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negações da identidade do RS

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Negações da identidade do Rio Grande do Sul 
Luiz Roberto Pecoits Targa (FEE, Brasil) 
 
 É evidente para qualquer pessoa de bom senso, seja ela um sul-rio-grandense ou 
um outro brasileiro, que o mundo do Sul, mesmo hoje em dia, continua sendo profundamente 
distinto dos demais mundos brasileiros, e muito mais do que eles o são entre si. No entanto, a 
maior parte dos intelectuais gaúchos formados nas escolas do “centro”1- assim como, é claro, 
a própria intelectualidade das universidades do “centro”- decidiu que não é assim. Eles 
resolveram que o Rio Grande do Sul deveria ser igual ao resto do País. Para esses intelectuais, 
obviamente, o seu exercício lhes parece ser o de ir além das aparências. No entanto não vão. 
O que fazem é repetir o modelo interpretativo ensinado no “centro”. E é por isso que as 
interpretações se calcam, monótona e empobrecedoramente, no esquema analítico de centro-
periferia2. Ocorra, ou tenha ocorrrido, não importa o que de diverso no Sul, ele é sempre 
interpretado ou como o fruto do atraso desta sociedade, ou como não possuindo nenhum 
significado3(Targa, 1998: 9). 
 O resultado de toda esta valentia intelectual é o de borrar a fisionomia da História 
do Sul, o de esmaecer seus traços característicos. No fundo, o que a maioria precisa negar é a 
autonomia e a individuação da formação histórica do Sul. Esta é uma hipótese que a 
esmagadora maioria dos pesquisadores em ciências sociais do Brasil (em História, Economia, 
Sociologia ou Política) se recusam terminantemente a aceitar. Entretanto ela possuiria pelo 
menos o mérito de mostrar que a sua contrapartida, formulada pelos interesses do “centro”, 
não passa, ela também, de uma hipótese: a da unidade da formação histórica do Brasil (Targa, 
1998: 10). 
 No entanto, nosso ponto de vista diferenciador também o é por uma simples 
questão de bom senso, pois, se na visão “deles”, a sociedade sul-rio-grandense foi desde 
sempre periférica, como é possível que tenha fabricado o homem que deu o passo mais 
importante da modernização brasileira? Se aqui se ter formado Getúlio Vargas não tiver sido 
fruto do mero acaso e se o Rio Grande do Sul não foi jamais o epicentro político ou 
 
1
 Rio de Janeiro e São Paulo. 
2
 O modelo “centro-periferia” clássico no Brasil foi formulado por Celso Furtado e buscava demonstrar através 
do comércio do Nordeste brasileiro com o exterior (superavitário) e com o Sudeste do Brasil (deficitário) a 
vigência do “colonialismo interno”(Love, 1998: 381 a 383). Entretanto, não é neste sentido original que 
utilizamos esta nomeação aqui, e por isso chamamo-la de paradigma, mas um tipo de interpretação dos 
fenômenos que ocorrem nas regiões que não constituem o “centro” do País e que conclui, sistematicamente, pela 
desvalorização relativa dos mesmos. Vamos apresentar, neste texto, três destes exemplos. 
3
 É claro que afora o fascínio provinciano de pensar como os do “centro”, essas criaturas ainda arrostam a 
questão de fazer passar suas teses no território intelectual “deles”. A partir do século passado, os europeus já 
vieram fazendo isso com os latino-americanos, com os indianos e com os africanos. Os norte-americanos 
econômico do País, essa gestação poderia indicar que de fato algo de raro se passara na 
sociedade gaúcha. E, de fato, passou-se. Desvencilhar-se, no entanto, dos vícios do modelo 
interpretativo “centro-periferia” não é nem simples nem imediato. Este modelo 
generalizadamente aceito, inclusive pela maioria dos cientistas sociais sul-rio-grandenses, é 
veículo da hegemonia intelectual paulista. 
 Nós podemos afirmar, então, que a Universidade de São Paulo (a USP e, por 
extensão, também a UNICAMP) cumpriu o objetivo para o qual foi criada. Esta afirmação 
parte da seguinte constatação: quando a economia cafeeira entrou em crise com a débâcle de 
1929, seus políticos foram militarmente derrotados, em 1930, por Getúlio Vargas. Este era, 
então, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul e havia perdido as eleições para a 
Presidência do Brasil para o candidato de São Paulo. Pouco depois, em 1932, os paulistas 
levantaram-se em armas contra Vargas e foram novamente derrotados. A elite paulista 
derrotada postulou, então, a necessidade de criar uma universidade que a aparelhasse 
intelectualmente e que permitisse, com o tempo, que ela recuperasse a hegemonia sobre o 
País.4 A USP foi, assim, criada em 1934, para fazer face à derrota paulista infligida pelos 
gaúchos (Cunha, 1980: 213-241)5. Não é à toa que Vargas nunca tenha sido figura benquista 
entre os paulistas (intelectuais ou não). 
 O paradigma centro-periferia realizou uma lavagem cerebral na formação dos 
cientistas sociais meridionais. Em assim sendo, seguidamente, ele volta a infiltrar-se nos 
interstícios do raciocínio. Ele ainda deforma em profundidade a compreensão de muitos fatos 
e fenômenos da sociedade meridional6. 
 Nós examinaremos três formas de negar (ou de anular) evidências em favor da 
caracterização de uma identidade sul-rio-grandense: pela indiferenciação, pela desvalorização 
e pela aplicação (implícita ou explícita) do paradigma “centro-periferia”. 
 
 
fizeram-no com os outros asiáticos neste século (Targa, 1998: 9). 
4
 Nas palavras de Júlio Mesquita Filho (O Estado de São Paulo): “Vencidos pelas armas, sabíamos perfeitamente 
que só pela ciência e pela perseverança no esforço voltaríamos a exercer a hegemonia que durante longas 
décadas desfrutávamos no seio da Federação.” (Cunha, 1980: 236). 
5
 Em maio de 1933, alguns líderes paulistas fundaram a Escola Livre de Sociologia e Política e no manifesto dos 
fundadores aparece a ligação entre a derrota político-militar e a criação da Escola (Cunha, 1980: 235). 
6
 Finalmente, nós mesmos já produzimos muitos textos dentro desta perspectiva de centro-periferia. No entanto, 
alteramos nossa posição pelo fato de haver encontrado, ao longo de várias investigações, evidências que 
negavam a caracterização de periférica tanto para a economia quanto para a sociedade sul-rio-grandense. 
Sentimo-nos, então, confortáveis para criticar manifestações deste tipo de conduta intelectual, pois que a 
partilhamos durante muito tempo e sabemos das dificuldades que enfrentamos para deslocar o ponto de vista. . 
 
1. A NEGAÇÃO PELA INDIFERENCIAÇÃO 
 No Brasil, os analistas sociais costumam apresentar fenômenos, processos e quejandos que se 
desenrolaram nas sociedades regionais de São Paulo e do Rio de Janeiro como sendo a encarnação mesma do 
nacional. Deste modo, a história destas duas regiões esgota a história nacional. As outras são histórias regionais. 
Neste tipo de conduta, por exemplo, apresentam a história econômica de SP como sendo a do capitalismo 
nacional e, com isso, suprimem todas as outras histórias regionais porque só se conta, como nacional, a história 
daquela região e, em assim sendo, ela ocupa todo o espaço nacional e elimina as histórias das demais regiões. 
 Uma brilhante variante deste tipo de análise foi assimilar as categorias sociais da história brasileira, 
responsáveis pela transição do sistema escravista para o capitalista, a atores sociais que só pertenceram à história 
da sociedade paulista, como fez Florestan Fernandes n’A Revolução Burguesa no Brasil (1987). Ignoram-se, 
deste modo, processos e atores que realizaram a transição em outras regiões do Brasil. Esta operação estabelece, 
implicitamente, que a transição não ocorreu alhures. Afirma que o processo só existiu naquela em São Paulo. Ou 
seja, somente aquela região fez história. 
 Uma outra vertente, mais insidiosa e difícil de discernir, é quando as histórias das outras regiões 
são escritas em função da históriada região-centro. Em outras palavras, só fazem sentido os fenômenos que 
estiverem em relação com a história da região-centro. Tudo o que não possa reiterar essa relação (aliás, de 
subordinação) é ignorado. É evidente que esta é uma operação de violenta deformação da história das outras 
regiões e de afirmação da hegemonia histórica da região-centro. 
 Uma variante deste último caso é aquele em que o sentido dos fenômenos ocorridos na região não-
central é buscado através de uma analogia implícita com os fenômenos da região-centro que modela e dirige a 
interpretação. É um caso desta última natureza que vamos examinar em primeiro lugar. 
 O trabalho de Fernando Henrique Cardoso (1977) sobre a sociedade escravista do Rio 
Grande do Sul ilustra bem o etnocentrismo paulista.7 Neste trabalho, a sociedade meridional é 
interpretada como sendo uma forma inacabada ou de realização imperfeita da sociedade escravista 
clássica do Brasil: a das plantations de açúcar e de café. 
 A comparação é realizada de modo implícito, nunca é verdadeiramente explicitada nem 
assumida como método. E, no entanto, ela está sempre lá, presidindo a interpretação. Isso permitiu a 
infiltração do viés regionalista paulista na análise de Cardoso. E, malgrado, seu trabalho seja uma 
fonte maravilhosa de informações sobre o RGS escravista, este viés impediu-o de compreender que 
ele estava analisando uma economia e uma sociedade escravista que eram totalmente diversas do 
caso paulista. Neste caso, então, o escravismo gaúcho não poderia ser um momento da tendência a 
realizar-se como escravismo paulista. Esta diversidade, que indica a não redutibilidade da sociedade 
meridional à paulista como faz Cardoso em sua análise, será examinada a seguir, depois de 
caracterizarmos a economia escravista paulista. 
 Em SP (como de resto nas regiões importantes de agricultura de exportação do Brasil) 
três características se sobrepuseram sempre até 1888: latifúndio, escravismo e monocultura de 
exportação para o mercado internacional. O café, no caso, (tal como anteriormente o açúcar do 
Nordeste) gozou de uma posição monopolística no mercado internacional. O setor cafeeiro não 
possuía relação com outros setores econômicos em SP, pois estes não eram produtores de 
mercadorias, uma vez que a plantation, firma típica da produção cafeeira, era uma autarquia 
econômica e sufocava o desenvolvimento da divisão social do trabalho na região. Esta economia 
cafeeira engendrou as duas classes fundamentais da sociedade paulista: a classe dos senhores 
rurais de escravos e a classe dos escravos rurais. Vejamos então as diferenças com a sociedade e a 
economia escravistas do Sul. 
1. Em SP havia um único setor produtor de mercadoria, o produtor de café. O RGS, pelo contrário, 
possuia 3 setores produtores de mercadorias: o pecuário, o charqueador e o dos pequenos 
produtores imigrantes (não-ibéricos) das colônias de povoamento. 
2. No RGS aquelas três características básicas do mundo agrário brasileiro jamais se 
sobrepuseram: o latifúndio foi pecuário, não foi escravista e produzia para um outro setor da 
região (o charqueador). Assim, o latifúndio pastoril não criou uma classe de senhores rurais à 
qual correspondesse uma classe de escravos rurais. Os senhores rurais do Sul constituíram uma 
classe de senhores de terras profundamente diversa daquela que presidiu a cafeicultura. E não 
houve, conseqüentemente a formação da correspondente classe dos escravos rurais, tão 
importante para a sociedade cafeicultora. 
3. No RGS, a escravidão produtiva concentrou-se nas charqueadas. Elas constituíram a firma típica 
escravista do RGS. O setor charqueador era o único setor da economia meridional cujo 
empreendimento dependia fundamentalmente do trabalho escravo. As charqueadas não eram 
rurais, eram proto-urbanas, pois localizavam-se ao redor das cidades portos ou dos centros 
urbanos de exportação da fronteira com o Uruguai. Salvo conjunturalmente, nunca detiveram o 
desejado monopólio do mercado brasileiro, pois as classes dominantes escravistas8 das outras 
regiões do País faziam questão de jogar com a concorrência exercida pelo produto dos saladeros 
da região do Rio de la Plata. Os charqueadores constituíram uma classe social não rural (muitos 
eram comerciantes urbanos) e era a classe à qual correspondiam uma classe de escravos 
produtivos, também não rural. Então, as classes fundamentais da economia escravista meridional 
eram outras que não as geradas pela plantation de café. Logo, se as classes fundamentais do 
escravismo não eram as mesmas nas duas regiões é porque as duas sociedades eram diversas. 
4. Enquanto a plantation era uma autarquia, praticamente auto-suficiente, a charqueada dependia 
do mercado até mesmo para a alimentação e vestuário de seus escravos. A charqueada foi, 
nesta questão, o único tipo de firma escravista brasileira que não produzia para a subsistência 
dos seus próprios escravos (até mesmo as firmas de mineração interiorizavam esta produção). 
5. Mas a distinção mais importante entre as duas economias regionais está na existência de um 
terceiro setor no RGS (inexistente em SP): o dos imigrantes pequenos proprietários e de suas 
cidades com artesanato e pequenas indústrias. Este foi um universo social de pequenos 
produtores de mercadorias. Universo em expansão desde 1824 e cujo peso econômico na região 
aumentaria progressivamente ao longo do século 19, chegando mesmo a ameaçar a supremacia 
do pecuário e do charqueador no final do século. Os imigrantes, em sua maioria expropriados na 
 
7
 Mesmo quando se trata de um dos melhores estudos jamais realizados sobre a história do RGS. 
8
 O charque era ítem importante da alimentação dos escravos e das classes urbanas pobres. 
Europa, passavam a ser proprietários dos meios de produção e de vida no RGS. Em SP 
fracassara a tentativa realizada com imigrantes europeus (não ibéricos) no café, na metade do 
século 19. Os imigrantes permaneciam expropriados e passavam a ser parceiros na produção do 
café. Ou seja, se os imigrantes no Sul vieram para criar uma sociedade alternativa à escravista, 
em SP os imigrantes vieram ocupar o lugar dos escravos na produção cafeeira. E, muitas vezes, 
tiveram que trabalhar lado a lado com eles. A experiência paulista com trabalhadores livres 
europeus fracassou porque os senhores queriam tratá-los como escravos, e isso adiou o fluxo 
migratório para SP até abolição da escravatura em 1888. Ou seja, no Sul o universo econômico e 
social criado pelos imigrantes era uma contestação viva ao setor escravista e colaborou para sua 
crise (ver item 6), em SP o escravismo, enquanto existiu, bloqueou a imigração não-ibérica. E 
esta questão da relação de substituição do trabalho escravo pelo livre foi a mais importante da 
sociedade brasileira no século 19. Como vimos, cada região criou uma resposta totalmente 
diversa à esta relação. 
6. No Sul, as colônias de povoamento contribuíram para a crise do setor escravista, pois a 
existência deste setor foi um dos responsáveis pela crise de mão-de-obra das charqueadas. Isso 
porque os imigrantes chegavam pelo porto do Rio Grande (a mais importante zona de 
charqueadas do RGS), e, ao invés de se assalariarem nas charqueadas, preferiam deslocar-se 
para o norte do RGS (muitas vezes com passagem e hospedadem pagas pelo Governo 
Provincial), onde teriam acesso à propriedade da terra e a instrumentos de trabalho. 
7. A crise do escravismo também foi profundamente distinta nas duas regiões (o tráfico foi 
interrompido em 1850). Em SP, ela provocou a concentração dos escravos do País na cultura de 
exportação. As charqueadas meridionais perderam seus escravos para a cafeicultura. E entraram 
em uma crise de mão-de-obra. Alémdisso, enquanto o setor cafeeiro expandiu-se firmemente ao 
longo do século 19, o das charqueadas meridionais entrou em crise e decadência depois da 
metade do século. 
 E, malgrado, a esmagadora maioria dos fatos apresentados fossem do conhecimento de 
Cardoso, pois somente as classes fundamentais não fizeram parte do seu esquema analítico, ele 
concluiu que esta sociedade escravista meridional fora um caso de realização imperfeita do 
escravismo senhorial das plantations. Fazendo isso, Cardoso apagou as particularidades da 
sociedade escravista do Sul, esmaecendo as características mais importantes desta outra história 
regional. E se o autor chegou a este resultado deformador, foi porque analisou os fenômenos 
particulares do escravismo gaúcho à luz do escravismo paulista. Reduziu a sociedade meridional à 
paulista e, deste modo, ela apareceu como um caso imperfeito. Ele impediu-se, assim, de perceber 
que o escravismo do Sul era um todo em si mesmo e um todo muito diverso do paulista. Em suma, 
Cardoso retirou toda a especificidade à sociedade escravista gaúcha e despojou-a, assim, de sua 
própria história. 
 
2. A NEGAÇÃO PELA DESVALORIZAÇÃO9 
 
9
 In: Targa, 1998A : 63-85. 
 Durante a Primeira República (1889-1930), ocorreram no Rio Grande do Sul dois 
fatos que poderiam ser caracterizados como extraordinários no contexto brasileiro das 
relações entre Estado e sociedade. Foram eles a atitude do Governo do Estado face às 
demandas dos trabalhadores grevistas em 1917 e a sua atitude (seus motivos) para a 
encampação da Cia. estrangeira que produzia os serviços de transportes ferroviários no 
Estado, em 192010. Examinemos sumariamente cada um dos fatos e passemos, depois, à 
interpretação de Pedro C. D. Fonseca (1993). 
 
2. 1. A resposta do PRR às reivindicações dos grevistas de 1917 
 O primeiro fato inscreve-se no contexto criado pela Primeira Guerra Mundial, 
pois ela provocara no Rio Grande do Sul, como de resto em todo o Brasil, a exportação para 
os países beligerantes de bens de primeira necessidade que não faziam parte da pauta clássica 
das exportações, o que provocou o deslocamento da oferta interna para o atendimento da 
demanda internacional. Esse fato, aliado a uma política federal emissionista - para financiar os 
déficits orçamentários, bem como a política de sustentação dos preços do café11 -; provocou 
uma inflação interna,12 com elevação dos preços dos bens de primeira necessidade (Bodea, 
s.d.:21). Os especuladores entraram em ação (Maram, 1979: 133). Desse modo, instalou-se, 
no Brasil, uma conjuntura de penúria de bens-salário que provocou a generalização de 
movimentos grevistas nas principais capitais do país, movimentos esses que se alastraram 
pelo interior dos estados. No início de julho, em São Paulo, o movimento grevista espalhou-se 
com violência e chegou a contar com 50.000 operários na metade do mês, tendo sido 
duramente reprimido pela polícia (Hardman e Leonardi, 1982: 348-350). Em um dos 
confrontos, ocorreu a morte de um sapateiro, cujo enterro transformou-se em uma 
manifestação impressionante (Fausto, 1995: 301) e que terminou por desencadear uma onda 
enorme de saques a lojas e depósitos de alimentos (Pinheiro e Hall, 1979: 227-228). São 
Paulo transformou-se em uma praça de guerra, concentrando tropas do interior do Estado e do 
Rio de Janeiro para enfrentar os operários (Maram, 1979:134). Ao clima instaurado pelos 
operários paulistas, em 18 de julho, somou-se o recrudescimento do movimento grevista no 
 
10
 Durante quase todo o período da chamada Primeira República no Brasil, o poder público sul-rio-
grandense esteve ocupado pelo Partido Republicano Rio-grandense (o PRR); ele ocupou o poder do 
Estado ininterruptamente entre 1893 e 1930. Era composto por uma elite política jacobinamente 
intolerante e professava uma ideologia conservadora: o positivismo. 
11
 Os preços internacionais do café estavam caindo. De resto, essas políticas federais eram muito contestadas 
pelo PRR no poder do Rio Grande do Sul, que pregava o equilíbrio orçamentário, o não-endividamento 
público e que desaprovava a proteção pública a interesses de segmentos limitados da sociedade. 
Rio de Janeiro, cujas primeiras greves, também duramente reprimidas, se haviam iniciado em 
março (Maram, 1979: 132). 
 Neste contexto, formou-se em Porto Alegre a Liga de Defesa Popular, 
representante da Federação Operária do Rio Grande do Sul, que apresentou um extenso pleito 
ao Governo do Estado em 01 de agosto de 1917 onde reclamavam dos baixos salários, 
elevados aluguéis e altos preços dos gêneros de primeira necessidade. Isto foi acompanhado 
pela generalização da greve: os ferroviários já haviam paralisado, ao longo do Estado, nove 
importantes estações de trem no dia 31 de julho; em 01 de agosto entraram em greve os 
tipógrafos, os pedreiros, os carpinteiros, os padeiros e os tecelões. Ocorreram passeatas e 
comícios, havendo os padeiros distribuído pão gratuitamente para os “miseráveis”. Por fim, 
ainda no mesmo dia, a entrada na greve dos eletricitários da Companhia Força e Luz terminou 
por paralisar Porto Alegre. O transporte elétrico coletivo urbano (os bondes) somente voltaria 
a funcionar no dia 05 de agosto. Porto Alegre foi paralisada: sem luz, sem alimentos e sem 
veículos de transporte, coletivos ou individuais (Petersen e Lucas, 1992: 204). 
 No dia 02 de agosto o Governo respondeu com dois decretos; “atendendo a 
representação que lhe foi dirigida pela Liga de Defesa Popular, representante da Federação 
Operária do Rio Grande do Sul”. Pelo decreto n.2.287 ele elevou os salários dos “proletários 
que se acham a serviço do Estado” de modo escalonado, dando aumentos de 25% para os 
salários inferiores e reduzindo o percentual de aumento conforme a subida nas faixas 
salariais.13 E no decreto n.2.288, ele regulou a exportação de produtos do Estado: arroz, 
banha, batatas, feijão e farinhas14 (Bodea, s.d.: 37-39). O intendente de Porto Alegre, José 
Montaury, em 04 de agosto, reduziu e tabelou os preços do açúcar, arroz, banha, cebola, 
salame, ovos, erva-mate, leite, manteiga, massa branca, milho, fósforos, polvilhos, pão, sal, 
charque, querosene, sabão e vela de sebo (Bodea, s.d.: 45). As greves terminariam somente 
em 15 de agosto, com a baixa dos preços dos produtos de primeira necessidade. 
 Em editoriais do jornal do PRR, A Federação, foi salientado que o Governo 
estivera atento às justas reivindicações dos proletários (Bodea, s.d.: 40), que ele respondera 
com presteza às suas demandas (evitando o agravamento do conflito como ocorrera em São 
 
12
 A inflação mais que dobrou no período da guerra (Dean, 1989: 281). 
13
 “Art. 1º - Ficam elevados os salários dos proletários que se acham ao serviço do Estado, 
pela forma seguinte: Salários até 3$000 diários, inclusive - 25% (;) Salários de mais de 3$000 até 
4$000, inclusive - 20% (;) Salários de mais de 4$000 até 6$000, inclusive - 15% (;) Salários de 
mais de 6$000 até 8$000, inclusive - 10% (;) Superiores a 8$000 - 5%” 
Paulo e no Rio de Janeiro), que ele interferira diretamente sobre os salários e sobre os bens-
salário e de modo indireto, com o seu prestígio, para dirimir os conflitos sociais. Afirmava 
também que esta última era uma função necessária do Estado. De fato, o Governo intercedera 
junto ao comércio e à indústria não somente no sentido de obter o rebaixamento dos preços 
dos produtos essenciais, quanto no sentido da elevação dos salários (Bodea, s.d.: 51-56). 
Neste último sentido, os aumentos dos salários dos funcionários públicos servira de alavanca 
para uma elevação geral dos saláriosno setor privado (Bodea, s.d.: 39-40). 
Pedro C.D.Fonseca (1993), examinando a interpretação de Miguel Bodea que vira no fato um 
antecedente do populismo varguista através de uma espécie de aliança de cima para baixo 
afirmou que: 
 “O caráter problemático da análise de Bodea revela-se principalmente ao atribuir à 
ideologia dos governantes - o conselho de Comte de integrar o proletariado à sociedade 
“moderna”, tão decantado nos discursos dos líderes chimangos [ positivistas] - uma das 
principais razões do comportamento de Borges de Medeiros ao receber os representantes dos 
trabalhadores em palácio, para ouvir suas reivindicações, sem jamais atribuir isso à própria 
força e organização dos grevistas e ao próprio vulto que tomou o movimento. Tanto estes não 
podem ser ignorados que tais atitudes jamais foram tomadas pelo líder governista antes de 
1917 e nem repetidas após esse ano. Ao contrário, o Governo gaúcho trataria as greves 
subseqüentes de forma não diversa do tratamento usual dispensado em outros estados: os 
freqüentes apelos para voltar ao trabalho somados com a força policial. Diante da 
impossibilidade de generalizar o comportamento do Governo frente às greves, do acontecido 
em 1917 para todo o período da República Velha, certamente o poder de explicação das 
hipóteses que assinalam a especificidade do ocorrido naquele ano é maior do que o daquelas 
que procuram buscar linhas gerais, coerentes e de fundo ideológico (o positivismo) ou 
pragmático-político (as crises inter-oligárquicas) para explicar o referido comportamento. Por 
isso prefiro entender as atitudes do Governo gaúcho em 1917 como algo episódico, resultado 
de um conjunto de fatores circunstanciais, não passível de generalização e sem razões mais 
profundas que possam detectar o aparecimento de algo novo, duradouro nas relações entre as 
classes dirigentes e o movimento emergente dos trabalhadores.” (Fonseca, 1993: 411-412). 
 E mais: 
 
14
 Dizia o Art. 2º do mesmo Decreto - “Essa exportação só será limitada ou suspensa 
provisoriamente quando os preços da venda a varejo daqueles produtos excederem aos 
estabelecidos pela pauta mensal organizada”. 
 “ Assim, parece bastante duvidoso que os conflitos do PRR seja com os maragatos 
[oligarquia tradicional, latifundiária e pecuarista] locais, seja com as oligarquias dos estados 
centrais tenham ensejado uma busca de apoio nos “de baixo” por parte do PRR para ampliar 
sua correlação de forças. Ao contrário, do ponto de vista lógico, é perfeitamente concebível a 
hipótese oposta: frente aos movimentos populares e urbanos, o Governo tendeu a agir, via de 
regra, representando os interesses mais gerais e definidores das classes dominantes, e daí 
legitimando-se frente às oposições políticas locais ou nacionais. ( ... ) Assim os 
acontecimentos relativos à greve de 1917 e à encampação da VFRGS devem ser interpretados 
dentro da sua excepcionalidade. Deles não se deve inferir um comportamento generalizante 
para todo o período, com o risco de se ignorarem outros, tão importantes quanto estes, mas 
muito mais freqüentes no período.” (Fonseca, 1993: 413-414). 
 É bem verdade que era muito cedo para ver populismo (é isso que, de fato, está 
encoberto com o uso da “aliança para baixo”) na ação do Governo gaúcho, pelo simples fato 
de que faltava uma sociedade de massas e urbana para constituir um dos termos da pretendida 
aliança. Esta crítica de Fonseca é absolutamente pertinente, pois teria havido anacronismo na 
interpretação de Bodea. No entanto, contrariamente ao que afirma Fonseca, o fato considerado 
não foi nem episódico, nem excepcional, como tenta nos convencer o autor, mas inscreveu-se 
com clareza meridiana na relação Estado-sociedade entabulada pelo PRR, justamente pela 
existência de seu violento conflito (de natureza político-militar) com a oligarquia tradicional 
do Estado. 
 Pensamos que duas ordens de razões presidiram a interpretação excepcionalizante 
do nosso autor para o fato. Uma razão menor foi desconsiderar a teoria das formas de 
dominação na sua análise. A razão maior e mais abrangente é a necessidade de apagar as 
diferenças, de negar as especificidades duráveis e profundas das experiências sociais do Sul. 
E, com isso, desvalorizá-las, tornar tudo pardo e indiferenciado em relação ao resto do País. 
Assim, os fatos de difícil compreeensão são enquadrados como meramente insólitos. O 
comportamento de Fonseca exprime uma espécie de projeto “nacionalizante” que visa o 
nacional através do apagamento das diferenças regionais. O específico torna-se, na análise do 
nosso autor, uma idiossincrasia bizarra, não deixando marcas nem possuindo alicerces mais 
profundos. 
 Parece ter faltado ao nosso autor um marco teórico de natureza política, único 
conjunto de ferramentas capaz de permitir uma compreensão mais totalizante da vida social 
do Rio Grande do Sul na Primeira República. Faltou-lhe, desse modo, marco teórico. E isso 
decorreu de sua incompreensão de que a história do Rio Grande do Sul é uma história 
conduzida pelo primado do político Nesta passagem, faltou-lhe, também, sensibilidade 
histórica.15 
 Para que os positivistas pudessem arrostar o peso enorme da legitimidade da 
tradição que sustentava a oligarquia tradicional deposta do poder regional, foi preciso que eles 
apelassem para a construção de uma outra forma de justificar sua detenção do poder. Eles 
estabeleceram, então, uma forma de dominação de tipo racional-burocrática. E, à luz da teoria 
das formas de dominação, a resposta do PRR à greve de 1917 deixa de ser uma 
excepcionalidade que só pode ser compreendida na sua circunstância e que não se amarra a 
uma relação mais profunda e duradoura da história do PRR. Ela também deixa de ser um fato 
que só episodicamente diferenciou as condutas das elites paulistas e gaúchas. Ela é um fato 
indicativo, exemplar mesmo, de uma diferença fundamental entre a natureza da dominação e 
os comportamentos das duas elites regionais. Ela indica também a modernidade da relação de 
dominação proposta pelo PRR em comparação à forma tradicional, oligárquica e patrimonial 
da forma de dominação exercida em São Paulo. A conduta diversa da elite política gaúcha 
face à greve geral de 1917 é perfeitamente compreensível dentro da necessidade de justificar 
sua dominação, mostrando-se competente e legítimo na gestão da sociedade em um momento 
particularmente crítico. O fato deixa de ser excepcional, como Fonseca afirmou, quando 
inserido e compreendido na forma de legitimação racional-burocrática proposta e praticada 
pelo PRR. 
 
2. 2. A encampação da Viação Férrea do Rio Grande do Sul 
 O segundo fato envolve a utilização da malha ferroviária do Rio Grande do Sul 
(Viação Férrea do Rio Grande do Sul - VFRGS), arrendada em 1905 pelo Governo Federal à 
Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil (capital belga) e cujo controle acionário 
(da VFRGS) passara para o grupo americano Brazil Railway Co. de Percival Farqhuar em 
1910 (Dias, 1981: 210-218). A Companhia sempre produziu serviços precários, trabalhou 
com altas tarifas e pagou baixos salários. O aumento do tráfego não melhorava os seus 
resultados operacionais, pois as receitas eram consumidas nas operações de manutenção da 
 
15
 Diga-se, no entanto, em favor de Fonseca, que a necessidade de um marco teórico que incluísse 
as formas de dominação para analisar a história do Rio Grande do Sul ainda não existia, de modo 
imperativo, antes da realização dos trabalhos de Carvalho (1996: 181-210) em que a autora 
examinou as contas públicas de São Paulo e do Rio Grande do Sul à luz das funções de legitimação 
e de acumulação de O’Connor. Ela encontrou o predomínioda função de legitimação na política fiscal 
gaúcha e a de acumulação na paulista. Este resultado, de fundamental importância analítica, forçou a 
entrada da teoria das formas de dominação na análise da história do Rio Grande do Sul. 
 
rede e aquisição de material rodante (Dias, 1981: 210). O Governo Federal interveio 
rebaixando as tarifas. A guerra aumentou as dificuldades para a importação de material de 
reposição e equipamentos (Dias, 1981: 222). Tais dificuldades foram agravadas pela precária 
situação financeira das empresas acelerando, desse modo, a decadência internacional do grupo 
Farqhuar. Em 1917 as greves operárias vieram agravar a situação da empresa (Dias, 1981: 
226). Em 1919 o balanço apresentou déficit. Tanto a Associação Comercial de Porto Alegre 
quanto os ferroviários pressionaram por medidas severas do Governo face à Companhia. Em 
junho de 1920 ela foi retomada pelo Governo federal e em julho passada para o controle do 
Governo estadual (Dias, 1981: 227-228). 
 O núcleo da argumentação de Fonseca contra a interpretação de Bodea para este 
fato não é muito diferente do utilizado para o episódio da greve de 1917, senão vejamos: 
 “Mas a encampação da VFRGS, fato episódico e só realizado após várias 
negociações com as empresas estrangeiras visando soluções alternativas menos drásticas - e 
que, de resto, se mostraram infrutíferas -, tornou-se ( ... ) o prenúncio do ‘nacionalismo 
trabalhista’. ( .. ) Se há uma semelhança entre esse nacionalismo episódico de Borges de 
Medeiros e o de Vargas após 1930, e com todas as qualificações históricas que se fazem 
necessárias, esta deveria dar-se em razão oposta à pretendida pela literatura: nem o líder 
chimango nem Vargas eram hostis ao capital estrangeiro, e o nacionalismo do último sempre 
conviveu, a não ser nos anos finais de seu último governo (1951-54), com apelos recorrentes à 
presença do capital estrangeiro para ajudar no desenvolvimento econômico do País” (Fonseca, 
1993: 412-413). 
 Neste segundo caso, e em primeiro lugar, Fonseca volta a considerar o fato como 
episódico, o que não nos parece ser o caso pelos mesmos argumentos já utilizados para 
contra-argumentar sua interpretação do fato anterior. Em segundo lugar, em um certo sentido, 
nenhum dos nossos dois autores possui razão nas respectivas interpretações, pelo fato maior 
de que não é verdade que comportamentos anti-imperialistas esgotem a ideologia 
nacionalista16. 
 Não se pode ter dúvida alguma de que a elite política do PRR era nacionalista no 
melhor de seus sentidos: o de responsabilidade política e social face à sociedade submetida à 
 
16
 Porque, por um lado, o nacionalismo é uma ideologia que inclui um projeto de futuro comum e um 
(pretendido) comportamento responsável dos governantes face aos governados na implementação deste projeto. 
Por outro lado, o anti-imperialismo é uma das manifestações do nacionalismo, uma vez que o anti-imperialismo 
só ocupa todo o espaço ideológico do nacionalismo quando as forças econômicas ou militares, ditas 
imperialistas, sufocam as pretensões de auto-determinação política ou de desenvolvimento social e econômico 
dos países submetidos a uma agressão imperialista qualquer. O que precisa ficar claro é que o nacionalismo 
convive com a presença de capital estrangeiro quando (presume-se) este não represente ameaça ao projeto de 
sua dominação e de implementadora de um projeto de natureza nacional (de uma pequena 
pátria, no querer de A. Comte).17 Acreditamos que o projeto do PRR de atingir a auto-
suficiência econômica do Rio Grande do Sul (por equivocado que pudesse nos parecer face à 
futura integração do mercado nacional) foi uma proposta de desenvolvimento do mercado 
interno da região e foi, por parte da elite que o concebeu, um projeto nacionalizante no 
sentido de tornar a população (abastecimento, renda, emprego) menos vulnerável às 
oscilações dos mercados localizados fora do território do Rio Grande do Sul18. 
 A elite gaúcha atentou para a sua responsabilidade face ao bem-estar e ao 
desenvolvimento social e econômico da população sob seu domínio19 (ela não podia fazer de 
outro modo, pois era acossada pela oposição armada da oligarquia tradicional do Estado), ela 
relacionou-se também com estratos sociais intermediários do campo e da cidade e apoiou-se, 
dentro e fora do Rio Grande do Sul, no desenvolvimento do mercado interno. Esta elite 
gaúcha desenvolveu um comportamento anti-internacionalizante, de tal modo que todas as 
medidas federais de política econômica ( política de valorização do café, política monetária 
inflacionária, política internacional de endividamento público) que privilegiavam os negócios 
do café foram sempre acidamente criticadas por ela. Duplamente: porque privilegiavam 
somente um setor da atividade econômica (questão, para eles, de doutrina, pois a intervenção 
perdia, com isso, a neutralidade) e porque danificavam o tecido social da nação (questão de 
responsabilidade política face à população, diríamos nós). Foi também por este tipo de 
nacionalismo do PRR, escola política onde formou-se Getúlio Vargas, que a “brasilidade” 
deste homem nascido na única e verdadeira fronteira política do Brasil pode ser tão 
incompreendida pelas elites de outras regiões do Brasil (Love, 1975: 274). 
 
desenvolvimento ou de auto-determinação nacional. 
17
 Neste sentido, na história política do Rio Grande do Sul, é o passado que critica o presente. 
18
 Muito diverso do projeto político do PRR e de sua conduta nacionalista foi o caso da elite política de 
São Paulo. A par da dominação tradicional ela constituiu a elite regional que possuía mais laços 
econômicos internacionais entre as brasileiras do período (Love, 1982: 234). Entre 1889 e 1930 ela 
foi composta por 263 pessoas, entre as quais 97 possuíam relação de parentesco entre si (Love, 
1982: 216) e onde a cada onze membros, um era acionista ou gerente de firma estrangeira (resultado 
do cruzamento da elite política com a empresarial). É quase a mesma proporção de 1:11 a de 
membros da elite política paulista condecorados por governos estrangeiros, e, segundo a hipótese de 
Love, este era um fato que decorria de serviços prestados (Love, 1982: 222). Esta, seguramente, não 
é uma elite que possa conceber um projeto nacional, a população sob seu domínio é meramente uma 
população a tosquear. Ela foi, no bem dizer insuspeito de um historiador conservador como Joseph 
Love, o verdadeiro comitê executivo da classe dominante paulista (Love,1982: 216). Esta elite política 
só possuiu uma responsabilidade, se é que teve alguma, aquela de legitimar-se face aos seus 
parceiros da oligarquia cafeeira e às frações da classe dominante instaladas nas outras regiões do 
Brasil . 
19
 E isso não pode ser reduzido a uma eventual “aliança para baixo”, pois é um fato que se amarra a uma 
estrutura de relação entre dominantes e dominados. 
 Para encerrar, uma palavra final sobre a tentativa de Fonseca de banalizar os fatos 
que estiveram em pauta e descartar-se deles. No contexto brasileiro da época, é a própria 
natureza insólita dos fatos que deveria levá-lo a pensar que algo de extraordinário (no sentido 
positivo) estava a passar-se no Rio Grande do Sul e imaginar, pelo menos, que se estes fatos 
se haviam produzido aqui, e não lá, eles poderiam ser indicadores de que estava em 
andamento uma novidade na história da relações Estado-sociedade deste Brasil. E mais, que a 
elite que cometeu esses atos possuía, seguramente, um comportamento diverso daquelas que 
não os cometeram. Estes fatos teriam sido impensáveis em São Paulo ou no Rio de Janeiro, 
pois, aí, a dominação era tradicional, e sua ocorrência no RioGrande do Sul serve, pelo 
menos - “preuve par la faute”- para indicar que as coisas estavam sendo muito diversas no 
Sul. Neste sentido, Miguel Bodea pode ter lançado mão de ferramentas analíticas 
inadequadas, mas sobrou-lhe intuição histórica. 
 
3. A NEGAÇÃO PELA “PERIFERIZAÇÃO” 
 Existe uma importante tese (USP-1987) de Sandra J. Pesavento (1988) sobre a 
burguesia e o operariado gaúchos na Primeira República (1889-1930). A autora permite que 
se conclua pelo atraso da organização e da luta operárias no Sul porque o operariado havia 
sido cooptado pelo empresariado. Este, através de ações de cunho assistencialista (construção 
e financiamento de vilas operárias, assistência médica, caixas de poupança) e outros (escola 
para os filhos, salas de recreação, refeições na fábrica)20 disfarçava a dominação burguesa 
forjando-se, deste modo, a imagem paternalista do “bom patrão” e obtendo, em conseqüência, 
a docilidade do operariado (Pesavento, 1998: 19-87). Poderíamos perguntar, então, dócil em 
comparação com qual operariado? 
 No entanto, um dado maior e decisivo que enquadrou esta relação de classe e que 
a autora não viu, pois não analisou, é que a economia gaúcha vivia em pleno emprego 
(Herrlein & Dias, 1996: 164). Alguns indicadores disso são que, em geral (pelo Censo de 
1920), os salários industriais e agrícolas eram superiores aos praticados na economia paulista 
e, também, com um maior diferencial de salário do trabalhador de enxada para o operário 
industrial (Herrlein & Dias, 1996: 152, 177). Ou seja, a autora analisou uma relação de classe 
e a interpretou sem ter conhecimento do contexto em que ela se exercia, pois era somente este 
contexto poderia indicar quais interpretações seriam mais plausíveis diante das questões 
 
20
 Diga-se, me favor da autora, que ela realizou um inventário maravilhosamente rico e minucioso dos casos que 
se distribuem tanto no tempo (entre 1880 e 1940) quanto no espaço sul-rio-grandense (os exemplos contemplam 
quase todas as sub-regiões econômicas do Estado). Estão em Pesavento (1988: 19 a 87) 
analisadas. A docilidade do operariado, neste marco, transforma-se em corte do capitalista 
defrontado com carência de força-de-trabalho. 
 O viés analítico da autora derivou de uma concepção subjacente (jamais 
explicitada) de que a economia regional mais avançada do Brasil era a paulista (pois que era o 
centro) e que, então, as relações de classe de vanguarda do País teriam sido as vividas pela 
burguesia e pelo operariado paulistas, pois era a miséria deste proletariado que servia de 
parâmetro comparativo. E se o marco comparativo está somente implícito em Pesavento, ele 
foi explicitado por Herrlein Jr. & Dias quando incorporaram e endossaram os resultados da 
análise de Pesavento no seu trabalho (Herrlein & Dias, 1996: 160-164). 
 Informe-se o leitor que no caso paulista havia um excedente proletário disponível 
nas cidades, pois a voracidade do café por mão-de-obra fazia com que fossem importados 
enormes contingentes de trabalhadores europeus, em quantidade superior às necessidades da 
cafeicultura, para que os cafeicultores não corressem o risco de ficar sem trabalhadores. E 
estes irrequietos trabalhadores europeus (influenciados pelo estágio da luta de classe nos seus 
países) contrastavam com o operariado gaúcho que era dócil, pois que se submetera à 
ideologia do vencedor, pois que aceitara a dominação, pois que se deixara cooptar. Fenômeno 
que, presumivelmente, jamais poderia ocorrer com o operariado de vanguarda de SP. Seria 
uma conseqüência disso o atraso da organização operária e da luta de classes no RGS, 
enquanto que ela teria sido mais avançada alhures (Herrlein & Dias, 1996: 160-164). 
 No entanto, o inventário dos motivos das greves mostrou que o tema mais 
freqüente e mais avançado aparecia no Sul, uma vez que aí não era mais o tamanho da jornada 
que estava em questão, como em SP. Esta era uma questão que, presumivelmente, fora sendo 
razoavelmente encaminhada no Sul, pois neste caso, a questão mais freqüente no temário das 
greves era a da elevação dos salários (Petersen cf. Herrlein Jr. & Dias, 1996: 157). 
 Assim, o paradigma centro-periferia, mesmo não explicitado, tanto condicionou a 
interpretação de Pesavento quanto levou Herrlein Jr. & Dias a considerarem que aquilo que se 
passasse no Rio Grande do Sul era necessariamente fruto do atraso da economia e da 
sociedade meridional, uma vez que esta era uma sociedade tida por periférica (o que, de fato, 
ela não era; era simplesmente não-cêntrica, o que é algo de muito diverso). Na verdade, a 
relação capitalista/operariado foi vista por estes autores desde uma posição de externalidade, 
de um dever ser, através de um ângulo que a comparou implicitamente com eventos e 
situações externas, estas sim, encaradas como modelos paradigmáticos de uma realidade 
social e historicamente mais avançada. Estes autores não conseguiram mergulhar naquela 
relação particular, naquela especificidade. Impuseram uma forma, um modelo externo. Nesta 
passagem da análise destes autores não houve, verdadeiramente, compreensão histórica. 
 Em suma, examinamos três manifestações de negações da identidade sul-rio-
grandense em trabalhos de intelectuais de qualidade. Negações praticadas tanto por um 
analista da região-centro, quanto por analistas da própria região em pauta. As técnicas 
utilizadas foram a indiferenciação subordinante, no caso de Cardoso; o esvaziamento do 
significado do fenômeno ou a sua banalização, no caso de Fonseca e, por fim, a interpretação 
deformante e préconceituosa que emana do uso do paradigma analítico centro-periferia, 
implícito em Pesavento e explícito em Herrlein Jr.& Dias. 
 Para encerrar, uma palavra ainda sobre o uso analítico deste paradigma na 
historiografia econômica ou social do RGS. Se imaginarmos que a sociedade sul-rio-
grandense veio a tornar-se periférica a partir de algum momento da sua história, é preciso 
atentar para as condições que presidiram a integração e sua conseqüência a “periferização”. 
Elas são econômicas, em primeiro lugar, e só podem ter ocorrido depois que existisse a 
possibilidade concreta (material) de que todas as mercadorias pudessem circular entre os 
territórios que viriam a ser hierarquizados em centro e periferia e, depois, que existisse um 
banco central na economia (Perroux, 1991: 687). Ora, entre o RGS e SP, estas duas condições 
viriam a cumprir-se somente na segunda metade dos anos 1960. É, portanto, um anacronismo 
projetar sobre o período anterior uma ordem de interpretação calcada sobre o modelo centro-
periferia21. 
 O anacronismo dá lugar a uma afirmação a-histórica que pode ser assim 
explicitada: se uma região é periférica hoje, então é porque sempre o foi. O centro e a 
periferia estariam assim constituídos desde sempre, desde antes mesmo da própria história e, 
então, independentemente desta. Em síntese, a historiografia que projeta para o passado do 
RGS a relação regional centro-periferia com SP estabelece um espaço social sem história. 
 
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CUNHA, Luiz A. (1980) A Universidade Temporã: o ensino superior da Colônia à era de 
Vargas. Rio de Janeiro: Edit. Civilização Brasileira S.A. 
 
21
 Um bom exemplo disso é o sumário da seguinte dissertação de mestrado Rio Grande do Sul: Tributação e 
Economia (1699-1945) : 1. A economia periférica colonial: 1699-1834 (1.1. A economia periférica do 
Continente de São Pedro; ...); 2. A economia periférica rio-grandense no Estado Nacional brasileiro (1835-1892)(2.1. A economia pecuária periférica; ...); ... (Miranda, 1998) 
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