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Politica de Saude Jairnilson Paim

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Políticas de saúde no Brasil 
Jairnilson Silva Paim 
A área de estudos e de produção de conhecimentos conhecida como Política de Saúde passou a ter visibilidade, como disciplina acadêmica e âmbito de intervenção social, na segunda metade do século XX. A criação da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1946, vinculada ao sistema das Nações Unidas (ONU), pode ser considerada uma das referências para a conformação dessa disciplina (Ferrara et al, 1976). Isto não significa que antes dessa época os países prescindissem de executar políticas de saúde ou que faltassem estudos contemplando essa matéria. Apenas deve-se ressaltar que não havia um campo de saber sistematizado nem um conjunto de fundamentos, métodos e técnicas capazes de auxiliar a intervenção. 	
	Na realidade, a preocupação com a saúde das populações e a adoção de medidas governamentais visando o controle sanitário existem desde a Antigüidade. Do mesmo modo, estudos históricos sobre Saúde Pública e Medicina (Rosen, 1980, 1994; Foucalt, 1981) dão conta de parte expressiva do desenvolvimento das intervenções sanitárias nos países europeus e na América do Norte, antes mesmo da Revolução Industrial. O aparecimento da Medicina Social no século XIX, ao ressaltar que a saúde do povo representa um objeto de inequívoca responsabilidade social e que as medidas para promover a saúde e combater a doença deveriam ser tanto sociais como médicas (Rosen, 1980), indicava certas relações entre saúde e sociedade e, consequentemente, as ações sociais organizadas, inclusive através do Estado.	
	Na América Latina, o desenvolvimento da Saúde Coletiva, a partir da década de setenta do século XX (Donnângelo, 1983; Ribeiro, 1991), retomou os princípios básicos da Medicina Social e aprofundou a análise das relações entre a saúde e a estrutura das sociedades, com ênfase na dinâmica das classes e dos movimentos sociais diante do Estado. Nessa época, países desenvolvidos e organismos internacionais já constatavam a crise do setor saúde e propunham a organização de sistemas, o planejamento e a formulação de políticas de saúde (OPS/OMS, 1972; CPPS/OPS, 1975; OPS/CLAD, 1988). 	
	Caminhos alternativos de reflexão e de intervenção foram sendo delineados por instituições acadêmicas de Saúde Coletiva na América Latina e por grupos críticos de alguns países centrais que constituíram distintas entidades tais como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), a Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), a Associação Latinoamericana de Medicina Social (ALAMES) e a Associação Internacional de Política de Saúde (IAHP). 	
	No Brasil, a partir das reflexões pioneiras sobre Política de Saúde (Mello, 1977) foram realizadas as primeiras investigações acadêmicas nesse campo disciplinar (Donnângelo, 1975; Luz, 1979; Braga & Goes de Paula, 1981). Simultaneamente, diante da crise do autoritarismo e da dívida sanitária herdada do “milagre brasileiro” (1968-1973), o Estado implementou um conjunto de programas especiais e campanhas no Governo Geisel, propôs a criação de Sistema Nacional de Saúde (CNS, 1975) e, durante a VI Conferência Nacional de Saúde propiciou uma discussão sobre Política Nacional de Saúde (CNS, 1977). Um documento técnico voltado para a formulação de política de saúde (CPPS/OPS, 1975) serviu de referência para um dos textos desse evento (CNS, 1977). No âmbito acadêmico, diversas instituições de Saúde Coletiva modificaram seus planos de estudo e linhas de investigação de modo que, presentemente, ministram a disciplina Política de Saúde, realizam pesquisas e cooperação técnica nessa matéria, além de apresentarem seus produtos em congressos científicos (Abrasco, 2000). 	
	O presente capítulo tem como objetivo apresentar Política de Saúde como disciplina acadêmica e âmbito de intervenção social, descrevendo o seu desenvolvimento no Brasil em distintas conjunturas. 
 Aspectos conceituais 
	A expressão Política de Saúde abrange tanto as questões relativas ao poder em saúde (natureza, estrutura, relações, distribuição e lutas) como as que dizem respeito ao estabelecimento de diretrizes, planos e programas de saúde. Enquanto a língua inglesa dispõe dos vocábulos politics (referente à existência e ao exercício do poder) e policy (planos de ação), em português a palavra política envolve tanto as dimensões do poder quanto as diretrizes e as intervenções planificadas. Assim, Política de Saúde no discurso oficial pode significar diretrizes e planos de ação, porém, enquanto disciplina acadêmica do campo da Saúde Coletiva, abrange tanto o estudo das relações e do exercício do poder como, também, a formulação e a condução de políticas de saúde. 
	Desse modo, existem pelo menos três concepções subjacentes às definições de Políticas de Saúde: a) um conjunto de princípios, propósitos, diretrizes e decisões de caráter geral (Brasil, 1999) voltados para a questão saúde; b) uma proposta de distribuição do poder no setor (Testa, 1992); c) as formas de intervenção do Estado sobre a organização social das práticas de saúde e sobre os problemas de saúde da população (Teixeira & Paim, 1994). 	
	Neste capítulo preferimos definir política de saúde como a ação ou omissão do Estado, enquanto resposta social, diante dos problemas de saúde e seus determinantes, bem como da produção, distribuição e regulação de bens, serviços e ambientes que afetam a saúde dos indivíduos e da coletividade (Paim, 2002). 	
	No estudo das políticas de saúde são examinadas determinadas conjunturas nos seus aspectos econômicos, políticos e culturais. Assim, é possível identificar fatos através de discursos de autoridades, leis, documentos, intervenções, notícias, manifestações de entidades ou grupos, etc. A partir dos fatos produzidos procura-se investigar determinantes e conseqüências bem como proceder análises prospectivas, recorrendo a diferentes métodos e técnicas. 	
	Numa perspectiva teórica, conjuntura pode ser concebida como a estrutura social (infraestrutura econômica e super-estrutura político-ideológica) em movimento. Na análise de uma dada conjuntura procura-se definir, ainda que de uma forma relativamente arbitrária, um determinado período. Assim, busca-se levantar os principais fatos político-institucionais produzidos e a posição dos atores frente aos mesmos no período. 
 
Desenvolvimento das políticas de saúde no Brasil [1: Neste tópico são utilizados alguns trechos do texto didático Determinantes da situação de saúde no Brasil a partir da República (Paim, 1994). ]
 
Uma revisão sucinta sobre o desenvolvimento das políticas de saúde no Brasil pode contemplar, na história republicana, pelo menos cinco conjunturas: a) República Velha (1889-1930); b) “Era Vargas” (1930-1964); c) Autoritarismo (1964-1984); d) “Nova República” (1985-1989); e) Pós-Constituinte (1989-2002). 
 
a) República Velha (1889 – 1930) 
 
Nesta conjuntura predominavam as doenças transmissíveis como a febre amarela urbana, varíola, tuberculose, sífilis, além das endemias rurais. A ocorrência de epidemias e de doenças pestilenciais no início do século XX, ameaçando os interesses do modelo econômico agrário-exportador, favoreceu uma resposta do Estado mediante a organização de serviços de saúde pública e a realização de campanhas sanitárias. Os trabalhadores do campo (maior parte da população brasileira) e da cidade, bem como seus familiares não tinham acesso aos serviços de saúde. Diante da doença de um indivíduo, o atendimento médico somente era possível para os que podiam pagar ou por intermédio da caridade (Paim, 1994). 
 
Com a República Velha, instalou-se o modo de produção capitalista na sociedade brasileira. Os excedentes econômicos gerados pela produção do café no final do Império e da escravatura permitiram a implantação das primeiras indústrias. Capitais ingleses foram aplicados especialmente nos setores de energia e transporte. Eram criadas as condições para o capitalismo industrial e a República foi entendida como forma de governo capaz de facilitar a nova ordemeconômica. 
		Ainda assim, a economia era basicamente agrário-exportadora, movida pelo capital comercial. Havia um núcleo agrário voltado para o café, a borracha, o açucar e outras matérias-primas, além de um segmento urbano desenvolvendo atividades de financiamento, comercialização, transporte, administração e indústria. Na super-estrutura políticoideológica tinha-se um Estado liberal-oligárquico, representando os interesses agrários de 
São Paulo, Minas (“política café com leite”) e do Nordeste (Braga & Goes de Paula, 1981). 
 
			De acordo com a ideologia liberal dominante, o Estado só deveria atuar naquilo e somente naquilo 	que o indivíduo sozinho ou a iniciativa privada não pusesse faze-lo. Em princípio, não teria porque intervir na saúde. Entretanto, com o aparecimento das indústrias, as precárias condições de trabalho e de vida das populações urbanas propiciaram a emergência de movimentos operários que resultaram em embriões de legislação trabalhista (incluindo certa atenção para o trabalho do menor, para a jornada de trabalho e para os acidentes) e previdenciária (caixas de aposentadoria e de pensões incluindo a assistência médica). A despeito da ideologia liberal, o Estado foi reagindo às condições de saúde da população através de políticas de saúde, normatizando e organizando a produção e a distribuição de serviços. 	
		Diante da epidemia de febre amarela na capital da República, Oswaldo Cruz foi convidado pelo Governo Rodrigues Alves para o seu combate, implantando posteriormente a vacinação obrigatória contra a varíola. Em 1904 realizou uma reforma na organização sanitária ampliando as competências da Diretoria Geral de Saúde Pública e realizou uma missão na Amazônia para organizar as ações sanitários em Manaus (Santos, 1986).	
		Entretanto, não era o conjunto de problemas de saúde e carências da população que passaram a ser objeto de atenção do Estado, mas aqueles que diziam respeito a interesses específicos da economia de exportação (capital comercial): a insalubridade dos portos, a atração e retenção de força de trabalho, as endemias rurais e o saneamento urbano. Quadros calamitosos como epidemias transformavam-se, eventualmente, em demandas políticas e pressionavam a ação estatal no âmbito da saúde. Em nenhum instante, no entanto, se configurava a idéia de direito à saúde (Costa, 1985). 
 
As condições de vida e de trabalho insatisfatórias, porém, propiciaram o aparecimento de movimentos sociais urbanos enfrentados pelo Estado como “caso de polícia” e, posteriormente, como “questão social”. Esta, vista, sob os ângulos da previdência e da saúde pública, teve como respostas sociais, respectivamente: a Lei Eloi Chaves, organizando as CAPs (Caixas de Aposentadorias e Pensões), e a Reforma Carlos Chagas, implantando o novo regulamento do Departamento Nacional de Saúde Pública com três diretorias (Serviços Sanitários Terrestres, Defesa Sanitária Marítima e Fluvial, Saneamento e Profilaxia Rural) e ampliando as suas atribuições (atenção à infância e controle da tuberculose, hanseníase e doenças sexualmente transmissíveis) (Braga & Goes de Paula, 1981). 			Desse modo, a organização de serviços de saúde do Brasil nessa conjuntura emerge de forma dicotômica entre saúde pública e previdência social, separando as ações de prevenção e controle de doenças na população, de um lado, e as de medicina individual (previdenciária, filantrópica e liberal), de outro. 
 
b) “Era Vargas” (1930-1964) 
 
Verifica-se nesse período um predomínio das doenças da pobreza (doenças infecciosas e parasitárias, deficiências nutricionais, etc.) e o aparecimento da chamada morbidade moderna (doenças do coração, neoplasias, acidentes e violências). Tem início uma transição demográfica com redução da mortalidade e certo envelhecimento da população. 	
		A confluência da crise do café, com problemas de preço no mercado exterior, e da crise política da Velha República, em que as diferentes frações da burguesia lutavam pela hegemonia, foi enfrentada por um golpe de estado conhecido como “Revolução de 30”. A autonomia relativa adquirida pelo Estado permitiu mudanças nos seus aparelhos e a ampliação de suas bases sociais. A acumulação capitalista passa ser realizada progressivamente pelo capital industrial, preservando no entanto os interesses das oligarquias agrárias. Instala-se, desse modo, um Estado Nacional possibilitando a emergência de uma política nacional de saúde (Luz, 1979), mediante a instalação de aparelhos executores de políticas de saúde nos quinze anos da ditadura Vargas. 	
		A saúde pública passa a ter a sua institucionalização, na esfera federal, através do Ministério da Educação e Saúde, enquanto a medicina previdenciária e a saúde ocupacional vinculavam-se ao Ministério do Trabalho, recém-criado. Portanto, a organização dos serviços de saúde no Brasil desenvolveu-se de forma trifurcada no âmbito estatal (saúde pública, medicina previdenciária e saúde do trabalhador) e fracionada no setor privado – medicina liberal, hospitais beneficentes ou filantrópicos e lucrativo (empresas médicas). 
			Assim, a organização dos serviços de saúde não se limitava mais a ação da polícia sanitária e das 	campanhas que caracterizaram as políticas de saúde da República Velha. A educação sanitária passou a ser valorizada e as campanhas de controle de doenças foram institucionalizadas, transformando-se em órgãos do Departamento Nacional de Saúde do Ministério da Educação e, depois de 1953, da estrutura do Ministério da Saúde. Merecem destaques, nesse caso, a incorporação dos serviços de combate às endemias (1941), a criação do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) e a instalação do Departamento Nacional de Endemias Rurais (1956). Estes organismos transformam-se depois em Fundação SESP e em Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM), fundidos em FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) três décadas depois (Paim, 1994). 	
		Portanto, as ações do Ministério da Saúde e das secretarias de saúde estaduais e municipais concentravam-se na execução de campanhas sanitárias e de programas especiais (maternoinfantil, tuberculose, endemias rurais, hanseníase, etc) bem como na manutenção de centros, postos de saúde e serviços de pronto-socorro, maternidades, hospitais específicos de psiquiatria, tisiologia, etc. para onde recorriam os segmentos da população não beneficiários da medicina previdenciária e que não podiam pagar pela assistência médicohospitalar particular. 	
		Para os trabalhadores urbanos com carteira de trabalho assinada, o desenvolvimento da previdência social realizou-se mediante a organização de vários Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) por categorias: marítimos (IAPM), comerciários (IAPC), bancários (IAPB), transportes e cargas (IAPETEC), servidores do Estado (IPASE), etc. Com os IAPs verificou-se o crescimento da medicina previdenciária na primeira metade do século, permitindo o acesso desses trabalhadores urbanos e seus familiares à assistência médico-hospitalar. O mesmo não ocorreu com os trabalhadores rurais, com os empregados domésticos, com os desempregados e com os vinculados ao chamado “mercado informal” (Paim, 1994). 		
		A medicina se exercia sob a modalidade liberal para os segmentos da população que podiam pagar por serviços particulares, embora fosse incorporando a modalidade empresarial vendendo serviços no mercado que se estruturava ou ao Estado mediante contratos com os vários IAPs. Diante das pressões por consumo de serviços de saúde, especialmente da população urbana, de um lado, e os interesses clientelistas que marcaram a atuação de governos populistas até 1964, de outro, houve uma expansão dos IAPs e da medicina previdenciária. Apesar da criação do Ministério da Saúde em 1953, a assistência médico-hospitalar vai superando, progressivamente, as ações e serviços de saúde pública, fornecendo as bases para a capitalização do setor saúde e da medicina na conjuntura seguinte (Paim, 1987). 
 
c) Autoritarismo (1964-1984) 
 
As condições de saúde da populaçãobrasileira, expressas em diferentes indicadores, permaneceram críticas. A mortalidade infantil, cujas taxas reduziram-se entre as décadas de 40 e 60, sofreu uma piora após 1964, juntamente com o aumento da tuberculose, malária, doença de Chagas, acidentes de trabalho, etc. (Guimarães, 1978). O perfil epidemiológico refletia a concomitância da morbidade moderna com a morbidade da pobreza, embora com o predomínio da primeira: as doenças do aparelho circulatório passaram a ser a causa mais importante de morte no Brasil nos anos 80. Mesmo no período do chamado “milagre brasileiro” (1968-1973), não houve melhoria do quadro sanitário, destacando-se a grave epidemia de meningite no início da década de setenta. Somente no período pós-74 ocorreram melhorias localizadas em relação às doenças transmissíveis, particularmente as controláveis por imunização. 	
		O desenvolvimento econômico verificado na década de 50, baseado na substituição de importações, passou a enfrentar dificuldades no início da década seguinte, exatamente num período de maior mobilização de massas urbanas que pressionavam por melhores condições de vida e por reformas sociais (as chamadas reformas de base). O pacto populista que até então possibilitava a manipulação as demandas dos trabalhadores em função dos interesses das classes dirigentes ficou comprometido com o aumento das tensões sociais. Ocorre mais um golpe militar em 1964, instalando um regime autoritário com a duração de 21 anos. 	
		Superada a etapa inicial de estagnação, a ditadura proporciona um desenvolvimento mediante a internacionalização da economia assentada em um tripé básico: capital nacional, Estado e capital multinacional. Verifica-se a consolidação do capitalismo monopolista de Estado (CME) com a contenção dos salários dos trabalhadores e repressão dos opositores ao regime (sindicalistas, intelectuais, estudantes, artistas, etc.). O modelo econômico adotado concentrou a renda, reforçou as migrações do campo para a cidade e acelerou a urbanização, sem garantir os investimentos necessários à infra-estrutura urbana como saneamento, transporte, habitação, saúde, etc. (Guimarães, 1978). 	
		As políticas de saúde executadas pelos governos militares privilegiaram o setor privado, mediante compra de serviços de assistência médica, apoio aos investimentos e empréstimos com subsídios. Nesse sentido promoveu a unificação dos IAPs em 1966 criando o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), responsável tanto pelas aposentadorias e pensões (benefícios) quanto pela assistência médica dos segurados da previdência e seus familiares. Em 1973, o governo propiciou a extensão da medicina previdenciária aos trabalhadores rurais através do FUNRURAL, ainda que de forma diferenciada. No ano seguinte, foi criado o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) que implantou o Plano de Pronta Ação (PPA), possibilitando às clínicas e hospitais particulares contratados pela Previdência Social a atenderem casos de urgência de qualquer indivíduo, segurado ou não (Paim, 1994). 	
		A crise do setor saúde foi caracterizada pela insuficiência, descoordenação, má distribuição, inadequação e ineficácia aos serviços durante a V Conferência Nacional de Saúde (V CNS), realizada em 1975. Nessa oportunidade o Governo apresentou a proposta de criação do Sistema Nacional de Saúde através da Lei 6229/75 que definia as atribuições dos diversos ministérios envolvidos com a questão saúde, bem como as responsabilidades da União, dos estados e dos municípios (CNS, 1975) 		A oposição efetuada pelos empresários da saúde contra a regulamentação dessa lei fez com que o governo concentrasse a sua intervenção política através de um conjunto de programas verticais tais como: o Programa Nacional de Saúde Materno-Infantil, a Campanha da Meningite, o Programa Nacional de Imunizações (PNI), o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS), o Programa Especial de Controle da Esquistossomose (PECE), o Programa Nacional de Alimentação e Nutrição (PRONAN). Além desses programas especiais, foram implantados no Governo Geisel o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (Lei 6259/75), o “regime” de Vigilância Sanitária (Lei 6360/76) e o Instituto Nacional da Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), em 1977 (Paim, 2002). 	
		Este padrão de estruturação do setor saúde no Brasil, apesar de severamente criticado ao longo da década de setenta, vai sofrer certa inflexão no início dos anos oitenta diante de um período recessivo e da explosão da crise financeira da previdência social. O Governo Figueiredo, elaborou o Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (PREV-SAÚDE) discutido durante a VII Conferência Nacional de Saúde. Tratava-se de uma ambiciosa iniciativa de reorientação do sistema de saúde, mediante uma integração programática e funcional entre dois ministérios (Saúde e Previdência) e as secretarias estaduais e municipais de saúde. Tal programa apresentava um conjunto de diretrizes que reforçava a atenção primária de saúde (APS), a participação da comunidade, a regionalização e hierarquização de serviços, o sistema de referência e contra-referência, a integração de ações preventivas e curativas, entre outras. No entanto, não chegou a ser implantado diante das pressões do setor privado e do boicote de dirigentes do INAMPS que constituíam “anéis tecno-burocráticos” para satisfazer interesses de empresas médicas (Paim, 2002). 
		Em 1982 o Governo formulou o Plano do CONASP (Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária) que, entre outras medidas, extinguiu o pagamento por unidades de serviços ao setor privado contratado pelo INAMPS, implantou as autorizações para internação hospitalar (AIH) e possibilitou, através das Ações Integradas de Saúde (AIS), o acesso aos serviços previdenciários, além dos de saúde pública, para a população não segurada (Paim, 1987). 
 
Essas políticas racionalizadoras que atravessaram a saúde pública e a medicina previdenciária na período pós-74, ainda que parcialmente apoiadas por forças setoriais que se opunham ao autoritarismo como o CEBES e ABRASCO, não foram suficientes para alterar significativamente as condições de saúde da população nem para reorientar o modelo médico-assistencial privatista que articulava interesses das empresas médicas, do Estado e de empresas multinacionais de medicamentos e de equipamentos médicohospitalares. 	
		A organização da classe operária do ABC, o movimento sanitário que articulou trabalhadores, acadêmicos, profissionais de saúde e setores populares, a mobilização nacional em torno das eleições “Diretas já” e a derrota do regime autoritário no Colégio Eleitoral que elegeu o Presidente Tancredo Neves, constituíram um processo político que ampliou o espaço das forças democráticas, possibilitando a construção da proposta da Reforma Sanitária Brasileira (RSB) (Borba, s/d.; Cebes, 1985). 
		Essa proposta vinha sendo engendrada desde a década de 70, a partir de críticas e estudos referentes ao sistema de assistência médico-hospitalas então vigente. Expressava movimentos sociais envolvendo estudantes, profissionais de saúde, sindicatos, associações de moradores, destacando-se o chamado movimento sanitário (Escorel, 1998) que teve o CEBES e a ABRASCO como atores políticos fundamentais. No primeiro Simpósio de Política Nacional de Saúde, promovido pela Câmara dos Deputados em 1979, o CEBES apresentou um documento para debate que, pela primeira vez, propunha a criação de um Sistema Único de Saúde para o Brasil (Cebes, 1980). E a ABRASCO, na conjuntura seguinte, participou ativamente por intermédio de seus sócios na elaboração dos textos básicos da VIII Conferência Nacional de Saúde, além de divulgar o documento “Pelo Direito Universal à Saúde” (Abrasco, 1986). 
 
d) “Nova República” (1985-1988) 
 
No que diz respeito ao estado de saúde da população, verifica-se nesse período uma redução da mortalidade infantil e das doenças imunopreveníveis, a manutenção das doenças do aparelho circulatório e neoplasiascomo principais causas de mortalidade e um aumento das mortes violentas. Além do crescimento de casos de AIDS, surgem epidemias de dengue em vários municípios, inclusive em capitais como a do Rio de Janeiro (Paim, 1994).	
		Com a interrupção da recessão econômica do início da década de oitenta e a conquista da democracia, a demanda pelo resgate da “dívida social” acumulada no período autoritário colocou a saúde na agenda política da chamada Nova República. Os movimentos sociais de então que defendiam a democratização da saúde difundiram a proposta da Reforma Sanitária, debatida durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde. Nesta oportunidade, foram identificados problemas do sistema de saúde, medidas para a sua solução e os princípios e diretrizes da Reforma Sanitária, destacando-se os seguintes: 
conceito ampliado de saúde; 
reconhecimento da saúde como direito de todos e dever do estado; 
criação do Sistema Único de Saúde (SUS); 
participação popular (controle social) 
constituição e ampliação do orçamento social (CNS, 1987). 
 
Nessa conjuntura, a Reforma Sanitária Brasileira (RSB) foi assumida como uma proposta abrangente de mudança social e, ao mesmo tempo, um processo de transformação da situação sanitária. Representava “por um lado, a indignação contra as precárias condições de saúde, o descaso acumulado, a mercantilização do setor, a incompetência e o atraso e, por outro, a possibilidade da existência de uma viabilidade técnica e uma possibilidade política de enfrentar o problema” (Arouca, 1988). 	
Enquanto se processavam os entendimentos políticos para a implantação da Reforma Sanitária no período pós-conferência, mediante os trabalhos da Comissão Nacional de Reforma Sanitária (CNRS), o Ministério da Saúde recuava para a sua prática campanhista enquanto o INAMPS, garantia a expansão das AIS para mais de 2.000 municípios. Durante a composição do arcabouço jurídico do Sistema Único de Saúde (SUS) no processo constituinte, ocorreu a transformação das AIS nos Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde (SUDS), mediante decreto Presidencial (Brasil, 1987). 	
O SUDS, entendido como “estratégia-ponte” para a instalação do Sistema Único de Saúde durante a construção do arcabouço legal para a Reforma Sanitária, apoiava-se em convênios entre os governos federal, estadual e municipal, e apresentava certos avanços organizativos pois superava a compra de serviços no interior do setor público (os repasses de recursos eram feitos com base na programação-orçamentação integrada - POI) e criava os conselhos estaduais e municipais de saúde, paritários e deliberativos (Paim, 2002). 	
A implantação do SUDS desconcentrou recursos e descentralizou parte do processo decisório para o âmbito dos estados (política denominada “estadualização”), sobretudo no que se refere ao esvaziamento estrategicamente planejado do INAMPS, mediante a fusão de suas estruturas administrativas nos estados com as das secretarias estaduais de saúde e, posteriormente, com a extinção de suas superintendências e substituição por escritórios regionais (Cordeiro, 1991). O SUDS estimulava a participação da sociedade civil nos conselhos de saúde e ampliava a cobertura de serviços para todos os cidadãos, inclusive nos hospitais, laboratórios e clínicas contratados pela Previdência Social. Somente nesse contexto o Estado brasileiro possibilitou a criação de canais de participação do cidadão na formulação e acompanhamento das políticas de saúde, particularmente com a promulgação da Constituição de 1988 que garantiu o direito à saúde para todos os brasileiros e instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS). A incorporação dos princípios e diretrizes do movimento sanitário no Capítulo da Seguridade Social da Constituição de 1988, mediante emenda popular, representou a maior vitória da RSB. 	
		Desde então, a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos a ao acesso universal e igualitário às ações e serviços de para sua promoção, proteção e recuperação (Art. 196) (Conasems, 1990). Esta concepção ampliada de saúde aponta para a necessidade de políticas públicas intersetoriais, envolvendo a área econômica e os setores sociais, no sentido de reduzir riscos (e não apenas danos). Do mesmo modo, assegura universalidade e igualdade no acesso às ações e serviços de saúde visando a promoção, a proteção e a recuperação da saúde. Portanto, além de uma concepção ampla de saúde, a Constituição propõe uma atenção integral, com um amplo espectro de ações. 			Destaque-se, ainda, que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único de saúde (Art. 198) (Conasems, 1990). Este SUS deveria ser organizado de acordo com as diretrizes de descentralização, atendimento integral e participação da comunidade competindo-lhe, entre outras, as seguintes atribuições: controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos; executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; ordenar a formação de recursos humanos na área da saúde; incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico; colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho (Art 200). Diante de tais atribuições, constata-se que o SUS tem uma responsabilidade constitucional que não se limita à assistência médico-hospitalar, devendo ser implementado com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais (Conasems, 1990)). 	
		Portanto, o período compreendido entre março de 1985 e março de 1988 caracterizou-se pelo desencadeamento do processo da Reforma Sanitária Brasileira que, no âmbito setorial, produziu os seguintes fatos: 
contenção das políticas privatizantes da previdência social através do INAMPS; 
transferência significativa de recursos previdenciários para estados e municípios; 
prioridade para o fortalecimento dos serviços públicos; 
estímulo à integração das ações e serviços de saúde; 
apoio à descentralização gerencial; 
incorporação do planejamento à prática institucional; 
abertura de canais para a participação popular (Paim, 2002). 
 
e) Pós-Constituinte (1989-2002) 	
			Em relação às condições de saúde da população, a década de noventa inicia-se com a epidemia de cólera e o agravamento da mortalidade por causas externas, destacando-se o predomínio dos homicídios sobre as mortes do tráfego. A composição da mortalidade por grupos de causas apresenta em primeiro lugar as doenças cardiovasculares (DCV), seguidas das causas externas e das neoplasias. Quanto aos indicadores de morbidade, verifica-se a seguinte situação: erradicação da poliomielite, decréscimo da mortalidade infantil, persistência da tuberculose, estabilização das taxas de AIDS, expansão da dengue inclusive com formas hemorrágicas, incremento das taxas de incidência de leishmaniose visceral e malária, bem com redução da prevalência da hanseníase e da incidência das doenças imunopreveníveis (Barreto & Carmo, 2000; Singer, 2002). 
		Assim, o Brasil inicia o século XXI com uma população de 169.799.170 habitantes, uma taxa de crescimento anual de 1,4%, fecundidade total de 2,33 filhos e uma taxa de urbanização de 78,4%. A esperança de vida encontra-se em torno de 68,4 anos, sendo 64,6 para os homens e 72,3para as mulheres. A taxa de mortalidade infantil corresponde a 34,8 óbitos de menores de um ano por 1000 nascidos vivos. Apresenta um PIB per capita de R$ 5.861,00 (US$ 3.229,70) e uma das maiores concentrações de renda do mundo, com um Índice de Gini da ordem de 0,567 (www.ibge.net). 
		No momento em que era promulgada a “Constituição Cidadã” aprofundava-se a instabilidade econômica com hiperinflação e crise fiscal do Estado, enquanto a Reforma Sanitária encontrava sérios obstáculos paraa sua implementação. O recuo dos movimentos sociais, a disseminação da ideologia neoliberal e a perda de poder aquisitivo dos trabalhadores de saúde, ensejaram o aparecimento de uma “operação descrédito” contra o SUS, seja por parte das classes dirigentes e mídia, seja pelas ações políticas predominantemente corporativas dos trabalhadores de saúde (Paim , 2002). 	
		Mesmo assim, o Congresso Nacional aprovou a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8080/90). Esta Lei, dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, bem como a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. Regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde executados, isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito público ou privado (Conasems, 1990). Ou seja, todos os prestadores de serviços estão subordinados a esta Lei, não se trata apenas dos integrantes do SUS. 	
		Apesar dos vetos do Presidente, a sociedade brasileira conquistou uma Lei abrangente, que não só especifica os princípios, objetivos, atribuições, organização, direção e gestão do SUS nos diversos níveis de Federação, como também oferece indicações sobre relações com os serviços privados, financiamento, gestão financeira, recursos humanos, planejamento, etc. Esta Lei Orgânica da Saúde foi complementada pela Lei 8142/90 que regula a participação da comunidade no SUS, assegurando a existência de instâncias colegiadas como conferências e conselhos de saúde nos três níveis de governo, além de orientar as transferências inter-governamentais de recursos financeiros da área de saúde e de exigir a formulação de planos de saúde e a criação de fundos de saúde (Conasems, 1990). 
		Ao tempo em que a Constituição permitia a incorporação de um terço da população brasileira ao sistema de saúde, o Governo Collor, utilizando-se de expedientes diversos, reduziu em quase a metade os recursos para a saúde. Portanto, não é difícil compreender o “caos do SUS” no seu nascimento, muito menos o sucateamento dos serviços públicos. 	
		Ademais, os governos estaduais reduziram também a sua participação orçamentária em saúde, na medida em que passaram a receber transferências de verbas das AIS/SUDS e depois do SUS (Mendes, 1996). Assim, o processo da Reforma Sanitária deparou-se no período de 1988 a setembro de 1992 com uma situação que, apesar de envolver dois governos distintos, apresentou traços convergentes de políticas de saúde que apontavam para o reforço de um projeto conservador em saúde. Essas políticas caracterizaram-se pelos seguintes fatos: 
apoio ao modelo médico-assistencial privatista “reciclado” (expansão da assistência médica supletiva); 
reforço à centralização decisória a ao controle burocrático; 
desmonte do SUDS e “operação descrédito” da Reforma Sanitária; 
municipalização discriminatória (“presente de grego”); 
implantação distorcida do SUS; 
privilegiamento da lógica da produtividade nos serviços públicos por intermédio do Sistema de Informação Hospitalar e do Sistema de Informação Ambulatorial do SUS (Paim, 2002). 
 
Apesar desses fatos, nessa conjuntura foram elaboradas as constituições estaduais e as leis orgânicas dos municípios, sancionadas as leis que organizaram o SUS, realizada a IX Conferência Nacional de Saúde (CNS, 1992), instalado o Conselho Nacional de Saúde e experimentados modelos assistenciais e de organização de serviços, através de distritos sanitários, em diversos municípios. Após o “impeachment” do Presidente da República no final de 1992, inicia-se uma conjuntura sanitária que permitiu retomar certos aspectos do projeto da Reforma Sanitária. 	
		O Governo Itamar, logo após a realização da IX Conferência Nacional de Saúde em 1992 que denunciou o não cumprimento da legislação sanitária e defendeu a municipalização da saúde, efetuou esforços pela descentralização das ações e serviços de saúde, consubstanciados na Norma Operacional Básica 01/93 (Brasil, 1993). Esta Norma estabelece diferentes condições de gestão (incipiente, parcial e semi-plena) para permitir a transição de uma situação em que os municípios eram tratados como meros prestadores de serviços para uma fase de municipalização plena prevista pela legislação em vigor. Embora avançasse no sentido da descentralização, a NOB-93 permaneceu ainda distante do que dispõe a legislação, especialmente no que tange ao redirecionamento do modelo de atenção. 		Mesmo assim, o SUS enfrentou-se com a descontinuidade administrativa no Ministério da Saúde, com o seqüestro dos recursos da saúde pelo Ministério da Previdência apoiado pelo Ministério da Fazenda, com as pendências jurídicas, sonegação e adiamento do pagamento do COFINS (Contribuição Financeira para a Seguridade Social) pelos empresários, enfim, com o recrudescimento da “operação descrédito” capitaneada pelo próprio governo por intermédio da “área econômica”. Entretanto, alguns fatos novos ocorridos nesse momento pareciam reforçar o SUS: 
influência da sociedade civil na política de saúde através do Conselho Nacional de 
Saúde, bem como nos conselhos estaduais e municipais; 
municipalização da saúde reconhecendo a diversidade das situações; 
experimentação de modelos assistenciais alternativos por governos estaduais e municipais; 
reativação de certos movimentos da cidadania (luta contra a fome e a miséria, defesa da vida e contra a violência, etc.). 	
	Em relação ao setor privado, observou-se uma expansão da assistência médica supletiva (AMS), com diversificação de planos de saúde para os consumidores e diferenciação de modalidades de compra e de pagamento dos serviços médicos. Consequentemente, a parte do setor privado contratada pelo SUS (profissionais credenciados e os hospitais e clínicas não competitivos no mercado) criticava o governo face aos valores pagos por procedimentos. Já os médicos credenciados pelo seguro-saúde e por outras formas de AMS enfrentaram-se com a SUSEP (Supeintendência de Seguros Privados), vinculada ao Ministério da Fazenda, sendo acusados de cartelização pelo uso da tabela da AMB (Associação Médica Brasileira) e pressionados pelas empresas a racionarem atos e conterem os preços dos serviços prestados. Nesse particular, o primeiro governo FHC pode ser considerado uma continuidade dos governos Itamar e Collor (Paim, 2002). 
 
A implantação de mais um plano de estabilização econômica em 1994 (Plano Real), envolvendo um conjunto de políticas de ajuste macroeconômico e um elenco de projetos de Reforma do Estado (Lamounier&Figueiredo, 2002) resultou, com a expansão do neoliberalismo, em mais desajuste social: desemprego, violência e piora das condições de vida (Paim, 2002). 	
		No que diz respeito ao acesso ao sistema de saúde, segmentos da classe média e dos trabalhadores de melhor nível de renda migraram para os seguros-saúde e outras formas de assistência médica supletiva (AMS) à proporção que se deterioravam os serviços públicos de saúde e a mídia desqualificava os esforços de construção do SUS. Já os demais cidadãos brasileiros usuários do SUS, apesar do direito à saúde, eram repelidos no cotidiano dos serviços de saúde pelas filas, maus-tratos, burocracia, humilhações, greves e baixa qualidade dos serviços. 	
		Apesar dos problemas na organização do sistema de saúde no Brasil e das dificuldades encontradas na implantação do SUS, ocorreu uma extensão de cobertura de serviços de saúde para a população brasileira no final do século XX. Esta foi a conclusão de diversas entidades médicas e dos conselhos de secretários estaduais e municipais de saúde reunidos em São Paulo, após a realização da X Conferência Nacional de Saúde (CNS, 1996): 
“Ainda que o sistema que temos hoje distancie-se daquele que foi consagrado na ‘Constituição Cidadã’, sua existência é essencial num País que apresenta enormes disparidades regionais e sociais (...). Portanto, aos que tentam apresentar o SUS como modelo falido de atenção à saúde, respondemos com experiências vitoriosas apresentadas na X Conferência Nacionalde Saúde que comprovaram que ‘onde deu SUS, deu certo’ (...). Nesse sentido, impõe-se a manutenção do princípio do conteúdo constitucional da seguridade social, incluindo-se solidariamente a saúde, previdência e assistência sociaal. 
A reforma da saúde já ocorreu e está na Constituição Brasileira. Cabe cumpri-la” (Em defesa do SUS, 1997:4). 
 
A Norma Operacional Básica de Assistência a Saúde (NOB-96), publicada nessa época, previa duas formas para a habilitação dos municípios junto ao SUS: gestão plena da atenção básica e gestão plena do sistema municipal (Brasil, 1996). Observa-se uma preocupação desta norma em estabelecer as bases para que o SUS fosse “transformado em um modelo de atenção centrado na qualidade de vida das pessoas e do seu meio ambiente, bem como na relação da equipe de saúde com a comunidade, especialmente com os seus núcleos sociais primários – as famílias” (Brasil, 1998:12). Além de favorecer as ações intersetoriais, propunha “a transformação na relação entre o usuário e os agentes do sistema de saúde (restabelecendo o vínculo entre quem presta o serviço e quem o recebe) e, de outro, a intervenção ambiental, para que sejam modificados fatores determinantes da situação de saúde” (Brasil, 1998:13). 	
		Não obstante a crise do financiamento setorial, o Governo FHC nessa época estabelece “1997:o ano da saúde no Brasil”, comprometendo-se com a mudança do modelo de atenção através do Programa Saúde da Família (PSF) (Radis, 1997) e apresentando a proposta de ampliação de 847 para 3.500 equipes de saúde da família (ESF). Foi implantado o Piso de Atenção Básica (PAB), isto é, “um valor per capita, que somado às transferências estaduais e aos recursos próprios dos municípios deverá financiar a atenção básica da saúde” (Brasil, 1998:30), acrescido de uma parte variável destinada ao incentivo de Ações Básicas de Vigilância Sanitária, PACS/PSF e Programa de Combate às Carências Nutricionais. 	
		Mobilizando interesses de prefeitos, secretários municipais de saúde e técnicos preocupados com o repasse de recursos financeiros e com a descentralização, o Ministério da Saúde estabeleceu as orientações para a organização da atenção básica, mediante Portaria No. 3.925/GM de 13/11/98 (Brasil, 1998a). Definiu atenção básica como um conjunto de ações, de caráter individual ou coletivo, situadas no primeiro nível de atenção dos sistemas de saúde, voltadas para a promoção da saúde, prevenção de agravos, tratamento e reabilitação (Brasil, 1998a:11). Depois de ser implantado o Piso de Atenção Básica (PAB), foram explicitadas as responsabilidades dos municípios, as ações, atividades, resultados e impactos esperados, bem como as orientações sobre o repasse, aplicação, e mecanismos de acompanhamento e controle dos recursos financeiros que compõem esse instrumento de transferência de recursos. As responsabilidades nas áreas de zoonoses, endemias e medicamentos seriam objeto de pactuação mediante normas complementares. 	
		Durante a gestão do Ministro José Serra foi estabelecida a meta de implantação de 20.000 equipes de saúde da família (ESF) até 2002 (Singer, 2002), chegando a alcançar 17.000 equipes e uma cobertura de cerca de 50 milhões de usuários do SUS. Nesse período foi aprovada a Lei 9.656 de 03 de junho de 1998 que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Esta lei, que passou a regular a assistência médica supletiva (AMS), possibilitava, originalmente, as seguintes providências: abertura da participação de grupos estrangeiros no mercado nacional; atribuição da regulamentação dos planos privados de assistência à saúde ao Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP); definição da Superintendência de Seguros Privados (Susep) como ente regulatório; criação de um pacote mínimo na assistência à saúde e mecanismos para controlar a seleção de risco pelas operadoras; proibição de exclusão por idade, deficiência física; limites para exclusão de doenças e lesões pré-existentes; garantia de usufruto do plano de saúde após demissão por um período de 6 a 24 meses; vinculação dos planos e seguros a garantias securitárias, atribuindo poder de intervenção à Susep quando essas garantias forem insuficientes; estabelecimento do ressarcimento ao SUS pelas operadoras; criação do Conselho de Saúde Suplementar (CONSU); e criação da Câmara de Saúde Suplementar. Esta Lei, apesar de modificada, por um conjunto de Medidas Provisórias (MP) da Presidência da República continua em vigor (Brasil, 2002). 	
		Ainda no que se refere à AMS, foi aprovada a Lei 9.961 de 28 de janeiro de 2000 criando a Agência Nacional de Saúde Suplementar(ANS) como órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde. Tem como missão regular a assistência à saúde dos consumidores privados, a assistência dos associados aos planos de saúde e, as operadoras e seguros-saúde (Brasil, 2002). Apesar da regulação estabelecida, o sistema de assistência médica supletiva (SAMS) mantém as seguintes características: segmentação da atenção contrária a integralidade; desperdício de recursos pela dupla utilização – setores público e privado; iniqüidade devido a organização dos planos pela capacidade de pagamento; indução ao consumo e à incorporação sem critérios de tecnologia médica. 
Nessa conjuntura foram ainda produzidos os seguintes fatos político-institucionais: 
criação da agência de vigilância sanitária (ANVISA); 
implantação do SIOPS (Sistema de Informação do Orçamento Público em Saúde); 
adoção do Cartão SUS em alguns municípios; 
implementação do Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (PITS); 
atualização da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME); 
aprovação da Lei dos Medicamentos Genéricos (Lei 9787/99); 
realização da 11ª Conferência Nacional de Saúde em 2000 e da I Conferência Nacional de Vigilância Sanitária (CNS, 2000; Convisa, 2001) 
estabelecimento da Emenda Constitucional (EC-29). 
 
No caso da EC-29, procurou-se equacionar um dos maiores problemas do SUS, ou seja, a instabilidade do financiamento, definindo responsabilidades mínimas para a União, estados e municípios. Desse modo, a União deveria assegurar no ano 2000, o montante empenhado em ações e serviços públicos de saúde no exercício de 1999, acrescido de no mínimo 5%, enquanto que no período de 2001 a 2004, alocaria o valor apurado no ano anterior, corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB). Os estados e Distrito Federal deveriam garantir 7% do produto da arrecadação dos impostos em 2000 até chegar a 12 % em 2004. Nesse mesmo período, os municípios passariam de 7 % a 15% (CFMAMB, 2002) 	
		No plano internacional, o Brasil passou a ocupar posição de destaque sobretudo durante a 54ª Assembléia Mundial da Saúde em 2001, situando a política de saúde brasileira à frente das adotadas pela OMS e servindo de modelo para tomar atitudes mais ousadas. Nesse particular, destacam-se a defesa do medicamento como direito humano, o controle da AIDS não só através da prevenção mas com o tratamento das pessoas contaminadas pelo HIV, a proposta de produção de medicamentos a preços reduzidos para países pobres, a luta contra o tabaco, com a legislação proibindo a propaganda em rádio e TV (inclusive em eventos esportivos e culturais internacionais), e a política de aleitamento exclusivo nos primeiros 6 meses de vida das crianças (Noronha, 2001). 
 
Perspectivas das políticas de saúde 
 
	As políticas de saúde no Brasil nas diversas conjunturas examinadas estruturaram um sistema de 	saúde, inicialmente mediante um sanitarismo campanhista (Reforma Oswaldo Cruz – 1904) e a implantação da Previdencia Social (Lei Eloi Chaves – 1923) que estabelecem a separação da saúde pública, medicina previdenciária e medicina liberal (décadas de 20 a 50). Na segunda metade do século XX instalou-se o modelo médicoassistencial privatista com a privatização, crise da saúde e a procura de alternativas (décadas de 60 e 70). Buscou-se a estruturação do sistemade saúde mediante certas estratégias (AIS-SUDS) e, após a Constituição de 1988, seguiu a construção social do Sistema Único de Saúde (SUS), ao tempo em que o mercado montava o sistema de assistência médica supletiva (décadas de 80 e 90). 	
		Desse modo, podem ser resumidas as características das políticas de saúde do Brasil no século passado: 
incorporação lenta e gradual da população brasileira ao sistema de serviços de saúde; 
participação ambivalente do Estado no financiamento, distribuição, prestação e regulação dos serviços de saúde; 
fragmentação institucional entre a assistência médico-hospitalar, a saúde pública e a saúde ocupacional; 
centralização da gestão; 
restrições à participação do cidadão e das organizações da sociedade civil no controle público do Estado, dos seus aparelhos e da sua burocracia; 
segmentação do sistema com a conformação contraditória de 2 “sub-sistemas” - o público (SUS) e o privado (SAMS e outros); 
formas diferenciadas de financiamento e de remuneração dos serviços; universal e “excludente”; “Hospitalocêntrico” e curativo. 
 
Neste sistema segmentado persistem insuficiências, iniquidades e inadequações. Contudo, antes das AIS e da Constituição de 1988, a assistência médico-hospitalar era privilégio dos que podiam pagar, benefício dos trabalhadores segurados pela Previdência, e caridade para os pobres que só podiam apelar para os hospitais de indigentes. Com o SUS, não obstante as suas mazelas e a força dos seus detratores e oponentes, a saúde passou a ser direito social de todos, vinculado à condição de cidadania. 		Legalmente, o SUS é o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público (Lei 8080/90 Art. 4o) (Conasems, 1990). Trata-se de uma forma de organizar as ações e os serviços de saúde no Brasil de acordo com princípios, diretrizes e dispositivos estabelecidos pela Constituição da República e Lei Orgânica da Saúde. O SUS não é um mero meio de financiamento e de repasse de recursos federais para estados, municípios, hospitais, profissionais e serviços de saúde, nem é um sistema de serviços de saúde destinados aos pobres e “indigentes”. O SUS é um sistema ainda em construção e, consequentemente, não basta a existência de uma imagem-objetivo (IO) estabelecida por leis e normas. A “engenharia política” necessária para tal construção implica mobilização de vontades, participação social, capacidade de formulação e de pactuação para assegurar viabilidade e a implementação das ações. 	
		Portanto, impõe-se a necessidade de analisar não só os problemas do SUS, mas também as oportunidades e perspectivas do sistema de saúde brasileiro – público e privado. Se em termos de política de saúde e de gestão descentralizada não há como desconhecer os avanços do SUS, ainda persistem questões assistenciais e éticas requerendo a adoção de diversas medidas em defesa das pessoas e da cidadania. 	
		Ao estudar as tendências do sistema de saúde brasileiro, Piola (2001) aponta os valores sociais que deverão norteá-lo nos próximos dez anos chamando a atenção para o fato de 89,8% das lideranças entrevistadas admitirem que estarão aprovados dispositivos legais e mecanismos em relação aos direitos dos usuários e autonomia dos pacientes. Sinais dessa tendência já podem ser observados no Estado de São Paulo quando a Lei 10241 (17/3/99 – SP) estabeleceu um elenco de direitos tais como: atendimento digno e respeitoso; ser identificado pelo nome (não pela doença ou leito); sigilo de seus dados pessoais; identificação das pessoas que o tratam através de crachás; informações corretas sobre diagnóstico, exames, terapias, riscos. acesso permanente ao prontuário; papeleta de alta com diagnóstico de alta e nome do profissional; receber receitas legíveis com nomes de medicamentos genéricos; conhecer material que irá receber como certificação do sangue e outros; garantia de privacidade, individualidade, respeito a princípios éticos e culturais, confidencialidade; ser acompanhado em consultas e internações; presença do pai no prénatal e parto; receber anestesia quando necessária; recusar tratamentos dolorosos e extraordinários para prolongar a vida; e optar pelo local de morte. 		
		Consequentemente, a atenção digna, ética e com qualidade, muitas vezes referida como humanização do cuidado, constitui um dos maiores valores e desafios para o sistema de saúde brasileiro e o SUS, em particular nos próximos anos. Qualquer política de saúde a ser formulada não pode ignorar tais aspectos enfatizados no tema central e nas recomendações da XI Conferência Nacional de Saúde (CNS, 2000). 	
		A partir da análise da situação de saúde do Brasil em diferentes conjunturas, cabe levantar um conjunto de hipóteses explicativas a serem consideradas na formulação de políticas de saúde para os próximos anos: 
Os aumentos constantes nos custos da assistência à saúde associado aos recursos limitados para investimento no setor impedem a expansão de componentes da rede assistencial do SUS. 
Embora as ações de saúde sejam direcionadas para atender demandas relativas à problemas relevantes de saúde, estas têm baixo impacto no sentido de modificar os padrões de ocorrência das doenças e de reduzir riscos. 
Há mais ações de cuidado à saúde, porém, uma parte é inefetiva ou mesmo associada a efeitos danosos. 
O acesso e os benefícios gerados pelos programas de saúde não são eqüânimes, atingindo menos os que mais necessitam. 
As desigualdades sociais, além de perpetuarem as desigualdades em saúde, impedem que ocorram melhorias mais substanciais nos níveis globais de saúde. 
O quadro epidemiológico no Brasil caracteriza-se pela mistura das ditas “doenças da pobreza” com as “doenças da modernidade”, criando padrões epidemiológicos complexos em que novos problemas aparecem superpondo-se e não substituindo os problemas já existentes, o que amplia a carga de doenças e, como conseqüência, faz crescer as necessidades por mais recursos para reparar os danos. 
Antecedendo a superposição das doenças, temos a superposição dos riscos, em que novos riscos somam-se aos riscos já existentes, aumentando a chance de ocorrência de doenças (Barreto & Carmo, 2000). 
	Essas reflexões reforçam a tese de que a questão saúde no Brasil não pode ser enfrentada exclusivamente por políticas setoriais. Ou a questão saúde, como expressão da qualidade de vida, configura-se como questão de Estado (além de governo), ou haverá grandes obstáculos para a superação dos seus impasses. 	
		Não obstante a existência de um arcabouço jurídico-normativo, composto pela Constituição, Leis 8080/90 e 8142/90 e normas complementares (Brasil, 1993; 1996; 2001; 2002), ainda competem no espaço da formulação e implementação de políticas de saúde distintas concepções de SUS: a) o “SUS democrático” desenhado pelo projeto da Reforma Sanitária Brasileira; b) o “SUS formal”, juridicamente estabelecido pela Constituição Federal, pelas constituições estaduais, leis orgânicas, decretos, portarias, resoluções, etc; c) o “SUS real”, refém dos desígnios da chamada “área econômica”, do clientelismo e da inércia burocrática que favorece o mercado para o seguro-saúde; d) o “SUS para pobre” centrado numa medicina simplificada para gente simples mediante “focalização” (Paim, 2002). 	
		Contudo, é interessante destacar o fato de que nas eleições presidenciais de 2002 todos os candidatos, pela primeira vez na história da República, apresentaram programas voltados para o desenvolvimento do SUS ou, mesmo, para a radicalização da Reforma Sanitária Brasileira (Coligação Lula Presidente, 2002; Coligação Frente Trabalhista, 2002; Coligação Grande Aliança, 2002; Coligação Frente Brasil Esperança, 2002). Documentos formulados pelo CEBES, ABRASCO e Conselho Nacional de Saúde como subsídios para as políticas de saúde do novo Governo Federal encontram-se sintonizados com as proposições da 11ª CNS e da I Conferência Nacional de VigilânciaSanitária (Abrasco, 2002; Cebes/Abrasco, 2002; CNS, 2002). 	
		Finalmente, deve-se ressaltar que a descrição dos fatos ocorridos nas distintas conjunturas, a identificação de hipóteses explicativas e a visualização de tendências não são suficientes para enfrentar os problemas da situação de saúde no Brasil. Daí a necessidade de analisar os problemas, a correlação de forças políticas e as oportunidades, entendendo Política de Saúde simultaneamente como campo científico, como técnica de análise e de formulação de política (policy) e como práxis (ação política ou politics) dos atores sociais. 	
		Trata-se, portanto, de identificar quais projetos políticos e sujeitos sociais apostam nas verdadeiras mudanças e, consequentemente, constróem as bases econômicas, organizativas e financeiras para a sua implementação, ou se, ao contrário, favorecem a manutenção do status quo, a discriminação, as desigualdades e a exclusão. Analisar, por conseguinte, o arco das forças e sujeitos sociais, desde as que defendem o conceito de saúde estabelecido pela Constituição da República, a Reforma Sanitária e o SUS (universal, democrático, descentralizado, integral, igualitário e ético) até as que submetem a saúde ao interesses do capital, mantendo iniquidades, privilégios, mercantilização e privatização (Braga & Silva, 2002; Paim, 2002).

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