Buscar

O Criminalista

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 95 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 95 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 95 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

o CRIMINALISTA 
Trata do crime sem castigo, que assim 
permanece a despeito da prova testemunhal, 
do corpo de delito, da exibição da arma do 
crime, da própria confissão do criminoso e r 
ainda dojulgamento regular a que ele faz questão 
de submeter-se para poder depois repousar 
tranqüilamente sobre a intangibitidade da coisa 
julgada. Demonstra, em todos os pormenores, o 
planejamento e a execução de três homicídios 
juridicamente impuníveis, concluindo que o 
leigo não tem razão quando pensa ou afirma que 
não há crime perfeito. 
t: obra de notável rigor dia lético, célere, 
instrutiva e fascinante. Seus leitores, principal-
,mente se forem ju(zes, advogados, promotores 
ou estudantes de Direito, percorrerão com 
interesse todas as suas páginas e o farão sem 
esforço algum, porque é realmente veloz a 
sucessão dos fatos não apenas descritos, mas, 
sobretudo, psicológica e juridicamente inter-
pretados. 
~. 
EDITORALTDA. 
VINICIUS BITTENCOURT 
~. 
CRIMINALISTA 
~. 
EDITORALTDA. 
Capa 
Copyright 1979 
VINICIUS 81TTENCOURT 
Carlos Ferreira 
Impressão 
Arte Final - Ind.Gráficas e Editora 
JANC 
Editora e Publicidade Ltda. 
Rua Barão de Itapemirim, 209 - Sala 311 
29.000 - Vitória - E.S. 
ÀJô 
Aos curiosos do Direito Penal 
ri; 
ti 
PREFÁCIO 
"O Criminalista" é livro de poucas páginas e muita 
substância. Pela rapidez da progressão, pelo teor científico da 
urdidura e pela seqüência imprevisfvel dos eventos, não tem simi· 
lar entre as obras do gênero. Rapta, desde a primeira página, a 
mente do leitor, e não a liberta um só instante, porque não re~ 
pete situações, não contém palavras inúteis, nem retrata banali-
dades. 
Os crimes que descreve são juridicamente perfeitos e 
não apenas sem rastros ou de apuração difícil, como os versa-
dos no romance policia! comum, onde tudo se reduz ã busca 
de provas para a condenação do culpado. "O Criminalista", 
ao contrário, trata do crime sem castigo, que assim permanece 
a despeito da prova testemunhal, do corpo de delito, da exibi-
ção da arma do crime, da própria confissão do criminoso e, 
ainda, do julgamento regular a que ele faz questão de subme-
ter-se para poder depois repousar t~nqúi!amente sobre a intan-
gibilidade da coisa julgada, Demonstra, em todos os pormenores 
o planejamento e a execução de três homicídios juridicamente 
impuníveis, concluindo que o leigo não tem razão quando pensa 
ou afirma que não há crime perfeito, 
E claro que o autor, deduzindo temas amplos e profun-
dos, poderia ter facilmente duplicadO, ao menos, o número das 
páginas deste livro. Mas, então, teria sacrificado um dos seus mé-
ritos principais, que consistiu exatamente na eliminação de 
palavras supérfluas, na exclusão de incidentes irrelevantes e na 
podadura das repetições que cansam o leitor, sintetizando a 
obra para que pudesse ser lida em um único impulso, como 
demanda a época vertiginosa em que a mesma vem à luz. 
Os estudantes, os curiosos do Direito Penal e todos 
aqueles que se preocupam com esse alarmante fenômeno social 
que é o crime, cujas explosões, cada vez mais contínuas e pode-
rosas, vêm abalando os alicerces de todas as comunas, certamen-
te ouvirão neste livro o eco de indagações que já fizeram e que 
nele enco,ntrarão resposta satisfatória. 
"O Criminalista", portanto, é uma obra preciosa, de no-
tável rigor dialético, instrutiva e fascinante. Seus leitores, prin-
cipalmente se forem ju fzes, advogados, promotores ou estudan-
tes de Direito, percorrerão com interesse todas as suas páginas e 
o farão sem esforço algum, porque é realmente veloz a sucessão 
dos fatos não apenas descritos, mas, sobretudo, psicológica e 
jurid icamente interpretados. 
João Batista Cerutti 
ADVERTENCIA 
Os personagens deste livro são fictfcios e os fatos imagi-
nanos< Qualquer semelhança entre essas figuras supostas e 
pessoas vivas ou mortas, ou qualquer analogia entre os fatos 
narrados e outros que possam ter ocorrido no mundo real será 
fruto exclusivo de mera coincidência. ' 
Por outro lado, como advertiu Pitigrilli em seu inimitá-
vel "L'Esperimento di Patt", ê poSSível que nos futuros proces-
sos em que eu venha a lidar como advogado ou a responder 
como réu, meus oponentes se estribem neste livro para escarne-
cerem de minhas alegações com o caviloso argumento de que eu 
não acredito na Justiça. 
A verdade, porém, é que escrevendo sobre aberrações 
forenses, provei exatamente o contrário, reverenciando por via 
índireta a Justiça, porque se a regra fora o desacerto dos julga-
dos, os erros judiciários não aproveitariam à literatura de 
impacto, por não causarem mais sensação alguma. 
Só o extravagante, insólito ou inaudito, aquilo que rara-
mente ocorre, pode emocionar ou comover, Se o erro judiciário 
tem esse condão, se surpreende, espanta ou alarma, e se por isto 
foi escolhido como tema desta obra, ela é a prova melhor da 
crença do autor na infabilidade da Justiça, 
Vitória, Junho de 1979 
Vinicius Bittencourt 
7 
1 
A sala de audiências regurgitava de curiosos que haviam 
aflu ído ao Palácio da Justiça para assistir aO interrogatório de 
um advogado famoso que, há cerca de vinte dias, ocupava as 
colunas frontais de toda a imprensa paulista como indigitado 
autor de um uxoricídio sensacional. 
Havendo oompletado o meu curso de Direito no mês 
anterior e desejando especializar-me em criminologia, aguardava 
com mais ansiedade que qualquer dos presentes, a chegada do 
acusado. O evento estarrecera a opinião pública, dívidindo-a em 
duas facções, a maior das quais não admitia a culpabilidade- do 
indiciado. Ele mesmo, fogo no começo do inquérito policial, 
sustentara com firmeza a sua inocência, demonstrando clara-
mente a fragilidade das provas em que a acusação se estribava, 
Sabia-se, ademais, que malgrado a decretação de sua custódia 
preventiva, havia o réu dispensado os criminalistas que o acom-
panhavam desde a abertura do inquérito e isto despertara na 
mente popular a crença de que a denúncia já havia sido pulveri-
zada. Aguardava-se, assim, que logo após o interrogatório o 
acusado fosse posto em liberdade. 
De minha parte, com a inexperiência de meus vinte e 
cinco anos, estava totalmente fascinado pela atuação do réu 
diante dos inquisidores policiais a quem desmoralizara impíe· 
dosamente com sua dialética irresistível. Máis do que por sim· 
pies curiosidade, estava eu ali, pois, como um aluno estudioso, à 
espera de um mestre capaz de brindar-me com uma aula prática 
de inestimável valor para a minha futura carreira de criminalista. 
9 
- Afastem-se. Deixem passar o juizl - bradou em voz 
áspera ° escrivão, abrindo caminho por entre os curiosos e ingres-
sando na sala, seguido de perto pelo magistrado e pelo promotor. 
- Tragam o réu. - ordenou o juiz, após sentar-se em sua 
poltrona. 
Minutos depoís, os "flashes" fotográficos e o rumor de 
passos apressados anunciaram que o acusado já estava por perto. 
De fato, logo a seguir entrou ele na sala, escoltado por dois 
militares~~" Sua aparência era a mesma das fotografias que há três 
semanas vinham sendo diariamente estampadas nos jornais da 
cidade. Uma lividez impressionante e um ar de profunda tristeza 
nimbavam, todavia, com uma auréola de mártir, aquela estranha 
personalidade que irradiava inteligência por todos os ângulos de 
que fosse examinada, 
Revelando completa indiferença para com os súcubos do 
sensacionalismo que se aglomeravam compactamente para vê-lo 
e ouvi-lo, o acusado sentou-se na cadeira que ° escrivão lhe 
indícou, permanecendo em silêncio enquanto aguardava o inter-
rogatório. 
o magistrado, passando osautosao escrivão,ordenou-Ihe 
que lesse em voz alta o texto integral da denúncia. Cumprida 
essa formalidade, dirigiu-se pela primeira vez ao imputado, di-
zendo-lhe: 
~ O réu deve declarar seu nome,estado civil e profissão. 
o acusado respondeu: 
- Jorge Muniz, brasileiro, viúvo, advogado. 
o juiz, como no intuito de dar satisfação aos circunstan-
tes.disse: 
- Embora pareça ocioso, face à profissão que o réu exer-
ce, cumpro o de'Jer legal de adverti-lo de que não está obrigado 
10 
a responder às perguntas que eu lhe fizer; seu silêncio, todavia, 
poderá ser interpretado em prejuízo de SU'3 defesa, 
o réu fez COm a cabeça um sinal de assentimento. 
Abrindo o processo na folha vestibular, o magistrado co-
meçou o interrogatório: 
~ E verdade o que se alega na denúncia? 
o acusado, COm voz-clara e segura, respondeu: 
~ A denúncia é verdadeira, em todos os seus termos, 
Murmúrios de estupefação percorreram a sa!a eo próprio 
juiz não conseguiu esconder seu desapontamento. O promotor, 
que antes do acusado responder, riscara um fósforo para acen-
der o cigarro, teve de jogá-lo precipitadamente ao solo para evi-
tar que a chama lhe queimasse os dedos. Estava preparado para 
uma negação frontal de autoria e aquela resposta absurda o 
perturbara completamente. 
- Pode o acusado declinar os nomes de outras pessoas 
que, de qualquer modo, tenham concorrido para a prática do 
delito? 
o réu, fixando no juiz um olhar intraduz(vel, respondeu: 
- Nada mais tenho a declarar. Peço que seja encerrado o 
interrogatório. 
o juiz perguntou-lhe, então, se tinha advogado Ou se, 
como lhe facultava a lei, iria encarregar-se de sua própria defesa. 
Exasperando ainda mais a confusão dos presentes, todos 
surpreendidos com o desfecho melancólico da audiência, o 
acusado respondeu tranqüilamente: 
- Não tenho advogado, nem me defenderei. 
11 
l. 
~ Neste caso, - disse o juiz - como é de seU conheci-
mento, estou obrigado a nomear-lhe um defensor. 
Percorreu a vista pela sala, pareceu hesitar um instante, IS! 
fez finalmente um sinal para que eu me aproximasse. Já me 
conhecia desde os tempos de acadêmico, quando eu andava pelo 
Forum estudando processos. Perguntou-me, quando já me acha-
va a um passo de sua cátedra: 
_ Doutor Nilo, aceita patrocinar a defesa do réu como 
seu advogado dativo? 
Até hoje, quando tanto tempo já transcorreu após aque-
le extraordinário evento que, praticamente, decidiu a minha 
carreira de criminalista pergunto a mim mesmo como foi que 
tive forcas para responder-lhe que aceitava o encargo. Não sei 
e provavelmente nunca saberei como pude, eu que não ,ti~ha 
experiência alguma, acolher sem o menor protesto a gravlsslma 
responsabilidade de patrocinar uma causa que era, sem qualquer 
dúvida a mais espetacu!ar que o foro criminal conhecera nos 
último~ anos. Por mais que reconstitua mentalmente as circuns-
tâncias do momento, não encontro outra explicação para aquela 
minha temeridade, além da propensão instintiva que fizera de 
mim um advogado nato, com tendências vocacionals tão marcan+ 
tes que induziram minha pobre mãe a exaurir-se em trabalhos 
penosos, empolgada pela certeza de meu futuro sucesso numa 
arte tão dif(cil. De qualquer forma, por culpa do acaso ou da 
afoiteza, em minhas mãos tombara a liberdade de um homem 
de vasta cultura, advogado habilíssimo, ~ue por um inexpl1cá;,e! 
capricho entendera de confessar um crime sobre o qual, at:: ? 
momento do interrogatório, pairavam dúvidas mais que SUfICI~ 
entes para garantjrem~lhe a absolvição, 
Esmagado, portanto, pela tremenda responsabilids.de, 
assinei como se fora um autômato o termo de compromisso 
e vi-me subitamente envolvido pelos repórteres, sendo fotogra-
fado por todos .Q,$ !ados, crívado de perguntas sobre o cu,:so_que 
pretendia dar ao processo e sobre a sorte de meu constltumte. 
12 
Somente quando a sala se esvazIOU por completo, foi 
que dei conta da gravidade de minha situação. Aquele processo, 
em menos de quatro meses, subiria a julgamento pelo Tribunal 
do Júri, cumprindo-me funcionar na defesa, com as câmaras de 
televisão focalizadas sobre mim e os microfones dispostos a 
poucos centímetros da tribuna, captando todos os equívocos 
que a minha inexperiência iria prodigalizar a um público irreve-
rente e inexorável em suas sentenças sobre o mérito dos orado-
res. E não poderia, ao menos, sustentar a inocência do acusado, 
Ele mesmo confessara a prática do delíto, só restando ao seu 
defensor excogitar circunstâncias atenuantes que lhe minoras-
sem a pena. Tudo indicava, ademais, que eu r,ão iria contar com 
sua colaboração. A inabalável firmeza com que confessara em 
juízo a autoria e a culpabilidade, seu pedido de encerramento 
do interrogatório e sua terminante recusa em constituir advoga-
do ou defender-se pessoalmente, eram provas cabais de que nem 
sequer iria receber de bom grado a minha atuação no processo. 
Por outro lado, o simples fato de discursar perante um aud itórto 
que venerava a eloqüência do homem que eu teria de defender e 
que permaneceria mudo durante a sessão de julgamento, era bas-
tante para desencorajar advogados de prest(gio, quanto mais a 
mim que ainda não funcionara no Tribunal do Júri. Fosse qual 
fosse o empenho com que eu me dedicasse à causa, não conse~ 
guiria, por certo, nem absolver o acusado nem convencer ao pú-
blico de que a sua condenação inevitável emanara de circunstân-
cias alheias à minha inexperiência ou incapacidade. 
Com o raciocínio acossado por essas apreensões, desci a 
escadaria do Palácio da Justiça, e como não tinha escritório 
nem o que fazer pelas ruas, tomei o ônibus e segui para a 
minha residência. 
Logo que cheguei, minha mãe desligou a máquina de 
costura, baixou o volume do rádio e disse-me entre sorrisos: 
- Já ouvi a notícia. Ainda hoje, seu nome estará em to~ 
dos os jornais. Você fez carreira rapidamente. Até seu paI, se 
vivo fosse, teria inveja de você. 
13 
Beijando-a nas faces, respondi tristemente, certo de que 
iria desapontá-la: 
- Não há dinheiro algum na causa; apenas trabalho e o 
risco de ficar para sempre liquidado como criminalista. 
Minha mãe, com seu incomparável bom senso, fixou-me 
um olhar bondoso e d ísse: 
- Não preciso de muito dinheiro; só o bastante para 
manter aceso o fogão. 
- Acontece que nessa causa não há dinheiro nem mes-
mo para o gás. O réu é muito rico, mas não quer ser defendido. 
- Sei de tudo, Você esquece, no entanto, que ganhará 
uma publicidade que vale mílhões e que atrás dessa causa virão 
as compensadoras. 
- Já pensei nisso. Tenho medo, todavia, de decepcionar 
a opinião pública, perder a confiança em mim mesmo e ter de 
cavar um cargo de comissário de polícia ou outro qualquer, 
para não morrermos de fome. 
- Tire isso da cabeça. Seu pai, que não tinha o seu ta-
lento, nunca precisou de função pública para viver. Sempre foi 
exclusivamente advogado e nunca teve uma causa de tamanha 
repercussão como essa que você vai patrocinar, logo depoís de 
diplomado. 
Era difCcíl resistir à sua diatética. Minha mãe passara a 
vida a secretariar meu pai em todos os seus trabalhos jurídicos 
e, como verifiquei mais tarde nas lides forenses, entendia muito 
mais de Direito do que um grande número de advogados que 
desfilavam sua empáfia pelos corredores do Palácio da Justiça. 
De qualquer forma, entretanto, eu não estava disposto a deixar 
que me imolassem naquele processo, Conhecia as minhas limi-
tações e sabia que dificilmente poderia fazer boa figura. O 
melhor seria mesmo declinar do mandato e ir cautelosamente 
14 
abrindo caminho com causas mais modestas que, com o passar 
do tempo, iriam fatalmente surgindo< Preparei-me, pois, para no 
dia seguinte comparecer ao Forum e pedir ao juiz que nomeasse 
outro advogado mais experiente para patrocinar a defesa de 
Jorge Muniz. 
Naquela noite, por força da insistência de minha mãe e 
das hesistaç5es que conturbavam a minha vontade, não canse-
gu i dormir tranqü itamente. Acordei várias vezes com um senti-
mento de frustração e desânimoque felizmente se dissipava 
depois que eu conseguia convencer-me de que, logo na manhã 
seguinte, após a renúncia do mandato, estaria livre daquela res-
ponsabilidade que impensadamente assumira. 
Pela primeira vez na vida, pude ver a cara do homem que 
nos trazia o leite todas as manhãs. Durante anos seguidos, exce-
to quando meu pai era vivo, minha mãe costumava deitar-se 
logo após o jantar, acordando sempre pela madrugada do dia 
seguinte. Quanto a mim, ficava estudando até multo tarde da 
noite, levantando-me, em conseqüência, depois das oito horas 
da manhã. Naqueledia, entretanto, embora houvesse, como sem-
pre, dormido muito tarde, levantei-me cedo da cama e fiquei 
meditando sobre as ocorrências do dia anterior. Decidira exo-
nerar-me do encargo, mas uma estranha fascinação me impelia 
a ir visitar o homem cuja defesa estava ainda sob minha respon-
sabilidade. Por mais que me esforçasse, náo podia admitir uma 
renúncia sumária. Tinha, ao menos, de ouvir o meu constituint:e, 
a quem, talvez, mesmo não lhe patrocinando a defesa, pudesse 
prestar outra assistência qualquer. 
Assim raciocinando, c.omecei a pensar nas causas que po-
deriam ter determinado sua súbita decisão de confessar o crime 
e seu inacreditável propósito de não se defender da acusação, 
nem permitír que colega algum o auxiliasse de maneira efícaz, 
Uma idéia, então, começou a preponderar em minha mente. 
Teria ele Sido dominado por um acesso de loucura? Não era rara 
a ocorrência de transtornos mentais em homens de gênio. Ele 
vinha de uma batalha enervante com a polída e a imprensa que 
se prolongara por vários dias. De um momento para outro, 
15 
passara certamente a ser odiado por todos os familiares da víti-
ma. Não era, pols, absurda a hipótese de que sua mente houves-
se, por fim, entrado em colapso. Ao pensar nessa alternativa, 
não pude continuar na poltrona. Passeí a andar de um lado para 
outro da pequena sala, numa inquietação que não cessou duran-
te todo o tempo em que permaneci em casa, tentando organizar 
meus pensamentos. 
Agora, quando tudo aquilo já passou, não restando em 
meu íntimo senão a lembrança dos avanços e retrocessos de 
minha mente, numa fase de iniciação e incertezas, é que percebo 
que naquele exato momento o processo me conquistara inapela-
velmente. Daf em diante, embora eu não interpretasse, na época, 
os meus sentimentos com a devida clareza, nada, absolutamente 
nada, conseguiria desvincular-me daquela causa cujos percalços 
estava, então, disposto a arrostar, fosse qual fosse o prejuízo. 
Minha mãe notava perfeitamente a minha lntranqüHida-
de, maS não dizia palavra alguma, talvez com a secreta intenção 
de deixar que eu exercítasse minhas forças mentais, acostuman-
d0-me a encontrar, sem aux(ljo externo, a solução para OS meus 
próprios problemas. 
Depois do café, ingerido em silêncio, vesti-me e saí com 
destino à Casa de Detenção, determinado a avistar-me com meu 
constituinte e a associar-me a ele nas vicissitudes do seu processo, 
16 
2 
Quando o carcereiro descerrou as grades da prisão espe-
cial em que se encontrava Jorge Muniz, ° quadro que se me de-
parou foi o de um apartamento de hotel modesto, lIumínado 
satisfatoriamente por pequenas aberturas guarnecidas por barras 
de ferro. Uma cama estreita, um armário, duas cadeiras e uma 
pequena mesa, constituíam todo o mobiliário do aposento. 
Estirado na cama, os braços cruzados sobre o peito, 
numa atitude de profunda meditação, ° preso não fez movi-
mento algum com a minha chegada, nem revelou, por qualquer 
expressão convencional, o menor interesse em minhi3 visita. 
Um tanto desconcertado com a imobilidade e o mutismo 
de meu constituinte, que eu, apesar de tudo, dada a minha con-
dição de noviço, não podia aceitar sem um sentimento de humi-
Ihação, sentei-me na cadeira mais próxima da cama e, enquanto 
meditava como iniciar a entrevista, fique! a examiná-lo física e 
psicologicamente por alguns segundos. 
Moreno, de estatura um pouco acima da mediana, cabe-
los castanhos, finos, lisos e escassos, a começarem do topo de 
uma larga fronte, nariz aquilino, boca inexpressiva, faces leve· 
mente encovadas e uma palidez cadavérica, seriam os traços 
Inconcludentes daquela fisionomia se não estivessem ali, animan-
do-a com um fulgor intenso, dois olhos que lampejavam deses-
peradamente, como faróis de um barco sacudida pela tormenta. 
Se tivesse de definir aquela personalidade com fulcro nos dados 
que a sua aparência me revelara nesse primeiro encontro, tê-la-ia 
17 
descrito como um estranho fenómeno de supressão c...omp!eta 
das forças instintivas, cuja influência, mercê da maldade, da dor 
ou do desencanto, havia sido substituída por uma apatia extre-
ma, insensível a todos os reclamos da natureza humana, Apenas 
aqueles o lhos, inquietos e brilhantes, pareciam lutar ainda contra 
o naufrágio total de uma estrutura anímica que as tempestades 
da vida teriam destroçado completamente. 
Depois de algum tempo, animei-me- por fim a dizer: 
- Sou seu advogado dativo. Vim buscar informações 
que me habilitem a funcionar no processo. 
o acusado, fixando-me os olhos, descruzou os braços e 
fo f aos poucos se levantando até sentar-se na cama. Quando já 
se acomodara na nova posição, disse~me: 
- Como o senhor não foi nomeado por mim, creio que 
só o juiz, autor da designação, poderá ter algum interesse em 
auxiliá-lo no cumprimento dessa tarefa. Não perdi ainda a capa-
cidade jurídica de administrar meu patrimônio e, se quisesse, os 
maiores criminalistas do País estariam, a esta altura, revolvendo 
suas bibliotecas para demonstrarem que a linha sinuosa é o ca-
minho mais curto entre dois pontos. Nada pedi, nada desejo e 
de nada preciso. A única coisa (lue o senhor poderia fazer por 
mim seria deixar-me em paz, se é que isso, a paz, ainda poderei 
encontrar na vida. 
Ouvindo essas palavras, que não me foram ditas em tom 
insultuoso, mas que, obviamente, liquidavam toda possibilidade 
de um entendimento entre nós, levantei-me e ao estender-lhe a 
mão em despedida achei que devia confortá~!o e disse-lhe: 
Se o senhor mudar de idéia e. Quiser confiar em 
quem não veio aqui interessado em seu dinheiro nem na proje-
ção da causa, mas por simples impulso vocacional. queira comu-
nicar-se com este endereço que o atenderei imediatamente, a 
despeito de tudo, 
18 
Jorge Muniz susteve na mão esquerda o cartão que lhe 
estendi, e sem olhá-lo, sem pronunciar qualquer palavra, sem 
fazer gesto algum de agradecimento, deixou que eu me retirasse 
do cárcere, cuia porta, logo a seguir, sobre ele se fechou. 
Um tanto aturdido com o que ocorrera nessa entrevista, 
segui para o centro da cidade e como a hora era oportuna, 
entrei no Palácio da Justiça e dirigi-me diretamente ao cartório 
do júri para ali formular um pedido ao juiz, desistindo do encar-
go. Quando cheguei, fui logo avistado pelo escrivão que supon-
do estar eu em busca dos autos, fez-me sentar junto à sua escri-
vaninha e sobre a mesma depositou, para meu exame, o volu-
moso processo, 
Embora meu propósito, àquela altura, não pudesse ser 
outro senão o de renunciar à designação do magistrado, aquele 
processo exercia sobre mim tão grande fascfnio que não pude 
reprimir a ânsia de examiná~lo, peça por peça. Sofregamente, e 
sem poder explicar a estranha paixá'o que aqueles papéis excita-
vam em meu espírito, fui lendo, linha por linha, o que neles 
estava escrito, e olhando, como se fossem de personagens len-
dárias, as fotos que aqui e ali surgiam por entre as folhas dos 
autos. Não sei ao certo quanto tempo permanecI sentado, nem 
dei conta das pessoas que transitavam pelo cartório. 
A denúncia, cujo inteiro teor eu ainda hoje seria capaz 
de repetir, sem omissão sequer de uma vírgula, continha, em 
resumo, a descrição de que uma dama da atta sociedade, casada 
há mais de um decênio com o acusado,fora encontrada morta, 
com evidentes sinais de envenenamento, havendo o exame de 
corpo de delito constatado a presença de elevada carga de 
T·61 nos despojos da vttima e, entre outras mais antigas, uma 
punctura recentísslma de injeção endovenosa no seu braço 
direito. As demais provas colhidas no inquérito afirmavam que 
a injeção havia sido aplicada pelo próprio acusado, o qual, logo 
a segu!r, retirara·se da mansão e partira para Santos, onde, no 
dia seguinte, foi detido pela polícia, negando terminantemente 
a autoria do crime. Várias testemunhas depuseram no inquérito, 
inclusive a filha da vítima e uma empregada que esterilizara a 
19 
seringa e vira o acu:moo aplicar a injeção. Outros elCll'0rrtOS. do 
processo inforn,Bvam que o réu, apesar de sua notoriedade 
como advogado, era relativamente pobre quando contraiu casa~ 
rnento com a dama assassinada, tendo toda sua fortuna advindo 
desse consórcio. 
As fotos da morta, a despeito do momento impróprio 
em que foram batidas, retratavam uma mu!her de notável bele-
za, beirando os quarenta anos, de expressão p!ácida e risonha, 
talvez por força das características letárgicas do veneno empre-
gado em sua eflminação. 
A denúncia, como é óbvio, imputava ao acusado a práti-
ca de veneffcio doloso, com a agravante de ter sido consumado 
contra cônjuge, e ainda qualificado pelo motivo torpe, o qual 
decorreria de haver Jorge Muniz pretendido, com a ação lutuosa, 
apossar-se da fortuna da mulher. Pedia, em conseqüência, a pena 
máxima, e forçoso era admitir-se, tudo nos autos indicava que 
o acusado a merecia. 
Ê bem de ver que no interrogatório policial e!e sustenta-
ra com bravura a sua inocência, esgrimindo entre outros argu-
mentos o de qúe ninguém seria tão estúpido ao ponto de injetar 
veneno na vítima, estando presentes a flIha da mesma e outra 
pessoa. Na realidade, declarou e!e, a lnjeção aplicada teria sido 
de um sonífero a cujo uso a v{tlma se acostumara, tornando~se 
até mesmo indispensável à sua tranqüilídade, sobretudo nas noi~ 
tes em que ele dormia fora. Esses argumentos, entretanto, caí-
ram por terra com o exame da própria ampo!a da injeção vene-
nosa, onde estava gravado o símbolo clássico da caveira sobre 
as duas tíbias cruzadas e, além disso, com a confissão cabal que 
o acusado fizera em juízo, declarando serem verdadeíras as 
Imputações contidas na denúncia. 
Como eu consumira todo o tempo de expediente do car-
10rlO lendo e relendo os autos, não pude, naquela oportunidade, 
ingressar com a petIção que me excluiria da causa. Por instâncias 
do escrivão que desejava fechar a porta para ir almoçar, devolvi 
finalmente o processo e com a cabeça confusa voltei para casa. 
20 
Não tive coragem de dizer a minha mãe que meus servi-
ços haviam sido dispensados. Ela, também, vendo-me abatido, 
acreditou talvez que o peso do encargo estivesse mortificando 
meu espírito e, bondosamente, não me fez pergunta alguma. 
Mal tinha eu, no entanto, começado a almoçar, quando 
um guarda do presídio bateu à minha porta e me transmitiu um 
recado de Jorge Munlz pedindo meu comparecimento à Casa de 
Detenção, com a ríspida advertência de que eu não me demoras~ 
se porque ele poderia mudar de idéia. 
21 
3 
Voltando a avistar-me com o acusado, já agora a seu pe-
dido e conhecendo quão graves eram as provas de sua culpabili-
dade, senti-me pela primeira vez como seu verdadeiro patrono, 
sem direito a uma desistência honrosa da causa e, talvez por isso, 
minha timidez era bem maior do que na oportunidade anterior. 
Recebeu-me com a mesma apatia, com a mesma expres-
são mórbida de quem luta para sobreviver sem Uma determina-
ção firme, aparentemente aceitando qualquer solução como 
obra fnelutável do destino. 
Logo que me viu sentado, perguntou-me: 
- Que entende o senhor por "Erfolgshaftung"? 
Descrevi com proficiência, expondo, citando e compa-
rando, o que os velhos penatistas alemães sustentavam e os mo-
dernos Impugnam sob e!."Se título, e pergunteHhe se esta deveria 
ser a tese de sua defesa, 
Olhando-me inexpressivamente, respondeu: 
- Não, de forma alguma. Não creio que haja tese para 
minha defesa, A pergunta fOI !anç,ada a esmo, apenas para testar 
seus conhecimentos e saber se o senhor está em condições 
Inte!ectuais de tirar vantagem dessa causa. Sei que tudo está 
perdido e por isto pensei que, quando nada, alguém poderia be-
neficiar-se dos acontecimentos, Acredito que o senhor poderá 
23 
fazê-lo. Não haverá, entretanto, dinheiro algum nessa causa, 
salvo, é daro, a indenização de seu tempo e despesas. 
- Porque o senhor pensa que um processo dessa nature-
za, sem esperança de absolvição, possa beneficiar a um princi-
piante como eu? 
- Se não percebe, desista logo da especialidade, Durante 
dez anos, talvez não haja outro processo igual em São Paulo. 
.Para quem souber tirar proveito, esta causa significa publicidade 
constante, meses a fio. Bastará que eu diga que acredito na sua 
capacidade, para que o senhor passe logo à frente de muitos 
outros que há anos forcejam por uma reputação. 
- Sim. Mas o senhor esquece que a possibilidade de 
absolvição é praticamente nula e que a minha reputação, nascen-
do com essa causa, poderá também ser por ela sepultada, 
- Sei disso. Todavia, enquanto a decisão não for proferi-
da, o senhor centralizará as atenções e irá obtendo êxitos em 
outros processos que compensarão, no julgamento público, o 
insucesso do meu. Além disto, existe coisa muito mais impor-
tante do que a matéria dos autos, que o senhor poderá expandir 
em um romance e futuramente publicar, com enorme sucesso. 
A história do criminoso do ano. As minhas memórias ... 
Interessado. perguntei-lhe: 
- Porque entendeU, finalmente, de confiar-me a causa e, 
ao que parece, já agora muito mais do que ela? 
- Você é tão moço, parece sincero, está começando. , . 
- Muito bem. Agora, se o assunto não !he desagrada, va-
mos estudar em conjunto o sistema de defesa que devo adotar e 
as fontes de prova a que posso recorrer. 
- t: inútil. Não lhe darei nenhum subsídio material ou 
doutrinário sobre a tarefa que o senhor vai realizar e que, desde 
24 
11 ti 
logo, 'fica sob seu exclusivo critério. Dar-lhe-ai, isto sim, uma 
narração completa dos antecedentes que conduziram minha 
mulher ao tümulo e me arrojaram neste presídio, ou, pior ainda, 
no cárcere maisterrfvel que, desde então, aprisiona meu espfrito. 
A história é longa e não pode ser resumida. Contrate uma este-
nógrafa e venha aquí amanhã, que começarei a ditar. 
Ao dizer a última palavra, creio que Jorge Muniz se liber-
tou de algum constrangimento porque sua fISIonomia impassível 
recebeu, ainda que levemente, uma excitação quase similar à 
que estimula o homem normal quando se dispõe a realizar algu-
ma tarefa importante. Chegou mesmo a levantar-se da cama, 
aproximando-se de uma das grades por onde deixou que o 
olhar vagasse pela amplitude do céu coberto de nuvens escuras. 
Despedimo-nos, então. 
25 
4 
Na noite daquele mesmo dia, conversando com minha 
mãe sobre a possibilidade de encarregá-Ia de taqulgrafar a narra-
tiva de Jorge Muniz, estranhei vê-la recusar a tarefa, pois sempre 
buscava serviços com cujos proventos pudesse manter a casa. 
Mais tarde, foi que vim a compreender quais eram seus verdadei~ 
res propósitos, Enquanto estudava, percebi que ela se afastou 
por uns dez minutos, voltando depois com uma jovem vizinha 
que me indicou para executar o trabalho. 
Na manhã seguinte, eu e a moça comparecemos ao presí-
dio. Enquanto ela diligenciava uma posição cómoda para colher 
o ditado, fiquei a observar as condições em que o acusado vivia. 
Surpreendi-me de não encontrar no aposento Um livro sequer. 
No armário, somente uma pasta de couro, cigarros e caixas de 
comprimidos que logo identifiquei como analgésicos e hipnó' 
ticos. Sempre limpo,mas sempre com a barba por fazer, quem 
ali ° visitasse teria a impressão de que eie pouco se locomovia, 
deixando'5€! ftcar em meditação profunda horas a fio, estirado 
ao longo da cama de ferro. 
Depo is dos cumprimentos e da apresentação da secretá· 
ria que ele aprovou com indiferença, Jorge Muniz começou a 
sua narrativa: 
"Rio de Janeiro, tarde escaldante, vinte anos atrás. Eu 
estava sentado, na pensão onde vIvia, em conversa com duas 
amigas que ali também moravam. Ela entrou, à procura de 
alguém. Tinha menos de vinte anos. Elástica, risonha, irradiando 
27 
juventude S, não sei se por peculiaridade exclusiva ou se pela 
representação que dela fiz, as suas formas sensuais cHlu íam-se 
numa expressão de ternura que afugentava de meu pensamento 
qualquer ideação pecaminosa. Sua cabeça loura e seu sorriso 
alvinitente semelhavam-se a uma lâmpada acesa. Essa primeira 
impressão soldou-se em minha mente, embora sem provocar a 
ânsia de aproximação que o seu porte, a sua afabilidade, a sua 
graça e a minha juventude justificariam. 
"Naquele tempo, estava eu ainda no segundo ano do 
curso de Direito, ensinava idiomas para manter-me e vivia mise-
ravelmente naquela pensão, sem desejar empolgar·me em dema-
sia com impulsos amorosos, para não comprometer a minha 
carreira, trágica ambição que eu não tinha forças para colocar 
em segundo plano, Mas, de qualquer forma, aquela primeira 
visão fixara-se tenazmente em meu esp ír/to. 
"Uma ou duas semanas após já éramos amigos, já nos 
beijávamos, já nos queríamos muito mais do que na realidade 
nos convinha, porque o nosso passionalismo tendia a precipitar-
nos em um casamento precário que eu não poderia defender e 
conservar a não ser abdicando de meu futuro, Fosse eu dotado 
dessa virtude que a maioria dos homens possui de obedecer 
impensadamente aos reclamos do coração, sem alarmes premo" 
nitõrios, e tudo teria sido fácil. Teríamos sido mais felizes, ela 
hoje não estaria morta e eu não estaria aqui. Entretanto, como 
já avencei, sempre me perseguiu um sentimento de que adestran-
do minhas forças intelectuais a vida fluiria para mim mais tran~ 
qüila, sem tropeços, sem vexames e humilhações. Terrível enga-
no. Hoje posso comprovar. À medida que a gente se ilustra, var 
distendendo as cordas da sensibilidade e essa tensão permanente 
provoca do!orosas vibrações do espírito, submetendo nossos 
nervos e as fibras de nosso coração a roturas inelutáveis. 
"Porém, como naquela época eu assim não entendia, 
evitei abismar-me em um casamento suicida, ma!grado amasse 
perd ida mente aquela mulher e não tivesse dÚVida alguma de seu 
amor por mim. Embora não goste de esmiuçar ororrências mate-
riais quando exponho alguma coisa, porque aprendi que elas não 
28 
retratam com fidelidade a vida, que melhor se compreende atra-
vés da avafiação de seus transes emocionai.>, an ímicos, sentimen·· 
tais, é preciso que eu mencione alguns fatos de nosso relaciona· 
mento, para que se saiba que realmente nascemos um para o 
outro e que uma misteriosa fatalidade teria que, mais cedo ou 
mais tarde, unir as nossas vidas, mesmo ao preço de nossa des-
truição futura. 
"A primeira intuição que tive da estranha força desse 
desígnio ocorreu dois dias após o nosso encontro inicial, porque 
tendo-a perdido de vista, não sabendo seu nome e endereço e 
não querendo ainda investigar a respeito, exatamente por temer 
o seu encanto, quis o acaso que em cidade tão populosa nos 
encontrássemos a pouca distância um do outro, quando acende-
ram as luzes de um cinema que estava com a sua lotação quase 
esgotada. Como se isso não bastasse, era carnava! na semana 
seguinte, e eu, entendendo como Schopenhauer que a quantida-
de de ruído que o homem suporta é inversamente proporcional 
à sua inteligência, aceitei um convite de meu professor de Direi-
to Penal para passar com ele aqueles dias turbulentos em Teresó-
polis, então uma vila, a fim de auxiliá~lo na tradução de textos 
que ele teria de citar em uma .obra que estava escrevendo, Por 
inacreditável que pareça, naquela mesma casa onde eu estava 
trabalhando com o mestre, ela apareceu à noite para juntar-se 
às filhas do professor, suas amigas, e irem a um clube local. Sem 
que combinássemos coisa alguma, sem que soubéssemos previa-
mente onde um ou outro poderia estar, acabávamos sempre jun+ 
tos, como se alguma força sobrenatural nos aproximasse, ou 
melhor, como se o espaço-por si mesmo se encurtasse para com-
portar finalmente apenas nós dois, num processo de exclusão 
progressiva que reduzia cada vez mais o número de outras pes-
SOaS em seu âmbito. 
"Menciono este pormenor, porque, como se verá, a nossa 
vida foi sempre vincada de despedidas e regressos, extremamen-
te emotivos e dramáticos. Por mais que contra nós conspirassem 
as contingências externas, o fato é que presos um ao outro pelos 
llames do sentimento, pela atração sensual e pela lrmanação do 
espírito, sempre voltamos a nos encontrar quando tudo parecia 
29 
des"truído, e nínguém, nem mesmo qualquer de poderia 
admitir com segurança que o nosso amor pudesse reviver com a 
mesma, e quiçá com mais intensidade do que naquetes anos ma~ 
ravilhosos de nossa juventude, 
"Quanto a mim, e estou certo de que com ela ocorria 
algo semelhante, o estranho magnetismo que me subjugava como 
a limalha ii ponta imantada, decorria de um sentimento perfeita> 
mente dosado de ternura e atração Instintivas, estimulado pela 
tranqüilidade, pela desambição das COisaS materiais e pela con+ 
fiança que ela me inspirava, Quando estava longe dela, mUitas 
mulheres me pareciam sedutoras, 'graciosas, apetecíveis; provo-
cavam em mim desejos, gratidão, simpatia ou piedade. Entre-
tanto, nenhuma, absolutamente nenhuma, me inspirou jamais 
todas essas sensações ao mesmo tempo, nem despertou em 
mim aquilo que, hoje eu entendo, determina a submissão vo!un-
tária de um homem a uma mulher, ou seja, o sentimento de ad-
miração, quando abarca ° corpo e o espfrito, 
"Muito teria eu a dízer em torno de nossa vivêncfa nessa 
primeira fase de vinculação amorosa, para retratar fíe!mente a 
intensidade de nossas relações, Resumindo, direL apenas que os 
grandes momentos de nossas vidas eram aqueles em que nos 
encontrávamos, e que embora nos desejando avassaladora mente, 
mantivemo-nos, durante todo esse tempo, na mera expectativa 
de nossa união futura, Ela, certa de que nos casaríamos, e eu 
acreditando também nessa possíbilldade, mas temendo que as 
solicitações da cidade tentacular, agravadas pela nossa pobreza, 
pudessem desnaturar depois, degradando intoleravelmente 
aquilo que eu reputava um milagre da lrmanação humana e que 
eu não poderia, de forma alguma, arriscar à influência deletéria 
do amblente, Amando·3 acima da satisfação dos meus desejos, 
preferia perdê-Ia antes de possur·!a, a ver depOIS destroçado o 
nosso lar pelss contingências de minha própria vocação, de 
mInha inaptidão para perseguIr o dinheiro, e sobretudo, de 
minha inflexível probidade, que não admitiria a lmo!açEo da-
quela mulher em meu benefício e, porque não reiterar a confis-
são, a renúncia ao meu progresso espiritual através do estudo, 
como teria sido forçado a fazer, caso assumisse, naquela época, 
os encargos de família. 
30 
"Achava"me, assim, confinado nos angustos limites do 
dilema deterao meu 1300, como esposa, a mulher que eu amava, 
sacrifkando minha carreira ou imolando aquda em favor de'i>ta 
última, Mas, dos pratos da baiança, o que mais pesava era real~ 
mente aquele em que eu colocara a mulher querida. Fata tmente, 
com mais um ou dois meses, teria eu caído em seus braços e 
esta história tomaria outro curso, não fora o e'fetivo ingresso do 
Brasil na segunda guerra mundial, 
"Com a mente confusa, procurando a verdade sem saber 
onde encontr.í-la e animado pelo espírito de aventura, próprio 
da mocidade, não me esquivei, como poderiater feito, à conscri-
ção miHtar, e ansiando por baralhar as cartas de modo a saber o 
que realmente desejava, v(-me certa noite navegando em rota 
secreta. 
"O que fola nossa primeira separação, os jornais cinema-
tográficos da época colheram por toda parte, sobretudo nas 
estações ferroviárias da França e nos portos da Inglaterra, proje-
tando por todo o mundo ° adeus dos jovens que se separavam 
de suas noivas para a imersão no desconhecido. Crelo, todavia, 
que em nenhuma daquelas reproduções vi tanta ternura, tanta 
confiança e tanta emotividade, como nos beijos que trocamos 
na hora da despedida, 
"Naque!a viagem, vendo ac1ma o céu e embaixo o mar 
também infinito, sem pontos de referência, durante dias lntar" 
mináveis, selítario entre milhares de companheiros, seguiu-me 
sempre com sua presença dolorosa, pertinaz e envolvente, a 
lembrança daquela que eu deixara, 
"Os fatos da guerra são muito conhecidos, Sobre o que 
não se fala ê que vou dizer alguma coisa, não para ilustrar a 
quem quer que seja, mas, tão somente, para explicar as mu" 
taçêles de que foi sendo vítima o meu espírito, até evoluir para 
o estágio atual que, a despeito da situação em que me encontro, 
constituiria um património predos(sslmo para quem dele pu-
desse ut1!1zar-se, ambiclonando ao menos viver, coisa que hoje 
seria frontalmente oposta aos meus sinceros desejos. 
31 
"Eu que, já na vida rotineira do Rio, considerava um 
risco ca!culado, mas sobremodo excessivo para nós ambos, a 
vinculação matrimonia!, quando assisti na Itália vilipendiada 
pe!a guerra, à inversão total de tudo que aprendera como sendo 
a expressão mais nobre da conduta humana, comecei a desen-
cantar-me das normas de cultura vigentes e passei a dar nenhum 
apreço à moral familiar, que eu vira rebaixada ao nível. d~ ';l0ral 
dos cães nas cidades anteriormente ocupadas pelo inimIgo e 
posterior'mente exploradas pelos aliados vencedores. 
"Meu primeiro contata com a realidade socia! i~posta 
pela guerra àquele pa ís adorável, relicário de todas as manlfesta-
côes da arte e da cultura, excedeu de muito, em seu impacto ~rrasador a todas as revelações que me tinham sido transmiti-
das pela 'leitura de novelas sobre a situação a que se reduzem 
certas comunas em épocas de calamidade pública. Fora dos 
acampamentos, dos quartéis e hospitais, some~te um~ minor!a 
insignificante desfrutava a certeza de que no dIa segumt~ tena 
o que comer. A imensa maioria da população, nas Cidades 
abertas, perambulava pelas ruas e pelas praças sem ter o que 
fazer, ou melhor, espreitando a oportunidade de prat.icar 
assaltos receber esmolas do estrangeiro ou a ele prestar servIços lndecor~sos. Os homens transitavam aos magotes pelas avenidas, 
sujos, barbudos, sem rumo certo, COm suas faces esquálidas 
expressando angústia ou desespero. As crianças viviam de peque~ 
nos furtos ou acompanhavam os marinheiros e soldados, dos 
quais conseguiam, com sua insistência, arrancar bastões de cho-
oolate, cigarros, goma de mascar e outros produtos inexistentes 
na terra, que vendiam por alto preço aos que lhes podiam pagar. 
As mulheres, de todas as idades, desde as mocinhas até as mães 
de família, prostituíam·se por um ou dois maços de cigarros, 
sem oposição de seus pais ou maridos que, moralmente arrasa-
dos pelas contingências da catástrofe, não viam outra solução 
para a sobrevivência delas. Em qualquer bar ou restauran~e ~m~e 
os militares se encontrassem, ao seu redor e a prudente dIstanCIa 
agrupavam·se homens válidos, espreitando o momento em que 
eles atirassem ao chão os cotos dos cigarros que fumavam, para 
apanhá-los vorazmente, apagando a brasa, rompendo o invólu-
cro de papel e guardando cuidadosamente em pequenas latas o 
32 
resto de fumo que houvesse, para posterior feitura de novos 
cigarros. Estes eram a moeda que resistia à inflação. 
"Lembro-me como hoje, de que uma vez, em dia de li-
cença, transitando por uma avenida em Trieste, uma mulher de 
aparência razoável precipitou-se sobre mim fincando as unhas na 
minha túnica e fazendo súplicas delirantes por uma ajuda qual-
quer. Tal foi o tumulto que ela produziu que uma patrulha 
inglesa de ocupação veio em meu socorro, forcejando por tirá-Ia 
de meu corpo sem que ela atendesse. malgrado as ameaças que 
lhe faziam. Eu, de minha parte, tentando ampará-Ia, protestei 
contra o emprego de violência, mas eles não me deram ouvidos 
e com ela se foram para não sei onde. 
"De outra feita, ainda condicionado pelas cautelas que 
em nosso País todos tomam em casos dessa natureza, segui à 
distância uma linda moça cuja aparência angelical não prometia 
mais que um simples namoro. Ao chegar em determinado loca! 
cujo asfalto estava marcado por um traço branco, tendo ao lado, 
em letras bem visíveis, a advertência "no traspassing", ela me 
fez sinal para que a seguisse de qualquer forma. Chegando a 
uma daquelas casas tipicamente italianas, com escadaria de már-
more desgastado e cheirando a cemitério, subimos juntos. De-
pois da porta única, alcançamos um segundo andar, passando 
por uma escada de madeira que rangia assustadoramente sob 
nossos pés. Era uma habitação coletiva e a moça bateu com fir-
meza na porta de um dos quartos. Um ancião veio abri-Ia. Ao 
ver-nos, voltou-se para a larga cama que tomava quase todo o 
aposento e humildemente, com suas mãos trémulas, estirou o 
lençol que sobre a mesma estava enrugado. Depois, de cabeça 
baixa, fechou a porta e disse que ficaria esperando do lado de 
fora sentado no degrau da escada. ImpressIonado com a ocor-
rência, expliquei à moça que o velho tinha provocado em mim 
uma influência inibitiva e que, por isso, eu preferia ir-me embo-
ra, Ela, risonha, desembaraçada, não me entendendo bem, ten-
tou dissipar minha g!aciaJidade, assegurando-me que o ancião 
era seu pai e que eu poderia ficar tranqüilo porque ele não im-
portunaria. Um sopro mais frfgido ~assou pelo meu.cor~ e eu, 
para surpresa de minha companheira, dei-lhe o dinheirO que 
33 
usualmente se pagava às mulheres da pro"ftss,-50, retirando-me do 
quarto sem tocá·!a. 
"Em Outra oportunidade, encontrando um camarada de 
farda em um restaurante ao ar livre, acompanhado de um casa!, 
sentei~me ao seu lado e comecei a beber com eles. O par me foí 
apresentado como sendo marido e mulher. Mas, a certa altura da 
palestra, o meu companheiro, mais experimentado com os uros 
da terra e nâo sofrendo dos escrúpulos que sempre me inibiram, 
fez abertamente ii mulher uma proposta de conjunção cama! e 
ela automaticamente a transmitiu ao esposo, que não estava 
atento porque conversava cOI'lligo, r:. claro que o sangue me fu-
giu do rosto, tanto peJa situação lns6!íta em que meu colega Se 
precipitara, COmo peja expectativa de uma reação violenta por 
parte do marido ultrajado, Ao contrário, porém, dessa conse-
qüência, o que vi f.Ql o esposo concordar passivamente com o 
conchavo, estabelecendo, todavia, para que o mesmo frutificasse, 
um preço mais alto que o usual. 
"Posteriormente, estando bebendo vinho e escutando 
canções napolitanas em uma casa noturna, fui, depois de algum 
tempo, inquirido pela gerente se não desejava uma companhia. 
Ajudava pela copa uma menina de aproximadamente doze anos 
de idade. Para conferir até que ponto chegara a degradação mo-
ra! daquele povo, disse-lhe que apenas poderia inten,Jssar"me 
pela criança, A mulher respondeu que eu estava querendo o 
impossível, porque ela não podia vender uma "bambina" e 
afastoL!-se aparentemente desapontada, Mas, passados alguns 
minutos, vendo que eu a nada me determinava, encaminhou',se 
decididamente para mim e aceitou a proposta por um preço que 
para ela seria alto, mas que eu podia, se quisesse, pagar na 
hora. Creio, porém, desnecess.:1rio dizer que apenas anote( men-
talmente o fato, não me deixando degM3dar com a experiência. 
"Em outra ocasião, vi também um homem exibir sua 
esposaa alquns mHitares, forcejando por negociá-Ia para fins 
sexuais. Havendo um dos assediados dito grosseiramente que a 
mulher não era bonita, o marido empolgou-se e, com a insistên-
cia de um corretor de títulos, dlst.'Orreu sobre as virtudes carnais. 
34 
da esposa, aduzindo, para maior efictida da propaganda, que ela 
havia sido amante de um genera! fascista. 
"Por fim, um outo evento de muito menor gravidade, 
que apenas vou mencionar para que não pensem que eu era um 
puritano e saibam que só me sentia realmente chocado ante 
fatos brutalmente contrários às leis da natureza e aos prfocfplos 
básIcos da moral sedimentada no decurso de séculos de civiliza-
ção. Já retornava ao acampamento, à hora de recolher, Quando 
encontrei no percurso uma jovem tentadora. A seu convite, 
acompanhei-a através de uma rua parcialmente obstru {da por 
crateras de bombas que algum avião solitário lançara perversa· 
mente sobre a cidade aberta. Chegamos ii casa, onde também 
residia uma irmã de minha acompanhante. A noite era de calor 
ardente e como não se podia dormir, eu, na larga cama, deitado 
entre as duas, a passei em claro, saindo de uma e entrando na 
outra, até o alvorecer, que naquela época do ano, isto é, na ple-
nitude do verão, alf OCOrre por volta das três ou quatro horas da 
madrugada, Isso me valeu quinze dias de prisão e a minha pri· 
melra doença venérea. Mas, felizmente, jã existia então, embora 
disponfvel para nós apenas, o antibiótico que ainda se usa nesses 
casos, de modo que, sem sofrimento algum, curei-me em poucas 
horas. 
"Como se poderia argumentar que essas experiências 
não retratam com fldelidade a decomposição mora! daquele 
povo, porque eu teria lidado apenas com 85 camadas mais baixas 
da sociedade, apresso~me em lembrar que uma das oonseqüên> 
elas primárias da guerra, entre os vencidos, ê exatamente a liqui· 
dação da solidariedade humana e o nivelamento de todos em 
sua degradação. Ali, de fato, não havia mais sociedade alguma. 
Apenas, esgueirando~se um pouco acima da massa, alguns espe-
culadores que se endqueclam com o contrabando, com ° câm-
bio negro, com o penhor, e com a agiotagem estimulada pela 
fragorosa desvalorização da moeda. t possível Que em toda a 
Itália, umas poucas fmn(!las de recursos i!im·ltados e residentes 
em lonas não pisad2$ pelo tacão tedesco, houvessem atravessa-
do incólumes os vendava is da tormenta. Mas, simples gotas no 
oceano de infortúnios em que imergira todo o povo, essas 
35 
f~mrnas é que não poderiam servir de exemplo, com relação à 
dIátese gera! de que enfermava o país. 
. "Além disso, essa minha experiência era muito inexpres-
sIVa se comparada com a cruel realidade, como vim a registrar na 
memória, ainda durante a minha permanência alI', através dos 
depoimentos daqueles que haviam servido na ocupação de 
outros países, ou dos que recolheram dados precisos sobre a 
invasão dos territórios da França e da Polónia. Na própria Ale-
manha, .sobretudo em Hamburgo e Bremen, segundo testemu-
nhos reIterados, andava-se horas seguidas sobre a neve, entre 
ruínas de cujos escombros surgiam mulheres vestidas de farra-
pos negros, para atacarem virtualmente os soldados tentando 
negociar o corpo por qualquer coisa. Em resumo, o que eu vi, e 
note-se que não me refiro ao inevitável, isto é, às esposas e filhas 
deixadas em Varsóvia e Berlim que foram estupradas vinte vezes 
por noite pelas tropas russas, bastou para que eu compreendesse 
que a família, como a entendemos, é planta que só viceja em 
condições muito favoráveis e que seu apodrecimento é processo 
naturalissimo, tão logo a fome sobre ela se abata. Também não 
me reporto às ações indignas que foram provo-cadas pelo terror, 
como, entre exemplos multifários, a entrega das esposas judias 
aos crematórios nazistas, efetuada pelos próprios maridos, 
quando estes, nos raros casos em que não eram judeus, assim 
podiam acobertar-se das iras daquele abominável regime. Men-
ciono apenas aquilo que eu vi em época de anormalidade tole-
rável, quando a violência não mais imperava e já seria exigível 
um comportamento social que não proclamasse a todo instante 
que todos nós somos porcos, em busca apenas de um pretexto 
para chafurdarmos na lama de nossa degradação. 
"E fácil entender que avassaladora influência esses fatos 
exerceram em meu espírito, já antes atormentado pelas dificut-
d~des de construir para mim e para a mulher que eu não esque-
CIa, um abrigo invulnerável às agressões da sociedade. Dir-se-â 
que se todos assim raciocinassem, nada na vida seria feito. Hoje 
concordo com esse argumento. Entretanto, não custa repetir 
que eu já então possu ia de mim mesmo um conceito exacerbado 
de valorização pessoal, nada existindo Com potencialidade capaz 
36 I 
I 
I 
de fazer-me imitar aos outros em sua vivência de irresponsabili-
dade ou deboche. Sabia como vegetavam ,10 Rio casais eufóricos 
de jovens apaixonados, constritos a habitações coletivas, sujeitos 
à promiscuidade com os adultérios e torpezas dos quartos vi-
zinhos, bem como ao fascínio das grandezas materiais dos que 
monopolizavam o dinheiro, estabelecendo entre aquelas vidas 
frustradas e a ostentação dos ricos, a chocante contradição que 
se observa ao comparar os "slums" londrinos e os pardieiros do 
East Side americano, com o conforto e a exuberância das man-
sões de Pai! Ma!1 ou da Park Avenue. 
"Ainda naquela época comecei também a achar proce-
dentes as contorsões subterrâneas do povo revoltado, que mais 
tarde eu víria de armas em punho nas montanhas da Grécia, 
tentando desesperadamente derrubar a monarquia, uma das 
poucas remanescentes, para substituí-Ia de um salto pelo regime 
ainda mais cruel da foice e do martelo. Mas, COmo não é minha 
pretensão inflar esta narrativa com questões políticas e sim con-
finar-me à análise dos elementos de causa e efeito que determi-
naram, depois de tantos anos de labor incansável, a minha queda 
vertiginosa, não voltarei mais a este assunto, para que possa me 
dedicar apenas à exposição dos antecedentes que culminaram na 
morte de minha mulher. 
"Como já disse, eu que partira em busca da interpreta-
ção de mim mesmo, mas ansiando por pretextos que vencessem 
as minhas hesitações, pois que a falta daquela mulher me tortu-
rava como se minha alma houvesse fugido na hora do embarque, 
passei a exercer tirânica repressão sobre minhas forças impulsi-
vas, intensificando as frenadora!; que cedo tomaram conta do 
meu psiquismo, anu!ando-me a volição, malgrado a lembrança 
da indiz{vel felicidade que aquela mulher me dera com sua bele-
za, com sua tolerância, com a doçura do seu sorriso, com seus 
beijos, com suas lágrimas de alegria, de ternura ou tristeza, Clue 
eu enxugava, ainda em seus olhos, com os meus lábios trémulos. 
"Finalmente, com essa tremenda carga de experimentos 
a oprimir-me o coração, regressei ao Rio depois de uma ausên-
cia de quase dois anos daquela mulher que, para mim, absorvia 
37 
toda a cidade, Bcrn escassa fora a correspondência que trocára-
mos, mas eu tinha a certeza de que a encontraria ii ,ninha espera, 
com a alma desimpedida de qualquer ilusão estranha." 
38 
5 
"A descrição de nosso reencontro, se eu me propusesse a 
requintar esta narrativa como o escultor burl!a a sua estátua ou 
como o pintor retoca a sua paisagem, impediria que estas memó-
rias se- encerrassem no curto espaço de tempo de que ainda d IS" 
ponho. Expansão repentina de toda a carga de ansiedade que 
comprimfamos em nossos corações, quando nos vimos e nos 
tocamos depois de tanto tempo, uma levitação milagrosa ergueu 
aparentemente os nossos corpos, fazenóo-Qs caminhar lado a 
fado, sem sentirmos se nossos pés tocavam a calçada, as vezes 
correndo, sem destino certo, sem qualquer objetivo racional, 
como se a intoxicação de euforia nos houvesse suspendido por 
sobre a terra, numa volatHlzação semelhante àquelaque mais 
tarde experimentef ao socorrer-me da morfina, visando esque-
cê-la ou, quando nada, acolchoar a dor de sua ausôncia. 
"Mas, como ao cessar a vindima é impossfvef afastar o 
amargor da ressaca, depois daquele encontro, o esprrito de cen-
sura que em mim, mais do que nos outros, sempre esmagou o 
instinto e as paixões dete decorrentes, voltou a atormentar·me, 
já agora com as visões sombrias da Europa envilecida, que agra-
vavam a minha angústia de não dispor de recursos para definir 
com um m Coima razoável de segurança a nossa situação, 
"Tinha: eu pela frente, como já disse, o curso que ansIa-
va completar, não como fazem os moços que se formam, mas 
como quem deseja dominar realmente a ciência que estuda, 
Essa tarefa que eu me havia imposto e que já se integrara à 
minha personalidade, reclamando o seu dgoroso cumprimento, 
39 
não era, pois, coisa que se realizasse mediante simples obediên-
cia ao regime 'formal das 8r'..adem!as. Eu precisava de tempo, de 
tranqüi!idade, da concentração exclusiva de minha mente na 
pesquisa dos princípios e das doutrinas com que pretendia subli-
mar o meu espirito e alçar-me por sobre os outros indivíduos 
dedicados ao mesmo labor. 
"Embora já fosse bem razoável o acervo de conhecimen-
tos que eu então possuía, para lograr sem socorro exógeno 
algum êxito na sociedade, o fato é que, para dominar o pequeno, 
mas seleto mundo em que desejava pontificar, eu, realmente, 
não sabia coisa alguma. Versava, de fato, certas matérias ele-
mentares e, como já disse, ensinava idiomas. Mas, para chegar 
onde desejava, dez anos de estudos sérios não bastariam, como 
mais tarde comprovei. Tinha que saber, praticamente de memó-
ria, desde os textos b Iblicos até a prosa de Ruy I passando pela 
mitologia, pelo direito romano, pela história dos povos mais 
remotos, peja imensa literatura francesa, pela poesia britânica, 
pela sociologia, peja metafísica, pela lógica e pela dialética, pela 
psicologia e pela psiquiatria, pela biografia e pelos discursos dos 
grandes oradores, pelo conflito religioso que ensangüentou a 
Idade Moderna, pelo iluminismo dos enciclopedistas que alicer-
çou a Revolução Francesa, pela supressão da burguesia em vários 
países, pelas lutas de classes desde o começo do tempo, pela 
derrocada dos mitos mais antigos e pela entronização de outros 
e, finalmente, ainda no círculo vicioso da história, pela submissão 
do proletariado aos seus próprios filhos, isto é, à nova classe de 
revolucionários profissionais que emergiu de sua atlvidade sub-
terrânea para alçar-se com mão de ferro ao poder. 
HÃ margem de tudo isso, a aquisição de uma cultura 
universal, abrangente dos princípios básicos de todas as ciências, 
das noções fundamentais de todas as artes e ° exercício cons-
tante de minhas faculdades intelectivas nos ampl (ssimos ramos 
da filosofia, da exegética, da literatura, da oratória e da retórica. 
E, além de todo esse alicerce, aínda as matérias de minha ambi-
cionada especialização, que deveriam ser estudadas com prima-
zia, isto é, direito penal, processual e penitenciário, medicina 
legal, jurisprudência, dogmática, criminologia e criminal(stica. 
40 
Um mundo de livros, uma tremenda tensão do raciocínio e um 
permanente exercitar da palavra para dar à minha prosa, escrita 
ou falada, o poder da doutrinação filosófica, aliado â harmonia 
poética e â penetração musical. 
"Se for oonsíderado que naquela época eu não tinha 
dinheiro, era obrigado a trabalhar para sobreviver e não podia 
renunciar ao amor daquela mulher com quem precisava casar-me 
imediatamente, entender-se-á o conflito devastador que lavrava 
em meu psiquismo e quão inatingível era a meta de minhas 
ambições. Mais uma vez, repito para a perfeita compreensão do 
problema, que minha situação não se resolveria com a simples 
graduação em um curso superior. O meu caso semelhava-se ao 
daqueles poucos indivíduos que, em todas as épocas e em todos 
os pa(ses, acreditam que são dotados de atributos excepcionais 
para rea[jzarem dentro de si mesmos a síntese da sociedade. 
Enfermava do bacilo de Nietzsche, sem entretanto permitir que 
minha mente fosse dominada pela crueldade de sua brilhante 
doutrina. Não seria eu ° super-homem no sentido de submeter 
os outros ao meu impiedoso domínio, mas, fazia questão cerra-
da de superar a todos eles em conhecimentos, em ilustracão em 
finura e em bondade. . , 
"Se houvesse me precipitado no casamento, como meu 
instinto reclamava, teria sido, talvez, sensual e poeticamente 
'feliz. Mas, a agitação da cidade esmagadora e a caçada perma-
nente ao dinheiro, teriam frustrado a minha personalidade 
naquilo que ela possuía de mais recôndito e insopitáve!, isto é, 
a ânsia de saber e de sublimar o meu espírito, extraviando-me 
do gado humano que se aglomera pelas metrópoles, condicio-
nado aos estímulos materiais da nutrição, da libido e dos pobres 
triunfos da acumulação monetária. Eu era vítima, portanto, de 
uma ambição infinitamente maior do que a daqueles que por 
dinheiro vendem a própria alma. O que eu queria era muito 
mais. Era enriquecer por dentro, de modo a poder amar a minha 
companhia mais do que a dos outros. Era em suma, nada menos 
do que a louca ambição de apresar o mundo Inteiro nas asas do 
espírito, 
41 
"Entretanto, a deflníção do roteiro de rninha \,lida, devo 
confessar, niro foi, como se poderia supor, no sem ido do SJcer-
clócio intelectual ii que me propunha. Multo ao contrário, B ver-
dade é que aquela mulher já flu ía pelas minhas artérias, e o mais 
que a mlnhB estranha dependêncla para com ela podia conceder-
me era a busca de uma situação conciliatória em que, sem per-
dê-Ia, eu também pudesse atender aos redamos de minha índo-
le, obedecendo simultaneamente à sua radloatívidade e ao espf-
rito de censura ou supereHo freudiano, que nada me deixava 
fazer impulsivamente. 
"Depois de multo considerar em torno do dllema e 
compreendendo que qualquer esco!ha deixada o problema inso-
lúvel, porque uma alternativa me tiraria ° vinho e a outra me 
quebraria a taça, resolvi passar alguns dias em minha terra, a 
fim de avaliar as possib Hidadas de uma reaproximação com meu 
pai, pequeno comerciante em Pandora, que a despeito das diver~ 
gênc!as ideológicas que sempre nos separaram, tinha por mim 
uma admiração desmedida, acreditando-me um verdadeiro gênio 
a, em conseqüência, ambicionando tenazmente que eu abando, 
nasse a vida inquieta que levava e me dedicasse a estudos pro~ 
fundos, missão cujo. êxito ele antecipava com indísfarçável orgu-
lho ante todas as pessoas com quem falava a meu respeito. 
"A esta altura, e para melhor compreensão de minha 
personafidade e dos antecedentes fam1fiares que a forjaram, é 
preciso relatar que quando de meu nascimento a minha famnia 
desfrutava de relativa abastança, sendo minha mãe muito jovem, 
de beleza peregdna e alguma cultura, enquanto meu pai era um 
homem franzíno, um tanto recurvado, de vivência metódica, 
dedicado a produzir d;nheiro e conservar, peio conforto e pela 
Vigilância, a extraordinária mulher que a fortuna lhe proporcio-
nara, Por isso, a nossa casa, enorme como já não mais se cons-
trói um daQueles casarõeS da época da col6nia, que hoje consti· tue~ atração turística da cidade de Pandora, ilumim.lVâ"se quase 
semanalmente para recepções socials em que se discutia sobre 
todos os assuntos e onde eu, com apenas quatro anos de idade, 
fazia papéis dec!amatórios e outras representações teatrais ao 
gosto da época. Impressionado com minha aparente precoddade 
42 
que, de fato, não era mais que o resultado do intenso treina-
mento a que minha mãe me sujeitava, tal':ez para dlstrair~se do 
desamor que sentia por meu pai, foi que ele concebeu ti hipó-
tese de minha genialidade e se empenhava por desenvo!vê-la a 
todo custo, 
"Ocorda, entretanto, que ao lado dessa disposição para 
comigo, crepitavaem nosso lar a chama da discórdia, e eu, des::'8 
cedo fui testemunha de conflitos dramáticos entre meu pS! e 
minh'a mãe a pretexto de ciúmes que ele não podia controlar, 
talvez em face da plena consciência que tinha de sua inferior]·, 
dada física em relação a e-ta, da huml!hante dependência amoro~ 
Si! em que se achava e que, até hoje, ainda se percebe, lhe perdu-
ra no íntimo. A propósito, lembro-me de que. " :' 
Ao chegar a esse ponto, Jorge Munlz fo'l forçado", inter-
romper a sua exposição, porque ° carcereiro 6?trara. com o 
almoço. O!hando com desdém para o que lhe traZiam, disse-me: 
- Habituei-me a reduzir ao indispensável a minha alimen-
tação" t. um processo que adoto há vários anos, Se niJo fumasse, 
crelo que poderia passar, insensivelmente, três dias sem comer. 
Vocês, entretanto, são multo moços e devem viver normalmente. 
Por isto, n50 os detenho, 
levantou-se da cama onde permanecera recostado, apriu 
uma pasta de couro, retirou um talão de cheques, e com a can~e­
ta que a estenógrafa estava usando, preencheu com a mao 
esquerda uma ordem de pagamento que me entregou, sem que 
eu a olhasse atentamente. Na reandada, eu também poderia 
dispensar o almoço para continuar ouvindo aquela narrativa. 
Mas, como estava acompanhado, precisei retirar-me para levar a 
moça até a sua casa. 
Quando já estava no ônibus, abrindo a carteira para p~. 
gar o transporte, re!anceei os o!hos pelo cheque de meu cr:nst!" 
tuinte e tive a emoctonante surpresa de ver que a quanhl no 
mesmo consignada cobriria regiamente o serviço da secretária 
e alnda daria para que eu e minha mãe, dentro do frugaEssimo 
43 
padrão de vida a que estávamos acostumados, não nos preocu-
pássemos com dinheiro por mais de um ano. Talvez peio estímu-
!o da ocorrência e pelo sentimento de orgu!ho que de mim se 
apossou, antecipando a satisfação com que minha mãe receberia 
aqueles meus primeíro5 honorários, comecei a rir e a conversar 
com minha secretária, estabelecendo com ela uma aproximação 
mais íntima e desembaraçada, 
Eu sei que quando a gente tem pouco mais de vinte anos, 
a aparência do sexo oposto é tudo ou quase tudo, mormente 
para quem, como eu, desde menino, vivera encerrado em casa e 
nunca tivera recursos para freqüentar, como muitos de meus 
colegas de Faculdade, as samaritanas que dessedentam a juven-
tude e animam a velhice a protelar a humilhação da aposentado· 
ria. Nessa fase, é comum a gente mentalizar formas esculturais e 
associar as aproximações femininas com a possibilidade de uma 
fusão rec(proca ao calor de um amplexo sensual. Para a juven-
tude a mulher é a fêmea. Se não é desejável, não tem prestígio. 
Não existe como mulher. Dificilmente, portanto, uma jovem 
sem caracterfsticas peculiares, ainda que não típicamente afro-
disíacas, poderia despertar em um moço como eu era naquela 
época, sentimentos de aproximação mais intensos que os da 
fraternidade. Não sei, pois, qual foi a razão por que a minha 
secretária eventual, de óculos, sem pintura e sem malícia, come-
çou a ocupar algum espaço no âmbito de minhas idéias, de mo-
do a provocar em mim uma sensação de apego, enquanto nos 
aproximávamos de nossas casas, Do que falamos então, já não 
me lembro, e isto se me afigura como maiS uma prova de que 
meu bem estar era completo, Quanto a ela, eu sei que se lembra 
de tudo e poderia reproduzir ainda todos os meus gestos e até 
mesmo a entonação de minha voz, 
Quando chegamos, ela me disse que não demoraria e que 
logo poderíamos retornar ao presídio. Entrei pelos fundos de 
casa e descobri minha mãe, como sempre, atarefada na cozinha, 
Desde a soleira, eu avançara nas pontas dos pés para não fazer 
ruído, e tive a sorte de encontrá-Ia de costas e poder, com um 
movimento rápIdo, espalmando-a pelos ombros, Virá-Ia de frente 
e puxá-Ia para mim. Ela, que não estava acostumada a essas 
44 
efusões, ensaiou uma cena de artificioso protesto, entre risos e 
censures. Exibí-Ihe o cheque, embora sabendo que ela, sem ócu~ 
los, não poderia ler ° que nele estava escrito, porém certo de 
que avaliaria a importância do documento. Mas, ao invés de me 
fazer perguntas, como eu supusera, ela continuava a protestar, 
dizendo que estava atrasada no almoço e que lugar de homem 
não era na cozinha. 
~ Pois bem. - disse-lhe. ~ Aítambém não é o seu lugar, 
e de agora em diante você vai ter uma empregada. 
- Para que serviço? 
~ Para esse mesmo. Mas não pense que vai ficar desfi· 
!ando pelas avenidas, sorvendo chá com torradas ou passando 
todo o tempo nos teatros. Você vai ficar é comigo, cuidando de 
processos e arrumando as minhas petições, a não ser que já 
tenha esquecido o que meu pai lhe ensinou. 
Rindo-se, ela inquiriu: 
- Já tem tantos clientes assim? Ou será que você não 
quer fazer nada? Acostumou-se 'a estudar, comodamente recos-
tado, e acha que tudo o mais é desprezível. Não deixa de ter 
alguma razão. Eu sou a culpada. Queria e consegui que você 
superasse seu pai, ao menos em conhecimentos teóricos. A vida 
dele foi muito difícil. Você tinha tudo para progredir, inclusive 
a nossa falta de dinheiro, que o afastou das más companhias. 
- Eu sei que tudo lhe devo, mas sei também que a cria-
tura tem de ser suportada pelo criador. Agora, pois, agüente as 
conseqüências. Esse negócio de cozinha e máquina de costura 
não pode mais nos ajudar. Você vai ter de passar a vista em 
muita coisa que já alterou o sistema no qual meu pai trabalhava, 
para que eu possa cuidar de nós. 
- Você é quem sabe. Por ora, vamos cuidar do almoço, 
Enquanto ela me servia, foi sendo inteirada de todos os 
fatos que até então eu havia omitido, para não confessar~!he a 
45 
minha timIdez, as mInhas hüsltaçõss, e os pdmeir'O~; desaponta--
mentos que me trouxera o processo Jorge Muniz, mn cujo péi3~ 
go eu estava agora totalmente Imerso. Quando acabou de ouvir-
me, e!a me disse: 
- O assunto é, realmente, de extraordinária importân-
da. Não sei como você conseguiu ficar catado por todo esse 
tempo:, O homem que você está defendendo é o maIor crimina-
!ista de São Paulo, Quando seu pai era vivo, assisti a várias de 
suas funçdes no Tribunal do Júri. t: um orador maravilhoso e 
sua clientela é enorme. Se ele fizer declarações favoráveis a seu 
respeíto, você não terá mais tempo nem para respirar. 
- Também seI, Não perco júri de mestre. Não há quem 
se dedique ao estudo do crime, que não o conheça. O meu pro-
blema é que não estou atnda preparado para um pulo tão alto, 
Os colegas são impiedosos e tudo farão para ridicularlzar'me. 
- Não interessam colegas. Todos se odeiam cordial· 
mente, Não conheço dasse mais desunida, exceto a dos ladrões. 
O que interessa ê o povo, Você está preparado. Acredite em si 
mesmo. Não deixe a causa sair de suas mãos e faça. com que 
ele o recomende pela imprensa, 
- Está bem, - di5s8'!he, enquanto me dirigia à porta 
para receber a moça que chegav8, Vesti o casaco, beijei a minha 
mãe e segui com J secretária para O ponto do ônibus, 
46 
6 
No presídio, o movimento era desusado. Várías camio-
netas pintadas de Cores berrantes, com os títulos dos melhores 
jornais de São Paulo, estavam estacionadas no parque de entra" 
da, Na cela, Jorge Munlz, recostado como das vezes ameriores, 
falava a urna duzia de repórteres e fotógrafos que o assediavam 
com perguntas de toda natureza. Notando que, entre eles, eu 
tomara uma posição de retraimento, ordenou que seus interlo-
cutores abrissem caminho e mandou que me fotografassem ao 
seu lado. A seguir, dispensou os Jornalistas que a custo se afas-
taram e sem trair a mais leve emoção, djsse~me: 
- Podemos recomeçar. 
DePOIS, virando,se para a secretária que remexia em sua 
pasta escolar, perguntou: 
- Em que ponto ficamos? 
Consultando a última folha, ela respondeu; 
- Divergência entre seus genitores, por questões de ciú-
mes de seu paL A ultima fraseé: "8 propósito, lembro-me de 
que.,," 
-- Prossiga: "quando nasceu a minha fHha única, meu pai 
já era cego e minha mãe já havia morrido há quase dofs lustros. 
Ele, portanto, nElo chegou a conhecer vlsua!mente a sua neta. 
Mas, quando ela começou a falar, ele percebeu que sua voz se 
47 
assemethava à de mínha mãe e, enquanto me confidenciava essa 
impressão, duas grossas lágrimas deslizaram lentamente pela sua 
face, até ficarem dependuradas à altura de seu queixo ressequi-
do. Viveu, pois, todo o tempo, como eu também vivi, preso à 
mulher que amou, torturou e destruiu. 
"Voltando aos pródromos de minha existência e para 
melhor esclarecer noções já fornecidas em torno de minha vida 
familiar, recordo-me de grotescas cenas de ameaças em que meu 
pai, desesperado, de revólver em punho, tentava, por motivos 
externamente frívolos, intimidar minha mãe que, de uma cora-
gem invulgar, o estimulava a acionar o gatilho, sem sair de sua 
frente. Depois dessas cenas que eu e meus irmãos assistíamos 
apavorados, ele, envergonhando-se de sua desintegração psíqui-
ca e subjugado pela intrepidez da mulher que amava alucinada-
mente, corria à cidade, regressando à noite, cabisbaixo, arre-
pendido, lamuriento, trazendo-lhe jóias ou vestidos de alto 
preço. Ê escusado dizer que uma certa trégua então se estabele-
cia, para explodir depois de uma ou duas semanas em novos 
entrechoques. Assim viveram até se desquitarem. Não resiS!in-
do morar na mesma cidade, meu pai trasladou-se para aqui, 
onde se dedicou, como sempre, às suas atividades comerciais. 
Depois que ela morreu, ainda muito jovem, de um distúrbio 
cardíaco, ele voltou a Pandora para viver conosco, masjá havia 
caído muito em recursos financeiros e teve de reiniciar a vida 
com uma pequena loja de comércio. 
"Era, portanto, para ali que eu regressava depois de ter-
minada a guerra, a fim de tentar a adoção de uma fórmula 
conci!iatória entre minhas ambições intelectuais e as exigências 
de meu coração, Como já disse, meu pai sempre foi rotineiro, 
tímido em tudo que planejava, e embora exagerando a minha 
acuidade intelectual, não confiava na estabilidade de meus sen-
timentos e, desde logo, recebeu com glacialidade as alusões for-
tuitas que eu lhe fazia em torno de meu pretendido casamento. 
Sem trair, não obstante, suas antigas esperanças de ver-me 
situado entre os homens mais ilustres do Ps ís, acolheu e estimu-
tou calorosamente a outra face do dilema, isto é, aquela que 
tendia à minha exclusiva devoção aos livros e às coisas da ciência. 
48 
"Nessas circunstâncias, embora o mais saboroso fora 
reunir-me à mulher amada, o outro prato da balança ficou so-
brecarregado de minhas inibições, de minha vocação para o estu-
do, de minha indigência financeira, do temor de um fracasso 
conjugal 8, ainda, das exortações que em casa me faziam no sen-
tido de não malbaratar os dotes intelectivos com que, afirma-
vam eles, a natureza me agraciara generosamente, 
U A batalha que então se travou na minha cabeça, não 
foi fácil de comandar e nunca terminou, Eu sei que tudo que 
acontece na vida, acontece necessariamente. Mas, também sei 
que nosso futuro depende do concurso de uma infinidade de 
fatores que podem muito bem deixar de incidir sobre nós 
possibilitando-nos um certo arbítrio em nossas determinações: 
Dizer, portanto, que apenas fui fraco ou egoísta, equivaleria a 
derruir todo o positivismo, ressuscitando o princípio da volição 
espontânea. Hoje, quando já perdi a conta das centenas de acu-
sados, de todas as camadas sociais, que passaram pela minha 
clínica criminal para curarem-se da perseguição judiciária, e 
quando já li tudo que merece ser Ilda sobre criminologia, psico-
logia, psicanálise e psiquiatria, sem falar em minha dramática 
vivência que é, toda ela, um tratado sobre as paixões, seria 
imperdoável se eu cometesse o erro de achar que poderia ter 
procedido de outra forma. O que posso afirmar é que se fui 
objetivamente egoísta, no íntimo eu me acreditava um abnegado, 
e se fui covarde, no fundo me julgava um herói por ter tido a 
força de renunciar ao meu prazer pessoal, para não sacrificar 
aquela doce mulher, não demolir o mito de noSso amor, para 
enfim carregar sozinho a minha cruz, intentando construir 
duradouramente, ao invés de atirar~me com sofreguidão ao 
gozo efémero de relações sobre as quais pendia, suspensa pe!o 
acaso, a espada de Dâmocles. 
"Como todo espírito meditatívo, raciocinante, estóico, 
paciente, eu conservei no fundo da alma as memórias de minha 
convivência amorosa e, como o avestruz que enterra a cabeça na 
areia até que acabe a tempestade ou como o varão de Horácio 
que esperava o r10 passar para atravessá~lo, encerrei-me nas bi~ 
bliotecas e fui ingerindo sedativos livrescos com a mesma faina 
49 
desesperada com que Van Gonh Br'ct;Ja freneticatnsntf; de sol 
artificial as suas telas, para adestrar-se no pInceí e fugir 30'5 
impactos da loucura. pouoo a pouco, um a um, foram sendo re-
tirados e devolvidos às estantes de minha casa, às bibliotecas 
ptlblicas e às dos amigos, uma Infinidade de grossos tomos que 
que eu ia devorando numa atividade delirante, numa monomanla 
absorvente que me (.'Qnsumía todas as horas de vida. Noite após 
nOite, banhando o rosto e os pés em água "Fria quando o sono me 
acossava, sacudindo a cabeça mm violência ou fazendo outros 
exercícios fíSICOS, eu voltava ii mesa de leitura ou, quando já 
exausto da pc)sição encurvada, ao leito do meu quarto, onde 
ficava lendo, nunca menos de doze horas por óta, 
"Assim, como se ·fora um paraHtico, passei anos a fio, 
lendo e criticando mentalmente o que de melhor já se escreveu 
sobre filosofia, história, Direito e outras ciências auxl!iares. A 
Faculdade, eu somente ia fazer as provas. Quando ali chegava, 
era dlHci! decidir-me em que local deveria sentar-me. Meus cole-
gas arrumavam'sc em vários círculos, deixando no centro de 
cada um destes uma cadeira vaga, na esperança de que eu me 
sentasse junto a eles e lhes ditasse as provas. Ordinariamente, eu 
baixava a cabeça ao chegar à porta do salão, fingindo não ver os 
grupos mais afastados e sentava-me logo na prlmeka vaga que 
me houvessem reservado, sem responder aos protestos elos que 
ficavam na orfandade. E bem de ver que certos professores rea-
clonários, e assim os qualifico porque Direito não se aprende em 
academias, logo se íncumbíram de poupar-me esse constrangi-
mento, fazendo-me sentar em suas próprias cátedras, situadas a 
grande distância dos aiunos, de modo que quando isso ocorria 
eu 'ficava impossibilitado de fazer as provas dos cQlegas, porém 
livre do assédio de suas perguntas. De qualquer modo, se fonna-
tura ou cobção de grau valessem alguma COisa, no sentido da 
presunção de capacidade, eu poderia hoje alegar que sou forma-
do mais de vinte vezes, porque a mais de duas dezenas de ana\-
fabetos eu faciHtei a aquisição do diploma. Tudo isso, entre" 
tanto, é irrelevante, porque, como já disse, academias e formatu-
ras nada têm a ver com estudo ou ilustração. As academias são 
fábricas de dlplornados, onde quem deseja aprender alguma 
coisa desperdiça predoso tempo entre a chalaça dos colegas e o 
50 
tédio d?s proh~ssores. Eu estava bem vivido e consegUI atraves-
sar o pantano $em desaprender o que havia arrninenôdo na rnen· 
te, durante minhas incansáveis lucubrações, 
"No primeiro ano de minha ausência do Rio, eu e a víti, 
ma nesse processo que nos Qcupa, mantivemos uma correspon-
dência de conteúdQ indefinido e índole prote!atóda que, com o 
passar do tempo, desesperançou-a completamente da união que 
tínhamos como certa quando nos separamos da última vez. 
Repentinamente, as cartas cessaram e ela desapareceu de seu 
primitivo endereço. A úrtima que !he escrevi fOI-me devolvida 
pelo correJo. De então em diante, não fiquei mais sabendo por 
onde efa andava, 
"Certa feita, porém, quando

Outros materiais