Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
LQ, brU v), ~~ (o-rd A f,\o~of;o- c. SLJOV ~',stO(:O\.: S~"(oJd LQ 6ruVl 0< C()" (C>\ \0':' A. R. J~ HlourOv S;:; OcMA \ 0 '., COSO\.(. \r\c;.'.JJ I 200 (0 A ideia de epistemologia o velho ideal cient(/ico da episteme" 0 ideal de um co- nhecimento cient(/ico absolutamente certa e demonstra- vel, revelou-se um fetiche. A exigencia de objetividade cient(/ica tarna inevitavel que tado enunciado cient(/ico seja dado, e permanefa necessariam'ente, e para sem- pre, a titulo de ensaio. o epistemologo possui de}~to umterritorio proprio? E razoavel que a reflexao sohFeaiiaturezae sobre 0 objeto de uma ciencia esteja a cargo de uma disciplina distinta dela? Claro que nao, sera a resposta imediata, pois e evidente que a atividade cientifica prescinde de qualquer comenta- rio filosofico. Supondo (na melhor das hipoteses) que 0 epistemologo te- nha a competencia necessaria para se pronunciar sobre a ciencia da qual ele trata, em que especificamente recai sua investiga<;:ao? Sobre a psico- logia da descoberta? Sobre os metod os que dao conta da fecundidade dessa ciencia? Em outras palavras: au sobre as circunstfmcias extri'nsecas ao trabalho cientifico, au sobre os pressupostos que 0 cientista, se assim o quisesse, estaria em melhores condi<;:5espara estipular ... Entao, para que serve a epistemologia? E certo que a lei~ura de Bourbaki, se [ormos aptos a faze-la, nos ensina mais sobre a essencia da matemittica que a de Cassirer ou de Brunschvicg. E Michel Serres tern razao em dizer que a tare fa da epistemologia e estabelecer rela<;:5esentre dois dominios sepa- rados - a filosofia e a ciencia - e que, desse modo, "ela e mais 0 sinal do divorcio do que a possibilidade do acordo". IA propria ideia de episte- mologia nao designaria entaO uma pequena impostura que boa parte da "filosofia", desde 0 final do seculo XIX, ter-se-ia permitido? Isso seria plausivel se a epistemologia Fosse apenas uma rubrica dos programas universitarios. Entao, ela hem poderia ser uma edificante ho- menagem dirigida a ciencia por uma filosofia que dela se afastou. No en- tanto, ela e outra coisa. Quando urn estudioso se interroga sobre 0 alcance * Extraido de Manuscrito, v. I, n~ I, 1977. Traduc;ao para a presente edic;ao: Maria Adriana Camargo Cappello. I. Michel Serres,Le Systeme de Leihni{. Paris: PUF, 1986, I, p. 6\. ou sobre certas modalidades de seu trabalho, ele nao esta se submetendo a urn rito escolar: ele esta realizando urn gesto cultural que the parece corriqueiro. Sendo assim, parece-lhe normal questionar a ciencia que ele pratica (ainda que freqiientemente 0 fas:a em uma linguagem que nao e aquela na qual ela e construida). Quando Poincare escreve A ciencia e a hip6tese, ele nao esta fazendo divulgas:ao nem ciencia, portanto, ele esta fazendo epistemologia. Queiramos ou nao, a epistemologia e, no minimo, urn genero literario reconhecido. a que por si s6 ja coloca uma questao. Acabo de dizer: "questionar uma ciencia". Mas 0 que e uma ciencia? Esse conceito e dificil, se nao estamos convencidos de que ele designa desde sempre um objeto de estudo indicado pelo dedo de Deus. Como nos re- corda Thomas Kuhn, 0 que entendemos hoje por "fisica" nao existia antes da segunda metade do seculo XIX, mas surge de duas comunidades distin- tas de pesquisa: a matematica e a "filosofia da natureza". 2 As ciencias sac configuras:oes m6veis; suas fronteiras sac insraveis. A pr6pria expressao, "uma ciencia", nao tern equivalente em todas as linguas. Como traduzi-la em grego antigo? as gregos sabiam 0 que e uma investigas:ao (historia), 0 que e a contemplas:ao (theoria), 0 que e 0 conhecimento (episteme), mas nenhum desses termos possui 0 campo semantico da expressao "uma ciencia" ... Todavia, em vez de nos admirarmos ou de deplorarmos essas indeterminac;oes, tiremos vantagem delas e pracuremos nos perguntar 0 que deve significar a palavra ciencia para que 0 genera epistemologia se tome aceitavel e - quem sabe? - indispensavel. au, ainda, invertamos a questao: havera ao menos urn sentido da palavra ciencia que impossihili- taria a epistemologia? Ao que podemos responder: sim - e dar 0 exemplo da ciencia tal como a concebiam os pensadores do seculo XVII. Nao existe epistemologia leibni{iana [escreve ainda Serres] ou mesmo carte- siana ouplat8nica; 0 que hd e sempre filosojia, mesmo nas matemdticas - e , sempre matemdtica, mesmo na filosofia. Elas nao se relacionam como coisas' distintas [...].j amais se encontra em Leibni{ uma filosofia de estilo reflexivo sobre este ou aquele discurso cientifico.3r 1,1 f,', ,'j ;,! hliI,~;,j '~',jnl !l1,1,"/,','',f"l t"111 2. Thomas Kuhn, A estrutura das revolufoes cientificas. Sao Paulo: Perspectiva, 197), p. 223· ~ £AJJ & fj\ <[lCi'1O - b\'l~relL.' A. 130 A idiia de epistemologia •• Cf.'!v~-cGt/l"'•..J;;4.? - etdelA1"-G - (~~~AJ{;JJAf/;k(70 - 1f/-WIIL;r\ ",. :i/~" l E nao venham objetar a Serres que ao menos as Regras para a direfao do Espirito [Regulae] de Descartes pod em perfeitamente ser consideradas como u~ ensaio de epistemologia. As Regras? Justamente elas, sobre- tudo elas, nao. Porque nessa obra Descartes nem sonha em refletir so- bre a ciencia que 0 matemarico de seu tempo pratica. Essa ciencia, ele a despreza assim como a toda ciencia particular: "Aquele que desejar in- vestigar seriamente a natureza das coisas nao deve de forma alguma es- collier uma ciencia em particular".4 Que aquele que pratica uma ciencia e fors:osamente urn especialista, que existem fronteiras entre os saberes - ide-ias que fazem parte do senso comum dos dias de hoje -, tudo isso para Descartes nao passa de preconceito peripatetico, ladainha tomista5 que ele refutou desd~. a_~p.Iimeiras paginas das Regras. Refutas:ao que entao foi lev-ada' adiante pelos cartesianos. Seria insano, pensa Arnauld, fazer da pratica das ciencias, inclusive daquelas que sac as "mais verda- deiras e as mais s6Iidas", 0 objetivo da cultura: as ciencias sao, quando muito, meios de edificar a razao, exemplos para 0 Metodo - fora disso, elas sac "mteis e pueris". 6 De onde exatamente vem esse descredito? Do fato de a leitura de uma obra cientifica, responde Descartes, jamais nos permitir responder a questao: "Por que e assim e como e que se sabe que e assim?". Nenhum matemarico jamais pensou em trazer a luz o metodo universal de descoberta que ele utiliza sem 0 saber e apenas parcialmente. Todos estao para a mathesis assim como Jourdain esta para a prosa. Nenhum deles percebeu que 0 segredo de sua arte con- siste em reduzir sistematicamente as dificuldades a problemas de ordem 3. M. Serres, op. dt., p. 6). 4. Rene Descartes, Regie pour la direction de l'esprit, Regie I, A-T., X, 361. 5. "As virtudes intelectuais nao dizem respeito a temas diversos ordenados entre si, como ocorre nas ciencias que SaDtao diversas quanlO as artes, e e por isso que nao encontramos nelas a conexao que encontramos nas virtudes morais" (Tomas de Aquino, Suma teo16gica, I-II, q. 65, art. I). 6. "Servimo-nos da razao como de urn instrumento para instituir as ciencias, quando, ao contra.rio, deveriamos nos servir das ciencias como de um instrumento para aperfei90ar sua razao [00')' A combina9iio de nossos divers os conhecimentos e tao livre como a das letras de urn tip6grafo, as quais pod em ordenar-se diferentemente segundo a necessidade [... ) e e algo tao ridiculo quanta a martirio no qual alguns auto res se colocam [...) par entenderem ser muito diffcil determinar a jurisdi9ao de cada ciencia, e fazer com que umas nao se apropriem das outras [...] leva-l os em conta para marcar os limites entre as reinos e para regulamentar as atribui90es dos Parlamentos" (Logique de Port-Royal. Primeiro discurso, ed. Clair e Gir- 'bal. Paris: PUF, pp. I) e 24)' e de medida ... E, aqui, atenc;:ao. Nao se trata, para Descartes, de res- saltar os pressupostos que conduzem 0 trabalho dos matematicos (em uma area espedfica) nem tampoucode pretender remontar - ao modo kantiano - ate a origem que torna a matematica, tal como a praticamos, urn modelo de conhecimento apoditico. Trata-se apenas de nos seryir- mos dela7 para elaborar 0 discurso no interior do qual serfamos capazes, de modo seguro e infallvel, declassificar os conteudos, listar as dificul- dades, localizar 0 que nao e passive! de conhecimento e encontrar as verdades em seus devidos lugares - sem distinfao de genero ou dominio. Trata-se de construir 0 discurso homogeneo que unificara a produc;:ao e o encadeamento de todos os enunciados ditos "cientificos". E por isso que, na realidade, as ciencias particulares "nada mais sac que a human a sabedoria que permanece sempre identica a si mesma, por mais diversos que sejam os objetos aos quais elas se aplicam [...J". Ora, de que func;:aopode encarregar-se uma epistemologia em que ciencia alguma e considerada produtora de sua racionalidade? Uma vez que se entende ser a scientia generalis a unica capaz de certificar os saberes, de que seivira circunscrever a originalidade de determinado saber especia- lizado, estudar a especificidade de seu campo de objetos ou de suas regras de procedimento? ... Concedendo-se isso"acharemos ainda mais curioso que, ate havia bem pouco tempo, a filosofia (francesa e alema) tenha co- mumente entendido, sob 0 nome de "epistemologia" ou de "Erkenntnis- theorie", uma tentativa p6s-cartesiana - por vezes desesperada e sempre arbitraria - de sistematicamente remeter as ciencias a razao homogenea da qual era necessario- a qualquer custo - que elas fossem 0 produto. Eis al urn projeto ao qual a filosofia nao conseguiria renunciar. E 0 que Cassirer nos assegura mais uma vez em seu ultimo livro; ainda que ele honesta- mente se apresse em reconhecer que, de urnas decadas para ca, tornou-se bastante difkil reencontrar essa unidade monarquica nos corpus irreduti- velmente dispersos nos quais as ciencias parecem ter se transformado ...8 Tambem 0 epistemologo racionalista se torna, aparentemente, modesto. Consideremos Brunschvicg. Quem ainda poderia sonhar, ele insiste, em prescrever as ciencias de hoje suas categorias e seus metodos? A lida do filo- sofo e mais modesta. Ela consistira em analisar - por exemplo, tomando a "fisica" como amostra - "0 funcionamento das condic;:6eshumanas do conhecimento". E, sendo assim, nao e preciso temer nenhuma usurpac;:ao do territorio do cientista. "Nao se deve esperar encontrar aqui nada que diga respeito diretamente a historia propriamente dita ou ao conteudo das ciencias fisicas. Nossa tare fa nao e a de saber como e feita a natureza das coisas, mas dizer como e feito 0 espirito do homem."9 Louvavel resign a- c;:ao,mas nem por isso menos ambigua, pois, se admitimos que, de Newton a Einstein, as conquistas da ciencia testemunham a favor de Prometeu, e porque, definitivamente, termodinamica, eletromagnetismo, mecanica quantica etc. continuam a ser mais uma "tentativa" do que lima "aplica- c;:ao"(para nos expressa~QS como a LOgica de Port-Royal) do "espirito humano" :::e porque ci- "human a sabedoria", para manter sua soberania, simplesmente transformou-se num monarca constitucional. Mas continua sendo ela, a velha detentora da "Verdade" ocidental, 0 ponto de fuga de todas as praticas cientificas.10 E, nessas condic;:6es,0 racionalista - desde que, evidentemente, nao tenha a intransigencia do "extremista" Husserl- acaba por se adaptar a existencia dispersa das ciencias positivas, uma vez que de consegue neutralizar 0 efeito anarquico dessa positividade." 9. Leon Brunschvicg, Experience humaine et causalite physique. Paris: PUF, 1949, pref;kio, p. x. E possive! que a influencia exercida por Brunschvicg sobre Piaget (que reconhece sua divida em rela9ao a ele) tenha sido tao importante para a sua elabora9ao da epistemologia genetica quanto a sua forma9aO de bi61ogo. Simples e modesta indica9ao de pesquisa a ser utilizada pelo eventual au tor de "Sagesse et illusions de I'epistemologie genetique". Por falar nisso, esse livro e pra quando? rD. IIAmetafisica da ciencia e reflexiio sobre a ciencia e nao determinafao da ciencia. Em vez de deduzir os principios, como faz a 16gica transcendental, propomo-nos fazer uma critica do juizo experimental" (Brunschvicg, op. cit, p. \39). II. Podemos preferir, ao inves dessa politica prudente, 0 radicalismo "cartesiano" de Husser! e achar que ele tem muito mais topete. Mas Husser! nao e 0 unico representante, em sua epoca, daquilo que chamariamos "a linha dura" cartesiana. Basta nos reportarmos it episte- mologia de Alain, aparentemente kantiano, mas ainda, e sobretudo, cartesiano por principio. Alain - para 0 qual 0 "especialista" e 0 politecnico" sao as bestas do apocalipse - relega ao pedante 0 estudo da Relatividade de Einstein; por ele seria me!hor que 0 fil6sofo fosse beber de Euclides na fonte e que tra9asse triangulos na areia. A leitura de Alain mostra que 0 famoso "desabono da ciencia" que causou tanto protesto, nos anos 19\0, cOntra a epistemologia e 0 existencialismo, vem de muito mais longe. E, antes de tudo, um resquicio do imperialismo da razao classica e deita raizes na tradifao cartesiana - que, desse ponto de vista, nao mereceria ser batizada como "intelectualista". 7· Esse ponto e bastante esclarecido na bela analise das Regras feita por Jean-Luc Marion: Sur tontalagie grise de Descartes. Paris: Vrin, '97\. 8. Ernst Cassirer, Das Erkenntnisprablem von Hegel Tad bis rur Gegenwart [0 problema do conhecimento. Da morte de Hegel ate 0 presente]. Kohlammer, s.d:, pp. 23-24. E de grande interesse, portanto, distinguir epistemologia e reflexao ra- cionalista sobre as ciencias. Estaso pode ser, no melhor dos casos, indife- rente ao fato de que a racionalidade de determinada ciencia se enraiza em urn sistema autoctone de decisoes e escolhas (0 qual, no tempo de sua forma<;ao, muitas vezes pareceu aos seus contemporaneos 0 cumulo da arbitrariedade) e que, por isso, a "metafisica de uma ciencia", como se dizia no seculo XVIII, so pode estar contida em sua tecnica - no equi- pamento singular que ela apresenta. Ja temos ai uma das condi<;oes mi- nimas sob a qual devemos pensar a palavra epistasthai para que a episte- mologia ganhe cidadania; condi<;ao que, alias, encontramos claramente formulada em Aristoteles: i;diftcil saber se temos ou nao conhecimento. Porgue e diftcil saber se conhe- cemos ou nao apartir dosprincipios de cada coisa. E nao e isso, justamente, 0 conlucimento? Acreditamos ter conhecimento cientfjico apenas porgue racio- cinamos apartir depremissas verdadeiras eprimeiras. Mas nao eo bastante: epreciso gue a conclusao seja do mesmo genero gue aspremissas.12 Em outras palavras, diante do Faktum das ciencias positivas, existem duas atitudes possiveis, uma de origem cartesian a, outra de origem aristotelica. Ou bem se deixa na sombra a positividade, preferindo mostrar de que modo a ciencia em questao e uma explica<;aodos arkhai racionais (dos quais ela revela entao, uma vez mais, a prodigiosa fecundidade em qualquer area): trata-se do estilo racionalista. Ou bem se presta aten<;aoao carater autoctone (oikelon) dos principios que uma ciencia apresenta e ao carater singular dessa montagem teorica que permite determinar os "objetos" de forma ate entao inedita - ou seja, prefere-se, aquilo que uma ciencia descobre (para '2. Arist6teles, Segundos analiticos, I, 9, 76a 2)-30. Cita~ao pouco seria, poderao replicar. Encontra-se de tudo em Arist6teles, e e muito f<ici!Ulilizar os fragmentos retirados de seu contexto. Nao e a nossa opiniao. Parece-nos que, ao lado do te6rico da apoditicidade, h:i 0 dialetico que constitui reflexivamente seus conceitos, inventariando os campos semanticos e mantendo-se it margem da apoditicidade - que, ao lado do Arist6teles eminentemente arrolado no Logos hegeliano, h:i tambem 0 Arist6teles pre-kantiano e, mesmo, pre-positi- vista (aquele da nao-comunica~ao entre os generos)que foi tao bem destacado - por vezes tendendo urn pouco para 0 seu lado - por Aubenque. E, sob esse angulo, encontramos em Arist6teles e em Tomas de Aquino preciosos topoi para uma critica da Razao classica. a maior gloria da "ratio"), sua maneira propria de produzir enunciados ou regras que possibilitam sua edifica<;ao:trata-se do estilo epistemo16gico. Determinar desse modo a ideia de epistemologia nao e uma forma enviesada de declarar: "so ha epistemologia positivista"? Se assim 0 qui- serem ... Por que nao? Nao somos solteironas pudicas e nao temos medo de palavroes. Mas, evidentemente, apenas sob a condi<;ao de que nao se entenda positivismo como a decisao radical de s6 recorihecer senti do as proposi<;6es da ciencia empirica positiva - 0 que, de resto, nao deixaria nenhumlugar ao sol para uma epistemologia.13 Digamos entao que a epistemologia, como saber emancipado, s6 pode nascer porque conta com opositivismo - desde que se limite cuidadosamente 0 sentido dessa palavra aoque foi dito e elab(~rado~o Curso de filosofia positiva de Comte. Pois parece-nosser nele que, pela primeira vez, se ve com toda a clareza a ne- cessidade da tarefa epistemo16gica. Por que? Porque esse livro deComte e 0 lugar de urn debate incessante entre a ideia de mathesis - a qual 0 autor nao chega a renunciar inteiramente - e 0 Faktum das ciencias particula- res, uma vez que cada uma destas, conduzidas a sua "condi<;ao enciclope- dica", revela-se em sua originalidade. E verdade que Comte nunca perde de vista as ideias de "coordena<;ao universal", de "metodo homogeneo" ... Como tambem afirma que a matematica detem a chave "do modo uni- forme de raciocinar aplicavel a qualquer possivel objeto do espirito hu~ mano" .14 Mas, por outro lado, vemos ao longo do Curso que os obstaculos regionais encontrados pela matematiza<;ao nao devem ser interpretados como fracassos, mas como indices de uma revisao indispensavel da no- <;aode saber - e a matematica, que de inicio pare cia ser 0 lugar originario da "coordena<;ao", nada mais e, no final, que a antecipa<;ao merit6ria, e hoje "perturbadora", do advento do "verdadeiro espirito de conjunto" .15 o Curso e a desconstru<;ao das Regras - desconstru<;ao trabalhosa, ardua e feita freqiientemente a contragosto. Sim, a astronomia e certamente "0 tipo mais perfeito do metodo universal que devemos aplicar, tanto quanto possivel, para a descoberta de leis naturais" - e e recomendavel, antes de nos lan<;armos nas dificuldades da fisica, examinarmos "urn tal modelo". Mas esse "modelo" deve manter-se como uma ideia reguladora com vistas '3. Cf. K. Popper, Logique de fa decouverte sciemijique. Paris; Payot, s.d., p. 48 led. bras.: Logica dapesquisa cientifica. Sao Paulo: Cultrix, '97)]. [4- Cf. Auguste Comte, Cours, preficio, p. XIV; aula '9, p. '3 [ed. bras.; Curso de jilosojia positiva, in Comte. Sao Paulo, Abril Cultural, '978 - Os pensadoresJ. 'i. Id., ibid., aula i8, pp. 39'-92; aula 59, pp. 426, 468-69 e)2I. a sistematizas:ao - e nada alem elisso!E evitemos, acima de tudo, deslocar os conceitos, a esmo e arbitrariamente, para alem do dominio no qual se acredita que 0 impulso teorico alcans:ou sua maxima unificas:ao possivel.'6 Desse modo, as ciencias acabam por ser reconduzidas a sua heterogenei- dade de principio, desvinculadas da ratio: nao falaremos mais em "ciencias puramente racionais"; ciencia e razao pura nao mais se sobrepoem. E e a partir desse momento, no qual a razao pura deixa de lans:ar sobre as ciencias 0 olhar egoisticamente henevolo do genitor, que a curiosidade epistemologica podera exibir-se em todaa sua plenitude. Vma vez que as ciencias ja nao sao mais facetas de urn mesmo cristal, cada uma se torna in- teressante par si mesma, cada uma se torna instrutiva por si mesma. Bache- lard resumira com sua mordacidade costumeira essa suprema condis:ao de possibilidade da atitude epistemologica: "A aritmetica nao esta fundada na razao. E a dautrina da razao que esta fundada na aritmetica elementar. An- tes de saber contar, eu nao tinha a minima ideia do que era a razao." .17 Essa e uma atitude que ja vemos despontar na Critica kantiana - que dela nos indica urn segundo tras:o caracteristico. Certamente a Critica nao e urn manual de epistemologia. Longe dissa. Nao porque Kant teria con- fiado a sorte das ciencias a vigilancia infatigavel de urn genio bondoso chamado "sujeito transcendental". Mas antes porque ele ainda pens a den- tro da orhita da razao ch'issica e porque, quando ele se pergunta: "Como a matematica pura e possivel?", e apenas para obter urn elemento de res- posta para a questao relativa ao usa teorico da razao em geral (apenas em relas:ao a possibilidade da metaHsica). E isso que interessa a ele, e nao 0 destino da matematica, que passa muito hem sem 0 filosofo e "nao tern absolutamente necessidade, para confirmar suas assers:oes, de uma critica da razao pura, uma vet que ela se justifica por seu proprio fato ({czctum)" .18 A matematica e a fisica puras SaGformas:oes racionais inatacaveis, e cer- tamente nao seria seu retumhante sucesso que levari a alguem a se ques- tionar com tamanha urgencia sobre a capacidade da razao. E e sob esse aspecto que se pode retomar em Kant 0 tema epistemologico propriameme dito (no final das contas, pouco consider ado ): essas ciencias, que a Critica toma como exemplo bem-sucedido de racionalidade, SaGancillae rationis apenas de nome (e isso Husser! nunca p~rdoara a Kant). Ao contrario, e a razao, tornada autocritica, que devera reportar-se a elas para conhecer as condis:oes de sua competencia, para saber ate onde se estende seu di- rei to de cleterrninar objetos. Seporventura essas ciencias nao tivessem sido instauradas, a razao nao saberia nem 0 que elae nem qual e 0 seu poder. E somente com a ajuda dos paradigm as cientificos da modernidade que ela pode se compreender - e grac;:asa essas "revolus:oes subitas" do nosso "modo de pensar" (que posterior mente chamaremos de "episte- mologicas"). Sem "aquele que pela primeira vez demonstrou 0 triangulo isosceles, seja seu nome Tales au qualquer outro", como a razao poderia ter tornado consciencia de sua soberania? Como saheria que cahia a ela submeter a natureza a .exame, se urn sabio florentino nao a tivesse guiado ao "move;~sfer~s em urn plano inclinado com urn grau de aceleras:ao proporcional ao peso, determinado segundo sua vontade"? E notavel que, nessa famosa pagina da historia, independencia, autoridade e iniciativa se- jam essencialmente caracteristicas do especialista - que, ao mesmo tempo, deixa de ser mandatario da "razao" para se tornar seu iniciador. Portanto, temos ai ao menos duas condis:oes necessarias para 0 surgimento da epistemologia como disciplina hem fundamentada. A pri- meira, que cada ciencia deve ser considerada antes de tudo naquilo que ela tern de diferente e unico, que deve ser encarada como urn ohjeto do- tado de urn funcionamento singular. A segunda, que nenhuma ciencia deve apresentar-se como uma constelas:ao de "verdades", mas se of ere- cer como tema possivel de urn exame historico ou filologico: a) historico: as ciencias SaGaventurascontingentes (da razao ... se nao podemos dispen- sar uma personagem) e suas proposis:oes podem ser tratadas enquanto acontecimentos, como, ainda que de modo nebula so, 0 elogio que Kant dispensa a Tales e a Galileu deixa entrever; 19 b) filologico:e possivel r6. Id., ibid., aula z8, pp. Zl)-16; aula )9, pp. 493 e 497 .. r7. Gaston Rachelard, La Philosophie du non, apud G. Canguilhem\ Etudes d'histoire er de philosophie des sciences. Paris: Vrin, 1970, po-zoo. 18. Immanuel Kant, Progres de la metaphysique, trad. Guillermit. Paris: Vrin, s.d., p. 88. 19. "De certo ponto de vista, todo juizo cientifico e um acontecimento. a pesquisador nao sabe como encontrari aquilo que ele procura; se nao Fosse assim, ji estaria ali ou visiveL Talvez seJa a ilusao de uma epoca, posteriormente refutada, queteria levado a estabelecer um fata, que surgiu onde nao se esperava, no final de uma pesquisa, sem duvida esclarecida pelo~ erros da anterior, mas inconsciente, enta~, de seu pr6prio fururo. Negar essa evenrualidade sena admltlr que s6 hi ciencia na explora~ao de ideias ou fatos e nunca na inven~ao deles. Mas para alem da palavra "sabemos", hi "nem sempre soubemos". N a sombra dessa. nega~ao no pa~sa~~ se dissimula toda a hist6ria de uma questao. E essa historia cleve ser escnta como uma hlstorta e nao como uma ciencia. Como uma aventura, e nao como uma exposi~ao" (G. Canguilhem, Formation du concept de reflexe, aux XVII' et XVIIl' siecles. Paris: PUF, 19)), pp. 1)6-)7)· :111'{ :I~ l'~ • II'.; II •, ,II ~, r I! I:: :. I: conferir-Ihes 0 estatuto de urn texto e considerar cada uma delas como urn corpus de formulas (enunciados, protocolos, indicac;5es de pesquisa ... ) no qual se deposita urn trahalho coletivo, cujas articula- c;5es exprimem escolhas au decisoes. Essa segunda condic;ao pode ser mais hem enunciada da seguinte maneira: 0 fato de haver "historia da ciencia" implica que a palavra epistasthai designa uma aventura; a fato de haver "epistemologia" implica que designa uma estratigia. Nada mais que isso. di1. a respeito da "ciencia normal" e do paradigma nao di1. respeito a evolw;ao do conhecimento em geral, mas a evolw;ao de disciplinas particulares.2o Ora, nao seria esta a mais bela homenagem que se poderia render ao epistemologo Thomas Kuhn e ao poder fortemente corrosivo de seu livro? E verdade que, ao fechii-Io, nao sabemos muito bem 0 que e uma ciencia diante do Eterno. Nem se "uma revo!ufiio cient(/ica" e urn conceito que pode ser definido em duas linhas, uma vez que ele tern tantas figuras, e que elas SaDtao variiiveis - no tecido cientifico, as remanejamentos podem atingir escalas muito diferentes, e mesmo uma ruptura tao nitida quanta a mecanica quantica pode afetar cada uma das disciplinas galisica de modo bastante diverso ... Mas sabe- mos, poroutr~ lado, que nao interessa muito querer a todo prec;o abrigar, por recorrencia, a dinamica de Newton na de Einstein. Sa- bemos que a "ciencia normal" nunca olhou para 0 ceu da Verdade, mas que trabalha simples mente para resolver seus "quebra-cabec;as" a partir de uma "matriz disciplinar" que e composta de elementos bastante heteroclitos, e que nao e posta em questao a nao ser nos momentos em que hii necessidade de redistribuic;ao e de redefinic;ao de conceitos. Sabemos portanto que e inutil procurar trac;ar a curva de algum tipo de progresso cumulativo das ciencias - e que, de resto, e preciso deixar a palavra "progresso" para a retorica da banalidade. Exemplo: quando Dalton decide que vai considerar como processos quimicos propriamente ditos apenas as reac;6es cujos ingredientes se combinem em proporc;5es fixas, trata-se realmente de urn "progresso da quimica"? Proclamarei, para usar uma divertida Frase feita, que Dalton fez a quimica dar "passos de gigante"? E muito mais esclare- cedar, acredita Kuhn, observar que, depois de Dalton, as manipula- c;5es quimicas nao tern mais 0 mesmo sentido, que "os quimicos nao estabeleceram novas leis experimentais, a partir de Dalton, mas uma nova forma de praticar a quimica". 21 Nao urn "progresso", portanto, mas urn novo olhar, uma nova priitica que compete a epistemolo- gia inventariar. Mesmo que esse comentiirio leve ao rompimento au ameace a unidade essencial de uma ciencia, nao faltariio a Kuhn ava- listas. Concedamos a palavra a Franc;ois Jacob, esse outro iconoclasta, Isso significa que a ruptura das ciencias com a episteme nao redunda necessariamente nessa sacralizac;ao caricatural das ciencias que a sensa comum, de forma bastante confusa, entende par "positivismo"; nao implica de modo algum que devemos transferir para as ciencias po- sitivas as privilegios arcaicos da episteme. Muito ao contriirio. Vma ciencia so se tom a objeto epistemologico quando se entende que cada uma das disciplinas que a comp5e tern como unica unidade aquela de urn traba!ho produtivo regulamentado par urn conjunto de regras passiveis de revisao, das quais nem todas precisam estar formuladas com clareza. Aos olhos do epistemologo, nenhuma disciplina cienti- fica poderia ter qualquer outro tipo de unidade alem desta, que e emi- nentemente provisoria e instiivel- e nao estariamos incorrendo em nenhum paradoxa ao sustentar que a epistemologo de hoje so pode visar a cientificidade sob a condic;ao previa de destruir esses monstros identitiirios forjados pelos manuais e pda vulgarizac;ao: "a ciencia", "uma ciencia" ... Par que se escandalizar com isso? Desde as bancos da escola somas levados a admirar que Descartes tenha pretendido dis- solver na "humana sabedoria" os contornos das ci~ncias. Entao, par que recusariamos esse outro projeto de trabalho, igualmente digno de interesse: uma dissoluc;ao no sentido inverso, nao mais par evaporac;ao, mas par dissecac;ao? Alguem que acreditava estar criticando Thomas Kuhn escreveu, a proposito do seu Revo!urjiJescient(/icas: As revoluy'oes das quais ele nos fala nao sao revolufoes da ciencia, mas revolu- foes no interior das disciplinascientificas.Do mesmo modo, tudo 0 que ele nos 20. Stefan Amsterdamski, "L'Evolution de la science". Diogene, n? 89, p. 30. 21. T. Kuhn, op. cit., p. 169-7°. ',' I' i~~f para que ele nos diga de que forma sua his tori a da genetica e fiel ao espirito da biologia atual- de uma ciencia "que nao mais procura a verdade", mas" constroi a ciencia". (0 que, afinal de contas, nao e assim tao, caricatural), entre a balanc;a de Lavoisier, como artificio da razao, e 0 Lavoisier cobrador de impostos. Estariamos nos 'afastando de nosso tema se procurassemos dizer por que a simples ideia dessa escolha e, numa palavra, burlesca (alem do mais, isso equivaleria a demonstrar que platanicos e "homens comuns" sempre foram cumplices fieis; demonstrac;ao que nos Faria levar pan- cada de todos os lados). Contentemo-nos por ora com"a pergunta: que pertinencia pode ter essa escolha, uma vez que, diante da epistemologia, essa ciencia se apresenta como urn texto, e suas normas reguladoras como urn aparelho retorico que os "praticantes" dessa disciplina em particular aceitam, grosso modo, aqui e agora? Urn texto nao precisa ser "relativizado" (ou, inversamente, alegorizado): ele pede apenas para ser lido e renao~~mo as cartas de urn jogo, abertas e embaralhadas inu- meras vezes. Portanto, 0 epistemologo nao esta mais preocupado em "re1ativizar" do que em glorificar. Ele esta e muito ocupado em rastrear, ao longo de todas as ramificac;cSes,0 que, por exemplo, marca (nao digo "significa") a introduc;ao de urn conceito novo. Sua ambiC;aonao e dizer por que os conceitos de "funC;ao" e "diferencial" foram, no seculo XVII, uma aquisiC;ao indispensavel da razao, mas analisar exaustivamente qual ruptura provocam na constituic;ao do objeto "movimento". Desse modo podemos entrever que a epistemologia nao apenas esta no direito de reivindicar urn territorio, mas que e1a tambem detem uma tematica que faz com que se diferencie totalmente de urn simples exerdcio des- critivo. Por meio da ciencia como urn texto dado, 0 epistemologo pre- tende atualizar urn "discurso segundo" - se podemos dizer assim - e e por isso que e1enem repete nem soletra aquilo que 0 cientista enuncia; pois nao seria urn discurso racional que viria a explicar a verdade da ciencia (ou faze-Ia admitir 0 que nela e "impensado"). - 0 que? Mas entao nao se trata justamente de uma descriC;ao? Por que voce diz analisar onde se deve dizer deserever? - Porque so ha descriC;ao de elementos dados e porque uma con- 6guraC;ao conceitual nao e uma soma de elementos que bastaria enun- ciar. E precise ainda encontrar seu estilo: quais enunciados e1aadmite e quais nao, que deciscSesimplicam outras (e quantas) e que deciscSes sac apenas secundarias. Ora, a representac;ao de urnrelevo e algo proprio da cartografia, que nao e uma descriC;ao, mas uma analise. Da mesma forma, uma "representac;ao" epistemologica sera o que procuramos descrever aqui [... ].fOi 0 acesso a esses objetos cada vet mais escondidos que constituem as dlulas, os genes, as moliculas de dcido nucllfico. A descoberta de cada boneca russa, a revelar;iiodesses desniveis su- cessivos niio If 0 simples resultado de uma acumulafiio de observafoes e de experiencias. Freqiientemente expressam uma mudanfa mais profunda, uma trans.fOrmar;aona propria nature{a do saber. Nada mais fiqem seniio tradu{ir, no estudo do mundo vivo, uma nova maneira de considerar 0 universo.22 Dispersemos os corpus, aprofundemos as 6ssuras, adensemos a des or- dem, sempre restara algo: e 0 que, me parece, urn born livro de episte- mologia acaba sempre por sugerir. E e por isso que 0 livro de Kuhn _ apesar do carater precario de alguns conceitos - e urn born exemplo do que pode ser a epistemologia quando considerada como uma ciencia 6- lologica. Da mesma forma que uma historia das re1igicSesnos ensina, no minimo, que nao ha absolutamente nada de comum entre as panateneias, uma macumba e uma missa em Notre-Dame, alem do fato de uma reu- niao de individuos, assim tambem uma boa epistemologia deve destacar as descontinuidades, sob as tranqiiilas "evoluc;cSes" trac;adas a vao de passaro, e as homonimias sob os conceitos vagos ("teoria", "observa- C;ao","metodo" ...) que as ocultavam. Ela so tern interesse (e entao corre o risco de se tornar apaixonante) se quebrar 0 discurso da Verdade no qual a tradiC;ao embalsamara 0 trabalho cientf6co e assim restabelecer, , o texto autentico que 0 panegfrico deformador havia recoberto. De modo algum queremos dizer com isso que 0 pape1 da epistemolo- gia seja 0 de relativizar as ciencias inscrevendo-as no nive1 tecnologico ou historico puro e simples - 0 que faria supor - para 0 deleite de to- dos os metafisicos, que so ha escolha entre episteme e doxa, entre 0 discurso do Absoluto e 0 das impropriedades anedoticas e, no limite ~ .~ I, , ,:,',",i "t, I, ,y. I , I ~II ." I i~[' , ~ i ,; '~ II ',1* I"~ IIi Ii I ,,I' uma espicie de mapa-mundi que deve mostrar osprincipais parses, suas posi- foes e correlafoes, 0 caminho mais curto existente entre um e outro; caminho que i comumente interrompido por mil obstaculos, que s6podem ser conheci- dos pelos habitantes e visitantes de cada pals, e que s6podera.o ser mostrados em mapas especificos e bastante detalhados. Tranqiiilizemo-nos. Nao foi nenhum seguidor entusiasmado de Foucault quem teceu essa metafora, mas D'Alembert, ao apresentar a Enciclo- pidia23 - e nao seria possive! pressentir de forma mais clara urn tipo de abordagem cientifica propria a epistemologia. Nessa mesma direcrao, Jean Desanti mostra com minucia, em seus belos estudos de epistemo- logia matematica, aquilo que a epistemologia deve, antes de tudo, esfor- crar-se por distinguir do dominio teorico que e!a radiografa: "0 sistema das operacr6es e dos campos de objetos que efetivamente funcionam no discurso aparente"; quais conex6es nao expHcitas relacionam urn enunciado regional aos conceitos que e!e permite que sejam construi- dos alhures; ou ainda que rede de exigencias e de incompatibilidades singulariza determinada formacrao teorica - por que, por exemplo, 23. Jean Le Rond D'Alemhert, Discours priliminaire de l'Encyclopidie. Paris: Editions Gonthier- Meditations, '96\, p. 60. Seria interessante relacionar 0 surgimento da ideia de epistemologia , com 0 desenvolvimento da ideia de Enciclopedia - especial mente levando em conta a transfor- rna~ao por esta sofrida entre Leibniz e D' Alemhert. Leibniz (Noyos ensaios, IV, cap. 21) insiste sO- bre a dificuldade em separar "as grandes provincias intelectuais" por fronteiras fixas ("cada parte parece engolir 0 todo") e propoe duas apresenta~6es possiveis das "verdades doutrinarias": "se- gundo a ordem das provas, como fazem os matematicos" e segundo 0 uso pratico que os homens podem fazer delas. Mas e necessario, ainda, urn repertorio. Por que? Devemos ir aos,textos: "Esse repertorio sera necessario para reunir todas as proposi~6es em que 0 terrno seja urn componente importante; pois, segundo as duas formas precedentes [...] as verdades que dizem respeito a urn mesmo termo nao poderiam ser encontradas juntas. Por exemplo, nao seria de forma alguma permitido a Euclides, quando ele ensinasse como se encontra a rnetade de urn angulo, adicionar a isso 0 modo de encontrar sua ter~ parte, pois ele teria entao necessidade de falar de se~6es conicas, que ainda nao seriam conhecidas nessa etapa. Mas 0 repertorio po de e deve indicar os lugares nos quais se encontram as proposi~6es importantes que dizem respeito a urn rneSillO objeto". E, portanto, urna nova perspectiva das ciencias 0 que e aqui proposto: 0 enciclopedista se coloca fora de seu discurso e, considerando-o como urn texto, se da 0 direito de reagrupar as significa~i5esatraves (ou sob) 0 encadeamento sintetico ou analitico das proposi~i5es. Programa de trabalho que ganhara mais importancia para os enciclopedistas a medida que eles renunciam a ideia de uma materia unitaria: "A ordem enciclopedica nao supi5e de forma alguma que todas as ciencias estao relacionadas umas as outras. Sao ramos que partem de urn mesmo tronco, a saber, 0 entendimento hurnano. Esses ramos freqiientemente nao tern nenhuma liga~ao imediata e muitos so estiio reunidos pelo proprio tronco" (D' Alembert, op. cit., p. 7')' I + a = I e impossive! no campo da mathesis grega". 24 E de notar que, sob esse ponto de vista, Desanti acaba por reencontrar a legitimidade de alguns dos conceitos metodologicos de Foucault (como 0 de "confi- guracrao de saber"). Independentemente das diferenifas de constituicrao entre essas formacr6es que dividiriamos grosseiramente entre" ciencias ,exatas" e "humanas", 0 epistemologo, tanto em uma como na outra, so encontra urn tema para si ao procurar compreender como isso se articula, como isso funciona nesta regiao teorica para que, desse terreno movedicro, possam surgir esses maci<;os de enunciados relativamente estaveis que em seguida honraremos com 0 nome de ciencia; ele so se sente em casa quando escava sob aquilo que podemos chamar de cienti- ficidade estabelecida. Se.ria-util' tepetir que tudo, ou quase tudo, resta a ser feito 'n~~'direcrao, comecrando por explicitar conceitos analisado- res? Mas, por mais atrasada que esteja a epistemologia em re!a<;ao a his- toria da ciencia, e!a sabe ao menos como deve orientar-se na ciencia que estuda: nem deve faze-la tender ao Conceito nem historiciza-la, mas .- ---- Ql:;terminar os sistemas e subsistemas que a fazem "funcionar" como ~qJJina ~ligibilid~d.e. .- -- -' E, agora, reportemo-nos a Introducrao de Husserl a L6gica fOrmal , e transcendental. E nesse texto pomposo, mas instigante, que venho pen- sando ate aqui ao procurar determinar esse contra quem a epistemologia teria podido atingir a idade adulta. Leiamos novamente essas paginas apocaHpticas: transformadas em "tecnicas teoricas", nossas ciencias modern as perderam a grande crencra que as unificava, assim como seu enraizamento na razao teorica. Vejam, nos diz em sum a Husserl, de que naufragio niilista a fenomenologia, e somente e1a, e capaz de salva- los in extremis. Ora, ocorre que nossa epoca nao mais compreende que interesse teria essa salvacrao especulativa. E fato, e1a nao sente mais ne- cessidade dessa salvacrao. E 0 destino atual da palavra epistemologia nao e justamente urn sinal dessa despreocupacrao? A "epistemologia" - bem o sabemos - esta bastante em yoga para que muita mistificacrao tenha 24. Jean Desanti. La Philosophie silencieuse. Paris: Seuil, s.d., pp. 148 e [)2. Reportemo-nos tambem a analise - essencialmente dirigida contra Husserl- da dificuldade, para dizer 0 minimo, que existe em pensar uma configura~ao unitaria da mathesis,mesmo se a ideia e naturalmente sugerida pela aparencia trans-historica do desenvolvimento das matematicas e pelo cararer onitemporal de seus enunciados. E Desanti mostra a fragilidade de todas as invariantes pelas quais se pretende unificar do exterior a produtividade da matematica (ego- logia transcendental, universo de essencias, campos pre-predicativos). sido e continue sendo cometida em seu nome. Mas de nada adianta zombar de uma moda; e preciso interroga-Ia, pais a fato de ela ter sido adotada e sempre instrutivo. Ora, essa moda, parece-me, indica que estamos a vontade diante do "declinio" diagnosticado par Husserl. A catastrofe aconteceu, a episteme una morreu, mas seu luto quase nao pesa, embora nao andemos par ai alardeando niilismo. No lugar vazio deixado pe1a "humana sabedoria", eis que nascem as "gaios saberes", as epistemologias - saberes ainda adolescentes, agressivos, insolentes, subversivos, que desrespeitam a cientifiCidade de dire ita divino par res- peitarem mais a ciencia como trabalho e como documento. A epistemo- logia esta na moda: e urn sinal de saude. E a indicas:ao de que as ciencias s6 se tornam divertidas quando as consideramos como jogos dos quais e preCiso encontrar as regras e de que se tornam interessantes apenas quando nao mais cremos na Verdade. A boutade de Charing-Cross Quem poderia indicar-me, dos anos 30 aos anos 50, um unico caso em que um homem integro tenha derrotado, esmagado ou posta para correr, um misercivel intrigante?Afirmo que uma taleventua- lidade e impossivel, tao impossivel quanto uma cachoeira correr, excepcionalmente, para cima. Um homem integro nunca se diri- giria ao GB, ao passo que um crcipula 0 encontra ·sempre a sua disposifao. Por que entao a cachoeira cairia para cima? A. Soljenitsin. 0 arquipelago Gulag David H~~;'-ciestruidor diab6lico da ciencia ... A primeira vista, nada refors:a mais essa imagem tradicional do que 0 capitulo "Liberdade e necessidade" do Tratado e sua retomada na InvestigafG-o, pois e ai que a autor desenvolve a tema provocador da homogeneidade entre necessi- dade moral e necessidade fisica. Urn prisioneiro sem nenhum tostao conta tanto com a possibilidade de sensibilizar seu carcereiro quantO espera poder arrebentar grades e ferrolhos com as pr6prias maos, e "urn homem que, ao meio-dia, deixa sua balsa cheia de ouro no passeio de Charing-Cross pode tanto esperar que ela saia voando como uma pluma quanto que a encontrara intacta uma hora depois". 1 Nem mais nem menos. A constancia do comportamento dos ele- mentos nao e nem mais nem menas forte do que ados comportamentos humanos e, sendo assim, a confians:a nas leis naturais nunca e, nem mais nem menos, senao uma esperan<;:arazoavel. A questao estaria assim encerrada, e 0 "desabono da ciencia" seria retumbante se outros textos de Hume - de ressonancia "determinista", laplaciana - nao pa- recessem contradizer 0 primeiro grupo de textos. Assim, logo no inicio do mesmo capitulo da InvestigafG-o: • Extraido deManuscrito, v. I, n~ 2, 1978. Tradu~ao para a presente edi~ao: Marta Kawano . •• Dada a dificuldade de encontrar um equivalenre exato em portugues, optou-se por manrer o termo Frances do titulo original. Seu uso pode ser atestado em nossa lingua pelo verbete "boutade" do Dicionario Houaiss de lingua portuguesa: "I. tirada espirituosa ou engra<;ada; 2. pensamento ou· dito sutil, original e imprevisto que freqiientemente contraria proposita- damente a verdade; 3. capricho". I. David Hume, An Enquiry ConcerningHuman Understanding (EHU), in Hume's Enquiries, ed. Selby-Bigge. Oxford: s.d., p. 70; trad. francesa Andre Leroy. Paris: Aubier, 1947, p. 140.
Compartilhar