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O C IN EM A E A S D IT A D U RA S M IL IT A RE S: C O N TE XT O S, M EM Ó RI A S E RE PR ES EN TA Ç Õ ES A U D IO V IS U A IS Apresentação Eduardo Morettin Marcos Napolitano Capítulo 1. O cinema brasileiro e os filmes históricos no regime militar: o lugar do historiador Eduardo Morettin Capítulo 2. Independência ou Morte: cinema histórico e ditadura no Brasil Ignacio Del Valle Dávila Capítulo 3. O pensamento de Gustavo Dahl sobre o cinema político: entre a estética do silêncio e o jogo discursivo com o regime militar Margarida Maria Adamatti Capítulo 4. O cinema e a construção da memória sobre o regime militar brasileiro: uma leitura de Paula, a história de uma subversiva (Francisco Ramalho Jr., 1979) Marcos Napolitano Fernando Seliprandy Capítulo 5. Anos Rebeldes: melodrama, imagens de arquivo, e uma memória da ditadura militar no Brasil Mônica Almeida Kornis Capítulo 6. Emoção e violência em Ressurreição (Arthur Omar, 1988). Rosane Kaminski Capítulo 7. Os filmes da ditadura civil-militar brasileira e o realismo político Cristiane Freitas Gutfreind Capítulo 8. Memórias em negociação: o documentário brasileiro nos trânsitos entre a História e a subjetividade Reinaldo Cardenuto Capítulo 9. Subversão, clandestinidade e farsa: o cinema de solidariedade ao Chile e suas estratégias Carolina Amaral de Aguiar Capítulo 10. Marcas del terrorismo de Estado en el cine argentino de la última dictadura militar: crisis institucional y dominación social Ana Laura Lusnich O cinema e as ditaduras militares: contextos, memórias e representações audiovisuais discute as relações en-tre cinema e história a partir dos projetos ideológicos, documentários, filmes de ficção e minisséries relativos ao pe- ríodo das ditaduras militares no Brasil, Argentina e Chile. Neste livro propomos um adensamento do debate face a no- vas fontes e perspectivas, como também procuramos pensar novos problemas e temas para as pesquisas históricas em re- lação ao cinema das/sobre as ditaduras, escolhendo filmes documentais e ficcionais de diversas épocas. Este projeto editorial tem alguns objetivos e olhares comuns, fruto das atividades do Grupo de Pesquisa CNPq “História e Audiovisual”. Em primeiro lugar, valorizar o específico fíl- mico em sua relação com um conjunto de teorias e metodo- logias sobre o audiovisual, caminho produtivo para pensar o filme enquanto documento histórico, partindo da indissocia- bilidade entre a análise das representações e o exame da lin- guagem cinematográfica. Em segundo lugar, pensar o cinema não apenas como “vetor” de memórias sobre as ditaduras, como se estas fossem gestadas apenas em outros lugares e lin- guagens, mas como “produtores de memória”, identificadas a partir de sua narrativa audiovisual em diálogo com os de- bates historiográficos e memórias dominantes ou recalcadas. O CINEMA E AS DITADURAS MILITARES EDUARDO MORETTIN MARCOS NAPOLITANO ORGANIZADORES Contextos, memórias e representações audiovisuais O CINEMA E AS DITADURAS MILITARES CONTExTOS, MEMóRIAS E REpRESENTAçõES AUDIOvISUAIS (Processo Fapesp 2016/23058-2) As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da Fapesp. Eduardo Morettin Marcos Napolitano O R g A N I z A D O R E S O CINEMA E AS DITADURAS MILITARES CONTExTOS, MEMóRIAS E REpRESENTAçõES AUDIOvISUAIS Editora Intermeios Rua Cunha Gago, 420 / casa 1 – Pinheiros CEP 05421-001 – São Paulo – SP – Brasil Fones: (11) 2365-0744 – 94898-0000 (Tim) – 99337-6186 (Claro) www.intermeioscultural.com.br • O CINEMA E AS DITADURAS MILITARES: CONTEXTOS, MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES AUDIOVISUAIS © Eduardo Morettin | Marcos Napolitano 1ª edição: julho de 2018 • Editoração eletrônica, produção Intermeios – Casa de Artes e Livros Revisão Nonononononono Capa Lívia Consentino Lopes Pereira • CONSELHO EDITORIAL Vincent M. Colapietro (Penn State University) Daniel Ferrer (ITEM/CNRS) Lucrécia D’Alessio Ferrara (PUCSP) Jerusa Pires Ferreira (PUCSP) Amálio Pinheiro (PUCSP) Josette Monzani (UFSCar) Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar) Ilana Wainer (USP) Walter Fagundes Morales (UESC/NEPAB) Izabel Ramos de Abreu Kisil Jacqueline Ramos (UFS) Celso Cruz (UFS) – in memoriam Alessandra Paola Caramori (UFBA) Claudia Dornbusch (USP) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP N845 Morettin, Eduardo, Org.; Napolitano, Marcos, Org. O cinema e as ditaduras militares: contextos, memórias e representações audiovisuais / Organização de Eduardo Morettin e Marcos Napolitano. – São Paulo: Intermeios: Fapesp; Porto Alegre: Famecos, 2018. 232 p. ; 16 x 23 cm. Projeto Cinema e história no Brasil: estratégias discursivas do documentário na construção de uma memória sobre o regime militar, apoiado pelo CNPq por meio do Edital Universal 14/2013. ISBN 978-85-8499-128-0 1. História. 2. História Social. 3. História Cultural. 4. América Latina. 5. História do Brasil. 6. História do Chile. 7. História da Argentina. 8. Ditadura. 9. Resistência Política. 10. Resistência Cultural. 11. Indústria Cultural. 12. Cinema. 13. História do Cinema. 14. Filmografia. I. Título. II. Contextos, memórias e representações audiovisuais. III. Morettin, Eduardo, Organizador. IV. Napolitano, Marcos, Organizador. V. Dávila, Ignacio Del Valle. VI. Adamatt, Margarida Maria. VII. Seliprandy, Fernando. VIII. Kornis, Mônica Almeida. IX. Kaminski, Cristiane Freitas. X. Cardenuto, Reinaldo. XI. Aguiar, Carolina Amaral de. XII. Lusnich, Ana Laura. XIII. Intermeios – Casa de Artes e Livros. CDU 94(37)(081) CDD 370 i.9 Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino Sumário 7 Apresentação Eduardo Morettin e Marcos Napolitano 15 Capítulo 1. O cinema brasileiro e os filmes históricos no regime militar: o lugar do historiador Eduardo Morettin 33 Capítulo 2. Independência ou Morte: cinema histórico e ditadura no Brasil Ignacio Del Valle Dávila 57 Capítulo 3. O pensamento de Gustavo Dahl sobre o cinema político: entre a estética do silêncio e o jogo discursivo com o regime militar Margarida Maria Adamatti 77 Capítulo 4. O cinema e a construção da memória sobre o regime militar brasileiro: uma leitura de Paula, a história de uma subversiva (Francisco Ramalho Jr., 1979) Marcos Napolitano e Fernando Seliprandy 101 Capítulo 5. Anos Rebeldes: melodrama, imagens de arquivo, e uma memória da ditadura militar no Brasil Mônica Almeida Kornis 129 Capítulo 6. Emoção e violência em Ressurreição (Arthur Omar, 1988). Rosane Kaminski 155 Capítulo 7. Os filmes da ditadura civil-militar brasileira e o realismo político Cristiane Freitas Gutfreind 167 Capítulo 8. Memórias em negociação: o documentário brasileiro nos trânsitos entre a História e a subjetividade Reinaldo Cardenuto 195 Capítulo 9. Subversão, clandestinidade e farsa: o cinema de solidariedade ao Chile e suas estratégias Carolina Amaral de Aguiar 217 Capítulo 10. Marcas del terrorismo de Estado en el cine argentino de la última dictadura militar: crisis institucional y dominación social Ana Laura Lusnich Apresentação Eduardo Morettin1 Marcos Napolitano2 O livro O cinema e as ditaduras militares: contextos, memórias e representações audiovisuais apresenta os resultados de três anos de pesquisa do projeto Cinema e história no Brasil: estratégias discursivas do documentário na construção de uma memóriasobre o regime militar, apoiado pelo CNPq por meio do Edital Universal 14/2013. Seu objetivo foi o discutir as relações entre cinema e história a partir dos documentários e filmes de ficção brasileiros que se ocuparam do período do regime militar, analisando as estratégias de autenticação de seu discurso, como o uso de material de arquivo, do testemunho e da voz over, dentre outros procedimentos3. 1. Professor de História do Audiovisual na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor de Humberto Mauro, Cinema, História (São Paulo, Alameda, 2013) e bolsista produtividade em pesquisa CNPq. 2. Professor do Departamento de História da USP e Bolsista do CNPq/Bolsa Produtividade, cuja pesquisa para este texto contou com o apoio desta agência de fomento. Autor, dentre outros trabalhos, de Coração Civil: a vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985) - ensaio histórico (São Paulo: Intermeios - Casa de Artes e Livros, 2017) e 1964: História do Regime Militar Brasileiro (São Paulo: Editora Contexto, 2014). 3. Um objetivo secundário foi o de mapear a discussão teórica sobre o campo, realizando, dentre outras ações, o levantamento da produção de dissertações de mestrado e teses de doutorado defendidas no Brasil sobre história e cinema. Para acessar esse material ver http:// historiaeaudiovisual.weebly.com/cinema-e-histoacuteria.html, acesso em 17 mar. 2018. 8 O CINEMA E AS DITADURAS MILITARES Entre os anos de 2014 e 2016, o grupo de pesquisa CNPq “História e Audiovisual: circularidades e formas de comunicação”, coordenado pelos organizadores desse livro, promoveu uma série de atividades, como mostra4, seminários abertos ao público5, entrevistas com diretores6, levantamento de teses e dissertações sobre cinema e ditadura militar7, estabelecimento de filmografia, com ficha técnica, fortuna crítica e textos explicativos sobre parte dessa produção8, publicações9, apresentações de trabalhos em congressos científicos, etc. Coroando esse processo, ao mesmo tempo em que o finaliza, o presente livro espera não apenas divulgar o que foi consolidado ao longo desse período, mas abrir perspectivas novas de trabalho sobre o campo. É importante ressaltar que o cinema tem ocupado um lugar destacado na representação e na refiguração dos passados traumáticos das sociedades. Para além da consagrada dimensão de espetáculo artístico e lazer de massas, o cinema parece ter uma função específica no campo da memória e da história quando revisita processos de violência, guerras civis, conflitos internacionais e genocídios. Não é raro que o cinema se antecipe ao debate acadêmico e até imponha certas pautas historiográficas, como é notório no caso das representações da Shoah, desde o incontornável Noite e Neblina (1955), de Alain Resnais. 4. Imagens da ditadura foi realizada na Cinemateca Brasileira entre 27 de março a 13 de abril de 2014. A programação está disponível em http://historiaeaudiovisual.weebly.com/mostras.html, acesso em 17 mar. 2018. 5. Foram ao total 17 seminários de pesquisa, com pós-graduandos e docentes da Universidade de Buenos Aires, Universidade de São Paulo, Universidade Estadual de Campinas, Universidade Estadual de Santa Catarina, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Universidade Federal do Paraná. A relação completa dessas atividades, bem como a gravação em vídeo de algumas dessas palestras, podem ser consultadas em http://historiaeaudiovisual.weebly.com/2014- --2017.html, acesso em 17 mar. 2018. 6. Silvio Tendler e Lucia Murat foram entrevistados por Eduardo Morettin e Mônica Almeida Kornis no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro, em novembro de 2015. Esse material será publicado pelo periódico ArtCultura em 2018. 7. Ver http://historiaeaudiovisual.weebly.com/cinema-e-regime-militar-brasileiro.html, acesso em 17 mar. 2018. 8. Disponível em http://historiaeaudiovisual.weebly.com/filmografia-ditadura-brasil.html, acesso em 17 mar. 2018. O leitor que consultar a filmografia perceberá alguma discrepância entre as datas de alguns dos filmes citados nesse livro e as que constam do levantamento. Devemos considerar que no Brasil nem sempre a data de produção de um filme coincide com a de seu lançamento. No site, o critério foi a organização cronológica pela data de lançamento, sempre que possível. 9. Dentre elas, destacamos Ditaduras Revisitadas: Cartografias, Memórias e Representações Audiovisuais (Faro, Portugal: CIAC/Universidade do Algarve, 2016), organizado por Denize Correa Araujo, Eduardo Morettin e Vitor Reia-Baptista. 9Eduardo Morettin | Marcos Napolitano No caso das ditaduras militares latino-americanas, o cinema ocupa igualmente um papel de destaque na representação daquele passado que até hoje parece oscilar entre o trauma (o que não pode ser nomeado, porque indizível) e o tabu (o que não deve ser nomeado, porque inconveniente). Os cinemas brasileiro, argentino e chileno, em particular, têm esmiuçado o passado ditatorial destes países na busca de explicações, equações, ponderações e representações acerca dos golpes, da repressão, das guerrilhas, das resistências, das colaborações e dos cotidianos das sociedades tuteladas por governos militares de direita. Em que pese a percepção geral, correta até certo ponto, de que o cinema tem um lado nesta História, o da “sociedade vítima e resistente”, a produção ficcional e documental dos últimos anos é mais rica do que parece. Esta riqueza não se expressa apenas nas linguagens diversas escolhidas pelos realizadores, mais “autoral” ou mais “comercial”, se quisermos manter a problemática dicotomia que se consagrou no circuito cinéfilo. Mas também se expressa pela diversidade de temas, ideologias, abordagens e personagens relativos àqueles passados que marcam os filmes. Vale dizer, que os filmes sobre as ditaduras não foram produzidos depois que estes regimes políticos foram superados pela volta das democracias. Ainda durante a sua vigência, o cinema latino-americano representou as ditaduras do continente, de forma direta ou enviesada, dependendo da conjuntura repressiva. As ditaduras organizaram novas formas de relação entre os respectivos Estados e as cinematografias nacionais, de diversas maneiras. Seja pela censura que exigia novos exercícios de linguagem por parte dos diretores e roteiristas, frequentemente ligada à alegoria e à metáfora como forma de crítica. Seja pela normatização burocrática e pelo mecenato estatal que no caso brasileiro, particularmente, impactou o campo do cinema e abriu novas possibilidades de produção e distribuição para os realizadores nacionais, críticos ou não do regime. Mesmo depois de superados os regimes autoritários, os cinemas dos países que passaram pela experiência traumática das ditaduras, assumiram um papel central como vetores de memória, a partir de diversos gêneros e estéticas. Nas obras realizadas nas fases de transição democrática ou de vigência plena do Estado de Direito na América Latina, as ditaduras foram esmiuçadas, analisadas, comentadas, criticadas, compreendidas. Muitos filmes, ficcionais ou documentais, se viram no centro de debates intensos, posto que sua relação com o público ia muito além do mero entretenimento, embora muitas vezes se confunda com este. Na filmografia sobre os golpes e ditaduras do “Cone Sul” (Brasil aí incluído, malgré sua geografia mais ampla), o primeiro aspecto que chama a atenção são as diferentes trilhas de investigação histórica entre o documentário e a ficção nos últimos 20 anos, ao menos. No primeiro gênero, o olhar subjetivo 10 O CINEMA E AS DITADURAS MILITARES dos realizadores refigura o passado, seja através da busca simbólica (e real), muitas vezes traumática, dos parentes que se envolveram diretamente na guerrilha, seja através da reafirmaçãode uma memória pública heroica e monumentalizada dos resistentes com os quais se identificam. Na ficção, o melodrama e o drama estruturados a partir de narrativas clássicas têm dado o tom das obras, via de regra centradas nas figuras da resistência, seus dilemas, derrotas e contradições. Na ficção, a catarse parece predominar sobre a crítica, enquanto no documentarismo, o revisionismo e a problematização do passado parecem ter mais lugar. Se no cinema ficcional, a derrota política real é compensada pela vitória moral, seguida da monumentalização, daqueles que lutaram (e morreram), sobretudo nas obras de viés mais melodramático, no documentário a história ainda é representada como um processo aberto, como se os cadáveres do regime ainda estivessem ao sol, exigindo uma autopsia. Nestas escolhas, o cinema dos últimos 20 anos, à exceção de algumas obras marcantes e singulares, parece fugir do diagnóstico político da derrota e da cumplicidade social diante da repressão. O heroísmo dos resistentes e a vilania dos repressores, que quase sempre caracteriza as produções de maior apelo comercial, se adequam a este olhar obliquo sobre o passado. Ao que parece, ainda é muito difícil tocar em certos temas. Voltamos aos traumas e tabus. Se há diferenças de escala, culturas políticas e intensidades do debate em cada cinematografia nacional, esta tendência geral parece estar se compartilhando nos últimos 20 anos. No caso brasileiro, a nostalgia que boa parte da classe média parece sentir do regime militar, talvez estimule obras revisionistas no pior sentido do termo, matizando a violência do regime, vilanizando o lado derrotado ou heroicizando a repressão. Alguns filmes já esbarraram neste revisionismo, ainda que não tenham rompido completamente com as representações dominantes da “sociedade vítima-resistente”. Obviamente, há diferenças importantes entre o cinema argentino, chileno e brasileiro. No caso dos dois primeiros, houve uma importante produção feita no exílio durante os regimes militares, seguido de um ambiente particularmente fértil para o cinema ficcional que realizasse a catarse da sociedade durante a redemocratização, figurando a ditadura como hiato histórico, sobretudo no caso argentino. No caso chileno, tudo indica que o cinema ficcional assumiu a tarefa de representar um novo país, sem as ilusões ou valores do passado, entendendo a ditadura não como hiato, mas como travessia a fórceps para um futuro incerto e inglório. No caso brasileiro, dada a longevidade e as dinâmicas internas do regime em relação à cultura, o cinema tem uma relação mais contraditória e complexa com este tema. Nos anos 1960, sob os efeitos do cinema novo, a ditadura foi representada de um modo bem diverso do que nos anos 1980 em diante no documentário, mas principalmente na ficção. 11Eduardo Morettin | Marcos Napolitano A crítica e a historiografia do cinema já estabeleceram, ainda durante a vigência dos regimes militares, várias pautas e formas de se analisar os filmes latino-americanos sobre o tema. Neste debate, algumas tendências se destacam: a importância da alegoria, os limites e potencialidades do naturalismo e do realismo na representação do passado, o paradoxo do mecenato oficial (sobretudo no caso brasileiro), as tensões entre o filme político, filmes históricos e as regras de gênero, as contradições do documentário em sua busca pelo real, entre tantos outros tópicos. Neste livro, não só retomamos estas questões, propondo um adensamento do debate face a novas fontes e perspectivas, mas também procuramos pensar novos problemas e temas para as pesquisas históricas em relação ao cinema das/sobre as ditaduras, escolhendo filmes documentais e ficcionais de diversas épocas, que ora confirmam as tendências gerais aqui sintetizadas, ora se oferecem para leituras alternativas a estas tendências. Os capítulos aqui reunidos buscam analisar obras não-canônicas em profundidade, ou mesmo as canônicas a partir de outras perspectivas, menos comuns. Procuram discutir o documentarismo, mapeando tendências do passado, como a “Internacional do cinema militante” sobre o Chile de Allende, ou do presente, como o documentarismo subjetivo realizado por parentes de atores históricos. Analisam políticas culturais das ditaduras, seus agentes e os filmes por elas inspirados, que se contrapõem à memória hegemônica da “sociedade vítima- resistente”. O primeiro capítulo, de Eduardo Morettin, investiga as demandas oficiais do governo brasileiro nos anos 1970 pelo filme histórico, gênero particularmente cultivado pelas ditaduras, e sua relação com a crítica histogriográfica, dada a participação de historiadores em projetos fomentados pela Embrafilme, espaço que se tornou um lugar de disputa sobre o sentido do passado, bem como um lugar de crítica ao presente. Ignacio Del Valle Dávila segue nesta linha, analisando detalhadamente um caso de filme histórico de adesão ao regime, mas que nem por isso escapa a contradições, o famoso Independência ou Morte (1972), de Carlos Coimbra, grande sucesso do cinema brasileiro, e sua relação com a obra do escritor Paulo Setúbal, abordagem pouco explorada nos estudos sobre o filme. Margarida Adamatti recupera a trajetória intelectual, rica e contraditória, de Gustavo Dahl, cineasta e crítico ligado à esquerda e ao cinema novo que participou da burocracia oficial da ditadura, que procurava estimular e organizar a indústria cinematográfica brasileira nos anos 1970. Nesse sentido, não foram poucos os dilemas decorrentes dessa participação e das estratégias para articular o cinema político ao mercado, em busca de um maior público. O texto de Marcos Napolitano e Fernando Seliprandy realiza um exame de conjunto da filmografia sobre o período, com 12 O CINEMA E AS DITADURAS MILITARES destaque para Paula, a história de uma subversiva (Francisco Ramalho Jr., 1979), um filme não-canônico sobre a ditadura brasileira produzido no início da abertura política, obra pioneira em sua tentativa de enquadrar a memória sobre os “anos de chumbo”. O tema da memória e da representação do passado também serve de mote para outros capítulos do livro. Monica Kornis examina a relação entre melodrama televisual e imagens de arquivo na conformação de uma memória sobre o regime militar brasileiro, a partir da minissérie Anos Rebeldes (1992), articulando a análise ao mapeamento dos projetos ideológicos que se encontravam em sua origem, além da recepção e impacto que a minissérie teve à época. Rosane Kaminski traz ao debate o filme Ressurreição (1988), curta realizado logo depois do fim do regime miliar, parte da cinematografia desviante de Arthur Omar, como foco na violência e emoção presentes na obra, como chaves para provocar uma leitura do passado recente. Como diz a autora, suas imagens “ativam também a memória não tão remota da violência praticada pelo governo militar contra os seus oponentes, ao longo das duas décadas anteriores”. Voltamos ao quadro geral com o texto de Cristiane Freitas Gutfreind, que sintetiza algumas linhagens das obras que representaram o período em sua articulação com o realismo e a dimensão biográfica, propondo uma revisão do lugar do “filme político” nessa filmografia. Reinaldo Cardenuto analisa as disputas de memória no documentarismo feito por parentes de militantes políticos, discutindo as tendências e a busca da subjetividade como forma de processar a experiência das ditaduras em três filmes: Diário de uma busca (2011), de Flávia Castro, Os dias com ele (2012), de Maria Clara Escobar, e Em busca de Iara (2013), de Flávio Frederico. Os capítulos finais se dedicam ao contexto chileno e argentino. A filmografia solidária às vítimas da ditadura chilena, realizada em circuitos transnacionais, é analisada por Carolina Amaral de Aguiar. Ainda relativo aos filmes feitos durante asditaduras, Ana Laura Lunisch nos apresenta uma filmografia crítica ao terrorismo de Estado na Argentina, de caráter muitas vezes hermético, mas não menos contundente, feita durante sua vigência. Em que pese a diversidade de temas, estilos, qualidade das obras e abordagens dos filmes aqui analisados, este projeto editorial tem alguns objetivos e olhares comuns, amplamente debatidos e exercitados nas atividades do Grupo de Pesquisa CNPq “História e Audiovisual”10 que conectam todos os autores 10. Dentre essas atividades, além das já citadas em notas anteriores, cumpre destacar os resultados de pesquisa publicados em Cinema e história: circularidades, arquivos e experiência estética (Porto Alegre, Sulina, 2017), organizados por Carolina Amaral de Aguiar, Danielle Carvalho, Eduardo 13Eduardo Morettin | Marcos Napolitano envolvidos neste livro. Em primeiro lugar, valorizar o específico fílmico em sua relação com um conjunto de teorias e metodologias sobre o audiovisual, caminho produtivo para pensar o filme enquanto documento histórico, partindo da indissociabilidade entre a análise das representações e o exame da linguagem cinematográfica. Em segundo lugar, pensar o cinema não apenas como “vetor” de memórias sobre as ditaduras, como se estas fossem gestadas apenas em outros lugares e linguagens, mas como “produtores de memória”, identificadas a partir de sua narrativa audiovisual em diálogo com os debates historiográficos e memórias dominantes ou recalcadas. Esperamos que os textos que se seguem tenham conseguido, dentro da sua diversidade, atingir estes dois objetivos. Ao fim e ao cabo, gostaríamos de agradecer o apoio da FAPESP e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, sem os quais esta publicação seria inviável. Morettin, Lúcia Monteiro e Margarida Adamatti, História e Documentário (São Paulo, Editora FGV, 2012), organizado por Eduardo Morettin, Marcos Napolitano e Mônica Almeida Kornis, e o primeiro projeto editorial do grupo de pesquisa, História e Cinema: dimensões históricas do audiovisual (2ª ed., São Paulo, Alameda Casa Editorial, 2011), organizado por Eduardo Morettin, Elias Thomé Saliba, Marcos Napolitano e Maria Helena Capelato.
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