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Linguagem e Pensamento Claudia Rosa Riolfi Linguagem e Pensamento Li ng ua ge m e P en sa m en to 2.ª edição 2009 Linguagem e Pensamento Claudia Rosa Riolfi Psicanalista. Doutora em Linguística pela Unicamp. Mestre em Linguística Aplicada pela Unicamp. Professora das Metodologias de Ensino de Língua Portu- guesa, Linguística e Alfabetização da Faculdade de Educação da USP. Claudia Rosa Riolfi Sumário A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento ................................... 11 Pensar não é tão simples como parece ............................................................................. 12 O pesadelo dos pesadelos: uma sociedade humana sem pensamentos ............. 16 O imprevisível animal humano ........................................... 25 Os animais não se organizam do mesmo modo ............................................................ 25 É conversando que a gente não se entende... ................................................................ 27 Modos diferentes para explicar como a gente se torna o que é .............................. 29 O professor-detetive ou, simplesmente, o bom professor ......................................... 31 Concepção do homem como ser de linguagem .......... 39 A linguagem é o que dá o nosso contorno ...................................................................... 40 Alguns traços da linguagem humana ................................................................................ 42 A linguagem antes dos trabalhos de Benveniste .......................................................... 43 Analisar os modos de falar e de pensar: exclusividade do ser humano .............................................. 53 A capacidade para a reflexão linguística se ganha na cultura .................................. 55 A língua como objeto de análise pode gerar muito prazer ....................................... 57 A perspectiva histórica do desenvolvimento do pensamento humano .........................................................67 Os sustos que a gente leva quando encontra quem sabe mais ............................... 67 Introduzindo o pensamento de Vygotsky ........................................................................ 69 A perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano .............................. 71 Significado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem ........ 79 No início, era o corpo... ............................................................................................................ 79 O conceito de pensamento verbal em Vygotsky ............................................................. 81 A dupla função organizadora da palavra.......................................................................... 83 O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança .................................................... 93 A linguagem torna o homem mais complexo ................................................................ 94 O conceito de internalização e sua relevância para refletir o ato educativo ........ 96 A zona de desenvolvimento proximal e sua aplicabilidade para refletir sobre a educação ...................................................... 98 A influência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança ........................................109 O papel da escola no desenvolvimento intelectual ...................................................110 Construir uma educação desafiadora para promover o desenvolvimento humano ................................................................112 Construindo uma relação pedagógica na qual seja possível explorar os conteúdos .................................................................116 O desafio de ensinar a escrever bem nos dias de hoje ..123 A invenção da escrita .............................................................................................................123 A mutação das funções sociais da escrita ......................................................................124 O papel do professor no processo de aprender a escrever......................................127 Auxiliar a criança a se apropriar do código alfabético exige saber o que estamos fazendo ............................................................128 Perspectiva histórico-social: a aula de Língua Portuguesa e seus textos nela produzidos ...................139 O pensamento sobre a alfabetização no Brasil ............................................................139 A interlocução verbal na aula de Língua Portuguesa ................................................141 A aula de escrita gerando desenvolvimento subjetivo para o professor e seu aluno ............................................................................144 Gabarito .....................................................................................153 Referências ................................................................................161 Apresentação Prezado aluno O material que agora lhe chega em mãos é um desdobramento de quase 20 anos de meu trabalho de pesquisa sobre a escrita. Por meio dele, tenho ten- tado circunscrever uma questão que me intriga desde que sou muito pequena: por que em nossos dias não surge um pensador revolucionário que formule uma ideia que altere tudo o que hoje sabemos sobre o mundo? Onde estão hoje os gênios de outrora, aqueles intrépidos pensadores que, ao longo da história da humanidade, “suaram sua camisa”, muitas vezes prejudi- caram sua saúde, foram perseguidos por aqueles que questionavam suas “ideias exóticas” e, no final, ofereceram o inestimável presente de um novo modo de pensar sobre o mundo? Onde estão, agora, os novos pensadores que se tornarão conhecidos mun- dialmente, terão seus nomes registrados nas enciclopédias – enfim, alterarão o estado atual do conhecimento humano? Eu quero muito saber isso e, por esse motivo, aceitei o convite para preparar este curso para você. Quem sabe você não se encanta com essa linha de reflexão e, assim, eu terei uma companhia agradável para continuar o meu trabalho investigativo? Você deve estar entendendo que meu interesse sobre o tema pensamento e linguagem não consiste em uma questão abstrata, muito pelo contrário. Se um dia desejei estudar esse assunto foi porque conclui que conhecê-lo me ajudaria a refletir sobre o advento de uma passagem que vem se tornando cada vez mais rara: o momento em que um sujeito abandona sua dificuldade para escrever e se autoriza a pensar com a sua própria cabeça e, posteriormente, a tornar públicos os resultados de sua reflexão. Ao pensar sobre essa dificuldade, muito se fala que o jovem de hoje não tem muita coisa para dizer, mas pouco se diz que seu silenciamento foi causado por ruídos que ele não produziu... Diante dessa ironia, convoco você, meu colega professor, a assumir comigo a responsabilidade de se indagar a respeito de que respostas a nossa geração de adultos poderá deixar para as crianças que – muitas vezes tendo perdido a esperança de construir para si um futuro melhor – se inter- rogam sobre o sentido de ler e escrever na escola. Tentei tornar o seu caminho o menos árduo possível e, para isso, tive que trabalhar muito. Espero que, honrando o meu esforço, você se engaje no percurso que ora se inicia e que goste do trabalho. Claudia Rosa Riolfi A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento O objetivo deste capítulo é convidar o leitor a se interessar por um tema que, hoje em dia, tem mais relevância social do que nunca: as conse- quências éticas da compreensão da necessidade de nós, professores, in- sistirmos vigorosamente em nos mantermos no exercício do pensamento criativo e no desafioque é a mediação da linguagem nas trocas com nossos semelhantes. É claro para todos que um ser humano não so- brevive muito tempo se for privado de água e de alimento. Recentemente, tem se tornado evidente que, para além dessas necessidades classicamente reconhecidas como sendo as básicas, dificilmente qualquer um de nós teria sobrevivido aos primei- ros anos da infância sem receber ao menos um pouquinho de amor da- queles que cuidaram de nós. Mesmo agora, quando somos adultos, você pode imaginar quanto tempo aguentaria, por exemplo, sem ouvir a voz de seus familiares, sem poder contar como você está se sentindo para alguém em quem confia – em suma, sem falar e sem ouvir palavras? A observação de pessoas que passaram por longo período de isolamento, como por exemplo doentes graves ou prisioneiros, não deixa dúvidas: o pobre infeliz que está privado de trocas verbais com outros humanos logo perde o interesse em manter os cuidados de higiene e de aparência pessoal, “esque- ce” de comer nas horas costumeiras, desenvolve distúrbios do sono, perde a noção do tempo. Resumindo, tem toda sua vida mental desorganizada. Por que isso acontece? Porque não poder falar é uma das maiores agres- sões que podem ser imputadas ao ser humano, uma vez que o leva a agir contra a sua natureza, a de ser um “ser de linguagem”. Compreender esse traço de nossa essência, ou seja, a extensão do poder que a linguagem tem sobre nós, é de suma importância para refletir sobre a construção e a manutenção de nossa cultura em geral e, muito particularmente, tem toda relevância para refletir sobre os sucessos e os impasses da educação dos alunos que nos foram confiados. Você já imaginou como seria sua vida se fosse impedido de verbalizar seus gostos e opiniões? 12 Linguagem e Pensamento No que se segue, consequentemente, optamos por trazer alguns elementos que permitem introduzir a reflexão sobre o pensamento humano desde uma óptica que dá prioridade à linguagem, compreendida como sistema de articula- ção de signos verbais exclusivo do homem. Antes de começarmos, é importan- te esclarecer, entretanto, que as relações entre pensamento e linguagem vêm sendo, há muito tempo, alvo de polêmica entre os mais diversos estudiosos. São várias as áreas que se dedicam a elucidar essa questão, em especial, mas não exclusivamente, a medicina, a biologia, a psicologia e a linguística, sem que, en- tretanto, tenha sido possível alcançar um consenso total na forma de conceber como linguagem e pensamento se articulam para o humano. Por esse motivo, como em tudo na vida, senhor leitor, não existe apenas um lugar onde o sol brilha, sendo necessário “escolher a nossa praia!”. Vamos conhecer uma delas. Pensar não é tão simples como parece Desde que o mundo é mundo, os homens têm se interessado por esclare- cer as obscuras origens de seus pensamentos. Sempre houve alguém interes- sado em dizer de onde tinha se originado uma ideia qualquer ocorrida a outro alguém, nem que fosse para lhe imputar uma origem mística, mais comumente demonológica. Embora há muito tempo tenhamos superado a chamada “época das trevas”, com certeza o leitor já teve oportunidade de testemunhar, frente a um pensamento mais estranho, a acusação de outro menos esclarecido que, piamente declara: “Isso deve ser coisa do capeta!”. IE SD E Br as il S. A . Deixando de lado as crenças religiosas, essa modalidade de olhar o mundo é interessante porque exemplifica um tipo de raciocínio que acredita na corres- pondência direta e imediata entre uma causa e sua consequência – no caso, a A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento 13 sugestão feita pelo diabinho como causa e o surgimento do “pensamento” na cabeça de um sujeito como consequência. Ou seja, aquele que pensa desse modo acredita que nós temos um cérebro apenas para servir como uma espécie de quadro-negro onde escrevemos, como se fossem nossas, as ideias que recebemos dos outros, sem qualquer mediação de uma reflexão mais elaborada. Você acredita mesmo que somos assim tão idiotas? Com certeza não! Esse modo de ver as coisas, além de depreciativo com relação às nossas quali- dades e potencialidades, tem consequências nefastas para a nossa vida em socie- dade. Se for legítimo crer que para todo efeito manifesto no mundo será possível encontrar uma causa lógica, acabaremos por funcionar na crença que foi aquela dos nossos antepassados macacos, segundo a qual uma reação “natural” de um sujeito que tivesse acabado de levar um empurrão seria, nada mais nada menos, do que uma bofetada... Não seria muito difícil imaginar até que ponto de destrui- ção a sociedade humana teria ido se todos nós tivéssemos mantido o modo de ver as coisas de nossos primitivos antepassados. Com certeza, sequer estaríamos aqui para estudar e contar a história de nossa vida de homens e de mulheres. Por esse motivo, antes de avançarmos nesta reflexão sobre as relações entre pensamento e linguagem, é importante fazer a crítica de todos os resquícios desse modo de pensar que, para além do senso comum, ainda permanece em nossa cultura, disfarçado de ciência. A ciência que ignorou a importância da linguagem Visando, portanto, construir uma noção de pensamento mais adequada para ser mobilizada no interior da escola, vamos recuperar alguns dos traços de uma das escolas da psicologia que se inscreveu dentre aquelas que não davam a devida relevância ao papel da linguagem na manutenção da nossa organização social: o behaviorismo e as linhas que dele se originaram. Quando nos referimos a essa corrente do pensamento, provavelmente o primeiro nome de autor que nos ocorre é o de Burrhus Frederic Skinner (1904-1990).1 De fato, esse psi- cólogo americano se tornou o mais famoso representante do 1 Dentre inúmeros sites que contêm dados sobre a bibliografia de Skinner, pela concisão e objetividade, destaca-se o seguinte endereço, do qual retiramos alguns dados a respeito da vida do autor: <www.cobra.pages.nom.br/ecp-skinner.html>. Você conhece as principais ideias do behaviorismo? 14 Linguagem e Pensamento behaviorismo, uma vez que, ao longo de sua vida, empenhou-se grandemente em fazer publicidade de suas próprias ideias, na sua maioria oriundas de suas pesquisas com os animais, realizadas, por sua vez, nos moldes daquelas desen- volvidas pelo fisiólogo russo que, em 1906, publicou achados experimentais sobre o reflexo condicionado: Ivan Petrovisch Pavlov (1849-1936). IE SD E Br as il S. A . A principal descoberta do russo ficou conhecida como condicionamento pa- vloviano, modalidade de manifestação comportamental que ele percebeu por meio de estudos que realizava sobre a atividade digestiva de cães. Com experi- mentação sistemática, ele acabou percebendo que apenas o som de seus passos no laboratório, após sucessivos pareamentos com um bolo de carne que sempre era apresentado aos seus animais, dava origem à resposta de salivação dos cães, que associavam o som com o gosto da carne. Dentro dessa tradição de pesquisa empirista e coerente com sua postura pes- soal de materialista e ateu, Skinner acreditava que, a exemplo do que Pavlov havia demonstrado acontecer com os animais, todos os comportamentos humanos são moldados pela nossa experiência de punição e recompensa e não por instâncias mais “subjetivas”, tais como a moral, a força da vontade e assim por diante. Conse- quentemente, Skinner costumava afirmar que o homem bom só faz o bem porque o bem é recompensado, e não porque, dados alguns traços de seu caráter, ele teria, ao menos, um relativo livre-arbítrio para agir deste ou daquele modo. A elaboração de Skinner, no que se refere à linguagem, é bastante coerente com os demais aspectos de sua teoria (SKINNER, 1957), ou seja, ele reduz a lingua- gem a mais um dos comportamentosque podem ser controlados. Ao longo de sua realização, o autor elaborou o conceito de condicionamento operante, ligeira- mente diferente da noção de condicionamento (uma junção simples de estímulo e resposta) que vinha sendo desenvolvida nas formas anteriores de behaviorismo. A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento 15 Nessa nova elaboração, acrescenta-se a consideração da possibilidade de o orga- nismo emitir respostas, em vez de só obtê-las a partir de um estímulo externo. Ressalte-se, portanto, que o autor tentou explicar o aprendizado e a lingua- gem verbais dentro do paradigma do condicionamento operante, isto é, de novo sem mobilizar a categoria do pensamento como uma instância elaborada que pode mediar, por meio da linguagem, as relações entre o homem e o mundo. Como o behaviorismo é traduzido na educação? Na educação, o behaviorismo deu origem a uma abordagem aplicada com o intuito de se obter um determinado comportamento previamente escolhido. Para tal fim, costuma-se dar muita ênfase à utilização de condicionantes e reforçadores arbitrários, como elogios, graus, notas, prêmios, reconhecimento do mestre e dos colegas etc. Para quem acredita nessa orientação teórica, que parte do princípio de uma aprendizagem mecânica, com repetições sistemáticas do tipo estímulo- -resposta automáticas, o ensino consiste em um arranjo e um planejamento de condições externas que levam os estudantes a aprender, sendo de responsabili- dade do professor unicamente assegurar a aquisição do comportamento. Ressalte-se que essa maneira de conceber o ser humano como se fosse total- mente passível de ser controlado pelos estímulos recebidos do meio impeliu o autor a chegar ao absurdo de conceber uma comunidade utópica – criada e de- senvolvida de acordo com os princípios behavioristas – em que, se assim pode- mos dizer, o homem estaria livre do desconforto de ser possuidor da faculdade do pensamento, uma vez que todos os seus atos seriam geridos por terceiros. Um exemplo do que vem sendo chamado de “sociedade de controle” está descri- to na obra de ficção Walden II (SKINNER, 1977). Nesses seus devaneios, Skinner imaginou uma cultura que poderia ser inteiramente controlada por meio de um dispositivo extremamente simples: a re- compensa automática dos bons e a eliminação au- tomática dos maus. Uma olhada mais ingênua naquela sociedade poderia até nos levar a concluir que a eliminação dos maus poderia ser uma boa ideia, mas, dada a complexidade do ser humano, em face dessa idealização tentadora, resta saber como o governante do local faria para evitar os riscos inerentes à tentativa de tornar o mundo à sua imagem e semelhança. Ou seja, o que o protegeria de decretar, talvez mesmo sem o saber, que todos aqueles que são diferentes de si É possível pensar numa sociedade totalitária e controladora? 16 Linguagem e Pensamento são “maus”? Como ele faria para ter certeza de uma certa neutralidade e isenção para formar os parâmetros adotados para diferenciar o bem do mal? Uma olhada mais objetiva na história da humanidade logo nos mostra para onde caminhamos todas as vezes que um poder totalitário foi implementado: para uma pasteurização da linguagem em uso e para um embotamento do pensamen- to. E antes que você, prezado leitor, pense que estamos nos desviando aqui de nosso assunto principal para discutir política, é importante ressaltar que o assunto que se segue só nos interessa à medida que nos oferece uma interessante abertu- ra para refletir sobre a linguagem humana e suas relações com o pensamento. O pesadelo dos pesadelos: uma sociedade humana sem pensamentos É visando encontrar um caminho alternativo para introduzir as complexas e estreitas relações entre linguagem e pensamento que vamos recorrer a uma bri- lhante obra de ficção, escrita por Eric Arthur Blair, publicada pela primeira vez em 1949, sob o pseudônimo de George Orwell (2004): o livro 1984. Sabe-se que essa novela foi inspirada na opressão dos regimes totalitários das décadas de 1930 e 1940, mas não se resume a uma crítica contra o stalinismo e o nazismo. Ao contrário, trata-se de uma metáfora atualíssima que nos alerta contra os perigos da pasteurização da sociedade pela redução do indivíduo em peça para servir ao Estado ou ao mercado por meio do controle total, incluindo o pensamento. Narrado em terceira pessoa, a obra-prima conta a história de Winston Smith, um tipo de jornalista ou historiador que, funcionário do Ministério da Verdade, exerce a função de reescrever e alterar dados de acordo com o interesse do Partido. Por sua vez, esse órgão onipotente e onipresente exercia feroz vigilância sobre os modos de pensar de cada cidadão, já que seu controle total se dava, justamente, pelas di- versas técnicas utilizadas para abolir o livre pensar, nomeado como crimideia. Antes de prosseguir com a recuperação de alguns fragmentos do texto de Orwell, é importante frisar que não é a narrativa em si aquilo que nos interessa, mas a possibilidade de, a partir dessa impressionante metáfora, compreender que o pensamento humano não é um processo isolado e independente das contingências histórico-culturais e sim intimamente ligado a elas, que, em certa medida, determinam-no. O pensamento de um homem é independente do tempo no qual ele vive? A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento 17 Neste ponto, uma interessante questão se coloca para nós. Se, em certa medida, é verdade que “cada cabeça é uma sentença”, dito popular que aponta para uma relativa impossibilidade de mandar nos modos de pensar de alguém, como seria possível controlar o pensamento humano? Com relação a essa questão, a obra de Orwell nos oferece um importante subsídio para reflexão. No fictício ano de 1984, para além da vigia concreta da população por meio das câmeras de vídeo e dos microfones ocultos, do desen- corajamento às atividades solitárias, da tortura física e da pura e simples elimi- nação dos membros dissonantes, o ficcionista nos mostra que, na sociedade de controle que ele vinha denunciando, o principal instrumento de controle e de manipulação do homem era a alteração artificial de sua linguagem. Para nos mostrar isso, o autor cria uma imagem de cientista de aluguel, uma espécie de linguista contratado pelo onipotente Partido Ingsok para, juntamen- te com outros colegas, inventar uma língua artificial para substituir a natural: a novilíngua. No contexto da novela, trata-se de um idioma fictício desenvolvido não pela criação de novas palavras, como aparenta ser o caso dos tempos con- temporâneos nos quais, todos os dias, surgem palavras novas na mídia, mas pela condensação e a remoção delas. A ideia que guiava os “intelectuais” do partido era a de que, uma vez que as pessoas não pudessem concretamente se referir a algo, já que é bastante difícil remeter-se a um objeto cujo nome ignoramos, aquele algo passaria a não existir. Antes de prosseguir, saboreemos ao menos um fragmento entrecortado da fala do linguista, criado por Orwell, em um diálogo com o personagem principal, que se interessou por conhecer maiores detalhes sobre o seu trabalho: Tenho a impressão de que imaginas que o nosso trabalho consiste principalmente em inventar palavras. Nada disso! Estamos é destruindo palavras, às dezenas, às centenas, todos os dias. Estamos reduzindo a língua à expressão mais simples. A Décima Primeira Edição não conterá uma única palavra que possa se tornar obsoleta antes de 2050. [...] É lindo destruir palavras. Naturalmente, o maior desperdício é nos verbos e adjetivos, mas há centenas de substantivos que podem perfeitamente ser eliminados. Não apenas os sinônimos; os antônimos também. Afinal de contas, que justificativa existe para a existência de uma palavra que é apenas o contrário da outra? Cada palavra contém em si o contrário.[...] Não percebes a beleza que é destruir palavras. Sabes que a Novilíngua é o único idioma do mundo cujo vocabulário se reduz de ano para ano? [...] Não vês que todo o objetivo da Novilíngua é estreitar a gama do pensamento? No fim, tornaremos a crimideia literalmente impossível, porque não haverá palavras para expressá-la. Todos os conceitos necessários serão expressos exatamente por uma palavra, de sentido rigidamente definido, e cada significado subsidiário eliminado, esquecido. Já na Décima Primeira Edição, não estaremos longe disso. Mas o processo continuará muito tempo depois de estarmos mortos. Cada ano, menos e menos palavras, e a gama de consciência sempre uma pausa menor. [...] Até a literatura do Partido mudará. Mudarão as palavras de ordem. Como será possível dizer “liberdade é escravidão”, se for abolido o conceito de liberdade? Todo mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento, como hoje o entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência. (ORWELL, 2004, p. 54-55, grifos do autor) 18 Linguagem e Pensamento Lendo o extrato, podemos claramente perceber que a tese de Orwell é a de que, por meio do controle sobre a linguagem, um governo totalitário seria capaz de impedir que ideias indesejáveis viessem a ocorrer aos cidadãos, uma vez que, completamente anestesiados pela ordem dominan- te, restaria aos cidadãos apenas uma imitação de “pensamento”. Para nós, são especialmente preciosas as três últimas linhas do extrato que você acabou de ler, pois elas contêm uma ideia que nos é bastante cara: a de que, em sua dimensão crítica e criativa, o pensamento humano é fruto dos efei- tos da linguagem sobre um sujeito, efeitos esses que o criam. Por esse motivo, se, nos dias de hoje, desejamos viver em um mundo diferente do horror retrata- do por Orwell, compreendê-los adquire uma urgência ímpar. Na atualidade, as teses behavioristas ganharam nova releitura: as terapias cognitivo-comportamentais (TCC) que, nos últimos 15 anos, disseminaram-se e consolidaram-se, tanto na medicina quanto na educação. As TCC consistem em técnicas que, sob a luz da psicologia cognitivista, revisitam os estudos compor- tamentalistas emprestando-lhes uma roupagem atual e dando-lhes um caráter de prática “cientificamente comprovada”.2 As TCC visam incidir sobre o modo como o homem se comporta alterando- -lhe os aspectos cognitivos. Os praticantes das diversas modalidades dessa te- rapia tomam um determinado homem e, em primeiro lugar, identificam o que julgam ser as formas distorcidas e não realistas de pensar para, depois, ajudar o indivíduo a interromper comportamentos qualificados como alterados e a subs- tituí-los por comportamentos que o terapeuta julga serem mais saudáveis. Funcionando com a premissa da existência de um parâmetro “adequado” para nortear o comportamento humano, as TCC se propõem a livrar os cidadãos das dificuldades inerentes ao ato de decidir de acordo com o seu próprio desejo. Para tal fim, ensinam àqueles que tratam “o modo correto” de pensar e de agir, isto é, “livram” a população do livre-arbítrio. Por acaso, esse modo de agir faz você lembrar do Partido do livro de Orwell? Se estivermos nos entendendo, provavelmente você notou que, reduzindo o ser humano ao estatuto de um cérebro reprogramável, os idealizadores das TCC acabam por incidir em uma tentativa de controle do pensamento, do que quere- mos nos afastar completamente. 2 Não deixa de ser curioso notar que, em sua origem, o cognitivo e o comportamental se inscreviam, quanto a sua fundamentação, em concepções teóricas opostas, tendo origens, tradições, precursores e problemáticas totalmente diferentes. Se para um comportamentalista “histórico” o que interessa são os inputs (entradas) e os outputs (saídas), interesse esse que o leva a abstrair a “mente”, para um cognitivista “histórico” o que interessa são os processamentos, o modo de funcionar da “mente” em si. Ou seja: a aliança entre as duas correntes implicou, pelo menos quanto à psicologia cognitiva, um empobrecimento teórico brutal. Estamos longe da ficção na sociedade contemporânea? A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento 19 Por esse motivo, é importante frisar que, atualmente, a conduta profissional ins- pirada nas TCC consiste em um fenômeno mundial que se expressa, de maneira maciça e extravagante, na formação médica e psicológica, nas revistas científicas, nos hospitais, na terapia oferecida na rede pública e nos consultórios privados e, o que mais nos interessa, nas universidades e, paulatinamente, na educação básica.3 Antes que o leitor se deixe contaminar por um certo tom cinzento presente nessa denúncia do que vem ocorrendo na sociedade contemporânea no que se refere ao controle do pensamento, é importante salientar que não estamos assistindo passivamente aos acontecimentos. Com o advir do século XXI, no momento mesmo em que essa conduta ganha- va hegemonia, iniciou-se na França um grande movimento de denúncia contra as TCC (tendo adesão, inclusive, do ministro francês Blazy e, posteriormente, disseminando-se entre os clínicos franceses) que, recentemente, recebeu adesão de muitos intelectuais brasileiros. Trata-se de um grupo de pessoas que, embora adotando diversas perspectivas para refletir sobre as relações entre linguagem e pensamento, não concordam com a existência de quaisquer técnicas ou abor- dagens que levem alguém a uma coerção mental. Esses pensadores têm em comum a ideia de que, na tentativa de dominar o pensamento, há em jogo um sério problema ético cujos resultados são dramáticos: a exclusão do sujeito da sua cultura. Não é de se estranhar que, quanto mais se tenta domesticar o real, padronizar as condutas e cientificizar a avaliação dos resultados, não levando em conta as intrincadas relações entre linguagem e pensamento, mais se acaba por causar o aumento de fenômenos “bizarros” na cultura, como a violência gratuita, os crimes sem motivo, o fracasso escolar generalizado etc. Concluindo, queremos frisar agora que, antes de tudo, somos contrários a qualquer abordagem que pregue a redução do homem a um autômato privado daquilo que, por definição, é próprio do humano: sua singularidade, seu jeito próprio de pensar e de relacionar-se com a linguagem. Por esse motivo, é impor- tante ressaltar que nossa reflexão sobre pensamento e linguagem se inscreve, portanto, nesse movimento de resistência contra o ressurgimento desse fantas- ma que, há algum tempo, julgávamos esquecido: a sociedade de controle. 3 Seguindo o padrão mundial, no Brasil, a presença das TCC é uma realidade incontestável. Uma pesquisa utilizando uma ferramenta de busca na internet – no caso, o Google, cujo acesso se faz no endereço <www.google.com.br> – mostra que havia, no fim de abril de 2005, 650 páginas que as veiculam no país. Uma breve leitura de seus conteúdos mostra que é vasto o menu de distúrbios que, segundo seus responsáveis, podem ser eficazes e comprovadamente superados por meio das TCC. Estamos nos deixando controlar passivamente? 20 Linguagem e Pensamento Na contramão dessa tendência, queremos convidar você a somar esforços para a construção de um modo de refletir sobre a linguagem e o pensamento humano que, respeitando profunda e amorosamente os modos de pensar e de aprender de cada um de nossos alunos, possa ajudá-los não só a se inserirem na nossa cultura mas também a ousarem pensar criativamente e, ao inovarem, responsabilizarem-se solidariamente pelos rumos da humanidade. Texto complementar A novilíngua (GUERRANTE, 1999) Há um novo linguajar na praça, talvez filho da globalização, que me obriga a refletir cada vez que ouço como se estivessem falando comigo numa língua estrangeira qualquer. Cada vez entendo menos telefonistas, re- cepcionistas,economistas, aeromoças, jornalistas, enfim, estou me isolando no meio de um palavreado confuso, muitas vezes mal traduzido, um dialeto incompreensível. É bem parecido com o português que aprendi, porque soa como português, os fonemas são da boa língua portuguesa, mas, não tenho dúvida, um português que pede tradução a cada palavra. Dia desses liguei para um amigo meu. A secretária me disse o seguinte: “Ele não se encontra.” Entendi o que ela falou. Ele estava se procurando, e não conseguia se achar. Não era bem isso. Que seria? Ele não estava sendo encontrado no seu posto de trabalho? Quem inventou essa fórmula confusa para substituir outra muito mais simples (“Ele não está”)? Não faz muito tempo, recebi um recado grosseiro para ligar para um ci- dadão que desconheço. Liguei. A moça atendeu e tascou: “Quem gostaria?” Tive um momento de indecisão, mas estava certo de que não me movia qual- quer prazer na chamada. “Ele, naturalmente”, respondi. Ela ficou muda. Não entendeu nada. Ora, se o cidadão pediu que eu ligasse, e eu não o conheço, o possível prazer só pode ser dele. Desliguei. Ele, que pensei inicialmente andasse à procura desse prazer em falar comigo, não voltou a ligar. Onde é que estão padronizando esse linguajar? Por que substituíram o “quem quer falar”, ou “da parte de quem devo anunciar”? Já fomos mais bem A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento 21 educados e bem mais simples. Ultimamente, estamos nos transformando em autômatos repetidores de chavões decorados. Os economistas pegaram a palavra apoio e a substituíram por suporte, que eu tenho lá em casa para não deixar a estante cair. Trouxeram direta- mente do inglês, sem a menor preocupação com a existência de uma palavra apropriada na língua-mãe. Eu já estava até suportando essa palavra quando li num texto que me envia- ram para revisão: “as ações serão suportadas”. Não dá! De algum tempo para cá venho notando uma substituição eufemística de algumas palavras por outras supostamente mais sofisticadas. Morrer tornou-se falecer, ter virou possuir, pa- rentes foi substituída por familiares, aliás foi trocada por inclusive, vender foi vencida por comercializar, definir ocupou o lugar de decidir, pôr virou colocar (exceto para o sol que se põe e para as galinhas poedeiras, felizmente). Todas foram mudanças impróprias. Mas estão aí, impulsionadas pela mídia. Já havia me acostumado ao verbo deletar, palavra de boa origem latina, mas importada pelos informatas, quando ouvi um avião de traficante dizer numa entrevista que seu chefe mandara “deletar o cara”. Até bem pouco tempo, o verbo deles era apagar. Esses informatas são de matar. Mexo no computador cheio de dedos – melhor dizer “pisando em ovos”, já que o uso dos dedos é muito óbvio no caso do computador – e ainda assim dia desses surgiu na tela uma enorme advertência: “Você executou uma operação ilegal e o programa será desli- gado.” Tremi nas bases. Logo eu, que nunca fui parar sequer no cadastro ne- gativo do Clube de Diretores Lojistas. Operação ilegal? Me senti o próprio traficante, mandando deletar pessoas. Ah, essa novilíngua, um arremedo do admirável mundo novo, parece que veio para ficar. Atividades 1. Quais as vantagens de compreender a extensão do poder que a linguagem tem sobre os seres humanos? 22 Linguagem e Pensamento 2. Quando se trata de compreender o padrão do comportamento humano, é necessário desistir de encontrar uma causa para todas as consequências. Aponte o principal motivo para isso. 3. No processo educativo, é importante que o educador dedique boa parte do seu tempo para organizar o ambiente no qual a aprendizagem se dá. Qual o motivo para isso? Dicas de estudo HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Porto Alegre: Editora Globo, 1981. Romance inglês, publicado em 1932. Antes da obra 1984, já denunciava alguns dos efeitos da utilização de técnicas de inspiração behaviorista na educação das novas gerações, em especial, quando utilizadas como coadjuvantes da manuten- ção do poder dos governos totalitários. De forma instigante e extremamente ca- tivante, Huxley conta uma história na qual, seguindo as aventuras e desventuras do pobre Bernard Marx, tomamos conhecimento dos estragos do totalitarismo sobre a cultura e, consequentemente, sobre os modos de pensar dos cidadãos. BUARQUE, Chico. Fazenda Modelo: novela pecuária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento 23 Por meio de uma alegoria, a criação de uma novela na qual os personagens principais são bovinos falantes e pensantes, Chico Buarque busca nos levar a uma séria reflexão sobre a realidade brasileira, em especial no que tange ao tra- tamento desumano que, ordinariamente, é reservado para as classes populares e aos meios que, de vez em quando, tendem a ser usados para que estes sequer tenham condições de perceber a seriedade de sua situação. O imprevisível animal humano Se você é pai ou mãe de vários filhos, é proveniente de família com vários irmãos ou teve a oportunidade de conviver de perto com diferen- tes crianças por um tempo prolongado, com certeza concordará com a seguinte afirmação: não é possível prever como um ser humano vai se de- senvolver. A experiência nos mostra todos os dias que, mesmo se tratando de filhos de um casal que, supostamente, ofereceu a mesma criação para todas as crianças, ao crescer, um irmão se torna diferente do outro com re- lação aos hábitos, crenças, modos de levar a vida e assim por diante. Você já parou para pensar por que isso acontece? Ao longo do tempo, essa questão tem despertado o interesse de vários estudiosos. Ao definir o padrão do desenvolvimento humano, deu-se para essa questão diferentes tipos de resposta, ou, dizendo de outro modo, conceberam-se modelos teóricos para explicar como nos tornamos adul- tos. Neste capítulo, vamos conhecer resumidamente alguns desses mode- los para que, em outro momento, a questão das relações entre pensamen- to e linguagem possam ser mais bem colocadas. Assim sendo, os objetivos do presente capítulo são fazer uma compa- ração inicial entre os modos de organização social dos homens e dos ani- mais; problematizar as pretensas relações “transparentes” entre linguagem e pensamento; e expor alguns modelos diferentes que explicam como o ser humano chega a tornar-se aquilo que ele é. Mãos à obra! Os animais não se organizam do mesmo modo Se você tem um animal de estimação que passa muito tempo em com- panhia dos humanos, deve estar, no mínimo, desconfiado do fato de que, talvez, as diferenças entre nós e eles não sejam assim tão grandes como pensamos que sejam. Particularmente quando os criamos, temos essa im- pressão de que a coisa funciona quase como se pudéssemos entender o que eles “pensam” e “desejam”. Essa aparente “compreensão” dos modos de pensar de nossos animais se dá porque sua gama de necessidades é bastante limitada se comparada às 26 Linguagem e Pensamento nossas. Qualquer um sabe dizer quando um cachorrinho precisa de água, por exemplo; mas, venhamos e convenhamos, seria impossível descobrir se ele pre- fere mineral, importada, com ou sem gás etc. Somos, portanto, obrigados a es- perar sua reação frente ao que lhe oferecemos para, a posteriori, poder afirmar se era aquilo que ele “queria” ou não. Quem tem contato com filhos ou sobrinhos sabe que, com as crianças, a coisa é muito diferente. Quando uma delas decide nos pedir um presente, não se trata de um presente qualquer, mas, pelo contrário, de uma demanda que vem repleta de especificações. Não nos dizem simplesmente “Eu quero um brin- quedo!”, mas “Eu quero uma boneca Polly, com o cabelo loiro, que venha com cinco roupas para trocar e não pode ser igual àquela que você me deu no ano passado!”. E ai de você se não achar o modelo exato!Em suma, por meio desses exemplos iniciais, estamos tentando mostrar que, enquanto um animal é bastante previsível, uma vez que se acha mergulhado no “mundo real” e premido por suas necessidades instintuais, nós, humanos, somos imprevisíveis. Como somos seres de linguagem, aquilo que compreendemos serem as nossas necessidades básicas não é plenamente dominado pelo bom senso da sobrevivência da espécie, mas grandemente determinado pela discur- sividade de nosso tempo. Quadro 1 – Modos de organização social dos humanos e dos demais ani- mais que conseguem viver em grupo Os animais Os seres humanos São regidos por seus instintos. Sofrem fortíssima influência da cultura na qual estão inseridos. Têm uma organização grupal bastante rígida e limitada, não conseguindo inovar em sua “vida social”. Podem encontrar seu “lugar social” dentro da organização grupal na qual estão inseridos e, se assim o desejarem, alterá-lo. Não conseguem transmitir a experiência por meio das gerações: o que um animal “apren- de” morre consigo. Acolhem e educam os novatos, introduzindo- -os na cultura e no saber acumulado pelos seus antepassados. Não podem planejar o futuro. Utilizam, muito frequentemente, a linguagem como um campo no qual é possível planejar e projetar o futuro. Não podem “comunicar-se” para além do re- gistro limitado de suas necessidades básicas. Podem utilizar a linguagem não apenas para comunicar suas necessidades imediatas mas também para criar, emocionar, alterar a pró- pria realidade etc. São muitíssimo previsíveis no que se refere aos seus padrões de evolução. Têm seus modos de evolução grandemente variáveis. O imprevisível animal humano 27 Estudando o quadro 1, é importante compreender que refletir sobre o pen- samento humano, sem levar em conta sua inserção cultural e sua relação com a linguagem, é pensar que não passamos de animais que sabem se vestir de modo um pouco mais enfeitado. Nós que nos preocupamos com a educação e com a formação das novas ge- rações precisamos ir um pouco além disso. Precisamos, para poder nos apro- ximar do padrão de pensamento de nossos alunos, compreender que, como consequência do fato de falarmos, as relações entre nós não são nem tão homo- gêneas nem tão estáveis como parecem. Onde quer que olhemos mais de perto, há equívoco, e ele tem consequências. Passemos então a esse tópico. É conversando que a gente não se entende... Um longo tempo se passa até que possamos declarar que o filhote do humano está de posse de um sistema linguístico constituído à moda dos adultos. Embora ele “fale” aproximadamente desde os 13 meses, essa fala, para ser analisada conve- nientemente, tem de ser lida como sendo uma produção que está sendo efetuada por um sujeito para quem o sistema linguístico ainda está em constituição. IE SD E Br as il S. A . Felizmente para os bebês, suas mães ignoram esse fato e tratam suas produções rudimentares, frágeis e imperfeitas como se fossem análogas àquelas que saem de nossas bocas. Isso significa que, na sua imensa sabedoria, essas mamães podem en- trever no jovem humano uma inteligência igual à sua, embora ele ainda não tenha tido tempo de vida para se traduzir por meio de palavras articuladas. Supomos quais sejam essas palavras e nos dirigimos aos nossos filhos muito jovens como se eles pudessem entender o que estamos falando. A informação 28 Linguagem e Pensamento que se segue fica entre nós para que não corramos o risco de levar uma mamãe a parar de fazer o que é tão importante que elas façam: eles não entendem nada! Somos nós, os adultos, que, por meio de alguns indícios (pequenos ruídos, gestos e olhares), interpretamos o que os nossos filhos “dizem” como se fosse linguagem. Mas não há qualquer problema nisso, como já adiantamos. O problema se coloca quando nós, os educadores, esquecemo-nos desse processo inicial e sequer leva- mos em consideração que, em sua juventude, muitos de nossos alunos também não entendem o que estamos falando, embora pareça o contrário, pois, assim como o faz o bebê pequeno, também reagem à nossa fala. A seguir, vamos narrar uma pequena história verídica, ocorrida com uma amiga, que é fonoaudióloga, e seu filho único, na ocasião, prestes a comemorar o seu quinto aniversário. Trabalhando nos preparativos para a festa de aniversário de seu filho, essa amiga estava ao telefone, falando com fornecedores responsáveis pelo aluguel do salão, pelos convites etc. Seu filho, muito feliz e animado com os cuidadosos preparativos, permanecia sentado muito quieto, atento e silencioso ao seu lado, dando mostras de estar adorando a homenagem que estava recebendo. De repente, o menino se levantou e disse: “Mãe, estou muito decepcionado com você. Não sou mais seu amigo, eu não poderia imaginar que logo você ia fazer uma maldade dessa comigo!” Muito surpresa, a mãe permaneceu perplexa por alguns momentos, sem saber o que dizer. Ela se interrogava: o que teria ofen- dido tanto o seu filho? Sua única hipótese era a de que, em seu último telefone- ma, dirigido a sua própria mãe, ela tivesse se alongado um pouco demais, desse modo entediando seu filho. Mas, mesmo assim, isso não seria uma maldade. Mais calma, foi conversar com o filho, perguntando que maldade ela havia feito para perder sua amizade. Muito sério, ele respondeu: “Mãe, nós combinamos que só convidaríamos gente legal para a minha festa e você me trai e convida a Má Licuia.” Não tendo qualquer pessoa na sua lista de convidados que se chamas- se Licuia, a mamãe estava cada vez mais confusa, até que, conversa vai, con- versa vem, pudesse perceber, até pelo seu treinamento como fonoaudióloga, que esse exótico personagem havia nascido durante a conversa com a avó do garoto. Combinando os detalhes da vinda de sua mãe para a festa, ela, que de- sejava tê-la em casa durante todo o final de semana, havia dito “Mamãe, venha na sexta, já de mala e cuia.” Como nossas palavras são escorregadias, nosso jovem amigo, ao ouvir uma ex- pressão idiomática que ignorava – no caso, “trazer a mala e cuia” – interpretou-a Você já imaginou quantas “Licuias” moram na cabeça de nossos jovens alunos? O imprevisível animal humano 29 como pôde, entendendo que sua mãe havia pedido a sua avó que, ao vir para a sua festa, trouxesse também a Má Licuia! Prosseguindo com nossa reflexão, en- tretanto, você talvez não ache tão engraçado passar a imaginar que, dado que a homofonia é um fato concreto, todos os dias centenas de Licuias nasçam em nossas salas de aula sem que sequer sejamos comunicadas ou comunicados de seu aparecimento no mundo. Nós as desconhecemos, mas elas estão por aí, im- pondo sua presença no curso dos pensamentos de nossos alunos e fazendo com que, ao contrário do que costumeiramente esperamos, eles pensem de modos que sequer podemos imaginar. Modos diferentes para explicar como a gente se torna o que é É chegada a hora de esclarecer que a discussão que estamos desenvolvendo ao longo deste capítulo só tem sentido a partir da óptica de um referencial teóri- co que leve em conta a imprevisibilidade do animal humano. É compreendendo que não é possível fazer uma correspondência imediata entre o homem e mode- los preestabelecidos de desenvolvimento que podemos nos responsabilizar pelo ato educativo e nos posicionar de modo mais eficaz em nossas salas de aula. No quadro 2, o leitor encontrará, de modo muito sucinto, uma sinopse de três grandes vertentes da análise do desenvolvimento humano. Quadro 2 – Três possibilidades de modos de análise do desenvolvimento humano Grande modelo Comportamenta- lista Teleológico Rizomático Crença predomi- nante Existe influência onipotente dos estí- mulos do meio sobre o humano. Existe um padrão de desenvolvimento biológico que segue seu própriocurso, em alguma medida, inde- pendente do meio. Não existe unicida- de, nem nos padrões de comportamento nem na história de vida de cada um de nossos alunos. Papel do adulto que deseja exercer uma influência do tipo educativo Controlar rigida- mente os estímulos fornecidos pelo meio para a criança, de modo a proporcio- nar um aprendizado feito de “modo correto”. Ficar atento às mani- festações da criança, de modo a perceber se ela está se desen- volvendo de “modo correto”. Respeitar a singulari- dade de cada sujeito e, consequente- mente, fornecer-lhe um amplo leque de experiências culturais para que ele possa fazer seu próprio percurso. 30 Linguagem e Pensamento Embora de forma muito esquemática, e correndo o risco de algum reducio- nismo simplificador, o quadro 2 nos mostra que, na contemporaneidade, cami- nhamos cada vez mais para a compreensão de que um ser humano, ao con- trário de outros animais, não tem o curso de seu pensamento completamente determinado pelas leis que nos são impostas pela biologia de nossa espécie. Não podemos ser reduzidos a esse nível da existência de um contato pleno, não mediado, entre o corpo e o mundo. Pelo contrário, temos nosso encontro com a realidade de maneira parcelar e fragmentada e, a partir disso, construímos nosso padrão de pensamento. Gilles Deleuze e Félix Guattari são os precursores de um modo de pensar que, por levar em conta as diversas ramificações de uma dada realidade, ficou conhecido como “modelo rizomático”. Sua obra mais conhecida denomina-se Mil Platôs, cuja edição brasileira iniciou-se em 1995, tendo sido concluída dois anos depois. Trata-se de uma obra muito importante para o aprofundamento do assunto que estamos aqui tratando, uma vez que questiona a crença na exis- tência, no pensamento humano, de uma tendência natural para uma verdade única. Em particular, interessa-nos de perto a introdução do primeiro volume (Introdução: rizoma), em que se postula um sujeito capaz de conectar-se com as multiplicidades, de maneira não-linear. Do ponto de vista dos autores, a escrita rizomática realiza um mapeamento e uma experimentação no real que contribui para a abertura máxima das multiplicidades sobre um plano de consistência. Para concluir esta parte de nosso estudo, convido o leitor para refletir sobre um fragmento do importantíssimo trabalho em que Milton Santos versa sobre a precariedade da percepção que podemos ter sobre as coisas. As abordagens fundamentadas na percepção individual têm seu ponto de partida no processo do conhecimento. Este é o resultado da apreensão da realidade contida em um objeto. Devido ao fato de que o principal interessado neste mecanismo, ou seja, o sujeito, é ao mesmo tempo um ser objetivo e um microcosmo, o encontro entre objetividade da coisa (ou a coisa objetificada) e a subjetividade de seu decifrador permite uma variedade de percepções. A coisa permanece una, total, intacta, mas as modalidades de sua percepção são diversas, parcelares, frequentemente deformantes. (SANTOS, 2002, p. 92-93) É com essa lição de humildade sobre o quanto podemos compreender de nossa realidade nos bolsos, se assim podemos dizer, que vamos concluir este capítulo, tematizando o papel central que a pesquisa sobre os padrões de pen- samento de cada um de nossos alunos tem para nossa prática docente. O imprevisível animal humano 31 O professor-detetive ou, simplesmente, o bom professor Se entendermos que o pensamento humano está longe de se desenvolver de forma linear, compreendemos que, para sermos eficazes em nosso ato peda- gógico, não devemos pensar que nossos alunos são completamente previsíveis. Pelo contrário, será bastante saudável ter em mente a necessidade de “realizar um trabalho de detetive” para elucidar o modo pelo qual cada um aprende. Para ilustrar que tipo de trabalho estamos nomeando por meio da metáfora do detetive, vamos, desta vez, trazer como exemplo a literatura de mistério, cujo precursor básico é Edgar Allan Poe. Edgar Allan Poe (1809-1849), foi um genial escritor americano que se tornou conhecido em todo o mundo, sobretudo por seus contos de mistério e terror, que constituíram uma fonte de inspiração direta para a renovação literária europeia no final do século XIX. Tendo escrito várias histórias que têm como personagem principal o francês Auguste Dupin, inteligentíssimo nobre decaído que se dedica a desvendar crimes insolúveis como fonte de diversão e de estímulo intelectual, acabou por fundar a moderna novela de detetive. Poe escreveu uma obra tão extensa quanto famosa, sem dúvida, digna de comentários. Nesse momento, interessa-nos, em especial, relembrar um de seus personagens mais célebres: Auguste Dupin. Mestre do raciocínio lógico, Dupin enfatizava todos os pormenores relativos ao caso de seu interesse, anali- sando, com precaução, todas as estranhas possibilidades de comportamento do gênero humano, do qual era exímio conhecedor. Materia- lista congruente, não acreditava no misticismo e, por este motivo, direcionava as investigações de maneira bastante objetiva, de acordo com métodos investigató- rios, tarefa que era facilitada por seu caráter extremamente observador. Dupin não ficava trancado em sua mansão fantasiando como os crimes teriam ocorrido: ele trabalhava em uma dupla vertente: levava em conta o caráter particu- lar de cada um dos suspeitos, buscando sistematizar qual modo de agir era ou não condizente com a linha de conduta em geral; e examinava atentamente os indícios Você conhece o famoso Dupin? 32 Linguagem e Pensamento materiais que cercavam a cena do crime. No entrecruzamento dessas duas verten- tes, o magnífico francês conseguia descobrir os padrões de pensamento daqueles a quem se dedicava, podendo compreender melhor o curso de suas ações. Alertando o leitor para não se esquecer do modus operandi do detetive, vamos terminar este texto convidando-o a encarnar um pouco o Dupin quando entra em sala de aula. Se é verdade que os alunos, como todo ser humano, são imprevisíveis, não é menos verdade que investigar seus padrões de pensamento pode se tornar um aliado importantíssimo na tarefa pedagógica. Texto complementar Os crimes da rua Morgue (POE, 1974, p. 133-136) Passeávamos, certa noite, por uma comprida e suja rua, nas vizinhanças do Palais Royal. Estando, aparentemente ambos nós ocupados com os pró- prios pensamentos, havia já uns 15 minutos que nenhum de nós dizia uma só sílaba. Subitamente, Dupin pronunciou as seguintes palavras: — A verdade é que ele é mesmo um sujeito muito pequeno e daria mais para o teatro de variedades. — Não pode haver dúvida alguma a respeito – respondi, inconsciente- mente, e sem reparar a princípio (tão absorto que estivera em minha medi- tação) a maneira extraordinária pela qual as palavras de meu companheiro coincidiam com o objeto de minhas reflexões. Um instante depois dei-me conta do fato e meu espanto não teve limites. — Dupin – disse eu com gravidade –, isto passa as raias da minha compre- ensão. Não hesito em dizer que estou maravilhado e mal posso dar crédito a meus sentidos. Como é possível que soubesse você que eu estava pensando em...? – Aqui detive-me para certificar-me, sem sombra de dúvida, se ele re- almente sabia em quem pensava eu. — ...em Chantilly? – disse ele. – Por que parou? Não estava você, justa- mente, a pensar que o tamanho diminuto dele não se adequava à represen- tação de tragédias? O imprevisível animal humano 33 Era esse precisamente o assunto de minhas reflexões. Chantilly era um antigo sapateiro-remendão da rua de S. Dinis que, fanático pelo teatro, se atrevera a desempenhar o papel de Xerxes, na tragédia de Crébillon, do mesmo nome, tendo por isso merecido críticas violentas. — Diga-me, pelo amor de Deus – exclamei–, qual foi o processo – se é que há algum – que o capacitou a sondar o íntimo da minha alma. Eu estava, na verdade, mais surpreso do que desejava parecer. — Foi o fruteiro – respondeu meu amigo – quem levou você à conclusão de que o remendador de solas não tinha bastante altura para o papel de Xerxes et id genus omne. — O fruteiro?! Você me assombra... Não conheço fruteiro de espécie alguma. — O homem que lhe deu um encontrão, quando entramos nesta rua há talvez 15 minutos. Lembrei-me então de que, de fato, um fruteiro, carregando na cabeça um grande cesto de maçãs, quase me derrubara acidentalmente, quando haví- amos passado na rua C... para a avenida em que nos achávamos. Mas o que tivesse ido que ver com Chantilly é que eu não podia compreender. Não havia em Dupin uma partícula sequer de charlatanice. — Vou explicar – disse ele – e, para que você possa primeiro compreen- der tudo claramente, vamos primeiro retroceder, seguindo o curso de suas meditações, desde o momento em que lhe falei, até o do encontrão com o tal fruteiro. Os elos mais importantes de cadeia são estes: Chantilly, Órion, Dr. Nichols, Epicuro, a estereotomia, as pedras da rua, o fruteiro. Há bem poucas pessoas que não tenham, em algum momento de sua vida, procurado divertir-se remontando os degraus pelos quais atingiram certas conclusões particulares de suas ideias. Esta ocupação é, não poucas vezes, cheia de interesse e o que a experimenta pela primeira vez fica admi- rado diante da aparente distância ilimitada e da incoerência que há entre o ponto de partida e a chegada. Qual não foi pois o meu espanto quando ouvi o francês falar daquela maneira, e não pude deixar de reconhecer que ele havia falado a verdade. Continuou: 34 Linguagem e Pensamento — Estávamos conversando a respeito de cavalos, se bem me lembro, justamente antes de deixar a rua C... Foi o último assunto que discutimos. Ao cruzarmos na direção da avenida, um fruteiro, com grande cesto sobre a cabeça, passando a toda pressa à nossa frente, lançou você de encontro a um monte de pedras soltas, escorregou, torceu levemente o tornozelo, pareceu aborrecido ou contrariado, resmungou umas palavras, voltou-se para olhar o monte de pedras e depois continuou a caminhar em silêncio. Não estava particularmente atento ao que você fazia, mas é que a observação se tornou para mim, ultimamente, uma espécie de necessidade. Você manteve os olhos fixos no chão, olhando, com expressão mal-humorada, os buracos e sulcos do pavimento (de modo que vi que você continuava pensando ainda nas pedras), até que alcançamos a pequena travessa Lamartine, que foi calçada, a título de experiência, com tacos de madeira, solidamente reajustados e fixos. Ali, sua fisionomia se iluminou e percebendo que seus lábios se moviam, não tive dúvida que você murmurava a palavra esterotomia, sem vir a pensar em átomos e portanto nas teorias de Epicuro. Como não faz muito tempo que discutimos este assunto, lembro-me de lhe haver mencionado quão singu- larmente, embora muito pouco notado, as vagas conjecturas daquele nobre grego tinham tido confirmação, com a recente cosmogonia nebular, e vi que você não se conteve e erguesse os olhos para a grande nebulosa de Órion, coisa que eu esperava que você não deixaria de fazer. Você olhou, pois, para cima e tinha então a certeza de haver acompanhado estritamente o fio de suas ideias. Naquela crítica ferina que apareceu a respeito de Chantilly, ontem, no Museu, o satirista, fazendo algumas maldosas alusões à mudança de nome do remendão ao calçar coturnos, citou um verso latino, a respeito do qual temos tantas vezes conversado. Refiro-me ao verso Perditit antiquum litera prima sonum, que, segundo expliquei a você aludia a Órion, que antigamente se escrevia Urion, e, por causa de certa mordacidade, ligada a esta explicação, estava eu certo de que você não poderia tê-la esquecido. Era, portanto, bem claro que você não deixaria de combinar as duas ideias de Órion e Chantilly. Que você as havia combinado vi pela espécie de sorriso que lhe pairou nos lábios. Pensou na imolação do pobre remendão. Até então estivera você a caminhar meio curvado, mas naquele momento você se endireitou, ficando bem espigado, a toda altura. Certifiquei-me então que você estivera pensan- do na pequena estatura de Chantilly. Neste ponto interrompi suas medita- ções para observar que, como, de fato, era ele um sujeito muito baixo, o tal Chantilly daria melhor para representar no teatro de variedades. O imprevisível animal humano 35 Atividades 1. Qual o principal motivo para que o professor precise estar constantemente atento para o quanto os seus alunos estão compreendendo de suas palavras? 2. Por que diversificar as ofertas de conteúdos e de tipos de atividades em uma sala de aula é importante? 3. Por que não é lícito que um professor se sinta o dono da verdade? 36 Linguagem e Pensamento Dicas de estudo RIOLFI, Claudia Rosa. Equívoco e singularidade: subjetividade na fala de uma criança. In: LIMA, Regina Célia de Carvalho Paschoal (Org.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas: Mercado de Letras, 2005, p. 219-233. Analisando exemplos concretos de diálogos entre adultos e uma mesma criança em dois diferentes momentos de sua vida (aos dois e aos sete anos), nesse trabalho procuramos mostrar como a propriedade de a linguagem causar o equívoco nas trocas verbais não é, ao contrário do que parece, uma coisa ne- gativa. Se bem utilizada, pode, inclusive, acabar sendo solidária com o exercício da expressão verbal criativa e espirituosa, podendo prestar-se como importante auxiliar na construção de uma relação menos autoritária entre adulto e criança. POSSENTI, Sírio. Os Humores da Língua: análises linguísticas de piadas. Campi- nas: Mercado de Letras, 1998. Aprender muito sobre a linguagem e seu funcionamento e, ainda por cima, dar boas gargalhadas é o que o leitor conseguirá como lucro ao estudar o livro de Possenti. Com um estilo claro e bastante didático, o autor parte de exemplos de peças linguísticas concretas – no caso, textos de piadas – para mostrar os dispositivos linguísticos utilizados comumente para fazer rir. Aqui vai uma das piadas analisadas por Sírio para animá-lo para a leitura: — Sabe o que o passarinho disse pra passarinha? — Não. — Qué danoninho? Gostou? Então leia o livro para entender por que a fonologia é um importan- te recurso na concepção dessa piada, bem como no desvelamento dos modos pelos quais ela nos faz rir. O imprevisível animal humano 37 Você já parou para pensar em quantas pequenas mentiras inocentes estamos prontos a contar ao longo do dia em nome da manutenção de nossa boa convivência social? Estamos tão acostumados com esse tipo de procedimento que sequer chamamos essas pequenas omissões de menti- ra. Por exemplo, se o seu superior hierárquico chega bravo, perguntando “Por que você não começou a tarefa que eu lhe pedi ainda?”, parece-nos perfeitamente normal responder algo como “Hoje o dia foi muito corrido!” quando a resposta verdadeira seria: “Estou morta de preguiça!”. Não pense você que nascemos sabendo nos utilizar desses dispositivos retóricos em nome da diplomacia. Quando somos muito pequenos, ainda inocentes, costumamos responder tudo o que nos vem à cabeça, mesmo quando uma pergunta em- baraçosa é feita. Todo mundo já deve ter presencia- do uma resposta do tipo “Porque não fui com sua cara!” quando um adulto imprudente perguntou a um molequinho “Por que você não me deu um beijo?”. Ou seja: quando somos crianças, utilizamos a linguagem primordial- mente para nos comunicar, para dizer, com clareza, a parcela de nossos pensamentos que conseguimos atingir. Isso porque, na nossa inocência, confiamos em todo mundo e não calculamos que, às vezes, um prejuízo a nossa imagem pode terresultados catastróficos para o andamento da nossa vida. Como éramos ingênuos! Desconhecíamos a ironia, a denegação, a ocultação deliberada de nossas ideias, as convenções sociais – enfim, tudo aquilo que faz com que, em grande parte da vida da sociedade, usemos uma língua justamente para ocultar o que estamos pensando. Quem tem dúvida sobre isso se lembre do que respondeu a última vez que sua chefe, com quem você tem mantido relações delicadas, acabou de cometer um desastre total no cabelo e perguntou entusiasmada: “Não ficou lindo?”. Numa situação dessas, pensar rápido nos leva, justamente, a encontrar Que efeito tem sobre você um adulto que fala tudo o que pensa, doa a quem doer? Concepção do homem como ser de linguagem 40 Linguagem e Pensamento uma forma polida de não contrariar a dama, se formos escrupulosos, sem exata- mente mentir, dizendo algo como “De fato, você mudou bastante!”. Ou seja, mais tarde, aprendemos que a vida social tem muito mais detalhes do que podíamos alcançar em nossa inexperiência. Quando adultos, usamos as palavras para lisonjear, convencer, seduzir, virar determinada situação a nosso favor, acalmar-nos e muitas outras funções que, legitimamente, não podem ser chamadas de comunicação. Às vezes, precisamos, inclusive, saber utilizar as pa- lavras sem comunicar absolutamente nada, pois é de nosso interesse manter as informações que possuímos no mais absoluto sigilo. Por um motivo ou por outro, que uma coisa fique clara: é o exercício da lin- guagem, ou na argumentação ou na tentativa de manter nossa privacidade in- tocada, que nos ajuda a perceber nossa identidade, nosso direito a um espaço próprio, cuja conquista deve se renovar todos os dias, na luta intransigente contra os fofoqueiros, os intrometidos, as pessoas que gostam de se aproveitar dos outros e assim por diante. Por esse motivo, o objetivo deste capítulo é convidá-lo para se aproximar do con- ceito de linguagem tal como é visto no interior dos estudos linguísticos. Trata-se da ideia de que a linguagem é um sistema articulado que, consistindo em uma faculda- de específica do ser humano, fornece-lhe sua essência de ser de linguagem. A linguagem é o que dá o nosso contorno Da perspectiva que ora adotamos, a linguagem é aquilo que transforma cada ser humano que vem ao mundo em humano. Trata-se de uma atividade exclusi- va do homem, que, ao constituí-la, organiza seu mundo e suas relações sociais e, a partir dessa organização, dá um estilo peculiar aos seus modos de expressão em diversas instâncias. Se não tivéssemos a linguagem, dificilmente formaría- mos famílias que se mantêm por um longo tempo ou realizaríamos sonhos de infância ou enterraríamos nossos mortos. De onde partiu esse modo de ver as coisas? A formalização de um modo de ver a linguagem como sendo parte da natureza específica do homem encontra- -se nas ideias que o linguista francês Émile Benveniste (1902-1976) pôde criar e registrar na passagem da década de 1960 para a de 1970. Na impossibilidade de expor aqui toda a extensa obra desse autor, vamos nos limitar a dois de seus tra- balhos, que tematizam o fato de que o uso de uma linguagem é uma capacidade meramente humana e foram publicados originalmente em 1952 e em 1958. Concepção do homem como ser de linguagem 41 É, portanto, “na linguagem e pela lingua- gem que o homem se constitui como sujeito” (BENVENISTE, 1988, p. 286). Lendo esse frag- mento que acabamos de citar, esperamos que o leitor perceba que, para esse autor, homem e linguagem formam uma unidade indecomponível, uma vez que, tirando-se a linguagem de um sujeito, pouco mais lhe resta de diferente dos animais. Consequentemente, não é aqui o caso de pensar o homem como alguém que tem a linguagem, mas, ao contrário, de concebê-lo como alguém que é feito por ela. Admitir a ideia de que somos “seres de linguagem” exige abandonar a con- cepção de que a linguagem verbal é um instrumento de comunicação como outro qualquer, como, por exemplo, a utilização dos sinais de fumaça entre os indígenas. Benveniste trabalhou duramente para convencer seus pares de que esse modo de ver as coisas consistia em um erro. Para ele, humano e linguagem são feitos da mesma matéria, não podendo ser separados um do outro. O corajoso francês se afastou, portanto, da concepção de linguagem que estava em alta naquela época afirmando que, ao se refletir sobre a linguagem, não se pode criar uma ilusão segundo a qual ela estaria fora da natureza humana. Assim discorre o estudioso: Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a. Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a existência do outro. É um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem. (BENVENISTE, 1988, p. 285) De acordo com Benveniste, ao inserirmos um jovem humano no sistema lin- guístico e na produção linguageira, que nossa cultura vem acumulando ao longo do tempo, estamos fazendo com que esse pequeno animal se torne um homem. A linguagem tem nessa missão a dupla tarefa de fazer de um humano aquilo que ele é e, para além disso, de fornecer-lhe os dispositivos para se reconhecer como um eu, para ter uma identidade. Compreendendo que uma pessoa só pode se anun- ciar como sujeito quando se refere a si próprio por meio da utilização da primeira pessoa do singular (eu), o autor faz uma importante afirmação sobre o fundamento da subjetividade: “É portanto verdade ao pé da letra que o fundamento da subjetividade está no exercício da língua. Se quisermos refletir bem sobre isso, veremos que não há outro testemunho objetivo da identidade do sujeito que não seja o que ele dá assim, ele sobre si mesmo.” (BENVENISTE, 1988, p. 288) A linguagem humana é muito mais do que um instrumento de comunicação. Se bicho não fala, o que é que ele faz? 42 Linguagem e Pensamento Ou seja: poder referir-se a si próprio, compreendendo-se como diferente de todos os demais de sua espécie, é prerrogativa do homem, uma vez que, sendo efeito de linguagem, não é compartilhada com nenhum outro ser vivo. Neste ponto da reflexão, é comum que ocorra ao leitor a seguinte dúvida: se não podemos chamar de linguagem aquilo que um animal faz, como podemos compreender os fenômenos de comunicação que, com certeza, estão lá presen- tes? Neste momento, as ideias de Benveniste (1952) também são importantes o suficiente para que nela nos detenhamos com mais detalhes. Alguns traços da linguagem humana Benveniste sempre foi muito claro ao afirmar que, aplicada ao mundo animal, a noção de linguagem só tem crédito por um abuso de termos. Mesmo quando emitem ruídos, como é o caso do papagaio, eles não configuram um modo de expressão que tenha os caracteres e as funções da linguagem humana. Ao entrar em contato com alguns estudos que biólogos vinham fazendo para elucidar o comportamento das abelhas, viu aquela sua certeza vacilar e teve necessidade de se aprofundar mais nessa comparação. Por um momento, teve sua certeza abalada ao considerar que, como tudo parecia indicar, as abelhas tinham um modo muito eficaz de se comunicarem entre si, a saber: Uma abelha operária colhedora, encontrando, por exemplo, durante o voo uma solução açucarada por meio da qual cai numa armadilha, imediatamente se alimenta. Enquanto se alimenta, o experimentador cuida em marcá-la. A abelha volta depois à sua colmeia. Alguns instantes mais tarde, vê-se chegar ao mesmo lugar um grupo de abelhas entre as quais não se encontra a abelha marcada e que vêm todas da mesma colmeia. Esta deve haver prevenido as companheiras. É realmente necessário que estas hajam sido informadas com precisão, pois chegam sem guia ao local que se encontra, frequentemente, a grande distância da colmeiae sempre fora de sua vista. Não há erro nem excitação na localização: se a primeira escolheu uma flor entre outras que poderiam igualmente atraí-la, as abelhas que vêm após a sua volta se atirarão a essa e abandonarão as outras. Aparentemente, a abelha exploradora indicou às companheiras o lugar de onde veio. (BENVENISTE, 1988, p. 61) Retomando os estudos de Karl von Frisch, o autor descobriu, então, que as abelhas conseguem ser muito precisas no repasse de dados, tais como distância da flor encontrada, sua posição exata e a natureza do achado por meio da dança. Ou seja: as abelhas conseguem comunicar-se com seus pares transmitindo infor- mações úteis para a sobrevivência da espécie, mas não o fazem com o auxílio de qualquer tipo de interação verbal. Descobrir isso sanou a dúvida de Benveniste. Conclusivamente, para ele, a comunicação animal e a linguagem humana são bastante diversas em relação Concepção do homem como ser de linguagem 43 a sua essência. O caráter específico da primeira é “o de propiciar um substituto da experiência que seja adequado para ser transmitido sem fim no tempo e no espaço, o que é típico do nosso simbolismo e o fundamento da tradição linguís- tica” (BENVENISTE, 1988, p. 56). Verifique, no quadro 1, uma sinopse da compa- ração feita pelo autor. Quadro 1– Comunicação das abelhas versus linguagem humana Comunicação da abelha Linguagem humana Comunicação gestual: a mensagem é restrita à dança, sem intervenção de um aparelho vocal. Comunicação vocal: a mensagem restrita tem a voz como seu principal suporte. Só ocorre em condições que permitem a per- cepção visual. Não sofre os limites da percepção visual. Sua mensagem não provoca qualquer tipo de resposta no ambiente, não há diálogo. Falamos com aqueles que nos falam, ou seja, sempre provocamos algum tipo de resposta no ambiente. Não há possibilidade de reprodução da men- sagem desvinculada do testemunho empíri- co, da experiência objetiva. No diálogo, a referência à experiência objetiva e a reação à manifestação linguística se mistu- ram ao infinito, livremente. Não é possível analisar a mensagem das abe- lhas: podemos ver apenas seu conteúdo global. Caracteriza-se pela capacidade de ser poten- cialmente infinita, uma vez que, cada enun- ciado permite análise e rearranjo de suas par- tes com as de outros enunciados. Trata-se de um código de sinais. Vai muito além de um código de sinais, uma vez que é fonte de criatividade. A linguagem antes dos trabalhos de Benveniste Até o século XIX, antes que os estudos de gramática comparada estivessem se solidificado, pensava-se que uma língua é uma coletânea de palavras que, ao darem nome aos objetos do mundo, serviam para a expressão do pensamento. Essa visão da linguagem, como uma espécie de coleção de palavras, foi su- perada quando, de 1907 a 1911, Ferdinand de Saussure ofereceu na Universida- de de Genebra três cursos nos quais transmitiu oralmente os fundamentos da linguística moderna. Combatendo a visão do leigo, ele substituiu o conceito de palavra pelo de signo linguístico, ou seja, a menor unidade completa que tem um significado. No quadro 2, o leitor encontrará de forma esquemática o modo pelo qual Saussure concebeu o signo linguístico. 44 Linguagem e Pensamento Quadro 2 – Composição do signo linguístico Signo Linguístico: Significante Significado Analisando a composição do signo linguístico registrada no quadro 2, pode- mos perceber que Saussure, pela primeira vez, pôde perceber que a palavra não é monolítica. Ao contrário, trata-se de uma unidade de duas faces, conforme segue: O significante � – trata-se da “imagem acústica” de uma palavra, isto é, aqui- lo que nossos ouvidos captam e o cérebro registra, mesmo que não en- tendamos a língua em questão. Apenas por amor à clareza, propomos a seguinte situação para exemplificar: se você, leitor, não fala nem entende nenhuma palavra de japonês e acaba de chegar em Tóquio, você vai ou- vir muitas “palavras”, mas não vai entender nenhuma, ou seja, não vai ter acesso ao signo como um todo. Os sons articulados que saem da boca dos japoneses e chegam aos seus ouvidos são os seus significantes. O significado � – trata-se do conceito ao qual a palavra remete. Quando temos conhecimento de mundo, podemos muito bem discutir o conceito veicula- do por um dado significante, mesmo que não conheçamos a língua na qual ele foi originariamente cunhado, uma vez que os significados relacionam-se ao campo das ideias, e não de uma ou outra língua em particular. Desse modo, voltando para nosso exemplo de sua chegada em Tóquio, você pode muito bem, digamos, discutir o significado do haraquiri na cultura tradicio- nal japonesa com o primeiro japonês que fale português que você encon- trar, mesmo que não aprenda a pronunciar a palavra corretamente. Por meio dessa dissociação, Saussure pôde dar um segundo passo bastante importante para a linguística moderna: postular que não há correspondência exata entre significantes e significados. Esse deslocamento é muito importante para que reflitamos sobre as complexas relações entre pensamento e linguagem, uma vez que, a partir dele, Saussure nos mostra que não há qualquer possibilidade de recobrimento dos ob- jetos do mundo e de nossos pensamentos utilizando nossas palavras. Vale dizer: a partir das elaborações da linguística, sabemos que nossos pensamentos são sempre fugidios e apenas parcialmente compartilháveis como nossos pares. A esta altura, o leitor deve estar se perguntando como os humanos chegam a se entender. Trata-se de uma excelente questão, uma vez que ela nos remete a Se a relação significante e significado é frágil, como chegamos a nos entender? Concepção do homem como ser de linguagem 45 uma ordem maior que organiza as palavras e faz com que, mesmo não falando a mesma língua, possamos fazer algum tipo de troca de ideias: a linguagem como um sistema. Saussure nos mostrou que os significados podem ser compartilhados entre nós não por remeterem a objetos do mundo, mas por funcionarem dentro de uma lógica de ordenamento de significantes. Para o autor, ao se oporem uns aos outros em uma rede de relações, os significantes acabam por adquirir um valor linguístico, isto é, acabam por fazer sentido para nós. Saussure explica essa noção por meio de uma bela metáfora: a do jogo de xadrez. Comparando uma palavra a uma peça do jogo (no caso, o cavalo), o autor nos explica que, para que o jogo funcione, pouco importa a peça em si, mas o fato de que os dois jogadores tenham pactuado de que se trata de uma peça legítima. Em benefício da clareza, transcrevemos um trecho do autor: Tomemos um cavalo; será por si só um elemento do jogo? Certamente que não, pois, na sua materialidade pura, fora de sua casa e das outras condições do jogo, não representa nada para o jogador e não se toma elemento real e concreto senão quando revestido de seu valor e fazendo corpo com ele. Suponhamos que, no decorrer de uma partida, essa peça venha a ser destruída ou extraviada: pode-se substituí-la por outra equivalente? Decerto: não somente um cavalo, mas uma figura desprovida de qualquer parecença com ele será declarada idêntica, contanto que se lhe atribua o mesmo valor. Vê-se, pois, que nos sistemas semiológicos, como a língua, nos quais os elementos se mantêm reciprocamente em equilíbrio de acordo com regras determinadas, a noção de identidade se confunde com a de valor, e reciprocamente. Eis porque, em definitivo, a noção de valor recobre as de unidade, de entidade concreta e de realidade. (SAUSSURE, 1962, p. 128) Lendo o extrato acima, é importante o leitor perceber que o principal deslo- camento causado pela ciência linguística foi mostrar que as palavras em si não significam absolutamente nada: se podemos usá-las para suporte de nosso
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