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A ÉTICA E A PROFISSÃO FORENSE 1. Conceito de profissão Atividade pessoal, desenvolvida de maneira estável e honrada, ao serviço dos outros e a benefício próprio, de conformidade com a própria vocação e em atenção à dignidade da pessoa humana. O espírito de serviço, de doação ao próximo, de solidariedade, é característica essencial à profissão. Conjugam-se ambos os objetivos: adota-se o serviço contemplando o bem alheio e com o intuito de atender à própria subsistência, atendendo a um apelo vocacional. Quando não verdadeiramente vocacionado, o profissional se sentirá tolhido, massacrado pelo fardo que podem representar, seja a rotina do trabalho, sejam as restrições impostas ao integrante daquele estamento. A vocação há de constituir livre e consciente projeto de vida. O exercício honroso da profissão quer dizer que o profissional deverá se conduzir de acordo com os seus cânones. As infrações profissionais são muito graves, pois constituem traição do infrator ao seu projeto de vida. As atividades laborais humanas não existem para movimentar a economia. Elas são voltadas à realização das pessoas, de maneira a que se realizem integralmente. 2. A Ética na profissão jurídica Todas as profissões reclamam proceder ético. Na atividade jurídica, porém, essa importância se eleva. É nas ciências jurídicas que as normas dos deveres morais se põem com toda a nitidez. Por isso a elaboração de um código de regras a que se convencionou chamar Deontologia Forense (Deontologia Jurídica ou Deontologia das Profissões Jurídicas). Há que distinguir os princípios deontológicos de caráter universal (probidade, desinteresse, decoro) e os que resultam vinculados a cada profissão jurídica em particular. 2.1 – A deontologia forense Deontologia é a teoria dos deveres. Deontologia profissional é o complexo de princípios e regras que disciplinam particulares comportamentos do integrante de uma determinada profissão. Deontologia Forense designa o conjunto das normas éticas e comportamentais a serem observadas pelo profissional jurídico. As normas deontológicas não se confundem com as regras de costume, de educação e de estilo. Estas são de cumprimento espontâneo e desprovidas de conteúdo normativo. Caracterizam os profissionais educados, polidos. Mas faltar em relação a qualquer delas não constitui, segundo a maior parte da doutrina, verdadeira infração ética. 3. O princípio fundamental da deontologia forense A idéia-força da deontologia forense é agir segundo ciência e consciência. Ciência, a significar o conhecimento técnico adequado, dominar as regras para um desempenho eficiente na atividade que exerce. Consciência, função social a ser desenvolvida em sua profissão. Empenho em sua concretização. Deve ser objeto de contínuo aperfeiçoamento. Mediante exercício permanente, ela se manterá orientada. Ninguém poderá se substituir a outrem na missão de construir sua consciência, porque ela é falível. O homem pode ter uma consciência vulnerável e não inclinada para o bem. Formar a consciência é o objetivo mais importante de todo o processo educativo. Ela é que avalia o acerto das ações, ela é que permite reformular o pensamento e as opções. 4. Os princípios gerais da deontologia forense 4.1 – O princípio da conduta ilibada A conduta ilibada é o comportamento sem mácula, aquele sobre o qual nada se possa moralmente levantar. Não se trata de mera boa conduta. O sistema está a reclamar do profissional do direito algo superlativo em relação às demais profissões. Deseja-se que os integrantes de uma função forense venham a se caracterizar pela incorruptibilidade, sejam merecedores de confiança, possam desempenhar com dignidade o seu papel de detentores da honra, da liberdade, dos bens e demais valores tutelados pelo ordenamento. 4.2 – O princípio da dignidade e do decoro profissional Este é um dos princípios gerais que pode estar presente em qualquer desempenho humano. Nas profissões do foro, todavia, o dúplice dever concentra toda a normativa dos deveres. Reclama-se dignidade e decoro também na vida privada, para que um comportamento indigno e indecoroso não venha a respingar a beca e a toga. Fere a dignidade profissional a prática de crimes como o estelionato, a falsidade, a receptação e outros. O decoro é vulnerado quando o profissional se apresenta mal vestido, de maneira a não honrar o prestígio da profissão. O princípio do decoro e da dignidade profissional é ainda suscetível de ser lesado quando se pleiteia remuneração excessiva. Ou quando se atua maliciosa e insinceramente, com abuso e falta de escorreição. É também indecorosa a publicidade exagerada, a captação de clientela, em carreiras que se baseiam na confiança e não em relação de comércio. Inadmissíveis em sentenças, despachos ou pareceres o uso de expressões chulas, inconvenientes e vulgares. O ordenado e correto exercício da profissão forense reclama moderação aos ímpetos da defesa e aos impulsos do caráter. 4.3 – O princípio da incompatibilidade A carreira jurídica exige, em regra, dedicação exclusiva de seu titular. É racional estabelecer-se a incompatibilidade do exercício forense com outro qualquer. A segunda atividade provocaria interferência na esfera profissional jurídica, propiciaria captação de clientela, geraria confusão nas finalidades de atuações diversas ou estabeleceria vínculos de subordinação vulneradores do princípio da independência. As funções que concernem ao direito são absorventes e pressupõem dedicação plena, excluídas todas aquelas próprias a outras profissões. 4.4 – O princípio da correção profissional O profissional correto é aquele que atua com transparência no relacionamento com todos os protagonistas da cena jurídica ou da prestação jurisdicional. Age no interesse do trabalho e da justiça. Não se beneficia com a sua função ou cargo. É um comportamento sério, discreto, reservado, cortês, urbano, honesto, inadmitindo-se para isto qualquer outra alternativa. 4.5 – O princípio do coleguismo O conceito genérico de coleguismo são comportamentos recíprocos de fidelidade, lealdade, camaradagem, confiança recíproca e solidariedade. O coleguismo, sob enfoque deontológico, é um sentimento derivado da consciência de pertença ao mesmo grupo, a inspirar certa homogeneidade comportamental, encarada como verdadeiro dever. O coleguismo guarda vinculação extrema com o exercício profissional. 4.6 – O princípio da diligência O profissional do direito deve ser pronto e ter presteza ao cuidar do interesse alheio vulnerado. Impõe ao profissional do direito o dever de completar a sua formação, inserindo-se num processo de educação continuada. É negligente quem não se empenha no auto-aprimoramento. O dever de diligência clama por tratamento igual a casos menores e outros considerados mais relevantes, a mesma atenção a partes humildes e poderosas. 4.7 – O princípio do desinteresse Por princípio do desinteresse é conhecido o altruísmo de quem relega a ambição pessoal ou a aspiração legítima, para buscar o interesse da justiça. Inspira ainda um dos critérios informadores da profissão do advogado. O dever do advogado é tentar sempre a conciliação, antes de propor a lide, previamente ao início da instrução e a qualquer tempo, sem se preocupar com eventual redução de seus honorários que disso decorra. Pode parecer utopia pregar o desinteresse numa era denominada neo-liberal. Cumpre, todavia, conservar o mínimo ético garantidor das conquistas civilizatórias da humanidade. 4.8 – O princípio da confiança O operador jurídico ainda exerce uma artesania do direito.O cliente constitui seu advogado o profissional que lhe merece confiança. Será o detentor de seus segredos, terá acesso a informações íntimas, terá em suas mãos a chave da resolução dos problemas que o atormentam. Existe, assim, um caráter fiduciário na relação advogado∕cliente. O advogado tem ainda o dever da fidelidade em relação ao cliente, pois foi por este escolhido em razão de particularíssima confiança em seus méritos, capacidade e pessoa. Já os juízes, promotores e demais integrantes de carreiras jurídicas públicas são impostos às partes. A confiança, aqui, não recai sobre a pessoa individual do juiz, senão sobre a pessoa coletiva da Magistratura. Espera-se, de cada juiz, seja fiel à normativa de regência de sua conduta, sobretudo em relação aos preceitos éticos subordinantes de seu comportamento. 4.9 – O princípio da fidelidade Correlato ao princípio da confiança, o princípio da fidelidade é outro dos atributos cobráveis aos detentores de função jurídica. Fidelidade à causa da justiça, exigível a todo e qualquer profissional do direito. Fidelidade à verdade e à transparência. Esse é um capítulo de singular delicadeza. Já se afirmou que “o advogado não deve desmascarar o acusado defendido por ele que mente ao juiz; que deve fixar suas conclusões com base na confissão recebida de seu cliente”. A fidelidade é um conceito que precisa ser repensado. Pois “a fidelidade não é um valor entre outros: ela é aquilo por que, para que há valores e virtudes”. A virtude que queremos não é toda fidelidade, mas apenas a boa fidelidade e a grande fidelidade. A fidelidade do operador jurídico é a fidelidade das boas causas, a fidelidade à justiça e a fidelidade do direito. 4.9 – O princípio da independência profissional Por independência se concebe a ausência de quaisquer vínculos interferentes na ação do profissional do direito, capazes de condicionar ou orientar sua atuação de forma diversa ao interesse da justiça. A independência é atributo consagrado ao juiz, ao promotor, ao advogado e aos demais operadores. A independência não há de ser tal que fuja ao controle ético. A independência postula enfaticamente estrita dependência à ordem moral. A subordinação à ética é a um tempo garantia e limite para a independência profissional. Não se concebe uma independência direcionada a malferir o ordenamento moral daqueles que exercem profissão forense, caracterizada pela prática indistinção de muitas regras morais perante as regras técnico-jurídicas. 4.10 – O princípio da reserva O homem de bem é um homem discreto. Desprestigia-se, e à categoria, o profissional que comenta com terceiros aquilo de que tomou conhecimento no exercício profissional. Fala-se que o princípio da reserva é mais abrangente do que o princípio do segredo. O ser humano levado à justiça ou a servir-se dela, partilha intimidades com os profissionais em contato com sua causa. Embora reserva e segredo não se confundam, “entre a regulação jurídica do segredo profissional e o princípio deontológico de reserva existem vínculos estreitos”. Prudencial a conduta do operador jurídico no sentido de preservar os protagonistas do drama que se lhe apresenta. Gianniti contempla como outras expressões do princípio da reserva: 1. O dever de tratar a prática profissional no foro e não em lugares públicos; 2. O dever de manter que funcionários, digitadores, assistentes ou escreventes, mantenham reserva sobre tudo aquilo de que tomem conhecimento por motivo do trabalho; dentre outros. Ao lado do princípio da reserva, existe para alguns o princípio da informação, que o não contradiz. O princípio da informação postula a amplitude de conhecimento de fatos, notícias e circunstâncias conducentes ao exercício da defesa. O avanço tecnológico oferece faces insuspeitas para o princípio da reserva. A divulgação de dados que só interessam ao indivíduo é coibida, por força de preceito constitucional que protege a privacidade. 4.11 – O princípio da lealdade e da verdade Deflui do sistema jurídico o dever de atuar com lealdade, pois o direito civil brasileiro, inspirado na fonte romano-germânica, premia a boa-fé e a correção. A lealdade precisa inspirar toda a atuação jurídica, notadamente a processual. O juiz deve se portar com lealdade, corolário da imparcialidade. O promotor deve se pautar com lealdade para com o juiz e para com o advogado, atuando com transparência e não guardando trunfos para surpreender qualquer deles. O advogado, além da lealdade para com o juiz e promotor, deve tê-la em relação ao colega e aos clientes. Estes precisam ser advertidos do êxito ou temeridade da demanda, necessitam de esclarecimentos precisos sobre a conciliação e suas conseqüências, sobre o andamento da causa e sobre as estratégias adotadas pelo profissional para o bom desempenho de seu mister. A lealdade imporia a todos os operadores jurídicos o dever da verdade. A dificuldade primeira é a conceituação da verdade. Existe, para o operador jurídico, o dever absoluto de dizer a verdade? A mentira viola os princípios da ética forense e compromete a função social da profissão. O processo é a realização da Justiça e nenhuma justiça pode apoiar-se na mentira. 4.12 – O princípio da discricionariedade A profissão jurídica é exercida por alguém que obteve formação em grau universitário. O juiz tem discricionariedade no mais amplo espectro do exercício de sua missão. É um poder terrível, que encontra freios éticos muito nítidos. O exercício consciente da jurisdição acarreta deveres de ordem constitucional, legal e disciplinar. O promotor de justiça tem uma discricionariedade até mais dilargada. Pode, em tese, pleitear o arquivamento do inquérito ou denunciar. A necessidade de permanente vigilância ética mostra-se imprescindível para o Ministério Público. O advogado também tem discricionariedade para persuadir o cliente de iniciar uma lide ou de imediatamente propô-la. É dele a discricionariedade típica de eleger a estratégia de combate ou de defesa nos autos. Com alguma atenuação, o profissional encarregado da defesa do Estado também é munido de poderes discricionários. E o delegado de polícia é, talvez, o exercente de função jurídica mais aquinhoamento pelo sistema dessa atuação quase completamente livre. 4.13 – Outros princípios éticos das carreira jurídicas A enunciação de princípios éticos gerais, aplicáveis às profissões forenses, é sempre algo de discricionário. Poder-se-ia multiplicar a relação dos princípios, incluindo-se inúmeros outros, alguns lembrados por autores que também se dedicaram ao estudo da ética. Todos eles se prestam ao serviço de atilar a postura prudencial dos operadores jurídicos, favorecendo-os a um exame de consciência para constatar como pode ser aferido eticamente o próprio comportamento. Na maior parte das vezes, esse profissional é o único árbitro de sua conduta.
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