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Texto 01 - Ciência Política - WOLFF, Francis. A Invenção da Política - P. 23 a 50

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A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
1 
 
WOLFF, Francis. A Invenção da Política, em: NOVAES, Adalto (org). 
A Crise do Estado-Nação. 
Página 25 a 50. 
 
 “Quando, há alguns meses apenas, em Paris, meu amigo Adauto Novaes propôs que 
eu abrisse este terceiro ciclo de conferências consagradas à descoberta do Brasil com uma 
exposição sobre a Grécia clássica intitulada “A Invenção Política”, logo achei a ideia 
excelente e senti-me tão honrado com a proposta que aceitei de pronto. Foi depois (tarde 
demais!) que me pus a pensar. Afinal, perguntei-me eu, para que falar da Grécia quando se 
trata da origem do Brasil? E, sobretudo, por que falar da invenção grega da política? Não 
teria qualquer povo, à sua maneira, inventado a política e, entre eles, por que não, os índios 
da América antes de antes de Cabral? É verdade que os gregos são sólidos inventores em 
todos os domínios (na mesma época, inventam a ciência física, a demonstração 
matemática, a pesquisa histórica, a reflexão filosófica, para não falar dos cânones estéticos 
e da tragédia). E isso é verdade também no campo político: uma boa parte de nosso 
vocabulário político vem do grego – “tirania”, “monarquia”, “democracia”, “aristocracia”, 
“oligarquia” e em particular a palavra “política”, derivada da Polis grega. Além disso, é claro 
que os primeiros pensadores políticos foram gregos, sejam eles historiadores (Heródoto, 
Tucídides), sofistas (Pitágoras) ou filósofos (Platão, Aristóteles). Mas entre inventar palavras 
ou conceitos e inventar a coisa, a política ela mesma, há um abismo. Refletindo melhor, 
essa ideia de atribuir-lhes a invenção da política pareceu-me mesmo tão perigosa, quanto 
falsa. 
 Ideia perigosa porque etnocêntrica. Seria, me parece, fazer do político privilégio de 
um só povo e em particular do povo do qual a civilização ocidental vangloria-se de ser 
herdeira. Seria relegar à sombra do apolitismo ou do pré-político todas as formas de vida 
em comum anteriores aos gregos e, sobretudo exteriores à civilização europeia. Porém, o 
que poderia fundamentar a superioridade desse modelo de poder para que tenhamos o 
direito de qualifica-lo, e a ele só, de “político”? 
 Ideia falsa porque isso seria confundir a vida política com uma de suas formas. Ora, 
todos os povos vivem politicamente. A partir do momento em que houve humanidade em 
alguma parte da terra, houve política. E isso todos nós sabemos... desde os gregos! A 
primeira sociedade particular na qual se reconheceu que a política não é característica de 
uma sociedade particular, mas do homem em geral, foi a sociedade particular grega. Assim, 
Pitágoras explica que os homens devem viver politicamente, pois lhes faltam as qualidades 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
2 
 
biológicas de que dispõem as outras espécies animais para poder sobreviver na luta pela 
vida, e devem, portanto, se unir e dar prova das virtudes necessárias à cooperação e à vida 
em comum. 
 Platão explica a vida política a partir da insuficiência dos homens para satisfazer 
individualmente as próprias necessidades e da necessidade da divisão do trabalho. 
 Aristóteles vê no homem um “animal político” por definição, isso é, um ser que vive 
naturalmente em comunidades políticas e que não pode ser feliz senão nessa vida com seus 
semelhantes. 
 Era, portanto, à natureza em geral, ou pelo menos à natureza do homem, e não ao 
gênio grego em particular, que os pensadores gregos atribuíam a invenção da vida política. 
Sempre se pode, é claro “ser mais realista que o rei” e atribuir aos gregos um privilégio que 
nem eles mesmos se concediam! Ou então dizer que a invenção particular dos gregos é 
justamente essa: a consciência de que eles nada têm de particular, o reconhecimento da 
universalidade do político, mas seria ainda uma vez confundir a reflexão política e a vida 
política, o conceito e a coisa. Mais vale concluir: ser fiel aos gregos, a seu gênio único, é 
dizer que o político é constitutivo do homem. Não existem inventores do político. Ele está 
na natureza do homem, que não o inventou... 
 Eu não deveria ter aceitado esta conferência. 
 Eu deveria menos ainda por situar-se ela no quadro de um ciclo consagrado à 
descoberta do Brasil. Ora, se todos os homens sempre viveram politicamente, esse é em 
particular o caso dos índios do Brasil de antes da descoberta. E era precisamente o que os 
descobridores europeus recusavam-se a reconhecer. Das tribos tupinambás, eles diziam 
com desprezo: “Sociedade sem fé, sem lei, sem rei”. 
 Mas era só porque eles não reconheciam sua fé, sua lei, seu rei e porque identificavam 
o político com sua realização nas sociedades de onde eles próprios vinham, nas quais 
reinavam monarquias “absolutas” e “de direito divino”. Ao pretender falar, em um ciclo 
consagrado à descoberta do Brasil, da invenção grega do político, eu iria não somente ser 
infiel à mensagem grega a respeito da política, mas repetiria os mesmos erros da 
descoberta do Brasil. 
 Todavia, tendo aceitado, devo continuar. Devemos, portanto, nos deter um instante 
nessa descoberta grega da universalidade do político. O que significa aqui “político”? O que 
seria esta vida política constitutiva da vida humana, segundo os gregos? 
 De ordinário, o termo “político” não evoca de forma alguma um caráter geral da vida 
humana, mas certos homens em particular (os “políticos”, deputados ou ministros, ou os 
militantes), certos aspectos determinados da vida humana (ambição, popularidade, luta 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
3 
 
pelo poder...), certos momentos privilegiados da vida pública (campanhas eleitorais, 
manifestações), ou ainda certos setores da vida social (por oposição à economia, à cultura, 
à educação...). É preciso romper com essas imagens para compreender a essência do 
político e sua ligação com o humano em geral. É preciso também mudar de método: não 
mais enumerar empiricamente aquilo que é político, mas deduzia a priori o seu conceito, 
esforçando-se para imaginar o que aconteceria sem política. 
 Duas coisas seriam possíveis. Poderíamos imaginar, para começar, o homem vivendo 
como a maioria dos animais, em estado isolado ou em casais erráticos que se formariam de 
maneira mais ou menos sazonal, quem sabe em pequenos grupos familiares mais ou menos 
estáveis. Sabe-se que esse não é nunca o caso. Além dos indivíduos, dos casais, dos grupos 
de consanguíneos, existe sempre uma outra comunidade que os inclui, uma comunidade 
que tem uma permanência no tempo transgeracional e uma identidade no espaço 
transfamiliar. 
 Em outras palavras, existem comunidades políticas. Eis então um ponto encerrado. 
Dizer que o homem vive politicamente é dizer que, de fato, vive e que, de direito, ele não 
poderia, indubitavelmente, viver fora dos laços que o une a essa comunidade relativamente 
estável que transcende as relações biológicas. Uma comunidade política assim, tende 
efetivamente a conservar sua unidade mantendo-se como espaço de coexistência, como 
meio de troca de bens reais ou simbólicos – as mercadorias, as palavras ou as mulheres, 
para retornar a tricotomia de Lévi-Strauss – e como recinto de uma experiência histórica 
idêntica, passado e porvir, real e imaginária. Nunca é somente o laço biológico que reúne os 
homens, embora às vezes os mitos originários que eles transmitem ou a ideologia 
nacionalista (a do sangue) que circula entre eles façam com que acreditem descender, 
todos, de um ancestral comum, fundador longínquo de linhagem, ou pai da comunidade: 
esse tipo de ilusão, como qualquer outro laço simbólico, tendea soldar a comunidade e 
mantê-la unida. Concluamos este ponto: uma tribo, uma Cidade antiga, uma nação 
moderna, um império, uma federação são comunidades políticas; aqueles que fazem parte 
dela têm uma memória comum e um sentimento de pertinência, distinguindo o interior 
(nós) e o exterior (eles), muitas vezes até, mais radicalmente, o amigo e o inimigo, o civis do 
hostis. 
 O interior é, ou antes, deveria sempre ser, a paz. O exterior é, ou antes, sempre 
poderia ser, a guerra. A vida política é, portanto, a vida dessa comunidade enquanto tal, o 
que faz com que ela seja e permaneça sendo uma comunidade, além de todos os riscos 
internos (desordem, dissensos) ou ameaças externas (agressões, guerras). 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
4 
 
 Contudo, o comunitário não é suficiente para definir o político. Aliás, o próprio fato de 
que sejam necessários, por exemplo, as crenças, os mitos ou as ideologias que acabamos de 
evocar para garantir o laço político, mostra bem que a vida política não é natural ao homem 
como a respiração o é. Os homens não vivem na comunidade como um peixe na água. Eles 
vivem todos e sempre de modo político, mas isso não quer dizer que tal aconteça sem 
esforço nem coerção. Eis o paradoxo: eles vivem necessariamente em comunidades 
políticas, mas não podem fazê-lo sem coerção, isto é, sem política, justamente. E viver 
politicamente é isso. É como se a natureza os obrigasse a viver contra a sua natureza. E essa 
dupla natureza é o político. 
 Expliquemo-nos. Perguntávamos há pouco o que aconteceria em um mundo onde 
seres em tudo semelhantes aos homens vivessem sem política. Nesse mundo, dizíamos, 
esses homens, que homens não seriam, poderiam viver dispersos, ou seja, fora de qualquer 
comunidade política. Mas existe uma outra possibilidade. Nesse outro mundo, seres que 
não seriam mais homens do que os precedentes poderiam viver nessas mesmas 
comunidades, mas sem política. Eles viveriam serenamente, harmoniosamente, no mais 
perfeito entendimento, sem conflito, estariam na comunidade, no seio de seus semelhantes 
como um peixe na água; a comunidade se manteria por si só em sua unidade e se 
reproduziria sozinha. Nenhuma necessidade de rei, de regras, de proibições, de castigos, de 
uma política, de um governo, em suma, de uma instância política para assegurar a 
sobrevivência da comunidade contra ela mesma ou contra as agressões exteriores, para 
evitar ou regras os conflitos etc. Em uma palavra, nenhuma necessidade de um poder. (Esta 
quimera de uma comunidade sem poder, ou pelo menos dotada de um poder não 
coercitivo, sem exército nem polícia, alimentou inúmeras utopias desde T. More até certas 
teorias “anarquistas” ou “comunistas”. Pode-se compará-la com um outro mito, o do 
paraíso como lugar imaginário onde os homens poderiam viver sem trabalhar. Como as 
utopias comunistas imaginavam um lugar onde as comunidades políticas poderiam viver e 
se perpetuar satisfazendo as próprias necessidades sem a obrigação do trabalho. Sem 
dúvida, o trabalho é para o homo economicus o que o poder é para o homo politicus. Eles 
são, um e outro, as duas faces da maneira humana de viver aqui embaixo). 
 A política define-se, portanto, por dois traços essenciais. É preciso uma comunidade e 
é necessário que, no próprio seio dessa comunidade e não fora dela, exista uma instância de 
poder. Existe política a partir do momento em que uma comunidade se coloca a questão do 
poder ou desde que o poder exercido por alguns (tais indivíduos, tais castas ou tal classe 
social) se exerça no quadro de uma comunidade e tendo em vista o seu modo de vida. 
Dissemos poder e não hierarquia, autoridade ou comando. Talvez existam comunidades 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
5 
 
não hierarquizadas, pode-se discutir essa possibilidade. Mas é certo que existem certas 
comunidades hierarquizadas, nas quais alguns homens comandam outros homens, mas que 
não tem poder político propriamente dito. Dessas comunidades, pode-se dizer que têm 
uma política, mas não que sejam comunidades políticas. É o caso, por exemplo, de uma 
universidade ou de uma empresa. Uma empresa moderna é uma comunidade fortemente 
hierarquizada, onde existem relações de autoridade, onde decisões são tomadas, ordens 
são dadas: logo, existe nesse sentido uma “política de empresa” – Mas não é uma 
comunidade política porque, nesta, as ordens e decisões só podem ser aplicadas, pelo 
menos normalmente, se forem geridas pelo direito ou pela força do Estado, isto é, pelo 
poder propriamente político. 
 Tais são, portanto, os dois aspectos opostos e complementares constitutivos do 
político: de um lado, o comunitário, de outro o poder. Não há política sem a ideia de uma 
comunidade separando o “nós” e o “eles”. Mas também não há política sem um poder que 
assegure, e geralmente pela força, a continuidade da existência da comunidade. 
 Embora os dois polos do político estejam sempre associados nas sociedades humanas, 
como as duas faces de uma mesma moeda, é importante notar que conceitualmente eles 
são perfeitamente distintos. E, em certo sentido, até antagonistas. É o que prova o estranho 
laço que mantêm com a natureza do homem. É como se esta última fosse contraditória. Se, 
de fato, os homens pudessem viver naturalmente em harmonia, sem paixões egoístas, o 
poder seria supérfluo, a vida política seria espantosamente uma vida comunitária; então 
seria possível uma comunidade sem poder, uma sociedade sem política; em outras 
palavras, uma vida política sem política. Se, inversamente, a concórdia fosse contranatural 
para os homens, se eles não pudessem viver juntos, se fossem por natureza rebeldes a 
qualquer a qualquer sociedade, viveriam isolados, e a vida política reduzir-se-ia à violência e 
à guerra, isto é, não haveria nenhuma diferença entre a comunidade (onde reina, em 
princípio, sempre a paz) e seu exterior (onde pode sempre reinar a guerra). Ainda aqui, 
seria o fim do político. Os homens, são, portanto, de uma natureza tal que querem viver em 
comunidade, no entanto só podem fazê-lo sob coerção. Eles são essencialmente sociáveis, 
mas é preciso força-los à entrar em sociedade e a acomodar-se aos outros. É o que Kant, em 
celebre fórmula de “insociável sociabilidade”. 
 Essa natureza contraditória do homem traduz a dupla essência do político – a menos 
que seja o inverso. E é por isso que a história da filosofia política parecia hesitar bastante 
entre esses dois conceitos políticos: ou o político é definido a partir do laço social – e o 
poder é então um simples meio de garanti-lo; ou é definido a partir da relações de coerção, 
de comando e de luta – e a comunidade é um simples meio de realizar sonhos de poder ou 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
6 
 
a perpetuação amortecida de uma violência originária. Ora, as filosofias políticas são teorias 
da sociedade e do bem comum e ao mesmo tempo projetos de sociedades melhores; ora 
são teorias do poder (como alcançá-lo, conservá-lo), do bom governo (como comandar os 
homens, administrar as coisas) e de excelência da ação (oportunidade, decisão). As duas 
tendências, bem entendido, estão mais ou menos presentes em todos os autores, mas sua 
preponderância determina todavia estilos teóricos distintos. Não é difícil ver que os 
primeiros muitas vezes pintam o político sob uma claridade luminosa, vendo nele a 
realização do Bem, enquanto segundos insistem na inclutável perfídia do político, vendo 
nele um mal necessário. 
 Tais são, portanto, a essência contraditória do político e sua ligação com a natureza 
contraditória do homem. Eis por que todosos homens sempre viveram politicamente, do 
bando primitivo ao Estado moderno. Nenhuma sociedade é mais política que a outra. 
Nenhum homem inventou a política... E nenhuma razão justifica que eu lhes fale aqui da 
invenção da política. 
 No entanto, se houvesse uma sociedade na qual os dois conceitos opostos que 
definem o político – de um lado a comunidade, de outro o poder – se encontrassem 
reunidos a ponto de serem confundidos, indistinguíveis, poder-se-ia dizer de tal sociedade 
que ela, a seu modo, fundou a possibilidade da unidade do político e inventou, de certa 
maneira, seu conceito – um conceito único e não duplo. Se houvesse uma comunidade que, 
em lugar de manter-se por meio de um poder distinto de ela mesma (uma instancia 
organizada para esse fim, um chefe todo poderoso, um grupo dirigente, uma classe 
dominante, um Estado), se conservasse em sua unidade apenas por própria potência uma 
sociedade na qual o poder político só pudesse ser localizado na comunidade política em seu 
conjunto, poderíamos dizer dessa sociedade que ela realizou a ideia do político. Tal 
conceito de político no qual se confundem os dois polos da comunidade do poder, tem um 
sentido? Alguma vez existiu uma sociedade que realizasse esse conceito? Creio que sim. E 
vejo até duas – e nenhuma delas é qualquer uma. Vejo justamente a Grécia clássica e... os 
índios do Brasil de antes da descoberta! 
 Consideremos, de fato, as sociedades indígenas da floresta, tais como descritas por P. 
Clastres (La société contre l’État). 
 Existe, é claro, uma instância política, encarnada nos chefes (os mburuvicha). Mas, 
salvo algumas exceções – atestadas por alguns grupos arauak localizados no Noroeste, 
onde a chefias são organizadas em castas – eles não gozam de nenhum poder coercitivo; o 
papel do chefe é apaziguar as querelas, regular as discórdias, não através do uso de uma 
força que ele não possui e que não seria reconhecida, mas fiando-se apenas nas virtudes de 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
7 
 
seu prestígio, de sua equidade e de sua palavra. Mas que um juiz que sanciona, ele é um 
árbitro que procura reconciliar. 
 Logo, segundo a expressão de R. Lowie ele é um “fazedor de paz”, uma instância 
moderadora do grupo – e isso graças unicamente à sua palavra: é por isso que somente um 
bom orador pode ascender à chefia. O dever do chefe não é comandar, mas falar. Ele não 
dispõe de nenhum domínio direto das coisas ou dos homens, mas somente da palavra. Sua 
palavra tem como função reestabelecer a ordem interior lá onde a desordem ameaça, 
reacomodar a unidade do grupo cada vez que o tecido social estiver correndo o risco de 
esgarçar. Mas esse tecido social e essa unidade da comunidade, não está em seu poder cria-
los, assim como não dispõe de nenhuma arma, de nenhuma polícia ou milícia para garantir 
a ordem; o chefe tem autoridade, mas não tem poder; a unidade e a ordem não emanam 
dele, mas da própria sociedade: confundem-se com ela. Não é ele, portanto, quem exerce o 
poder sobre ela, é ela que exerce o poder sobre ela mesma através e por intermédia da 
palavra do chefe – pelo menos em tempo de paz, pois durante as expedições guerreiras o 
chefe adquire poder soberano e autoridade absoluta sobre todos. Falar para fazer a paz, 
comanda para fazer a guerra, estas são as duas funções opostas do chefe indígena – e, por 
assim dizer, as duas maneiras de garantir a existência da comunidade. Em tempo de paz, a 
coletividade é a fonte de todo poder, e o chefe lhe é subordinado, não tendo senão uma 
função mediadora; em tempo de guerra, o chefe é a fonte de todo poder, exerce uma 
função de comando, e os membros da coletividade lhe são subordinados. 
 Assim, ao contrário de um poder que se exerce do exterior sobre a sociedade, um 
poder que, a exemplo de Estado moderno, dispões do monopólio do direito e da força para 
fazer de um monte de indivíduos um todo, é a própria coletividade que exerce, sem 
nenhuma violência, obrigação ou coerção, se não a sua própria existência, um poder 
absoluto sobre todos os seus membros, sobre todos aqueles que a compõem e que ela 
reúne em uma unidade. É assim que, como escreve ainda uma vez P. Clastres, a 
“propriedade essencial da sociedade primitiva é exercer um poder absoluto sobre tudo 
aquilo que a compõe, é proibir a autonomia de qualquer um dos subconjuntos que a 
compõem, é manter os movimentos internos que alimentam a vida social, conscientes e 
inconscientes, dentro dos limites e da direção desejada pela sociedade” (Lá société contre 
l’État, p.180). Todo esforço da sociedade volta-se para impedir a constituição de um poder 
autônomo e estranho a ela mesma. Podemos ver o que opõe esse tipo de sociedade 
primitiva às sociedades modernas dotadas de um Estado. A sociedade primitiva resiste à 
possibilidade de nascimento do Estado concentrando em si mesma todo o poder possível, 
na coletividade como tal: nada de individual escapa ao império do coletivo. É o inverso do 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
8 
 
Estado moderno: o Estado define-se como poder absoluto e autônomo em relação à 
sociedade e como única autoridade legítima que a controla. Mas, em compensação, essa 
exterioridade do Estado em relação à “sociedade civil”, ou seja, essa onipotência do Estado 
em detrimento da coletividade permite, mais ou menos, a existência de uma esfera de 
liberdade para os indivíduos, deixa uma margem de independência, variável, mas certa, às 
pessoas, às famílias ou aos grupos e garante um “jogo” para os movimentos 
multidirecionais da sociedade e para as ações centrípetas de seus membros, suas opiniões e 
os seus interesses. Ao concentrar no Estado, isto é, fora dela mesma, todo o poder, a 
sociedade moderna renuncia a onipotência da coletividade sobre os indivíduos e os grupos 
sociais. Inversamente, ao concentrar nela mesma todo o poder, que a cada instante só se 
exerce na palavra precária e desarmada do chefe, a sociedade primitiva renuncia a toda 
forma de violência legal, mas renuncia ao mesmo tempo a toda forma de lei, que é o que 
define o livre jogo da ação individual, garantindo-a. É nos regimes totalitários, nazismo ou 
stalinismo, onde são reduzidas a nada a identidade e até a existência da sociedade civil, que 
o Estado, por assim dizer, absorve o poder que, de ordinário, é exercido pela coletividade 
enquanto tal sobre os indivíduos e os grupos, e concentra, por assim dizer, as duas 
onipotências, aquela que é habitualmente sua, o monopólio da força e do dinheiro, e 
aquela que, nas sociedades sem estado, cabe à comunidade, a potência de unidade e de 
conformidade ao coletivo enquanto tal (até mesmo, como é o caso do nazismo, com o mito 
da unidade de proveniência original própria das sociedades primitivas). Assim, o Estado 
totalitário moderno aparece com a absolutização de um poder exercido contra a sociedade, 
assim como a sociedade indígena aparece, simetricamente, como a absolutização do poder 
exercido pela sociedade sobre ela mesma. A “sociedade contra o Estado” dos tupis-
guaranis, respondeu, cinco séculos mais tarde, “o Estado contra a sociedade” dos regimes 
totalitários. 
 Percebe-se, portanto, em que sentido é possível dizer que os índios do Brasil de antes 
da conquista inventaram de certa forma a ideia do político. Justamente no sentido em que 
são “sem fé, sem lei, sem rei”. Isso não é sinal de que vivem de maneira não-política, 
conforme a interpretação dos conquistadores, mas, ao contrário, de que realizam a 
essência do político, sem a medição de uma fé para garantir sua autoridade, de uma lei 
para fazer reinar a ordem e de um rei para ordenar. Não há necessidade de uma fé paraacreditar na palavra do chefe, não é um livro sagrado que dá fundamento ao poder, que 
não precisa ser fundamentado, pois se confunde com a existência mesma do grupo. Não há 
necessidade de rei comandando seus súditos, nem mesmo de uma instância enunciadora 
das leis para viver politicamente. É através dessas ausências, que não são faltas e sim 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
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recusas inconscientes da sociedade, que define a unidade do político. Pois a instância 
comunitária, longe de ser, como é o caso na maioria das sociedades, distintas da instância 
coercitiva, forma com ela uma só, que é a própria instância política. 
 Existe uma outra sociedade histórica que, por vias totalmente diversas, realizou ela 
também a unidade das duas instâncias políticas opostas, aquela pela qual os homens vivem 
juntos e aquela pela qual eles se submetem uns aos outros. Trata-se da cidade grega, mais 
exatamente de Atenas clássica do século V. 
 É sabido, com efeito, que os gregos inventaram uma forma de vida em comum na qual 
o poder político é exercido pela própria comunidade política. Trata-se da “democracia”? De 
fato, costuma-se dizer que os gregos inventaram a democracia. Mas se entendermos por 
democracia aquele regime sob o qual vivemos desde, por alto, o século XVIII, então isso é 
falso. O regime que conhecemos sob esse nome tem uma origem histórica bem diferente 
daquela da Grécia – foi tecido por três revoluções: a inglesa, a americana e a francesa – e 
repousa sobre princípios totalmente diversos daqueles da democracia ateniense, que aliás 
não se chamava a si mesma de “democracia”, mas de “isonomia” (lei igual ou distribuição 
igual do poder). 
 Há, no entanto, entre os dois regimes, a “democracia” antiga e a moderna, dois 
princípios gerais comuns, aliás, complementares. O princípio de soberania do povo e o 
princípio da igualdade política de todos os membros da comunidade política. Esses 
princípios comuns são suficientes para que se diga que, nos regimes que hoje chamamos de 
democráticos, é a coletividade que exerce o poder sobre ela mesma? Não, pois esses dois 
princípios gerais encontram-se completados e realizados em nossos dias em dois princípios 
particulares que têm justamente como objetivo, ou pelo menos como efeito, garantir a 
exterioridade entre a comunidade e o poder, enquanto na democracia antiga, ao contrário, 
esses dois princípios gerais veem-se completados e realizados em dois princípios 
particulares que têm como finalidade garantir a mais completa identidade possível entre as 
duas instâncias constitutivas do político. 
 Nos regimes modernos, de fato, o primeiro princípio, o da soberania popular, se 
exerce e se realiza por meio de representantes (os deputados, os senadores, talvez os 
ministros) – o que é uma ideia perfeitamente estranha aos gregos e totalmente estranha à 
tradição democrática. Recordemos os propósitos severos de Rousseau contra a ideia de 
representação: “A soberania não pode ser representada, pela mesma razão que não pode 
ser alienada...”; e o povo que vive sob este regime [o povo inglês] pensa em ser livre; está 
muito enganado, ele só o é durante a eleição dos membros do parlamento; tão logo estes 
são eleitos, ele se torna escravo, ele nada é. Nos curtos momentos de sua liberdade, o uso 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
10 
 
que faz dela bem merece que ele a perca (Do contrato social, III, XV). E, como mostra B. 
Manin em seu livro Príncipes Du Gouvernement Representatif, o regime de representação 
destinava-se justamente, no espírito de seus fundadores, a afastar os membros da própria 
comunidade das decisões políticas e as reserva-las para alguns cidadãos particularmente 
selecionados. Ao contrário, na democracia o princípio de soberania popular se realiza 
imediatamente, e essa soberania se exerce na Assembleia do Povo, a Ekklesia, que é a 
responsável em conjunto pelas principais decisões tomadas pela comunidade e para esta, a 
Polis: lá, as proposições são feitas por qualquer cidadão, e, depois de debatidas, as decisões 
são tomadas por maioria de votos. Pode-se perceber que em um dos casos a ideia de 
soberania popular não impede a constituição de um órgão de poder independente da 
própria comunidade (o Parlamento) e a constituição de um grupo, aquele dos “homens 
políticos”, especializado nos negócios de todos, enquanto, no outro caso, todo o esforço da 
instituição política parece destinado a garantir o exercício real do poder político por todos 
aqueles que fazem parte da comunidade política. 
 Nos dois regimes – “democracia” antiga e moderna – o princípio geral de soberania 
popular é completado por um segundo, a igualdade política de todos os membros da 
comunidade. Mas ainda uma vez, tal princípio se realiza de duas maneiras opostas. Entre 
nós, os Modernos, essa igualdade se realiza essencialmente na operação de escolha dos 
governantes, a eleição dos representantes segundo o princípio do sufrágio universal; uma 
cabeça, uma voz. E nada nos parece mais democrático que esse princípio. Não era assim 
entre os gregos, para quem a eleição é, por definição, um princípio antidemocrático, o 
princípio de governo que eles mais frequentemente opõem à democracia é a oligarquia. De 
fato, no espírito de seus defensores, a eleição serve para selecionar a priori aqueles que, no 
entendimento geral, são mais competentes para exercer determinados cargos dirigentes 
essenciais. Portanto, o duplo pressuposto da eleição é: de um lado, apenas “alguns”, os 
melhores, devem exercer as funções de comando; em outras palavras, os interesses de 
todos dizem respeito à competência de alguns (pressuposto “tecno-crático”: poder da 
competência); de outro, um competição entre os pretendentes a tal cargo deve permitir 
que se escolham os melhores – é a eleição, na qual intervêm nascimentos, influência, 
autoridade, reputação pela experiência do passado, proposições para o futuro e outras 
considerações (pressuposto “aristo-crático”: poder concedido aos melhores). Mais uma vez, 
é possível ver que o funcionamento dos regimes pseudodemocráticos modernos tem como 
efeito, se não por fim, confiar a alguns o interesse de todos, reservar o domínio político 
para uma elite especializada, ou seja, separar a instância do poder daquela comunidade. 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
11 
 
 Muito diferente era o que acontecia com os antigos, entre os quais o princípio de 
igualdade não se realizava no sufrágio universal, mas em três instituições complementares 
que realmente complementam o princípio da soberania popular: o igual direito de todos à 
palavra política, a rotatividade dos cargos e o sorteio – instituição absolutamente oposta à 
eleição, e verdadeiramente definidora da democracia antiga. 
 Comecemos então por ele. Na democracia ateniense a seleção dos políticos se fazia 
essencialmente por sorteio. 
 À primeira vista, isso parece absurdo, ainda mais porque sorteio diz respeito a 
numerosas e importantes funções: são escolhidos dessa forma não somente a maioria dos 
“magistrados”, isto é, os funcionários da administração pública (cerca de 600 dos 700 
magistrados do século V), mas também os 500 membros do conselho (a Bouié, Assembleia 
que prepara as reuniões e aplica as decisões da Assembleia do Povo), assim como todos os 
membros dos tribunais populares, os 6.000 heliastas que dispunham de importantes 
funções políticas, pois a Helieia acabava funcionando com uma espécie de “Conselho 
Constitucional” encarregado de controlar a legalidade das decisões da Assembleia. A 
eleição, que está no princípio do regime aristocrático, é a exceção na democraciae não 
concede senão os cargos públicos que necessitavam, aos olhos dos atenienses, de 
competências especiais, essencialmente as funções militares (em particular os “estrategos”, 
o que valeria a Péricles a eleição para tal magistratura quase vinte vezes) – às quais virão se 
juntar no século IV as magistraturas financeiras. Como explicar essa instituição do sorteio, 
que parece politicamente enigmática e mesmo irracional, pois, conforme observam os 
antigos adversários da democracia, Xenofonte e Platão, permite que qualquer um, não 
importa quais sejam suas aptidões, exerça uma função pública? 
 O sorteio democrático por muito tempo pareceu tão irracional para os historiadores 
modernos, que outrora eles o explicavam por razões religiosas. A sorte, diziam eles, não era 
para os gregos um acaso cego, mas vontade divina: são os deuses e não os homens que 
escolhem aqueles que desejam colocar à frente da Cidade. Essa interpretação é, hoje, 
unanimemente rejeitada. Observa-se primeiramente que a aparente irracionalidade da 
instituição é temperada pelas seguintes considerações: não poderiam ser escolhidos senão 
os candidatos voluntários, o que, tendo em conta o peso dos encargos e dos ricos incursos 
em caso de má gestão, implicava uma auto seleção severa; depois os candidatos eram 
submetidos a um exame não de suas competências, mas suas virtudes cívicas, em seguida, 
todos os cargos sorteados eram assumidos colegialmente, o que diminuía os efeitos 
nefastos de escolhas infelizes e conferia um papel determinante à deliberação coletiva; por 
fim, cada magistrado poderia ser suspenso em curso de mandato por um voto da 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
12 
 
Assembleia, sob a simples acusação de qualquer cidadão, e deveria de todas as formas, ao 
final do mandato, “prestar contas” publicamente de sua gestão. 
 Mas não basta que a irracionalidade do sorteio seja temperada por essas condições de 
aplicação para que possa ser justificada politicamente. Ele se torna, contudo, facilmente 
explicável e perfeitamente legítimo na medida em que se guardam na memória os 
conceitos que destacamos: o sorteio é o sistema mais eficaz para impedir a constituição de 
uma instância do poder distinta da instância da comunidade – e em última instância oposta 
a ela; é também o único sistema que permite que todos os membros da comunidade, 
enquanto tais e não políticos especializados, participem de seu governo. Examinemos essa 
questão mais de perto. 
 Para compreender melhor a razão de ser sorteio, é preciso aproximá-lo de um outro 
princípio do funcionamento da democracia, o princípio da “alternância de cargos”, que 
significa duas coisas: para começar, negativamente, que ninguém poderia exercer por duas 
vezes o mesmo cargo – o que implica, dado o número de postos a preencher em relação ao 
número de cidadãos, que uma proporção importante deles deveria ser levada, mais dia 
menos dia, ao exercício de uma função pública; mas o princípio de alternância implica 
também, positivamente – é um ponto sobre o qual os democratas gregos insistiam – que 
todo cidadão deveria ser alternadamente “governante e governado”. 
 É justamente o que define, para Aristóteles, a virtude cívica; “ser capaz de bem 
comandar e bem obedecer” (Pol. III, 1277.27). Só pode comandar bem, deleitavam-se os 
gregos a repetir, quem obedeceu. 
 Conforme observa B. Manin: “A alternância dos cargos fundamentava assim a 
legitimidade do comando. O que conferia títulos de comando era o fato de ter ocupado a 
outra posição” (Príncipes Du Gouvernement Representatif, p.46). E tem mais: “na medida 
em que aqueles que comandavam num dia haviam obedecido anteriormente, eles tinham a 
possibilidade de levar em consideração, em suas decisões, o ponto de vista daqueles a 
quem as decisões eram impostas(...) Melhor ainda(...): aquele que comandava num dia era 
dissuadido de tiranizar seus subordinados porque sabia que teria, em outro dia, que 
obedece-lhes”. 
 O princípio da alternância e o princípio do sorteio foram, portanto, um sistema e 
definem um regime que visa à mais perfeita adequação entre aqueles sobre os quais se 
exerce o poder – ou seja, a comunidade – e aqueles que o exercem, a mais perfeita 
identidade entre os dois polos do político. 
 Mas esse princípio do sorteio democrático – oposto ao princípio oligárquico da eleição 
– formam um sistema sobretudo com a instituição complementar que realiza a igualdade 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
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dos membros da Cidade democrática, a isegoria. Sabe-se que, na Assembleia do Povo, 
órgão da soberania popular, todos os cidadãos são convidados a se levantar para opinar 
sobre a decisão a ser tomada ou a lei a ser votada. De forma que a democracia implica não 
apenas que se tomem decisões em maioria, mas, sobretudo que a eles se chegue por meio 
do debate público, isto é, da defesa argumentada das decisões opostas. E lá onde prevalece 
a autoridade da deliberação coletiva domina a persuasão e, portanto, a retórica. É o que 
acontece em todos os lugares políticos em que se joga coletivamente a sorte da Cidade: 
tribunais, assembleias populares ou reuniões comemorativas. É o que observa Aristóteles, 
que assim nos leva a distinguir três tipos de retóricas, nas quais se opõem o justo e o 
injusto, a fim de julgar o que foi feito no passado (retórica judicial do tribunal); o útil e o 
inútil, a fim de julgar o que convém fazer no futuro (retórica política da Assembleia do 
Povo); ou o bem e o mal, a fim de que a Cidade possa lembrar seus valores presentes 
(retórica epidictica das reuniões cívicas). 
 Mas isso leva Aristóteles a fundar o caráter naturalmente político do homem em sua 
aptidão para a palavra, pois o homem está não somente predisposto a viver em sociedade 
(apto a viver em comunidade, como outras espécies gregárias) – o que, segundo a análise 
que propusemos, é apenas uma das duas condições do político – mas também a nela viver 
politicamente, isto é, a colocar justamente a questão do poder – o que constitui para nós o 
outro polo do político. Essa aptidão para o poder, no entanto não se manifesta de modo 
algum, para Aristóteles, na capacidade natural de certos homens para comandar, por 
exemplo, mais precisamente na aptidão de todos para falar – a falar não para dar ordens 
aos outros ou para expor-lhes a ordem do mundo, mas para argumentar, opor prós e 
contras, dizer o bem e o mal, o justo e o injusto. 
 Ora, o que é notável é que essa ligação entre o político e a linguagem está inscrita na 
instituição mesma da isegoria: todos os homens, e todos os homens igualmente, 
simplesmente na medida em que falam, estão aptos a viver em comunidade e, 
precisamente porque falam e podem dizer o justo e o injusto, a participar do poder da 
referida comunidade. Encontra-se no funcionamento da isegoria até mesmo uma aplicação 
do princípio igualitário idêntica àquela que se encontra na instituição do sorteio. De um 
lado, o órgão supremo da decisão política, a Assembleia: através da instituição da 
democracia direta, ela está aberta igualmente a todos os membros da Cidade, e, pela 
instituição isegoria, a palavra é dada a todos os cidadãos voluntários, de modo que todos 
aqueles que querem colocar sua opinião a serviço da Cidade podem pesar igualmente na 
decisão, qualquer que seja a sua competência a priori; o funcionamento é no fundo análogo 
para as magistraturas, órgãos do governo e de administração pública: elas são abertas 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
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igualmente a todos o membros da Cidade e, através da instituição do sorteio, a tarefa é 
confiadaa todos os cidadãos voluntários, de modo que todos aqueles que queiram colocar 
as próprias qualidades a serviço da administração pública possam pesar igualmente, 
qualquer que seja a sua competência na priori. 
 Pode-se ver, portanto, como a Cidade grega e seu regime isonômico, bem melhor que 
as ditas democracias modernas, aplicam, em seus princípios de funcionamento, os 
princípios gerais de soberania popular e de igualdade a todos. A democracia moderna aplica 
o princípio da soberania popular por meio de representantes e não dá igualdade a todos 
senão como direito de eleger os próprios representantes. Tudo se passa como se esse 
regime se esforçasse para constituir, fora da comunidade política da qual ela deveria 
emanar, uma instância separada encarregada de exercer sobre ela o poder e de governa-la 
do exterior. A democracia antiga, ao contrário, aplica o princípio de soberania popular por 
intermédio da isegoria, e, além disso, dá, através do sorteio, direito igual a todos de 
participar da administração pública. Tudo se passa como se esse regime se esforçasse para 
impedir qualquer dicotomia entre a comunidade e o poder e para reconciliar a duas 
instâncias do político. De modo que, a despeito de seus dois princípios aparentemente 
comuns, a democracia antiga e a democracia moderna são na verdade dois sistemas 
opostos. A democracia parlamentar permanece sendo um regime politicamente “bipolar” 
entre comunidade e poder, entre governados e governantes, entre coletividade de todos 
aqueles que vivem politicamente e a casta estreita daqueles que vivem de política, mesmo 
que – por oposição a todos os outros regimes – a ideia de representação pareça oferecer a 
garantia de que o segundo polo saiu do primeiro, que é um reflexo deturpado, filtrado, 
como que ideal. Por oposição, a cidade democrática oferece um raros exemplos de regime 
“unipolar”, em que nenhum grupo particular da coletividade monopoliza o político e onde 
nenhum setor particular da vida pública é excluído da vida política. É como se tudo o que 
fosse comum fosse político porque todos aqueles que participam do comum são políticos. É 
por isso que a Atenas democrática nos parece uma das raras sociedades a não viver 
politicamente, seria o caso de todas, mas para inventar uma maneira política de viver 
baseada na essência una do político. 
 Desse ponto de vista, e a despeito do abismo que separa as duas sociedades, suas 
dimensões, seu modo de produção econômica, suas relações sociais, seu estágio de 
desenvolvimento técnico, sua cultura, sua história, existe justamente uma analogia entre a 
tribo tupi-guarani de antes da descoberta do Brasil e a Cidade ateniense. Tudo passa como 
se uma e outra se esforçassem para impedir a constituição de uma esfera do poder político 
autônoma. Sem dúvida, nos dois casos verifica-se certamente o exercício de uma função 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
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propriamente política e órgãos encarregados de exercê-la: o chefe entre os Índios, as 
Assembleias e magistrados em Atenas. Mas, a despeito das aparências, nem um nem os 
outros são distintos da sociedade. Eles não têm, por eles mesmos, nenhum poder, sua 
autoridade depende de um poder que está na própria sociedade, a coletividade tribal de 
um lado, a Cidade reunida do outro. O chefe indígena não tem nenhum outro poder se não 
aquele de que a coletividade dispõe sobre seus próprios membros e que ele se limita a 
relembrar em seus discursos. Assim também, o que permite que os órgãos políticos 
governem Atenas não é o seu próprio poder, pois eles não são em sua composição como 
em seu modo de funcionamento, mais do que uma comunidade, ela mesma sendo atriz de 
sua própria vida, sujeito e objeto do político. E, assim como p. Clastres pode falar da tribo 
indígena como de uma “Sociedade contra o Estado”, pode-se dizer que Atenas era uma 
“Cidade contra o Estado”, se entendermos por Estado o aparelho que, nas sociedades 
modernas, monopoliza o poder político, isto é, o direito e a força que se impõe a todos. 
 Talvez seja possível levar mais longe o paralelo. Vimos que a tribo indígena é política 
justamente ao ser, como, sem perceber, bem diziam os primeiros colonos, “sem fé, sem lei, 
sem rei”. Assim também, mutatis mutandis, para a Cidade grega. É claro, como os índios, os 
gregos são religiosos; seus deuses são até deuses cívicos. Mas, como observa M. Finley, “a 
religião não fornecia nenhuma justificação doutrinal ou ética, no sentido próprio, nem para 
a estrutura do sistema [político] como um todo, nem para as ações realizadas ou projetadas 
pelo poder”. 
 Da mesma forma, os gregos clássicos não tem um monarca – é, aliás, o que chocava os 
seus visitantes estrangeiros na antiguidade, assim como chocava os conquistadores 
ocidentais dos índios no século XV. Ao arauto de Tebas que se espanta como tal ausência, 
Teseu responde, em As Suplicantes: “Esta cidade não é governada por um só homem; ela é 
livre. Nela o povo é rei; cada um recebe o poder alternadamente por um ano. Ela não 
concede nenhum privilégio à fortuna, mas os pobres e os ricos nela possuem direitos iguais 
(404-408)”. Por fim, sem dúvida, os gregos dispõem de leis, ao contrário dos índios – eles 
talvez até sejam os inventores da ideia moderna de lei, fórmula geral que determinam 
direitos e deveres sem distinção de pessoa. Mas não dependem de nenhuma lei anterior 
nem exterior a seu próprio poder absoluto de legiferar, não obedecem a nada além das leis 
que conscientemente deram a si mesmos, e enquanto eles próprios não se dotarem de 
outras. Conforme observa 
C. Castoriadis, no caso da Grécia antiga, existe um “reconhecimento do fato de que a fonte 
de lei é a própria sociedade, de que nós fazemos nossas próprias leis, de onde resulta a 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
16 
 
abertura da possibilidade de colocar em causa e em questão a instituição existente da 
sociedade, que não é mais sagrada”. 
 Nesse sentido, o momos grego, que no século V significava apena “costume” e 
opunha-se à necessidade, à constância e à universalidade da natureza, é tão frágil e 
precário quanto a palavra do chefe indígena. Em todo caso, nada que o iguale ao absoluto 
de uma lei fundamental, à onipotência de um texto canônico ou à ideia moderna de “lei da 
natureza”, necessária e universal. De modo que, do ponto de vista do fundamento de suas 
instituições políticas, pode-se muito bem dizer que os gregos, eles também, são “sem fé, 
sem lei, sem rei”. 
 Eis então o primeiro princípio, aquele da soberania: nossas duas sociedades, indígena 
e grega, têm soberania absolutas sobre si mesmas. Mas existe um segundo princípio 
fundamental à unidade do político, aquele da igualdade de todos os membros do corpo 
social diante do poder. Vimos como todo esforço das instituições governamentais 
atenienses era de preservação. Pode-se mesmo acrescentar uma outra instituição estranha 
e típica da democracia grega, o ostracismo, que permitia excluir da Cidade por dez anos 
qualquer cidadão cuja reputação eminente ou cujas qualidades excepcionais pareciam 
constituir uma ameaça à democracia e um risco de retorno à tirania. Com isso, a Cidade 
parecia dizer a quem queria ser chefe: lembra-te de que não és mais que os outros. 
Encontra-se o mesmo igualitarismo entre os índios. P. Clastres escreve: “Em virtude mesmo 
do estreito controle ao qual a sociedade submete, como todo o resto, a prática do líder, 
raros são os casos de chefes colocados em situação de transgredir a lei primitiva: tu não és 
mais que os outros”. Pois em sua relação normal com seus semelhantes, o chefe não se faz 
chefe. Esse é o testemunho do cacique Alaykin,chefe de uma tribo abipone do Chaco 
argentino, respondendo a um oficial espanhol que queria convencê-lo a lançar sua tribo em 
uma guerra que ela não desejava: “Os abipone, por uma ordem recebida de seus ancestrais, 
fazem tudo de seu jeito e não do jeito de seu cacique; se eu usasse as ordens ou a força 
com meus companheiros, logo eles me voltariam às costas. Prefiro ser amado por eles e 
não temido por eles” (Lá société contre l’État, p. 177). 
 Existe ainda um último ponto comum entre nossas duas sociedades. Vimos que, 
segundo suas funções ordinárias, o chefe deve garantir a unidade e a perenidade do grupo 
apaziguando os conflitos internos unicamente através da autoridade de sua palavra. Mas o 
chefe tem também uma função excepcional em caso de agressão exterior. Essas duas faces 
da vida política encontram-se em todas as sociedades, conforme já observamos, mas na 
Atenas clássica elas se apresentam da mesma maneira que entre os indígenas. De fato, os 
textos antigos que descrevem a vida política associam frequentemente os dois tipos de 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
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líderes da Cidade em uma expressão única, “os oradores e os generais”, uma fórmula que 
reunia, por assim dizer, os dois meios políticos de garantir a existência da comunidade: a 
palavra entre amigos (os cidadãos) e a guerra com os inimigos. Recordemos, além disso, 
que os militares, e notadamente os estrangeiros, fazem parte das raras magistraturas 
eleitas, isso é, daquela que supõem uma competência e, sobretudo, uma autoridade 
reconhecida e aceita por todos (como aquela do chefe militar das sociedades indígenas). É 
como se as duas sociedades inventoras do conceito de política colocassem em evidência em 
suas instituições as duas relações possíveis entre a comunidade e o poder. No interior, em 
tempo de paz, o poder vem da comunidade, pois quem quer que seja, chefe indígena ou 
orador ático, não dispõem senão da força persuasiva de sua palavra, e suas opiniões não 
têm efeito, exceto quando encontram a adesão coletiva. No exterior, em tempo de guerra, 
o poder vem do exterior da comunidade, do guerreiro indígena ou do estratego ateniense: 
é como se ela lhe delegasse por um tempo, aquele em que sua própria existência se 
encontra ameaçada, seu próprio poder, um poder do qual, do ordinário, ela não abria mão 
e que se confunde com a potência de falar para convencer. 
 Pois é evidentemente pelo papel central, e por assim dizer único, que nossas duas 
sociedades, indígena e grega, concedem à arte da retórica, na vida política, que elas são as 
mais próximas uma da outra. Sabe-se que, na Atenas clássica, o nascimento e o 
desenvolvimento da retórica estão ligados ao nascimento e ao desenvolvimento da 
democracia. E é bem natural: se é o povo que é soberano, e não um homem ou uma casta, 
o poder real vem não daquele que fala, mas daqueles a quem ele se dirige. São eles que 
decidem. A única competência possível, nessa concepção do político onde não existe 
competência política, é a arte de persuadir, a retórica. Por isso, pode-se dizer que Atenas é 
uma “civilização da palavra pública”. Tudo que deriva do comum, isto é, comunicado pela 
palavra. O mesmo acontece, conforme vimos, com o chefe indígena. Como ele não tem 
outro poder que não aquele que lhe vem de todos, não tem outra função a não ser a de 
falar, e uma só competência exigida, a retórica. 
 Mas façamos um resumo. Eu deveria, no quadro de um ciclo sobre a descoberta do 
Brasil, falar-lhes da invenção da política na Grécia. Mas todas as sociedades, não importam 
quais sejam, parecem inventar a política à sua maneira, pois todos os homens, sempre, 
vivem politicamente, ou seja, em comunidades políticas e em conformidade com relações 
de poder, sendo os dois constituintes heterogêneos do político. Eu não deveria, portanto, 
ter aceitado esta conferência. No entanto, percebemos que existem sociedades cujas 
instituições inventam a ideia do político, pois conseguem reunir os dois polos opostos – e 
trata-se justamente das sociedades indígenas do dos tempos do descobrimento e das 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
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Cidades democráticas gregas. Em certo sentido, portanto, fiz bem, finalmente, em aceitar o 
desafio. Com a condição de frisar que a Atenas antiga, a despeito da inventividade 
extraordinária de suas instituições políticas, não gozava, no plano dos princípios, de 
nenhuma exclusividade, pois parecia apenas ter reencontrado a intuição primeira de certas 
sociedades primitivas, notadamente as indígenas, e inscrito em suas instituições o seu 
princípio fundamental: a comunidade é o princípio e o fim de todo poder; 
consequentemente, a coletividade é soberana, e todos os seus membros o são igualmente. 
Tal seria então a invenção do político. 
 Invenção do político, talvez. Mas trata-se da invenção da política? Não haveria, desse 
ponto de vista, um privilégio dos gregos? 
 Retomemos o último ponto comum entre os índios tupis-guaranis e a Atenas clássica, 
a onipotência da retórica, e vejamos de fato como ela se realiza nos dois casos. O que faz o 
chefe indígena para persuadir os eventuais criadores de tumulto a se acalmarem? P. 
Clastres observa que “os meios do chefe limitam-se ao uso exclusivo da palavra nem sequer 
para arbitrar as partes, pois o chefe não é um juiz e não pode, portanto, tomar partido de 
um ou de outro, mas para tentar, armado unicamente de sua eloquência, persuadir as 
pessoas de que é preciso apaziguar-se, renunciar às injúrias, imitar os ancestrais que 
sempre viveram em bom entendimento” (Lá société contre l’État, p.176). Assim, a palavra 
do chefe “não é feita para ser ouvida”. Ritualizada, ela diz, cotidianamente e em horas fixas: 
“Nossos antepassados estavam bem vivendo como viviam. Sigamos o seu exemplo e, dessa 
maneira, levaremos juntos uma vida agradável” (ibid, p.135). Operemos essa retórica 
àquela dos oradores áticos. 
 Três traços as distinguem. Enquanto a palavra do chefe é uma palavra essencialmente 
repetitiva, ritualizada, cujo conteúdo é mais ou menos sempre o mesmo, não importa quem 
sejam os ouvintes ou a situação crítica, é rompendo com todas as formas rituais de discurso 
que nasce a retórica. O orador de Assembleia deve inventar argumentos sem cessar, 
modelá-los para seu público particular e sobretudo adaptá-los à situação presente e a crise 
singular que a Cidade enfrenta. É por isso que é tão difícil ser um bom orador; também é 
por isso que, desde a aparição da retórica no século V, proliferam Manuais retóricos que 
tentam inferir os procedimentos de persuasão dos auditórios. Mas nenhum deles, nem 
mesmo o de Aristóteles, vai conseguir enunciar receitas gerais de sucesso, fixas e certas, 
pois a regra de ouro do discurso é aquela do misterioso kairos, regra sem regra, princípio de 
oportunidade e ocasião. 
 Há uma segunda diferença entre os dois usos da retórica, o do chefe indígena e o dos 
oradores antigos. O discurso do chefe é, por assim dizer, dele para a comunidade. Não é 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
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assim entre os gregos. Sem dúvida, por oposição à dialética, que é a arte da argumentação 
dialogada, a retórica antiga é uma arte do discurso monológico. O orador grego fala 
sozinho; portanto, para a comunidade reunida. No entanto, seu discurso opõe-se, de direito 
e frequentemente de fato, a um outro discurso que sustenta – ou poderia sustentar – a tese 
contrária. É assim nos tribunais, na Assembleia ou nas reuniões cívicas. Trata-se sempre de 
sustentar uma tese contra uma outra, de opor os prós e os contras: é justo ou injusto 
condenar Sócrates, é útil ou nocivo aCidade construir longos muros, é feio ou bonito 
vingar-se dos inimigos? Em outras palavras, a retórica grega é sempre virtualmente 
antilógica – e é por isso que ela permite, como diz Aristóteles, “concluir os contrários” (Ret. 
I, 1355 a 33). Pode-se ver, desse ponto de vista, tudo que a contrapõe à arte oratória do 
chefe indígena. Este não precisa saber concluir os contrários, não tem necessidade de opor 
o pró e o contra, sua argumentação não se choca com nenhuma argumentação que deveria 
ser refutada. De fato, ele se contenta em invocar a necessidade de fazer cessar a discórdia 
entre membros da comunidade. Mas o que o orador faz é justamente o inverso! A Cidade 
grega coloca em cena incessantemente a oposição de teses, põe em evidência à 
contradição no discurso, representa na palavra a oposição trágica dos contrários. A retórica, 
e também a política grega, imita a guerra na palavra. Ela representa o máximo de 
contradição no mínimo de violência, pois toda oposição se exprime e se resolve na 
linguagem. No interior da cidade, só conta o logos; entre cidadãos, só vale a luta dos 
argumentos, enquanto no exterior o combate é real, a luta armada. É como se nessa 
disputa interna, que causa tanto temor aos membros da sociedade primitiva a ponto de 
eles fazerem tudo para apaziguá-la, para negá-la, a sociedade grega se deleitasse em 
afirmá-la, em exacerbá-la – jogá-la politicamente para evitar que se torne apolítica. 
 E há uma terceira diferença entre as duas retóricas, e não se refere mais à forma do 
discurso ou a seu contexto, mas à sua mensagem. O chefe indígena tem um argumento 
essencial para manter a ordem: a imitação dos ancestrais: como estes últimos permitiram 
que a sociedade se perpetuasse tal como era, até a sociedade tal como é, deve-se voltar a 
harmonia de ontem para encontrar a harmonia de hoje; e basta, para fazer cessar a 
desordem presente, retornar à ordem passada e perpetuá-la no futuro. A sociedade deve 
enfrentar as crises tomando o seu passado como único modelo. A verdade política existe no 
eterno ontem, e basta repeti-la. É o inverso na cidade grega. Como diz Aristóteles, a 
retórica política tem por objetivo não o passado, mas o futuro: o que fazer amanhã, que 
decisão tomar, o que é mais útil? Ela tem que enfrentar situações sempre novas e inventar 
respostas originais, resolver as crises sem que nenhuma solução esteja antecipadamente 
garantida – e é justamente por isso que nenhuma argumentação pronta é universalmente 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
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válida; por isso é preciso opor os prós e os contras, argumentar sem jamais ter nenhuma 
certeza a priori da verdade, pois esta não está inscrita em parte alguma, em nenhum 
modelo preestabelecido. 
 Portanto, as três diferenças entre as retóricas se completam. É porque faz apelo à 
repetição da ordem antiga que o discurso do chefe indígena é repetitivo; é porque é 
garantida a priori pela existência passada da comunidade que sua argumentação corre em 
sentido único. Ao contrário, é porque a Cidade afronta uma ordem sempre nova que o 
discurso dos oradores deve ser sempre oportuno; é porque ela não encontra no futuro 
incerto nenhuma garantia de verdade que a argumentação retórica é antilógica e deve 
inventar sem cessar as suas razões. 
 Em suma: entre essas duas maneiras de utilizar politicamente a retórica, há toda a 
distinção existente entre uma comunidade que evita a política e uma outra que inventa a 
política. Pois esta é no fundo a verdadeira diferença, não apenas entre suas retóricas, mas, 
de uma forma mais geral, entre as duas maneiras de nossas duas sociedades inventarem o 
político. Uma inventa o político fazendo tudo para conjurar o risco da política, a outra 
inventa o político inventando também a política, ou seja, pela primeira vez e em uma das 
raras vezes na história, fazendo política. 
 As sociedades indígenas fazem de tudo para não fazer política. Elas resistem com 
todas as forças a tudo aquilo que se assemelha ao poder. Talvez seja a esse temor, a esse 
ódio pela política, e mais particularmente à escala do poder das chefias por ocasiões da 
conquista, que se deve atribuir a reação de fuga das comunidades para esses movimentos 
proféticos em busca da Terra sem Mal. Como se o mal que embaixo fosse a política, isto é, o 
poder de alguns ou a ação coletiva voltada para o futuro. Temendo uma e não podendo 
inventar a outra, eles fugiam e se dissolviam. Como se, ao contrário da Cidade grega, essas 
sociedades primitivas não tivessem conseguido inventar a prática coletiva do poder para 
fazer face a um poder que ameaça se impor fora da coletividade. Aconteceu o contrário na 
Grécia. Havia como que um desejo, um amor pela política. Pois a Cidade ateniense, como 
também todas as outras sociedades, vivia politicamente, mas como nenhuma outra, sem 
dúvida, vivia da política. A invenção da política foi para ela outra vertente da invenção do 
político. 
 O que é, de fato, essa invenção da política pelos gregos? Pode-se defini-la nos termos 
de J. P. Vernant: é a “emergência de um campo privilegiado em que o homem se percebe 
como capaz de regrar por ele mesmo, através de uma atividade de reflexão, os problemas 
que lhe concernem, depois de debates e discussões com seus pares”. 
A Crise do Estado-Nação / A Invenção da Política 
 
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 Portanto, inventar a política não é somente, como inventar o político, fazer com que 
não haja outro poder exceto aquele que a própria comunidade exerce sobre si mesma para 
se perpetuar e proteger; é também inventar os meios para que a própria comunidade tome 
o poder para enfrentar o mundo. Nos dois casos, as comunidades tentam por todos os 
meios, conforme vimos, impedir a constituição de uma casta política separada e 
especializada. Mas não do mesmo modo. A sociedade indígena de defende da tirania de 
alguns confiando a um chefe a incumbência de representá-la junto a ela mesma e de 
chamá-la, de modo incessante, à sua própria ordem. Os gregos fizeram diferente. Costuma-
se dizer com frequência que eles temiam acima de tudo a profissionalização da política. 
Creio que é preciso retificar esse ponto. Não é que eles impedissem a profissionalização da 
política; o que eles evitavam era que alguns fossem profissionais, e não todos. O ideal seria 
uma Cidade em que todos fizessem política profissionalmente. Ideal em parte realizado, 
aliás, com a retribuição aos cargos públicos, tais como a participação nos tribunais, nas 
magistraturas e mesmo nas seções da Assembleia do Povo. Aristóteles via, a justo título, 
nessa misthoforia um dos sinais mais seguros da democracia: em todo caso, é um dos mais 
originais. Nele, pode-se ver, como diz Vidal Naquet, “a tomada de consciência da autonomia 
do político”. Mas é preciso entender, sobretudo que, com essa reforma, Atenas assegurava 
que todos os cidadãos, qualquer que fosse a renda que percebessem, poderiam, não 
apenas de direito mas também de fato, participar do negócios públicos. Ela fazia da 
atividade política negócio de todos e de cada qual um profissional da política. Mas esse 
ideal de uma comunidade que faz política está inscrito não somente em suas instituições, 
mas também em seu imaginário. Para um grego, fazer política é, de fato, o gênero de vida 
mais elevado: como, conforme queria Aristóteles, a vida humana é política, “o que poderia 
ser mais digno de um homem do que viver para a política?” “A identificação de si com a 
política transformada em identidade, fazia com que na vida política (...) fosse considerada 
única”. 
 O estilo próprio da democracia grega não é o triunfo dos valores populares, mas a 
extensão a todos dos valores militantese éticos da nobreza. Enquanto os tupis sonhavam 
com uma coletividade em que fosse possível ser apolítico, uma comunidade em que 
ninguém teria o poder, os gregos sonham com uma Cidade em que todos fossem políticos, 
em que todos tivessem o poder. 
 Podemos ir mais adiante dizendo que a invenção do político entre os tupis e os 
atenienses tem de singular o fato de que eles vivem politicamente, tanto uns com os 
outros, sem fé, sem rei e, de certa forma, sem lei. Podemos então precisar mais as coisas 
em relação a Atenas. A invenção da política é a ideia de que é preciso inventar 
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coletivamente o futuro da comunidade e de que para isso é necessário enfrentar três 
vazios: o Céu, antes de tudo. Sem dúvida, o céu está cheio de deuses, mas eles não decidem 
nada por nós, somos nós que decidimos. Está vazio também o lugar do Mestre, como diria 
C. Lefort: é esse lugar que os índios se recusam a ocupar e que os atenienses querem 
ocupar coletivamente. É vazia, sobretudo, a imagem que a Cidade tem de si mesma, vazia 
de modelo, e por isso, é preciso imaginá-la, construí-la, inventando o que ela será amanhã. 
De modo que a comunidade indígena tenta incessantemente reproduzir sua identidade 
passada, enquanto a Cidade ateniense deve sem cessar inventar sua identidade futura. 
 Em um texto extremamente sugestivo, C. Lévi-Strauss opõe dois modelos de 
sociedade: as sociedades-relógios, que, como as primitivas, são máquinas “frias”, e as 
sociedades-máquina a vapor, que, como as modernas, são máquinas “quentes”. As 
primeiras “produzem extremamente pouca desordem, o que os físicos chamam de 
‘entropia’, e têm uma tendência a manter-se indefinidamente em seu estado inicial, o que 
explica, aliás, o fato de elas nos parecerem sociedades sem história e sem progresso”. No 
lado oposto, as sociedades modernas “utilizam para seu funcionamento uma diferença de 
potencial, que se encontra realizada em diferentes formas de hierarquia social (...) a 
escravidão, a servidão ou (...) a divisão em classe”. 
 É como se elas usassem as diferenças econômicas e a desordem social para criar 
história e progresso. Talvez seja possível aplicar tal distinção à esfera política. Diríamos 
então: dois tipos de sociedade inventaram o político, ou seja, a unidade da comunidade e 
do poder: sociedades frias, como as tribos tupis, e as sociedades quentes, como a Atenas 
clássica. Nas primeiras, é como se a coletividade assimilasse e digerisse todos os poderes 
para fazê-los seus a fim de que ninguém em particular os possua, e se esforçasse para 
reproduzir o seu próprio passado, para manter-se o mais identicamente possível, como um 
relógio – logo, para fazer o menos possível de política. Nas segundas, é como se, ao 
contrário, o poder tivesse tomado conta da comunidade para fazê-la sua a fim de que todos 
dele participem igualmente, de que ela possa produzir seu próprio futuro e seguir 
indefinidamente adiante como uma máquina a vapor, e de que todos façam o máximo 
possível de política. 
 Assim, se nenhuma sociedade inventou a vida política, se os brasileiros de antes da 
descoberta do Brasil inventaram o político, foi com certeza a Atenas democrática que 
inventou a política. 
 Logo, fizeram bem em pedir-me para falar da invenção grega da política na Grécia 
clássica em prelúdio à descoberta da Brasil. Cabe a vocês dizer se fiz bem em aceitar. Em 
todo caso, agradeço a todos por terem me ouvido.”

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