika pathe) vem do órgão feminino do útero (hystera). Ao se mover por si mesmo no corpo, ele provoca sufocação, afonia, epilepsia, torpor. É esta a posição de Hipócrates, de Celso, de Areteu, de Soranos. P sicose, perversão, neurose Mas por que, então, esse distúrbio e não outro? Em razão da ausência de relações sexuais (viúvas, mulheres sem filho); assim, a matriz seca demais toma-se errante e andeja. Com efeito, o pensa mento dos médicos e filósofos gregos é que uma mulher deve ser submissa a um homem, como o corpo à alma. Aristóteles dizia que “a alma comanda o corpo com a autondade de um mestre, e o inte lecto comanda o desejo (orexis) com a autoridade de um estadista ou de um rei” . E ele acrescentava: “A relação do macho com a fêmea é por natureza (physeí) a de superior a inferior, de governante a gover nado1 ” . Essa complementaridade na desigualdade aparece em todas as so ciedades tradicionais. Assim, Françoise Héritier dizia a respeito delas: A classificação dicotômica valorizada das aptidões, compor tamentos, qualidades conforme os sexos, que encontramos em toda sociedade, remete a uma linguagem em categorias mais amplas: correspondências se estabelecem [...] entre essas re lações macho/fêmea, direita/esquerda, alto/baixo, quente/ frio, etc1 2. Por isso é que Danielie Gourevitch pôde assim concluir: Os médicos antigos entenderam bem que a histeria, doença do corpo feminino, era a doença da mulher inteira, e mais precisa mente da mulher em suas relações com o homem, na medida em que as relações sexuais ou a ausência delas modificam seu equilíbrio hormonal e a topografia de seus órgãos3. Sim, mas então a verdadeira questão é esta: de onde vem, por tanto, a doença na mulher? Será porque lhe falta um homem que a ela se imponha e assim remeta o útero a seu lugar de matriz fecundada? 1 Política, I, 6 e 7. 2 M asculin/Féminin, O. Jacob, 1996, p. 70. J Le M al d ‘être fem m c, Les Belles-Lettres, 1984, p. 127. 166 A SUIiVERSÃO HISTÉRICA Ou, ao inverso, será porque a mulher se revolta contra a dominação do pnncípio masculino, dominação a um só tempo sexual e social? Ora, essas questões não são colocadas e ficarão muito, muito tempo ausentes. A TRADIÇÃO TEOLÓGICA A partir de Santo Agostinho, a etiologia é revolucionada. A histeria não tem mais a ver com a matriz; ela muda de nome para designar essa força subversiva na mulher: ela se chama uma “posses são”. Mas, então, essa força que não é “conforme à natureza” é divina ou demoníaca? E esta a questão a que se deve responder, de acordo com estes três tempos: 1. O instante de ver a Êxtases, transes, convulsões, estigmas no corpo deixam ver si nais; essas marcas fazem mancha chamando a visão. Com uma agulha, o espetador público põe o corpo na questão: ele está sofrendo? O u está anestesiado? 2. O tempo de saber Este tempo é reservado aos peritos que são não os médicos, mas os teólogos. O que se chamava histeria não é mais uma doença, mas um enfeitiçamento que pede uma interpretação científica. Assim toma lugar a ciência teológica que, seguindo critérios cada vez mais preci sos, permite decidir: causa divina ou demoníaca. O melhor exemplo disso é o manual Malleus maleftcarum. 3 3. O momento de concluir Este momento permite passar do saber ao poder: o do exorcista que, por sua fala, expulsa o demônio do enfeitiçado, ou o poder polí tico que executa pelo fogo a condenação pública da feiticeira e dos feiticeiros. Ou, bem ao contrário, a possessão é reconhecida ser a do próprio Espírito divino que toma vias estranhas, ditas místicas, para 167 Psicose, perversão, neurose manifestar-se. Assim, a cada vez, é a conformidade às regras da insti tuição eclesiástica que é questionada. Com efeito, como a histena, a possessão contesta o poder polí- tico-religioso, isto é, a dominação