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Hegel e a Formação da Consciência Autonomia do Pensar e o Problema da Verdade Ter o hábito de pensar por si mesmo faz a pessoa ser considerada alguém autônoma. Daí a crença de que só podemos alcançar aquilo que é verdadeiro por meio de nossa forma aparentemente autônoma de pensar. Sabemos que a autonomia é necessária para desenvolvermos nossa visão de mundo em relação às coisas e às pessoas de modo geral. No entanto, surge uma questão na idéia de autonomia quanto àquilo que é considerado como verdadeiro na esfera do conhecimento válido universalmente. O quê garante que a minha autonomia possa me dar certeza daquilo que eu penso ser verdadeiro tanto para a minha mente quanto para as coisas em si mesmas? Em outros termos, será que o meu pensamento autônomo permite que eu alcance a verdade da realidade tanto nela mesma como para a minha mente? Surge aqui uma discussão sobre a relação entre o pensamento autônomo e a verdade. Como averiguar, então, que haja uma identidade entre esses dois pólos distintamente diferentes: pensar e verdade? O filósofo que pode nos ajudar nesta questão é o alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Nascido em Stuttgart em 1770, que à época era a capital do ducado de Württemberg, na Suábia, região do sudeste da Alemanha. Lembremos que a Suábia era um dos inúmeros pequenos estados da Alemanha que, até então, ainda era dividida. Em 1788, ele ingressou no seminário teológico de Tübingen, com a intenção de vir a ser pastor luterano. No seminário travou amizade com Hölderlin, que se tornou um dos maiores Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce poetas da língua alemã, e Schelling, que também veio a se tornar um dos grandes nomes do pensamento filosófico. O jovem Hegel sentiu-se entusiasmado não só pela leitura das obras de Kant como também pela eclosão da Revolução Francesa em 1789. Não é por acaso que ele e seus amigos Hölderlin e Schelling plantaram em homenagem a referida revolução uma árvore que chamaram de “Liberdade”. Ao terminar o seminário Hegel não seguiu a carreira de pastor, mas a de preceptor. Depois ingressou na carreira acadêmica, a qual terminou em Berlim, em pleno auge, com a sua morte por cólera (1831). Hegel influenciou diversos pensadores, entre eles Karl Marx. Além disto, ele escreveu diversas obras consideradas clássicas para a cultura ocidental como a sua Filosofia do Direito (1827). O livro de Hegel que, no entanto nos interessa para resolvermos a que questão acima levantada se chama a Fenomenologia de Espírito (1807) que tem como subtítulo a ciência da experiência da consciência. O filosofo alemão pretendia com este livro mostrar o processo de amadurecimento da cultura ocidental até o seu ponto máximo, que ele chamava de Saber Absoluto. Tal saber corresponderia à filosofia como saber racional que conhece a sua própria estrutura de saber tanto em sua essência, como em sua consciência. Explicando melhor: um auto-saber que, como sujeito, conhece aquilo que ele é em sua estrutura racional, compreendida como consciência que sabe a respeito de si e das coisas tanto nela mesma como para ela mesma. A consciência desenvolve uma espécie de caminho dialético, em que confronta aquilo que é opinião particular e ilusória com aquilo que é ao mesmo tempo racional e real. É deste confronto entre o que é mera opinião e o que é de fato verdadeiro que a consciência amadurece o seu próprio saber, criando assim Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce uma medida para verificar o que está correto ou não no processo de construção do verdadeiro saber. Daí a nossa questão acima a respeito da relação pensamento autônomo e verdade. Como nós havíamos dito, Hegel se interessa por essa questão, que alias é um tema fundamental da filosofia moderna desde Descartes. Kant como os iluministas já haviam pregado a necessidade do pensamento autônomo como sendo condição central para elaboração do conhecimento crítico. No entanto, Hegel não se limita à idéia de autonomia do pensamento, pois, para ele, o que está em jogo é a apreensão racional das determinações da realidade em seu processo lógico-histórico. Não que Hegel negue o papel da autonomia no processo de construção do saber verdadeiro, mas ela em si mesma não consegue dar conta daquilo que é absoluto, no sentido de apreensão da verdade em sua totalidade. A Fenomenologia do Espírito Para Hegel, a verdade é resultado da construção do saber absoluto em sua totalidade. Eis o motivo de na Fenomenologia do Espírito, que citamos acima, Hegel estruturar a construção do saber absoluto por meio de momentos ou etapas de amadurecimento da consciência da cultural ocidental. Não devemos esquecer que essa consciência que estamos analisando se refere não ao indivíduo, mas à cultura, que é trans-individual. Melhor explicando: a cultura é uma forma de saber em que os indivíduos seguem de modo geral as mesmas idéias e significados a respeito de si Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce mesmos, bem como das coisas do mundo em um determinado tempo e espaço histórico, tipo descobrimento das Américas, Revolução Francesa e etc. A Certeza Sensível A primeira etapa, ou ainda, como chama Hegel, a primeira Figura, do amadurecimento da consciência em seu processo de conhecer o absoluto em sua estrutura própria, é a Certeza Sensível. Tal figura inicialmente se apresenta como tendo a capacidade de captar de forma absoluta a verdade das coisas em sua universalidade conceitual. No entanto, por ser sensível tal saber acaba se mostrando inconstante no que se refere ao que venha ser a verdade das coisas seja no tempo, seja no espaço. Quando a certeza sensível diz agora, este já não é mais, passando a ser outro que se diferencia do primeiro. Por exemplo: agora é meio-dia, ao voltar para verificar a verdade deste agora, a certeza sensível encontra um outro agora, tipo, meio-dia e meia. Deste modo, não dá para a certeza sensível ter um conhecimento seguro a respeito das coisas na esfera da temporalidade. O mesmo ocorre em relação ao espaço. Ela aponta: isto é uma árvore, no entanto, quando se vira não ver mais árvore, mas casa. O que acaba ocorrendo com a certeza sensível é a perda das suas crenças. Tal perda faz com que ela entre em um processo de negação de si mesma, isto é, do seu saber como saber verdadeiro. Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Essa negação a leva inicialmente ao desespero de não querer mais saber de mais nada, de um modo bastante dramático, por sinal (podemos fazer aqui uma relação de quando terminamos uma relação amorosa e não queremos saber de outro). No entanto, o processo de conhecimento iniciado pela certeza sensível não a deixa em paz, levando-a ao desejo de continuar o seu processo de amadurecimento de conhecer a verdade em sua totalidade. Temos assim um outro momento da certeza sensível, que é o da síntese. Recapitulando e aprofundando a explicação: a certeza sensível que partia da tese que o seu saber era o mais verdadeiro, descobre quando faz a experiência desse saber sensível, que ele é inconstante, mudando a todo instante, seja no tempo, seja no espaço. Ao descobrir a falha da sua certeza, a consciência nega tal saber, em uma espécie de antítese. Finalmente, após voltar-se sobre a sua negação (antítese), a consciência verifica onde estava a falha do seu saber sensível. Ela descobre que confundia o conceito agora eo conceito aí (ou isto) com os seus exemplos: agora é meio-dia e isto é uma árvore. Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce incompletude. Lucas Realce A Certeza Sensível passa a distinguir o que é conceito, no sentido de significado universal (perene), e exemplo, no sentido de significado particular (circunstancial). Após aprender a fazer essa distinção, ela nega novamente o que havia negado (antítese), que era a de não possuir um saber imediato e seguro sobre as coisas. Deste modo, a consciência elabora a síntese de seu processo de conhecer que é de negar aquilo que foi negado. Com a síntese, a consciência volta ao ponto original da sua tese, correspondente ao saber imediato. No entanto, esse voltar ao ponto inicial não será mais o que era antes da experiência feita pela consciência. A consciência ao retornar ao seu início afirmativo (tese) mostra-se madura, no sentido de compreender que tudo que tem uma aparência imediata, na esfera do saber, passa necessariamente por uma mediação da reflexão ou pensamento. A síntese finaliza o processo da experiência da consciência, formando uma espécie de círculo. Tal círculo se caracteriza por partir de um ponto afirmativo (tese), para se chegar por meio de uma negação (antítese) a outra negação (síntese) que fecha a circunferência ao retornar àquele ponto inicial da tese. Após esse processo dialético circular, a consciência volta ao seu ponto inicial que era o de ter um saber imediato. No entanto, como salientamos acima, essa volta ao ponto inicial, apresenta-se em outro patamar. Esse outro patamar, na realidade, significa que a consciência amadureceu em seu processo de aprendizado, passando assim para outra etapa ou Figura. Ao passar para outra etapa ou Figura de seu aprendizado, a consciência não abandona aquilo que ela era anteriormente (certeza sensível). Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Hegel vai chamar esse não abandono daquilo que a consciência foi de “conservação do que já foi superado” (em alemão: Aufhebung). Mas por que Hegel conserva o que já foi superado? Ele faz isto para que não haja o esquecimento do processo de aprendizado da consciência em sua formação (em alemão Bildung). É como alguém que está no ensino médio, que mesmo já tendo passado pelo ensino básico, isto é, superado esta etapa do aprendizado, não pode esquecê-lo sob o risco de não ter base para alcançar o ensino universitário. Cada etapa do aprendizado da consciência incorpora a anterior. A Percepção A Certeza Sensível como sendo a primeira etapa, como vimos acima, vai ser incorporada pela segunda, chamada de Percepção. Nesta etapa ou Figura, a consciência vai ter a mesma estrutura dialética circular (tese-antítese-síntese) para poder realizar a sua experiência de aprendizado. Deste modo, a consciência ao começar a sua experiência nessa etapa da Percepção terá a tese vinculada à certeza que ela consegue fazer as distinções qualitativas de um objeto de modo universal. Por exemplo, o sal como objeto é um meio composto de diversos elementos universais: formato cúbico, cristalino, salgado e etc. Essa certeza de conhecer o objeto de modo universal irá começar a ser negada, quando a consciência perceber que as propriedades qualitativas do referido objeto são de fato uma multiplicidade de universais independentes. Explicando melhor: a consciência ao aprender a distinguir o universal do particular, após a certeza sensível, que fazia essa confusão (-lembra?), vai achar que conhece a verdade dos objetos. A Percepção crê que o quê sustenta Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce a verdade dos objetos é a sua universalidade compostas por múltiplas propriedades universais. No entanto, fazendo a experiência da sua tese, de conhecer o objeto em sua universalidade, conclui que o objeto na verdade é um meio composto por diversos universais independentes. Daí o sal ser composto de diversos “também”. O sal é também branco, é também cúbico, é também salgado. A Percepção entra em uma contradição em relação ao saber quanto à unidade de seu objeto. Sendo múltiplos também, o sal deixa de ser o que ele é. O sal, então, para ser, fica na dependência de diversos também, perdendo assim a sua constituição própria. Eis o motivo de a Percepção concluir que o seu saber sobre o objeto, a partir da universalidade, era ilusório. A universalidade que a Percepção pregava estava baseada em uma compreensão unilateral das propriedades do objeto. Tal unilateralidade levava a Percepção captar cada propriedade como sendo para-si. Assim o objeto ficava na dependência das diversas propriedades que o compunham. A consciência nessa etapa da Percepção consegue superar a visão unilateral dos múltiplos universais por meio da negação (antítese). Tal negação ocorre quando a Percepção começa a desenvolver o seu entendimento em relação à universalidade em seu sentido amplo, não unilateral. Deste modo, a síntese dialética que supera a unilateralidade da Percepção se dá por meio da nova etapa do aprendizado da consciência, configurada no Entendimento. A consciência supera as unilateralidades abstratas das propriedades do objeto, passando a visualizar todas juntas em seu sentido incondicional. Assim o objeto não é mais um meio disperso formado por múltiplas propriedades voltadas somente para si. Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce Lucas Realce O que ocorria com as diversas propriedades do objeto era um jogo de forças. Cada propriedade em sua universalidade unilateral (o branco, o salgado, a forma cúbica) agia a partir da dinâmica composta pela unidade e multiplicidade. O Entendimento torna discernível para si esse jogo de forças como sendo próprio da sua capacidade de pensar o objeto como fenômeno. O Entendimento. Se as duas primeiras Figuras da Fenomenologia do Espírito, analisadas até aqui, estavam mais relacionadas ao conhecimento dos objetos em uma esfera sensível (Certeza Sensível e Percepção), vamos notar que na terceira Figura que trataremos adiante, é o não sensível que irá ter mais ênfase. Deste modo, a consciência começa a desenvolver um saber relacionado a ela mesma. Tal saber irá significar que a consciência elabora formas abstratas, no sentido de criar leis que dêem conta dos fenômenos externos a ela mesma. Assim as diversas forças que ocorrem em um fenômeno natural acabam sendo apaziguadas por essas leis. É o que ocorre com a Física. O Entendimento, para Hegel, tem a determinação abstrata das ciências, no sentido de separar intelecto e sensibilidade, unidade e pluralidade. As ciências elaboram leis para os fenômenos da natureza, como a Física, que, no entanto, perdem o caráter dinâmico do fenômeno em sua determinação própria. Na realidade, o Entendimento procura em sua interioridade pensante, formas de como captar o sentido racional dos fenômenos. Para Hegel, O Entendimento elabora representações fenomenais do objeto investigado pela consciência por meio da separação intelecto e sensibilidade. Aliás, essa separação remete a Platão (mundo racional e mundo sensível), o qual foi um dos primeiros filósofos a estabelecer essa separação, embora fosse o intelecto que deveria guiar a natureza sensível, no aspecto de lhe dar contornos racionais. Daí a busca das ciências de procurar elaborar leis que dêem racionalidade para osfenômenos que ocorrem no mundo sensível da natureza. A partir da polaridade existente entre a unidade e a multiplicidade que compõe a dinâmica das forças da natureza fenomenal do objeto, o Entendimento esclarece para si mesmo que tal polaridade acontece, na verdade, em si mesmo, isto é, em sua interioridade intelectual. Assim com essa tese (lembrete: a tese é sempre uma afirmação inicial no processo dialético do saber de cada Figura) de que ocorre tal dinâmica no seu interior intelectual, o Entendimento passa a discernir como sendo para si o que acontece fenomenalmente no objeto. Explicando melhor: O Entendimento por estar na esfera abstrata do intelecto vê a dinâmica fenomenal do seu objeto como sendo resultado do seu próprio interior inteligível. Por isso, ele compreende que o quê acontece com o objeto é na realidade algo dele, isto é, a dinâmica da luta de forças (unidade e multiplicidade) do objeto aparece só para o Entendimento, em seu interior inteligível. Eis o motivo de Hegel utilizar os termos para si (em alemão für sich) e em si (an sich) para dizer que a consciência tende a fazer essa distinção entre o que é dela e o que é do objeto. Com o processo de amadurecimento da consciência em seu aprendizado a respeito do saber em sua totalidade, ela vai compreender que na realidade tudo que é para si é também para o em si do objeto, e vice-versa. Assim não há de fato uma separação entre o em si e o para si como acontece nesse momento que analisamos, relacionado ao Entendimento. Ao considerar para si a dinâmica da luta de forças que ocorre fenomenalmente com o objeto, o Entendimento nega (antítese) que haja a própria dinâmica por meio de criações de leis que apresentam a natureza do objeto de um modo estático. As explicações elaboradas por meio das leis fazem com que o objeto se limite àquilo que tais leis lhe prescrevem como representação fenomenal. O objeto em sua dinâmica natural é muito mais que a pura objetivação das leis feitas no interior inteligível do Entendimento. No entanto, o próprio Entendimento vai perceber que a sua interioridade inteligível é uma espécie de Reino tranqüilo das leis, cuja determinação é de elaborar formas representacionais estáveis, objetivadas, sem mudanças, iguais a si mesmas. Voltando para o interior da sua inteligibilidade, em que são construídas leis limitadas a formas estáticas, o Entendimento realiza a sua segunda negação (síntese). Tal negação ocorre por meio da percepção do Entendimento que compreende que cada elemento que compõe o objeto observado atrai o seu contrário. Daí, por exemplo, o doce atrai o seu contrário que é o amargo, no sentido que fora dele há um outro dando parâmetros para sua determinação doce. Eis o motivo de não haver estabilidade nas coisas contempladas pelo Entendimento. Deste modo, o que existe é uma espécie de mundo invertido, cuja determinação é ser ao mesmo tempo algo que é tanto igual a si mesmo como diferente de si mesmo. Lembremos que quando estamos amando somos ao mesmo tempo felizes no interior da relação e infelizes fora dela. Assim ao amarmos estamos em uma dinâmica em que temos pólos adversos: felicidade e infelicidade. O Entendimento descobre através da síntese realizada por ele que o interior dos objetos é composto por elementos cujas determinações trazem consigo o seu oposto. Por isso, não existir calmaria no interior das leis construídas pelo Entendimento. Este passa a compreender que o interior dos objetos é infinitamente dinâmico, pois a sua estrutura é composta de elementos que se atraem e se repelem constantemente. O Entendimento vê, por assim dizer, que tanto o seu interior (inteligível) como o interior do objeto (sensível) tem a mesma estrutura que as determinam igualmente. A conseqüência dessa conclusão do Entendimento é a descoberta do seu conhecimento de si mesmo. Ao concluir que tanto o seu interior como os objetos por ele contemplados possuíam a mesma determinação, o Entendimento torna-se consciência de si mesma (em alemão: Selbsbewusstsein). Tornando-se saber de si mesmo, o Entendimento passa para a etapa seguinte da sua formação (Bildung) chamada de Consciência-de- si. A Consciência-de-si A Consciência-de-si como quarta Figura da Fenomenologia do Espírito vai significar uma espécie de síntese das três anteriores. No entanto, o que a distingue das demais é o seu saber em relação às suas determinações próprias. Ela se sabe em si mesma e para si mesma (dê uma olhada acima sobre a explicação do em si e do para). Deste modo, a Consciência-de-si incorpora o resultado da experiência das outras três, no sentido de incorporar as suas determinações verdadeiras. Tendo em vista a identidade existente entre o conteúdo do objeto externo e o conteúdo das determinações internas da Consciência-de-si, a experiência que ela realiza, no processo de alcançar a verdade em seu caráter absoluto, faz com que o objeto se dissolva em seu interior. Incorporado à consciência, o objeto perde a sua determinação própria. No entanto, ao ser dissolvido na consciência, esta também perde aquilo que a diferenciava das outras coisas. Era o objeto que lhe dava contornos distinguíveis frente à realidade mundana. Dissolvido o objeto nela, a consciência-de-si passar a ter um caráter tautológico. Como sujeito, a Consciência-de-si torna-se nessa tautologia um Eu igual a si mesmo: Eu sou Eu. A tautologia em que a Consciência-de-si se encontra vai fazer com que ela procure outra consciência-de-si para retornar a si mesma. Daí o Outro ser fundamental para a realização da experiência da Consciência-de-si. A Consciência-de-si só pode ser para si se for também para o outro, pois é este último que lhe dá o seu caráter de existir. Para existir, no sentido de estar viva, a consciência precisa desejar o outro. Desejar o outro significa, então, incorpora-lo para poder ser. Não é por acaso que Hegel desenvolve na Figura da Consciência-de-si a dialética do Senhor e do Escravo. Tal dialética irá mostrar a interdependência entre ambas as consciências. Daí a necessidade do reconhecimento por parte de cada uma em relação à outra. O senhor deve reconhecer o Escravo que produz para ele, por isso a sua dependência dele. O Senhor que se encontrava na esfera de ser para si, passa a compreender que ele só é para si porque é para o outro. O Escravo que inicialmente era para o Outro, passa a reconhecer que o Outro só é o Outro por causa do seu trabalho. Assim o Senhor que era para si passar a ser para o Outro, e o Escravo que era para o Outro passa a ser para si. O desejo de ser, faz com que a Consciência-de-si alcance a sua verdade por meio da transformação do Outro em si mesma e para si mesma. O Outro passa a ser a sua verdade, porque possibilita que a consciência-de-si operacionalize a sua realização como saber que se saber em si e para si. Em outros termos: saber preenchido de vida, diferentemente do Entendimento que inicialmente caia na ilusão de leis estáticas para dar conta da dinâmica dos fenômenos naturais. A Vida transforma-se no objeto de desejo da consciência-de-si que busca naquela se realizar. A unidade da Vida em seu caráter infinito abre a possibilidade da consciência se auto-conhecer na multiplicidade da sua determinação interna. Ao conhecer a sua determinação por meio da multiplicidade infinita da vida, a consciência-de-si descobre que o Outro é fundamental para a elaboração da sua própria identidade. A verdade da Consciência-de-si, então, é ser em sua identidade singular a totalidade da realidade. Não é por acaso que Hegel diz que todo Racional e Real e todo Real é Racional.Com esta frase podemos compreender a passagem da Consciência-de-si para a próxima Figura que compõe a Fenomenologia do Espírito. A Razão A Razão significará dentro do processo de Formação da consciência o momento em que ela alcança a identidade entre a sua certeza e a verdade. Explicando melhor: com a chegada da Razão no interior do processo de Formação da consciência, ocorre uma identificação entre aquilo que a consciência pensa, no sentido particular (daí a certeza) e aquilo que é universal, considerado como verdade. Assim certeza (particularidade) e verdade (universalidade) tornam-se uma unidade. Lembrete: não esqueça que a unidade para Hegel é sempre uma totalidade daquilo que é igual a si mesmo, bem como diferente de si mesmo. Daí a fórmula hegeliana – Identidade da Identidade e da Diferença. Ao estar segura da sua verdade, a Razão não teme mais ser aniquilada pelo Outro, como acontecia na Figura anterior. A Consciência-de-si temia o Outro, pois este lhe representava o perigo de esfacelamento da sua determinação para si mesma. É por meio da dialética do Senhor e do Escravo que esse temor irá desaparecer. O reconhecimento do Outro servirá para a Consciência se convencer, por assim dizer, da certeza da sua existência singular. Eis o motivo da Razão se voltar para a Realidade, como sujeito, que a constrói por meio de uma racionalidade. A Razão ao possuir uma característica universal procura se realizar no mundo meio de um formato particular. A Razão para poder ganhar contornos próprios necessita de um formato particular. Deste modo, ao elaborar um formato próprio, ela singulariza a universalidade na realidade empírica. Podemos visualizar tal movimento a partir do processo histórico, como os diversos acontecimentos que ocorreram ao longo da existência humana. Vamos lembrar mais uma vez da Revolução Francesa que preconizou a igualdade entre os homens. A igualdade é um conceito (universal) que se singularizou no interior desse processo histórico particular (a Revolução Francesa). É a Razão que se concretizou singularmente nesse acontecimento histórico. Neste aspecto da concretização ou realização da Razão de um modo objetivo que surge a próxima Figura, chamada de Espírito. O Espírito. Antes de começarmos analisar esta Figura, não vá confundi-la com espiritismo ou algo do gênero! Chegamos ao ponto em que a Consciência se realiza de modo objetivo no mundo. A Consciência não se preocupa mais em analisar as suas singularidades, isto é, não há mais o problema de saber sobre a verdade dos seus conteúdos particulares. O Espírito se apresenta como sendo a verdade da Razão como totalidade da realidade, tanto em sua particularidade como em sua universalidade. O fundamento das ações da Razão no mundo se encontra no Espírito. Este, ao possuir uma determinação objetiva, faz com que as ações humanas tendam a ter um caráter ético no que se refere às relações no espaço público. Daí o Espírito ganhar formas éticas, jurídicas e estatais. As determinações éticas do Espírito aparecem como sendo a essência universal dos indivíduos que convivem no meio social ou público. A ética aparece objetivamente por meio das leis e das instituições políticas, que não admitem ações não racionais por parte dos indivíduos. Eis o motivo de Hegel esclarecer a relação imediata entre o indivíduo e a ética usando como exemplo histórico-conceitual o mundo grego. Para os gregos não havia uma forma subjetiva de moral (individual) que se contrapusesse à ética, em sua essência sócio-cultural. No mundo grego, o individuo tinha, ao mesmo tempo, a noção tanto da sua determinação particular como da determinação universal da ética. O indivíduo toma para si a ética como sua, por meio dos deveres. São os deveres que ligam o ético (em alemão: Sittleche) à vontade do indivíduo. Deste modo, o indivíduo se liga à ética, não por meio da determinação particular da consciência moral, porém, por meio da objetividade das instituições e das leis. Não é a subjetividade que determina as ações conforme os deveres objetivamente válidos. É o próprio dever (em alemão: Sollen) institucionalizado que determina as ações dos indivíduos. No entanto, essa objetividade do Espírito precisa ainda amadurecer no que se refere à essência do Absoluto. Eis o motivo de o Espírito passar para outra Figura da Fenomenologia do Espírito compreendida como Religião. A Religião A Religião é o momento em que a Consciência passa a se concentrar na essência do Absoluto. Estando centrada nessa essência, a consciência se apresenta inteiramente ciente de si mesma. Eis o motivo de todas as Figuras anteriores estarem no interior da Religião. Ela as religa em um movimento de totalidade, cuja finalidade é mostrar que a essência do Absoluto sempre esteve presente em todas. O que está em jogo na Religião é o saber em sua esfera criadora. Explicando melhor: A Religião, consciente da sua essência está voltada para a realização de si mesma como criação. O Absoluto como sendo o seu fundamento, isto é, a verdade em sua totalidade, faz com que a Religião apareça como sujeito criador. No entanto, ela surge de forma representacional no processo de criação nas diversas formas religiosas. No mundo antigo, mais especificamente na religião Persa, tal criação aparece como natureza por meio da Luz ou ainda na religião Indiana por meio das plantas e animais. A Representação será a tônica da concretização do Absoluto na esfera da Religião. Daí, mesmo nas formas mais elevadas da vida religiosa sempre aparecerá o Absoluto vinculado à representação. No cristianismo, o Absoluto surge na figura humana, Cristo, como sendo a encarnação do Absoluto. O limite da Religião para concretizar de modo pleno da Formação da Consciência como sendo saber que se saber em si e para si, sem as oposições sujeito e objeto, é a representação. Resta, então, para a finalização do amadurecimento da Consciência a superação dos modelos representacionais do Absoluto. O Saber Absoluto. Chegamos finalmente à última Figura que completa o ciclo da formação da Consciência. Como já citamos acima, o Absoluto é a consciência em seu estado pleno de amadurecimento em si e para si. Deste modo, as determinações do saber Absoluto superam qualquer formato de separação sujeito e objeto. Vimos ao longo da trajetória da formação da consciência que havia uma tendência das Figuras fazerem uma distinção entre elas e aquilo que lhes era exterior, no sentido de existir uma oposição. Tal contraposição aparecia inicialmente na Certeza Sensível, Percepção, Entendimento. Para depois continuar de um modo mais interno à Consciência nas Figuras como a Consciência-de-si, Razão, Espírito e Religião. No saber Absoluto há uma reconciliação de todas as etapas anteriores no que diz respeito à relação certeza e verdade. Essa relação se torna transparente na realização do saber Absoluto como saber voltado para sua totalidade. A consciência, então, por estar em sua completude consegue concretizar a unidade intrínseca entre a sua existência particular (certeza) e a existência do universal (verdade). A consciência não precisa mais temer ser aniquilada em seu ser particular pelas determinações daquilo que é o verdadeiro. Na realidade, a verdade só pode se efetivar no particular como um modo singular de ser. Em outros termos: a verdade de humano, por exemplo, só pode se realizar em um homem ou em uma cultura particular por meio do processo de singularidade daquela verdade como conceito. Nós podemos dizer que com o Saber Absoluto a consciência humana conseguesuperar os seus medos e inseguranças quanto à estrutura autônoma de conhecer. A autonomia do pensamento não acontece simplesmente pela nossa capacidade cognitiva, mas pelo processo de amadurecimento racional- histórico da cultura na qual estamos lançados. O pensamento autônomo é resultado do percurso feito pela consciência, em sua formação, até chegar ao seu ponto máximo: o saber que se sabe como saber em si e para si. Tal saber é autônomo porque passou por várias transformações que lhe permitiram ascender a um patamar de auto-suficiência. É como um adulto (homem ou mulher) que alcançou a sua autonomia intelectual e emocional depois de ter passado pela infância e adolescência. Por isso é preciso compreender a totalidade do caminho percorrido pela consciência em seu amadurecimento histórico-cultural. É pela famosa fórmula hegeliana da identidade da identidade e da diferença, como já citamos anteriormente, que se pode visualizar o homem como uma inteiramente nova totalidade. Isto significa que o homem precisa ser compreendido por meio de princípios diferentes, isto é, princípios que não definam a sua natureza de forma dicotômica entre razão e natureza. É por meio da idéia de continuidade, entre razão e natureza, que Hegel diz, que se pode fazer uma espécie de hierarquia dos níveis do ser, em que as unidades “superiores” são vistas como a realização de um patamar maior, o qual incorpora a imperfeição das unidades mais baixas (a Figura da Percepção realiza e incorpora a da Certeza Sensível e assim sucessivamente até a chegada ao Saber Absoluto). Cada patamar vai significar o desenvolvimento da concretização da subjetividade como consciência reflexiva, portanto, autônoma. Na teoria de Hegel, o processo de autoconhecimento da consciência em sua subjetividade se estrutura tanto na atividade fundamental do Espírito, considerada como reflexão, como no esforço de compreensão que ocorre no interior dos níveis de formulação de si mesma. A atividade reflexiva é a própria origem fenomenal da consciência em si e para si, no sentido de possibilitar que ela se realize, como saber, ao longo do seu processo de auto-investigação (Saber Absoluto que se sabe em si e para si). Para terminar, podemos dizer que os processos mentais do homem são a própria expressão do Saber Absoluto que amadureceu por meio da atividade reflexiva ao longo da nossa história cultural. A vida mental do homem está ligada a um processo vital vasto, que precisa ser compreendido no interior da visão totalizante desenvolvida por Hegel em sua Fenomenologia do Espírito. Esperamos que depois desta pequena introdução ao pensamento de Hegel, você possa ter mais elementos para debater o problema entre Autonomia do Pensamento e o Problema da Verdade. Grande abraço!
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