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Comitê Científico Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA • VII África sob dominação colonial,1880-1935 UNESCO Representação no BRASIL Ministério da Educação do BRASIL Universidade Federal de São Carlos EDITOR ALBERT ADU BOAHEN HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA • VII África sob dominação colonial, 1880-1935 Comitê Científico Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África C A P Í T U L O 2 9 875A África e o Novo Mundo Diversas regiões do mundo, como a Grécia e a Roma clássicas, Portugal (desde o século XV), as Antilhas, os Estados Unidos (desde o século XVII), a Grã -Bretanha (desde o século XVIII), o Canadá (sobretudo depois da Guerra da Independência dos Estados Unidos), o Brasil (particularmente desde o século XVIII), a Arábia Saudita, a Índia e, ocasionalmente, a Turquia, acolhe- ram importantes comunidades de africanos expatriados ou se viram expostas a influências africanas bem nítidas. Ao mesmo tempo, a amplidão da diáspora africana variou em função das idas e vindas de comerciantes, marinheiros, intér- pretes e educadores africanos, da presença de estudantes africanos na América e da reinstalação de negros americanos, de afro -brasileiros e de afro -cubanos na África. Os laços entre os continentes que se tornaram os dois principais domínios de implantação da população negra – a África e as Américas – foram mantidos ao longo dos anos, mediante um intercâmbio de pessoas, de objetos culturais e de ideologias políticas. O presente capítulo procura definir as inte- rações entre os africanos e as populações de ascendência africana das Américas durante o período colonial da história africana. De 1880 a 1935, os laços entre africanos e negros americanos foram essen- cialmente de cinco tipos: a) movimentos de retorno dos negros à África ou emigração dos negros – principalmente da América do Norte, mas também das Antilhas e do Brasil – para diversas regiões da África (sobretudo para a África A África e o Novo Mundo Richard David Ralston com a contribuição do professor Fernando Augusto de Albuquerque Mourão para as seções consagradas à América Latina e às Antilhas 876 África sob dominação colonial, 1880-1935 ocidental, mas igualmente para a África do Sul e o Chifre); b) evangelismo americano, com a ida de missionários afro -americanos para a África a fim de propagar o Evangelho; c) repetição da rota do meio (África -Índias Orientais), sob a forma de uma corrente de estudantes africanos que se matriculavam em escolas e universidades americanas para negros; d) pan-africanismo, revestido de diversas formas (conferências, criação de organismos, atividades educativas, literárias e comerciais), que puseram africanos em contato com o mundo negro das Américas e contribuíram para influir na evolução da África colonial: e) persistência e transformação dos valores culturais africanos na América Latina e nas Antilhas. Estes cinco pontos serão analisados um por um nas cinco divisões do presente capítulo. Movimentos de retorno à África Embora a corrente favorável à emigração dos negros da América do Norte para a Libéria, que fora forte na primeira metade do século XIX, tenha se enfraquecido sensivelmente, os afro -americanos continuaram a manifestar certo interesse em emigrar para a África no final do século XIX e começos do XX. Na verdade, esse êxodo do qual negros como Daniel Coker, Lott Cary, John B. Russwurm, Paul Cuffee, Henry H. Garnet e Martin R. Delany foram os pri- meiros defensores prosseguiu e aumentou no último quartel do século XIX. Por exemplo, em 1878, a South Carolina -Liberian Exodus Joint Stock Steamship Company transportou 206 imigrantes negros para a Libéria. Em 1881, Henry H. Garnet foi nomeado ministro residente e cônsul -geral na Libéria, cumprindo assim ele próprio a travessia do Atlântico que havia pregado. Em 1889, Edward W. Blyden, pan -africanista antilhano nascido em Saint -Thomas, efetuou uma viagem da Libéria aos Estados Unidos em nome da American Colonization Society (ACS), para contribuir para a geração de apoio dos negros à emigração. Por outro lado, de 1880 a 1900, o bispo Henry McNeal Turner procurou combi- nar as duas tradições longamente dominantes na história moderna da interação entre africanos e afro -americanos: a emigração africana e o evangelismo cristão. Ademais, o retorno de milhares de negros brasileiros para a África ocidental, pelo menos até a abolição oficial da escravatura no Brasil (1888), também sus- citou importantes interações. A competência técnica e comercial, bem como as aspirações políticas dos afro -brasileiros que se reinstalaram em suas terras de origem ou próximas, na Nigéria, Daomé (atual Benin), Togo e Costa do Ouro (atual Gana), tiveram aparentemente grandes repercussões sobre a situação 877A África e o Novo Mundo social, econômica e política desses países. Talvez por não terem formado nessas regiões uma comunidade distinta de colonos – como se passou na Libéria –, os afro -brasileiros perseguiram objetivos sociais e políticos que pouco se diferen- ciavam dos almejados pelos autóctones. Embora tenha sido fundada por brancos americanos da American Colonia- tion Society (ACS) muito antes do período de luta pela conquista da África (Scramble), a Libéria ocupa um lugar especial em todo estudo das migrações entre as diferentes regiões do mundo negro. Um projeto de lei de auxílio aos emigrantes negros foi discutido pelo senado dos Estados Unidos da América em 1889, em parte graças aos esforços desenvolvidos por Blyden para obter apoio aos programas da ACS. O número de inscrições de negros na ACS, a fim de ir para a Libéria, aumentou rapidamente e, em 1892, várias centenas de agriculto- res negros do Arkansas e de Oklahoma chegaram a Nova York na esperança de serem transportados para a África. Em 1893, ao visitar a Libéria, o bispo Turner escrevia entusiasmado que “o homem negro encontra aqui [na Libéria] [....] a dignidade e a liberdade mais completas; tem a impressão de que é um senhor e seu modo de andar reflete tal sentimento”1. Em 1896, ele voltava a afirmar: Penso que dois ou três milhões dos nossos deveriam retomar à terra dos antepassa- dos, nela estabelecer nossas próprias nações, civilizações, leis, costumes, modos de produção [...] e parar de resmungar, de estar sempre recriminando e de ameaçar o país que o homem branco reivindica e que necessariamente dominará2. Graças aos esforços do bispo Turner, mais de trezentos afro -americanos emi- graram para a Libéria em março de 1896. Até mesmo o jovem W. E. B. Du Bois – que mais tarde viria a rejeitar a emigração como solução para os problemas dos negros americanos – pensava que a emigração proposta por Turner oferecia uma louvável saída para a “humilhação de ter de mendigar para ser reconhecido e tratado com justiça nos Estados Unidos”3. Enquanto estava na Libéria, o bispo Turner dizia aos que ele chamava de “capitalistas negros” dos EUA que “se quisessem dar início ao comércio com a Libéria, ganhariam milhões em alguns anos”. A porcentagem de resposta foi pouco elevada. No entanto, em 1899, um grupo criou a African Develop- ment Society, cujo principal objetivo era estimular os afro -americanos a com- prar terras e fixar -se na África centro -oriental. A Sociedade venderia ações ou 1 Davis, 1974, p. 3. 2 Ibid., p. 5. 3 Ibid. 878 África sob dominação colonial, 1880-1935 títulos de propriedade oferecidos por africanos, mas somente a compradores afro-americanos ou africanos4. O bispo Turner também serviu mais tarde como consultor da International Migration Society (IMS), do Alabama, que enviou cerca de quinhentos emigrantes para a África, antes de desaparecer, em 1900. Alguns deles ficaram na Libéria e outros retornaram aos Estados Unidos da América. Os que ficaram searranjaram razoavelmente e muitos prosperaram. Os que regressaram, por sua vez, contaram histórias horríveis de terras pobres, de má alimentação e de condições de vida medíocres. Esses relatos reduziram as possibilidades de formação de um amplo movimento de emigração afro-ameri- cana, embora as perspectivas dos negros, nos Estados Unidos, tenham piorado de 1895 a 1900. Não obstante, é evidente que muitos continuaram a pensar seriamente em emigrar para a África, enquanto outros negros norte -americanos e caribenhos simplesmente se mudavam para regiões vizinhas, para fugir da discriminação aberta. Depois de 1900, a bandeira do retorno à África foi retomada por outros. Por exemplo, certo capitão Dean, em começos do século XX, alimentou a esperança de incitar os negros norte -americanos a ir para a África do Sul, a fim de lá criar um poderoso Estado negro. No entanto, quando ele foi à África do Sul com vistas a preparar a instalação, as autoridades brancas o expulsaram sumariamente da Cidade do Cabo, sob a acusação de “atividades provocadoras”. Em 1914, o régulo Alfred C. Sam, africano da Costa do Ouro, chegou a Oklahoma e, tendo convencido uns sessenta lavradores negros de que a África lhes oferecia melhores perspectivas, levou -os para Saltpond (Costa do Ouro). Verificando que as afirmações do régulo Sam eram exageradamente otimistas e sofrendo as restrições impostas pelos funcionários da Costa do Ouro à entrada de imigran- tes americanos, esses negros acabaram, em sua maioria, retomando aos Estados Unidos da América. Mas foi Marcus Garvey, nascido na Jamaica em 1887 (ver fig. 29.1), o advogado mais eloquente da emigração junto dos negros africanos e americanos. Apelando para o orgulho negro, Garvey soube interessar milhões de negros americanos pela África depois da Primeira Guerra Mundial. Du Bois observa- ria mais tarde que “em alguns anos, o movimento, as promessas e os planos [de Garvey] se tornaram bastante célebres para serem conhecidos na Europa e na Ásia e atingirem toda a África”5. Suas viagens às Antilhas, à América Central e à América do Sul, bem como uma permanência de dois anos no Reino Unido, 4 HILL, A. C. e KILSON (orgs.), 1971, p. 192-4. 5 DU BOIS, 1968, p. 277. 879A África e o Novo Mundo persuadiram Garvey de que a triste sorte reservada aos negros em todo lugar exigia uma ação militante de sua parte. Dois acontecimentos em sua vida pessoal enquanto estava em Londres influenciaram -lhe o pensamento. O primeiro foi a leitura de Up From Slavery (1899), de Booker T. Washington, que o levou a dizer mais tarde que ele estava “destinado” a se tornar um dirigente para seus irmãos de raça6. O segundo foi o reencontro com o intelectual sudanês -egípcio Duse Mohammed Ali, que em In the Land of Pharaohs (1911) criticava violentamente as políticas do Reino Unido e dos Estados Unidos em relação à África. Antes de se estabelecer em Londres, o próprio Duse viajara e trabalhara por algum tempo como ator e militante político. Em 1914, de regresso à Jamaica, Garvey criou um organismo destinado principalmente a promover a emigração para a África, a Universal Negro Impro- vement and Conservation Association and African Communities League (mais tarde conhecida simplesmente por UNIA). Aos 28 anos de idade, ele visitou os Estados Unidos, atraído pela obra de Washington e pelo exemplo de Duse, com um programa de redenção para os negros: o estabelecimento, para eles, de escolas de ensirio industrial e agrícola na Jamaica, a criação de uma frota de navios mercantes (a “Black Star”) para o comércio entre os negros da África e das Américas e, acima de tudo, a constituição de uma “nação central para a raça”. Este último projeto tinha como eixo principal a Libéria, que havia muito tempo constituía um dos polos do movimento de emigração afro -americano. Garvey mandou um emissário à Libéria em maio de 1920, o qual explanou os objetivos da Associação: transferência da sede para lá, ajuda financeira para a construção de escolas e de hospitais, liquidação das dívidas do país, instalação de negros norte -americanos, que contribuiriam para o desenvolvimento da agri- cultura e para a mobilização dos recursos naturais7. O governo liberiano aceitou com entusiasmo a solicitação inicial da UNIA, referente à concessão de terras fora de Monróvia, e Garvey, por sua vez, enviou um grupo de técnicos para estudo do local e construção de moradias para as 20 mil a 30 mil famílias que esperava estabelecer lá em dois anos, a partir de 1924. Mas quando chegaram ao Maryland County, em maio de 1924, os técnicos foram detidos, presos e depois expulsos, em julho desse mesmo ano. Pouco depois, o governo liberiano proscreveu de uma vez a UNIA, condenando assim ao malogro o plano de colonização de Garvey na Libéria. 6 GARVEY, 1923 -1925, v. I, p. 126. 7 Ver AKPAN, 1973a; CHALK, 1967, p. 135 -42. 880 África sob dominação colonial, 1880-1935 figura 29.1 Marcus Garvey (1887 -1940), fundador e chefe da Universal Negro Improvement Association. (Foto: Roval Commonwealth) 881A África e o Novo Mundo No final da década de 1920, ele enviou uma pequena equipe de técnicos qua- lificados à Etiópia para estudar a possibilidade de emigração de negros norte- americanos naquele país, do outro lado do continente africano. Essa equipe, todavia, foi acolhida com menos entusiasmo do que se esperava. Durante os anos de 1930, era minúscula a comunidade afro -americana existente na Etiópia. Alguns de seus membros estavam lá em consequência dos apelos de Garvey, mas muitos outros haviam sido atraídos por diversas circunstâncias. Pesquisas antigas e recentes trouxeram a lume certo número de fatos relativos às relações entre afro -americanos e etíopes8, mas o tema das conexões entre a África e a América ainda não foi devidamente estudado. Um rabino negro de Barbados, Arnold Ford, emigrou para a Etiópia em 1930, depois de ter passado algum tempo em Nova York, fundando lá o Tambourine Club, onde organizava recitais de negro spirituals. Mas o estabelecimento foi “fechado pelo governo por usar de discriminação contra clientes etíopes locais”9. Enquanto se encontrava no Harlem, Ford sentiu -se atraído pela mensagem de Garvey. Parece, portanto, que, se as delegações enviadas pela UNIA fracassaram na tentativa de estabelecer, como no caso da Libéria, laços institucionais com o Chifre da África, elas conseguiram no entanto orientar para essa região alguns candidatos negros à emigração. É possível que tenham emigrado individual- mente mais garveyistas para a Etiópia do que para a Libéria. Com efeito, embora a Etiópia fosse mais inacessível, sua antiga e esplêndida civilização talvez tenha “exercido uma atração mais forte do que a política burguesa e [no espírito de Garvey] antiafricana da elite américo -liberiana no poder”10. Quando Garvey rompeu abertamente com o governo liberiano, é evidente que muitos de seus adeptos encararam com otimismo esse novo horizonte. No entanto, se alguns negros norte -americanos que emigraram para a Eti- ópia durante e depois dos anos de 1920 foram em grande parte motivados por Garvey, a decisão final pode ter sido tomada após um encontro fortuito com estudantes etíopes ou um contato com uma das delegações especiais da Etiópia que estiveram em Nova York no final da década de 1920 “para solicitar a negros qualificados que se fixassem na África”11. Além disso, assim como o bispo Turner, Ford pensava que os negros norte -americanos tinham um papel redentor espe- cial a desempenhar em relação à África, em vista dos longos anos de sofrimento 8 Ver, por exemplo, COON, 1936; KING, K. J., 1972, p. 81 -7; SCOTT, 1971. 9 COON, 1936, p. 137. 10 KING, K. J., 1972, p. 82. 11 Ibid. 882 África sob dominação colonial, 1880-1935 e de exílio que haviam experimentado. Ele próprio, respondendo ao apelo de uma delegaçãode falashas (judeus negros da Etiópia), partiu em 1930 para este país, onde evidentemente permaneceu até a morte, ocorrida na época da guerra ítalo -etíope (1935 -1936)12. A maioria dos imigrantes americanos que Ford encontrou ao chegar na Etiópia era jamaicana e mais alguns negros das Antilhas. Segundo um trabalho recente, “os antilhanos pareciam estar mais preparados para se adaptar à vida na Etiópia do que certos negros dos Estados Unidos”, se bem que ambos os grupos sofressem discriminação de tempos em tempos13. Evidentemente, mesmo antes de Garvey, outros negros americanos tinham emigrado para a Etiópia, mas como colonos individuais. Nos últimos anos do século XIX, por exemplo, um haitiano, Benito Sylvain, apresentou -se na corte de Menelik II com um plano para uma organização “pan -negra”. Fica claro, porém, que as vagas mais importantes de imigrantes afro -americanos chegaram à Etiópia por volta de 1930, quer dizer, depois de Garvey ter rompido com a Libéria, e até uma data posterior à ascensão do imperador, na maior parte dos casos em consequência de encontros com viajantes etíopes. Um pequeno con- tingente de afro -americanos (talvez uns vinte) foi para a Etiópia imediatamente após a restauração de Hailê Selassiê no trono, mas esse período não é coberto pelo presente capítulo. É suficiente saber aqui que a época em que a emigração de negros americanos para a Etiópia foi mais considerável coincidiu com a das atividades associadas aos nomes de Garvey, Ford e Hailé Selassié14. Os afro ‑brasileiros Os contatos entre o Brasil e a costa ocidental da África foram facilitados pelo estabelecimento de linhas regulares de cargueiros mistos, que dessa forma subs- tituíram os navios negreiros. A British African Company e a African SteamShip Company, entre outras, garantiam viagens regulares entre os portos da Baía de Todos os Santos e de Lagos. Segundo o Weekly Times de 11 de outubro de 1890, o vapor Biaffra, ao voltar a Lagos no fim de sua viagem inaugural, transpor- tava 110 passageiros e 400 toneladas de mercadorias. Nessa época, o comércio entre as duas costas já era bem importante. De acordo com Pierre Verger15, as exportações do Brasil “consistiam principalmente de charutos, tabaco e cachaça”; 12 Ver, no entanto, uma cronologia algo diferente em BROTZ, 1970, p. 12; SCOTT, 1971. 13 KING, K. J., 1972, p. 82. 14 Ver SCOTT, 1971. 15 VERGER, 1968, p. 623. 883A África e o Novo Mundo as importações se compunham de “planos de fabricação nacional, tecidos de algodão europeu, noz -de -cola e óleo de palma”. Nos cinco anos entre 1881 e 1885, o valor anual médio das importações e exportações foi, respectivamente, de 19084 e de 11259 libras esterlinas. O comércio entre as duas costas, independentemente de sua importância, permitiu o desenvolvimento de uma burguesia africana constituída por antigos escravos que haviam trabalhado no Brasil e em Cuba. Essa migração come- çou em fins do século XVIII16, para se tornar mais acentuada após a revolta dos Malês (escravos muçulmanos), em 1835. Esses contingentes de emigrantes fixaram -se principalmente nas cidades litorâneas da Nigéria, do Daomé (atual Benin) e, em escala bem menor, no Toga e na Costa do Ouro (ver fig. 29.2). Nessas zonas costeiras, os imigrantes estabeleceram -se em comunidades, evi- tando portanto as entradas pelo interior, com exceção dos que integravam os grupos Yoruba e Haussa, que se instalaram não só em Lagos, mas também em cidades do interior, como Abeokuta17. Muitos imigrantes tinham sido “negros de ganho” no Brasil, ou seja, escravos que viviam nas cidades, exercendo livremente uma profissão (pedreiro, marceneiro, calafate etc.) e dividindo o ganho com os senhores. Dispondo de tecnologia própria, alguns excelentes construtores edifi- caram bairros residenciais em Porto Novo, Quidah e principalmente em Lagos, onde foi construído o Bairro Brasileiro18, em que se encontram ainda sobrados de estilo baiano, na atual praça Tinubu. O mesmo vale para a praça Campos ou para grandes edifícios como a catedral católica de Lagos ou a mesquita erigida no centro da cidade. O estilo desses sobrados caracteriza algumas construções do interior, nas zonas onde vivem as populações Yoruba. Em Quidah, bem como em Porto Novo, desenvolveu -se um tipo de construção que, independentemente de sua opulência ou de sua simplicidade, seguia muito de perto o traçado da “casa -grande”, tipo de construção característica dos engenhos de açúcar ou das plantations do Brasil colonial. No Daomé (atual Benin), as crianças que frequentavam as escolas de mis- sionários ingleses e franceses foram em parte aproveitadas como auxiliares da administração colonial, devido a seu nível de instrução. A religião, o tipo de habitação, o vestuário, o exercício do comércio atlântico e o fato de ser funcio- nário da administração pública colonial davam um status especial a esse grupo. 16 NEWBURY, 1961, p. 36 -7. 17 TURNER, L. D., 1942, p. 65. 18 ARAEDON, 1976, p. 40 -1. 884 África sob dominação colonial, 1880-1935 figura 29.2 Os afro-brasileiros na África ocidental, nos séculos XVIII e XIX. 885A África e o Novo Mundo No entanto, ele não gozava da aceitação total da sociedade europeia19 e nem sempre mantinha boas relações com as populações autóctones, em face de seus hábitos e estilo de vida. Pouco a pouco, esses grupos foram perdendo a especificidade afro -brasileira, já que, embora importassem livros do Brasil, como o Compêndio de doutrina cristã e O fabulista da mocidade20, o ensino nas escolas foi seguindo exclusivamente a língua do colonizador francês ou inglês. Por outro lado, os descendentes dos Yoruba, para se integrarem mais na sociedade local, começaram a empregar de novo os nomes yoruba, e alguns adquiriram o hábito de participar do culto das igrejas africanas derivado do protestantismo. No caso de Lagos, a comunidade conservou sua identidade, por exem- plo, saindo para as ruas em dias de festa para apresentar danças folclóricas, seguindo nisto o exemplo da Aurora Relief Society, que, em 190021, conti- nuava a identificar -se com um núcleo burguês. No entanto, com o tempo, o grupo perdeu os traços distintivos. O português, outrora considerado uma lín- gua comercial, foi suplantado pelo inglês na Nigéria e pelo francês no Daomé (Benin)22. Algumas formas de resistência foram registradas, como, por exemplo, o lançamento em 1920 do jornal Le Guide du Dahomey, em Porto Novo23, o qual, até 1922, publicava críticas à administração colonial francesa. Outro jornal, La Voix du Dahomey24, editado mais tarde pelos descendentes dos afro -brasileiros, continha críticas às dificuldades para negociar com o exterior, como era costume nos períodos anteriores ao estabelecimento da administração francesa. Na Costa do Ouro, os afro -brasileiros, embora estabelecidos como um núcleo separado, em vista de seus hábitos mais ou menos ocidentalizados e, por isso, conhecidos como os Tabon, abandonaram pouco a pouco as tradições tipica- mente brasileiras, retendo, porém, outros traços culturais, como tocar tambores por ocasião de festividades, como a procissão anual que percorre as velhas ruas de Acra durante dois dias25. Os Tabon, ao se instalarem no país, tiveram de assinar um pacto de vassalagem com um chefe Ga de Acra. Cedo abandonaram o uso 19 TURNER, J. M., 1975, capítulo V; 1978, p. 24. 20 Bouche a Planque, Porto Novo, 25 de janeiro de 1869, Arquivos da Società delle Missione Africane (SMA), Roma, verbete n. 21.150, rubrica n. 12/80200 (11/082) [Carta do padre Bouche a seu superior, o padre Planque]. 21 Lagos Standard, 8 de janeiro de 1896 e 2 de maio de 1900. 22 CUNHA, 1976, p. 33. 23 BALLARD, 1965, p, 16. 24 TARDITS, 1968, p. 39. 25 TURNER, J. M., 1978, p. 23. 886 África sob dominação colonial, 1880-1935 da língua portuguesa, embora suas cançõesmisturem o ga, o inglês e o portu- guês. A rápida integração dos Tabon da Costa do Ouro contrasta com a bastante demorada dos afro -brasileiros de Lagos, Abeokuta, Porto Novo, Quidah e outras cidades menos importantes da costa da Nigéria, do Daomé e de Togo. Em Lagos, ao lado da comunidade brasileira também se constituiu uma comunidade afro -cubana, formada de elementos repatriados de Cuba, mas em menor número. Ação de evangelização pelos negros americanos na África Um dos meios pelos quais se alimentou o intercâmbio entre negros da África e da América na época colonial, à falta de migrações em massa, foi a chegada de missionários negros para “elevar” o continente negro mediante a evangeli- zação cristã. Em geral, a evangelização foi obra de missionários negros norte- americanos, de início pertencentes a igrejas onde os brancos preponderavam. A Igreja Presbiteriana, por exemplo, enviou missionários negros a Camarões desde 1896. O reverendo William H. Sheppard, negro diplomado pelo Instituto Hampton, da Virgínia, incitou a Southern Presbyterian Church a empreender atividades missionárias no Congo nos últimos anos do século XIX. Represen- tando lá sua igreja, logo verificou que as conversões somavam “centenas” e que sua missão se desenvolvia “até se tornar um dos estabelecimentos cristãos mais importantes26”. Por volta de 1900, os Adventistas do Sétimo Dia enviaram três missionários negros à Niassalândia (atual Malavi), e, como resultado de cinco anos de estadia, mandaram três jovens adeptos africanos, entre os quais Daniel Sharpe Malekebu, para as escolas negras americanas, a fim de serem educados. (Não só havia alguns evangelistas negros nessa “igreja branca”, como também alguns missionários brancos foram colocados em escolas afro -americanas, a fim de se prepararem para servir na África.) No entanto, as igrejas negras logo se tornaram, por sua própria vontade e por seu próprio direito, as animadoras de uma ação missionária na África que foi talvez a mais eficaz de todas. Desde o século XIX, os afro -americanos foram exortados a assumir respon- sabilidades particulares na “redenção” das sociedades africanas. O bispo Turner, principalmente, não hesitava em propor que “Deus levou o negro para a América e o cristianizou para que ele regressasse a seu continente e o resgatasse27. Outros 26 CLENDENEN, COLLINS e DUIGNAN, 1966, p. 63. 27 PONTON, 1917, p. 77. 887A África e o Novo Mundo evocavam o grande destino político da África e a vontade divina como exorta- ções aos negros do Novo Mundo à ação. Diziam, por exemplo, num discurso pronunciado em 1902, que “se os negros americanos se dignassem tomar cons- ciência de suas responsabilidades, estar à altura da tarefa, que lhes cabe cumprir e empreender, de evangelizar a África em nome do Senhor, milhões de filhos da África que ainda estão por nascer verão um continente transformado”28. Anteriormente, em 1884, a African Methodist Episcopal Church (AME) organizara um importante colóquio sobre o tema: “Qual deveria ser a política dos americanos de cor em relação à África?”. Em agosto de 1893, africanos e outros participantes dos Estados Unidos da América e da Europa assistiram a um congresso mundial sobre a África, organizado pela American Missio- nary Association, por ocasião da exposição internacional realizada em Chicago naquele ano. O congresso, que durou uma semana, visava promover a ação missionária afro -americana na África e o reconhecimento dos direitos dos “afri- canos da América”. O bispo Turner reiterou nesse congresso seu apelo em favor da emigração negra para a Libéria. De fato, pelo menos um liberiano (Momolu Massaquoi) compareceu e participou dos debates. Outro delegado africano (Etna Holder- ness, da Libéria) esteve presente numa conferência posterior, em dezembro de 1895, sobre “A África e o negro americano”, que teve lugar no Gammon Theological Seminary, de Atlanta. Para os negros americanos, a obrigação de contribuir para a cristianização da totalidade da África foi de novo sublinhada nessa reunião: “Deveria e deve haver uma linha ininterrupta de missionários cristãos desde o Cabo da Boa Esperança até o Egito [...] e desde aí a Serra Leoa e à Libéria e [...] até o Sudão e o Estado do Congo [...]”29. Os negros americanos responderam por diversas formas a este gênero de apelo. Por exemplo, em 1930, um bispo da AME adquiriu, num acesso de entusiasmo, uma fazenda de mais de mil hectares na África do Sul, na intenção de instalar nela uma colônia de membros de sua igreja. Por outro lado, igrejas negras dos Estados Unidos ficaram apreensivas quando, em janeiro de 1926, a imprensa negra publicou artigos sobre a expulsão de todos os missionários da Libéria. Fato mais importante, contudo, a AME e a African Methodist Epis- copal Zion (AME Zion), bem como a National Baptist Convention (NBC), enviaram missionários negros para a África durante todo o período colonial. Os primeiros estabelecimentos da NBC foram fundados na Libéria em 1883, dando 28 PENN e BOWEN, 1902, p. 310. 29 BOWEN, 1896, p. 205. 888 África sob dominação colonial, 1880-1935 prosseguimento à ação desenvolvida bem antes por Lott Carey. A AME Zion também começou a implantar -se na Libéria, em 1878, e na Costa do Ouro, em 1896. O bispo John Bryan Small, das Antilhas, organizou ulteriormente duas conferências anuais da AME Zion na Costa do Ouro, atraindo assim J. E. K. Aggrey e Franck Osam -Pinanko para igrejas afro -americanas e, finalmente, para a AME Zion. Em 1930, missionários desta igreja foram à Nigéria, onde igrejas africanas desejavam filiar -se à Zion. Durante o mesmo período, a AME financiou missões em diversas partes da África, notadamente em Serra Leoa, em 1886 (explorando a anterior ação evangélica de Daniel Coker), na Libéria, nos últimos anos do século XIX (graças a uma visita pessoal de Henry Turner), e na África do Sul, em 1896. Tendo em conta sua duração, devemos atentar mais para a ação missionária da AME na África e dizer uma palavra em particular sobre a área onde sua repercussão foi mais forte, ou seja, a África austral. Muitos negros americanos que atenderam ao apelo de sua igreja, no final do século XIX, partiram para a África austral como missionários, exercendo aí profunda influência. Uma verdadeira aliança entre a Igreja Africana, indepen- dente e cismática (ou Igreja Etíope) e a AME, concluída em 1896, abriu uma década marcante na história dos negros sul -africanos e americanos. Embora a aliança tenha perdurado por pouco tempo, ela ajudou a AME a implantar -se na África do Sul com tal força que se manteve forte pelos cinquenta anos que se seguiram. Constituída por elementos dissidentes da Igreja Wesleyana e por outros “des- contentes”, a Igreja Etíope separatista negra passou seus primeiros anos de vida lutando pela sobrevivência. E ela só se salvou graças à intervenção fortuita de Charlotte Manye, que fazia parte de um grupo de estudantes sul -africanos que ingressaram nas universidades Wilberforce e Lincoln em 1895, como membros de um chamado “Coro Zulu”. Ela escreveu uma carta a sua irmã, na África do Sul, usando papel timbrado da AME. A carta incitou os dirigentes da Igreja Etíope a procurar mais informações sobre a AME, e eles pediram e receberam cópias de documentos sobre disciplina, livros de hinos e liturgia da AME. Como se interessavam particularmente pela possibilidade de os africanos cursarem estudos superiores nos Estados Unidos, enviaram para esse país, em 1896, uma delegação dirigida pelo reverendo James Mata Dwane. Daí resultou a absorção oficial da Igreja Etíope pela AME e o formal ingresso desta na ação missionária no estrangeiro. Mais precisamente, Dwane insistiu junto dos afro -americanos para que eles fossem para a África do Sul e propagassem aí vigorosamente a missão educa- dora da AME, salientando queaquele país oferecia “o campo de ação onde os 889A África e o Novo Mundo negros americanos educados e consagrados seriam mais úteis”30. Na primeira fase, todavia, era preciso que a Igreja -Mãe auxiliasse, formando jovens africanos em estabelecimentos de ensino americanos. O bispo Turner respondeu inserindo em seu jornal The Voice of Missions um aviso crítico: Take Notice, Wilberforce. South Africa coming (“Atenção, Wilber- force. Está chegando a África do Sul”). Não obstante, Dwane e os dirigentes africanos consideravam que o resultado lógico da conexão afro -americana seria o desenvolvimento de escolas locais, análogas àquelas que os estudantes africanos frequentavam nos Estados Uni- dos. Para ele, era conveniente pôr fim à dependência total em relação a escolas estrangeiras para a formação de missionários e de professores, procedendo de tal forma que os estabelecimentos criados produzissem quadros suficientes para atender às necessidades da população africana. Turner visitou a África do Sul em 1898, consagrou Dwane como bispo auxiliar da AME e proclamou a intenção da Igreja de construir uma escola que não ficaria devendo nada “a tudo quanto tenha sido feito antes em matéria de ensino por missionários”. Dwane, por sua vez, falava em criar a Escola Normal Turner de Queenstown ou a Wilberforce do Continente Negro. Turner dedicou toda a edição de março de 1899 de The Voice of Missions à campanha em favor do South African College. Um artigo em que a redenção da África era descrita como “o fardo do negro americano” dava as característi- cas desse colégio: tratar -se -ia de um estabelecimento para africanos, dotado de um corpo docente africano, que seria fundado e mantido pelo departamento missionário da AME. Os primeiros professores seriam estudantes que estavam frequentando a Universidade Wilberforce, o Morris Brown College, a Universi- dade Howard e o Departamento Médico do Central State College, de Nashville (Tennessee). Mas Dwane não concordava em que o movimento fosse dirigido e dominado por não africanos. Em 1899 retirou -se da união AME -Etíope, provocando assim um cisma na hierarquia da Igreja negra da África do Sul. Procurando recriar uma base para seus missionários no país, a conferência geral da AME de 1900 nomeou Levi Coppin o primeiro bispo residente. A Igreja foi auxiliada em seu trabalho por Charlotte Manye, a estudante sotho que estivera na origem da fusão da AME com a Igreja Etíope. Ela voltara dos Estados Unidos e retomara por iniciativa própria a ideia de um estabelecimento de ensino sul -africano, 30 DWANE, 1897. 890 África sob dominação colonial, 1880-1935 fundando uma escola missionária da AME entre os Pedi da região oriental da província do Cabo. Em 1908, Charlotte Manye Maxeke e seu marido haviam obtido dinheiro suficiente do Departamento Missionário para comprar um terreno no Transvaal, construir um pavilhão (ao qual deram o nome do bispo Coppin) e fundar a escola (que foi desbatizada e recebeu o nome de Wilberforce Institution) em sua localização permanente em Evaton. Entrementes, em 1905, John Chilembwe, jovem yao convertido pela NBC, escrevia timidamente da Niassalândia à Igreja -mãe que “as atividades missioná- rias dependem essencialmente de vossa ajuda”. Com um toque de desespero, ele já indicava, dez anos antes de assumir o comando de uma rebelião malfadada contra os britânicos na Niassalândia: [...] a situação aqui não é a mesma, na África central britânica, da África do Sul, onde o povo pode fazer alguma coisa pelas missões. [...] Ignoro qual será o futuro desta obra”31. Chilembwe tinha via- jado para os Estados Unidos em 1897, a fim de cursar o Seminário de Teologia da Virgínia, instituição reservada aos negros. Lá se formou ministro do culto, voltando para a Niassalândia por volta de 1900 sob os auspícios da National Baptist Convention. Tentou criar uma missão, a propósito da qual exprimiu os sentimentos que acabamos de ler, seguindo as linhas que ele observara entre os negros norte -americanos. Seria, portanto, um “estabelecimento orientado para o trabalho manual, onde os africanos seriam formados em diversas artes e ofícios, ao mesmo tempo que se iniciariam nos princípios do cristianismo”32. O bispo Coppin fez o inventário dos esforços da Igreja Americana negra no continente africano em um discurso feito em 1916 perante a conferência geral da AME. Nossa Igreja [constatava ele] construiu e ajudou a construir igrejas e escolas na África ocidental e austral. Numerosos estudantes se formaram aí em nossas escolas, largamente ou inteiramente por conta das igrejas [...] [já que] não ficamos surdos aos apelos de nossos irmãos de além -mar; não abdicamos de nossos deveres para com os países estrangeiros em geral e a África em particular [...] trabalhamos pela redenção da África, onde milhões de indivíduos ainda vivem nas trevas: e soubemos dar a mão à mão estendida da Etiópia [...]33. A despeito da resistência das autoridades políticas e eclesiásticas brancas da África do Sul, as iniciativas de Turner, a ação de Dwane e a criação de sólidas 31 CHILEMBWE, 1905. 32 SHEPPERSON e PRICE, 1958, p. 113. 33 Citado no Episcopal Handbook da AME, 1963. 891A África e o Novo Mundo bases institucionais pelos Coppin e os Maxeke tiveram como resultado a matrí- cula de inúmeros estudantes africanos em escolas norte -americanas. Da mesma forma, igrejas negras dos Estados Unidos incentivaram estudantes da África central britânica e da África ocidental a frequentarem suas escolas, concedendo- -lhes muitas vezes ajuda financeira. A permanência desses estudantes no outro lado do Atlântico abriu caminho a uma nova e importante fase da interação entre africanos e afro -americanos durante o período colonial, que teve profundas consequências para os movimentos nacionalistas negros de meados do século XX. Na verdade, o período de contatos gerados pelos missionários no, qual os líderes da Igreja Americana negra tiveram o papel de mentores, foi gradativa- mente transformado em um tempo em que o nível, a interação e a natureza dos interesses americanos na América negra foram crescentemente determinados pelas iniciativas africanas. Interações religiosas entre o Brasil e a costa africana Do ponto de vista religioso – e mais especificamente da evangelização não podemos comparar a ação dos afro -americanos com a dos afro -brasileiros. Enquanto os primeiros participaram de forma direta ou indireta na missão evangélica, os segundos não se envolveram em nenhum tipo de proselitismo. Muitos deles, uma vez chegados a Lagos, conseguiram voltar para seu país de origem. Alguns documentos históricos dão fé da passagem por essa cidade de afro -brasileiros muçulmanos a caminho do país Haussa. Verger34 faz referência à atividade do cônsul inglês Benjamin Campbell em Lagos, que em 1858 entregou passaportes a afro -brasileiros desejosos de voltar para sua região de origem. Em Lagos, nos confins do Bairro Brasileiro, há uma mesquita central construída por artesãos vindos do Brasil. Por outro lado, os católicos35 construíram na cidade sua primeira igreja, a Holy Cross Church, iniciada em 1879, e mandaram os filhos estudar nas escolas dos missionários franceses e ingleses, que começavam a ministrar o ensino em francês e inglês. Graças à influência religiosa exercida de modo intermitente por sacerdotes de língua portuguesa vindos da ilha de São Tomé, a comunidade foi orientada e assistida durante os primeiros tempos por um liberto conhecido como padre Antônio36. Os filhos dos afro -brasileiros que moravam no Bairro Brasileiro e que 34 VERGER, 1968, p. 617 -8. 35 AJAYI, 1965, p. 199 -200 e 202. 36 VERGER, 1968, p. 618. 892 África sob dominação colonial, 1880-1935 tinham frequentado as escolas de missionários começaram a exercer a função de professores e decatequistas nas escolas e missões que os padres da African Mis- sion Society instalaram na região, bem assim outras atividades, como o trabalho na administração colonial37. A ação desses catequistas se desenvolvia em nome dessas missões de origem europeia; não se tratava de uma atividade missionária partida do Brasil ou resultante da iniciativa da comunidade afro -brasileira de Lagos. De fato, o ensino era dado em inglês e, às vezes, em francês. Os afro -brasileiros utilizavam o “catolicismo” como sinal de distinção, que lhes assegurava uma posição social específica e fez deles, em Lagos, o primeiro núcleo de uma burguesia africana. Bom número de afro -brasileiros repatriados, embora católicos declarados, nunca tinha abandonado as crenças religiosas africanas tradicionais. Assim, de volta à terra natal, emprestaram maior vigor às suas práticas sob forma mais ou menos sincrética, resultante dos costumes religiosos brasileiros; aproveitaram os aspectos formais do catolicismo e misturaram os santos católicos com as divindades africanas do panteão Yoruba, cujo culto continuaram a praticar. “O que espantou os missionários católicos ao chegarem à costa da África foi o respeito igual que os africanos abrasileirados tinham pela religião adquirida na América do Sul e por aquela recebida de seus antepassados [...].” O padre Lafite acrescentava que os “brasileiros só eram cristãos porque tinham sido batizados, o que não os impedia de invocar as divindades negras [...]”. Os brasileiros e os outros convertidos estavam mais interessados nas vantagens sociais decorrentes da situação de cristãos do que em uma adesão sincera e profunda aos dogmas da Igreja38. Em contraste com o que se verificava nos Estados Unidos, onde as conver- sões eram mais profundas – certos afro -americanos transformaram -se em pro- pagadores da fé cristã – os afro -brasileiros conservaram suas crenças religiosas africanas. Assim, os afro -brasileiros do Bairro Brasileiro, que formavam um núcleo burguês cuja coesão é especificidade social derivavam da religião católica, prati- cavam o culto dos orixás (deuses), locais e consultavam os babalaôs (adivinhos)39. Mais ainda: houve um movimento religioso da África em direção ao Brasil. Nina Rodrigues40 assinala que, no início do século XX, veleiros provenientes de 37 CUNHA, 1976, p. 32. 38 VERGER, 1968, p. 601. 39 CUNHA, 1976, p. 33. 40 RODRIGUES, N., 1976, p. 105. 893A África e o Novo Mundo Lagos transportavam comerciantes nagô que falavam yoruba e inglês, traziam noz -de-cola, cauris, objetos de culto yoruba jeje (juju), sabão, “sarongues da costa” etc. Em 1888, de 8237 libras esterlinas de mercadorias exportadas para o Brasil, o óleo de palma representava apenas 2600 libras. O resto abrangia essen- cialmente artigos religiosos e de culto e, sobretudo, “sarongues da costa” (3367 libras), objeto de grande consumo no Brasil, nozes -de -cola de duas qualidades (1525 libras), “palha da costa”, sabão preto, cauris, “oris”, cabaças, “contas de rosá- rio” etc. A entrada no Brasil de produtos africanos destinados ao culto e às prá- ticas religiosas afro -brasileiras nunca cessou, e esses produtos foram tendo uma procura cada vez maior. Por consequência, adquiriram grande valor, na medida em que aumentava o número de adeptos do sincretismo afro -brasileiro. Contribuição da América para a educação dos africanos Vivendo nos Estados Unidos durante o período colonial, os estudantes afri- canos criaram condições para uma nova relação entre sua gente e afro-ameri- canos e entre eles próprios, que vinham de todas as partes do continente. Ao retornarem à pátria, incitaram milhares de compatriotas a cursarem escolas norte-americanas, desde 1880 até a Segunda Guerra Mundial. Aumentou assim o número de estudantes africanos nos Estados Unidos e prolongou -se o tempo de contato entre grupos negros de um e de outro lado do mundo. Entre os numerosos africanos que, na época colonial, cursaram escolas norte -americanas, contam -se recentes chefes de Estado (tais como Nnamdi Azikiwe, Kwame Nkrumah e Kamuzu Banda), assim como dirigentes nacionalistas ou étnicos de um período anterior (como A. B. Xuma, John Dube, Marshall e Charlotte Maxeke, J. E. K. Aggrey, Pixley Ka Izaka Seme, D. S. Malekebu, Franck Osam- -Pinanko, Peter Koinange, Ndabaningi Sithole, Eduardo Mondlane e John Chilembwe). Com o tempo, o fluxo sempre crescente de africanos para os Estados Unidos ultrapassou substancialmente o movimento inverso dos mis- sionários negros para a África. Por outras palavras, o que havia começado como uma campanha de evangelização, com vistas à redenção espiritual da África, contribuiu finalmente para criar um trampolim para uma revolução na ordem da educação, da técnica e da política. Sem dúvida, é possível determinar a influência da instrução recebida nos Estados Unidos sobre os africanos colonizados e os movimentos anticolonia- listas, examinando breves biografias de certos estudantes. J. E. K. Aggrey (ver fig. 29.3), por exemplo, deixou a Costa do Ouro em 1898 para seguir para os 894 África sob dominação colonial, 1880-1935 Estados Unidos, sob a influência direta de um bispo da AME Zion, originário de Barbados, que também estudara lá. Aggrey foi mandado para o Livings- tone College, principal estabelecimento de ensino da AME Zion Salisbury (Carolina do Norte), ficando entendido, pelo que parece, que regressaria logo em seguida à África para se colocar ao serviço dessa Igreja. Mas, depois de licenciado e formado em teologia, Aggrey aceitou emprego na casa editora da AME Zion em Charlotte, tornou -se correspondente de um ou dois jornais negros, deu aulas gratuitas a professores negros das vizinhanças, foi ordenado membro do Conselho da Igreja e recebeu a oferta de uma paróquia de duas igrejas negras. Segundo seu biógrafo, o trabalho pastoral foi “um dos episódios mais importantes da permanência de Aggrey nos Estados Unidos”, já que “o retirou do meio universitário e o lançou no quadro em que vivia o negro norte -americano”41. Ademais, seus laços com a América do Norte negra já se haviam reforçado quando se casou, em 1904, com uma jovem afro -americana, possivelmente descendente de Frederick Douglass. Depois de passar 22 anos no meio dos negros norte -americanos, Aggrey retornou à África por duas vezes, na qualidade de membro da Comissão Phelps -Stokes, mas faleceu em 1927, pouco depois de ter aceitado o cargo de vice -diretor adjunto do Colé- gio de Achimota, criado havia pouco em Gana. Entre as dezenas de jovens africanos que ele influenciou figuram Nnamdi Azikiwe, Kwame Nkrumah e Kamuzu Banda, que mais tarde se matricularam, todos eles, em escolas norte-americanas para negros. Enquanto estava nos Estados Unidos, John Chilembwe, da Niassalândia, pôde verificar a expansão do racismo. Estudava na Virgínia por ocasião das agitações raciais de Wilmington (Carolina do Norte), em 1898. Parece ainda que ele embarcou de volta para a África em companhia do reverendo Charles S. Morris, batista afro -americano que se interessava pela Etiópia e que pre- senciara as desordens de Wilmington. George Shepperson e Thomas Price, num estudo admirável, apuraram as lições que Chilembwe pudera extrair de sua permanência nos Estados Unidos racistas, observando que a forma como os negros se adaptaram à discriminação após a reconstrução “ofereceu -lhe um modelo de estratégia e de tática de que ele se valeria para sua própria reação contra a discriminação, menos evidente mas bem real, de que os africanos eram vítimas em sua pátria”. Os autores não defendem que Chilembwe tenha derivado a ideia das escolas africanas, “independentes do Estado e das missões 41 SMITH, E., 1929, p. 85. 895A África e o Novo Mundo figura 29.3 J. E. K. Aggrey (1875 -1921), educador da Costa do Ouro. (Foto: Royal Commonwealth Society.)896 África sob dominação colonial, 1880-1935 europeias”, das instituições afro -americanas, mas acham não ser implausível supor que sua concepção tenha sido influenciada por aquilo que ele viu nos Estados Unidos42. Embora nada indique quais foram suas leituras durante sua permanência nos Estados Unidos, Chilembwe estava lá no momento em que as palavras e as obras do bispo Turner e de Booker T. Washington já eram profusamente cita- das e comentadas na imprensa e em que as de Du Bois e de jornalistas negros militantes como T. Thomas Fortune começavam a chamar a atenção. Ademais, a comissão constituída para pesquisar o levante de 1915 na Niassalândia afir- mou que muitos escritos incendiários redigidos por negros norte -americanos contribuíram para incitar os partidários de Chilembwe à revolta. O reverendo D. S. Malekebu, também originário da Niassalândia, retornou em 1926 para a África central britânica, depois de completar seus estudos nos Estados Unidos. Sua ausência nem de longe foi tão prolongada como a de Aggrey, e seu regresso não foi tão catastrófico como o de Chilembwe, mas sua ascensão ao papel de dirigente durante o período colonial também merece ser assinalada. Ele estudou na National Training School, de Durham (Carolina do Norte), e no Moody Bible Institute, de Chicago, para depois obter o título de doutor em medicina na Meharry Medical School, em 1917. Ao regressar à Niassalândia, em companhia da esposa, Flora Ethelwyn, congolesa diplomada pelo Spelman College, reabriu a Providence Industrial Mission, de Chilembwe, que o governo do protetorado da Niassalândia demolira em consequência da rebelião abortada de 1915. Além disso, Malekebu fundou a Chiradzulu Native Association e foi nomeado membro do conselho local. Em resumo, a construção de uma igreja e de um hospital, a reconstrução da missão de Chilembwe e a vasta ação que ele empreendeu em favor da população, tudo lhe valeu a conquista de ardorosos admiradores. Nnamdi Azikiwe (ver fig. 29.4), que, a exemplo de Kamuzu Banda, foi incen- tivado a viajar para os Estados Unidos pelo onipresente James Aggrey e pelo clima que lá se tinha criado graças à influência de Marcus Garvey, começou por se matricular em 1925 em uma escola preparatória para negros em Virgínia do Oeste. Alguns anos mais tarde, ao ingressar na Universidade Howard, colaborou estreitamente com especialistas negros como Ralph Bunche e, em particular, com Alain Locke e William Leo Hansberry, em estudos e pesquisas históricas sobre os afro -americanos e sobre a África pré -colonial. 42 SHEPPERSON e PRICE, 1958, p. 97 -8. 897A África e o Novo Mundo O professor Locke tornou -se o orientador pessoal dos estudos de Azikiwe, que, por sua vez, ocupou a função de secretário particular de Locke. Publicada em 1925, a obra deste, The New Negro, exerceu com certeza enorme influência no estudioso Azikiwe, já que era um modelo de estudo comparado das socie- dades e das culturas negras que lembrava outros devidos a todo um elenco de escritores e eruditos do Renascimento de Harlem: Jean Toomer, Countee Cul- len, James Weldon Johnson, o jamaicano Claude McKay, Langston Hughes, o imigrante porto -riquenho Arthur A. Schomburg, E. Franklin Frazier e W. E. B. Du Bois. Por outro lado, seus contatos com um estudante antilhano de direito, George Padmore, tiveram incontestável influência em Azikiwe, quando ele frequentava a Howard. Padmore usou da palavra em uma reunião de estudantes sobre as opções políticas colocadas por ocasião das eleições de 1928 nos Estados Unidos. Posteriormente, colaborou com análises políticas na revista African Morning Post, que editou na Costa do Ouro durante a década de 1930. Em discurso pronunciado em 1954 perante o conselho de administração da Universidade Howard, pouco antes de se tornar primeiro -ministro da Nigé- ria oriental, Azikiwe falou da época em que era estudante na Howard: “Aqui aprendi os rudimentos das letras, a anatomia das ciências sociais e a gramática da política43. O professor Hansberry, que estava ao lado dele quando foi chamado para ocupar o cargo de governador -geral da Nigéria, em 1960, prestou -lhe então homenagem saudando nele “o mais ilustre de meus antigos alunos [...] aquele que apreendeu com mais clareza a grandeza do passado da África e demonstrou as imensas possibilidades contidas em seu presente”44. Implícito nesse elogio a Azikiwe estava certamente um pouco do desapontamento de Hansberry com a indiferença e mesmo com a frequente hostilidade a seus próprios trabalhos sobre a história da África demonstradas pelos professores e alunos afro -americanos da Howard. Em 1930, ao entrar para a Universidade Lincoln, Azikiwe continuou a interessar -se pela história dos negros e pelas relações raciais. Estava decidido a proceder de forma a que os negros ascendessem aos postos de professor, todos ocupados por brancos, e criticava “as ambições tradicionais de seus condiscípu- los e os objetivos visivelmente burgueses do estabelecimento [...]”45. Conside- rava “uma enormidade que uma universidade para negros funcionasse durante 43 AZIKIWE, 1961, p.13. 44 JONES -QUARTEY, 1965, p. 76. 45 “Horace Mann Bond Papers”, Lincoln University (Pensilvânia). 898 África sob dominação colonial, 1880-1935 figura 29.4 Nnamdi Azikiwe (nascido em 1904), jornalista nigeriano, pan -africanista e político. (Foto: Royal Commonwealth Society.) 899A África e o Novo Mundo oitenta e seis anos antes de que um negro fosse lá nomeado professor”46. As autoridades universitárias foram ficando desencantadas com a atividade contes- tadora de Azikiwe (da qual se falava não só no campus, mas também em jornais afro-americanos da Pensilvânia, como o Philadelphia Tribune, ou os de Balti- more). Consequentemente, a escola recusou -se a recomendar Azikiwe para a renovação de seu visto de estudante, o que o obrigou a deixar os Estados Unidos. Partiu para a África em 1934. No momento em que Nkrumah se matriculava na Lincoln, no final do período aqui estudado (1935), várias reformas reclamadas por Azikiwe já tinham sido adotadas. Por ocasião das viagens que fez pelas Áfricas ocidental e austral, com a Comissão Phelps -Stokes, bem como dos cursos que ministrou na Costa do Ouro, em harmonia com suas funções no Colégio de Achimota, Aggrey, como muitos outros o fizeram em situações semelhantes, manteve contato com nume- rosas comunidades africanas e incentivou dezenas de jovens africanos a irem estudar nos Estados Unidos e não na Grã -Bretanha. Azikiwe, Banda e Nkrumah são os mais conhecidos de quantos receberam sua influência. A experiência deles também ilustra os aspectos pan -africanos ou pan -negros de sua perma- nência naquele país. Mas esses aspectos da interação entre africanos e negros da diáspora não explicam inteiramente a ação desenvolvida pelos africanos que lá estudaram ao retomarem à pátria. Pelo que se conhece do assunto até hoje, tal ação não encontrou de resto explicação satisfatória. O que parece ter ocorrido, principalmente entre os africanos das colônias britânicas, foi uma alteração da perspectiva daqueles que foram instruídos nos Estados Unidos ao colidirem com uma recepção colonial inamistosa (tanto mais pelo fato de eles terem escapado por completo do meio colonial durante seus estudos)47. No entanto, não havia nas colônias africanas oposição ou desdém geral ou categórico em relação aos estudos nos Estados Unidos. Aparentemente, a for- mação profissional era bem vista pelos empresários coloniais, pois lhes permitia encontrar operários qualificados para “conduzir seus caminhões, construir suas casas e dirigir suas oficinas mecânicas ou elétricas”. Os administradores e os missionários brancos incentivavam esse tipo de formação por diversas razões: os primeiros porque viam nisso um estímulo ao desenvolvimento comercial e econômico doterritório; os segundos porque guardavam esperanças de que as concepções e as ideias de Booker T. Washington sobre a “educação prática” 46 BOND, 1958, p. 257. 47 Ver RALSTON (?). 900 África sob dominação colonial, 1880-1935 fossem boas para a formação dos caracteres e contribuíssem assim para elevar o nível moral de toda a vida africana. Os dois exemplos que se seguem mostram como o componente da experi- ência desses africanos educados nos Estados Unidos contribuiu para dar às suas atividades um caráter próprio. O reverendo John Dube, que mais tarde seria o primeiro presidente geral do African National Congress (1912 -1917), chamado de “o Booker T. Washington da África do Sul”, afirmou explicitamente, em con- ferência dada em Nova York, o valor que para ele tivera o modelo do Tuskegee de Washington. Aliás, ele fundou um “Tuskegee doméstico” na Zululândia para formar o espírito, as mãos e o coração dos jovens zulu à maneira de seu inspi- rador. Teve de enfrentar enormes obstáculos, sobretudo para reunir os fundos necessários, já que os sul -africanos receavam que as atividades “etíopes” dos bispos Turner, Dwane e Coppin exercessem uma “influência perturbadora”. Em 1934, depois de permanecer nove anos nos Estados Unidos, Azikiwe não voltou para a Nigéria, onde nascera, mas foi para a Costa do Ouro, instalando -se ali provisoriamente, depois de lhe terem recusado posições em seu país (uma cadeira de professor no King’s College de Lagos) e no serviço diplomático da Libéria. O presidente Barclay da Libéria rejeitou sua candidatura, lembrando secamente o fato de ele não ser liberiano e de seu conhecimento da república ser, portanto, insuficiente para desempenhar as funções que pretendia. Mas, com o ardor que o caracterizava, Azikiwe procurou se tornar uma tal autoridade no que dizia respeito à Libéria que até os américo -liberianos o invejavam. No final de 1931, já adquirira conhecimentos suficientes para ler uma comunicação sobre a Libéria na conferência anual da Association for the Study of Negro Life and History. Nessa comunicação, defendia aquele país e condenava seus detratores ocidentais. Em 1934, publicou um livro intitulado Liberia in World Politics. O pan ‑africanismo: aspectos políticos e culturais Além do intercâmbio no plano da educação, uma série de organizações e conferências pan -africanistas, e de atividades comerciais, literárias e culturais colocou os africanos em contato com negros norte -americanos e contribuiu para influenciar a evolução da África colonizada. Quatro personalidades desem- penharam, por sua atividade, um papel preponderante no desenvolvimento de um pan -africanismo oficial e organizado durante o período colonial: Booker T. Washington, fundador e diretor do Instituto Tuskegee, estabelecimento de ensino que serviu de modelo para numerosas comunidades da África e das 901A África e o Novo Mundo Antilhas; o dr. W. E. B. Du Bois, que, na qualidade de redator -chefe da revista The Crisis, e “pai” do movimento continental African Congress, fez da África um campo de ação subsidiário da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP); Marcus Garvey, que utilizou sua UNIA não só para suscitar um movimento de emigração, mas também para promover a solidariedade, no plano institucional ou político, entre todos os povos de ascen- dência africana; Aimé Césaire, que (de acordo com outros negros das Antilhas, como Léon Damas, de Caiena, Jean Price -Mars, do Haiti, e o poeta e político senegalês Léopold Senghor) lançou, principalmente no mundo negro francó- fono, o conceito de negritude, variante cultural do pan -africanismo enquanto consciência coletiva dos negros. Por mais importantes que tivessem sido o pan -africanismo de Washington e de seus colaboradores do Tuskegee, o interesse que eles despertaram na África e o impacto que tiveram sobre ela e sobre os africanos matriculados ou candidatos à matrícula em universidades norte -americanas, esses aspectos de sua ativi- dade são pouco conhecidos. Todavia, ex -alunos africanos e norte -americanos do Tuskegee e, frequentemente, muitos africanos que, embora nunca tivessem se matriculado no instituto, visitaram -no ou se corresponderam com Washington, deram a conhecer à África esse estabelecimento e seus recursos. Muitos africa- nos foram assim tocados pelo “espírito do Tuskegee” ou apelaram ao instituto e a outras possibilidades oferecidas pelos Estados Unidos negros em decorrência de numerosas conferências, visitas e missões técnicas internacionais. Proferindo o discurso de abertura da Conferência Internacional sobre o Negro, evento pan -africanista verificado no Tuskegee na primavera de 1912, Washington acentuou a importância do intercâmbio de técnicas e de recursos entre os negros africanos e americanos. “Esta conferência”, declarou, “foi orga- nizada para permitir estudar os métodos empregados para auxiliar os negros dos Estados Unidos, com vistas a determinar em que medida os métodos do Tuskegee e de Hampton são aplicáveis à -situação [...] na África48.” Entre os par- ticipantes do evento figuravam delegados de Gana ( J. E. Casely Hayford, autor da influente obra Ethiopia Unbound, publicada no ano anterior, representante da Aborigines Rights Protection Society), da África Oriental Britânica, da Libéria (F. E. T. Johnson), da Nigéria, de Ruanda, da África Oriental Portuguesa (atual Moçambique) e da África do Sul (reverendo Isaiah Sishuba, da Igreja Etíope de Queenstown). 48 The Tuskegee Student, 1912. 902 África sob dominação colonial, 1880-1935 Embora o interesse da África por Tuskegee tenha sido consideravelmente avivado pela conferência de 1922, ele já tinha sido despertado pelos estudantes africanos do instituto que haviam regressado à pátria e por informações ante- riores de sua atividade. Por exemplo, em 1901 chegou uma missão do Tuskegee ao Toga, a convite da administração colonial alemã, para melhorar os métodos africanos de cultura do algodão. Seu êxito acarretou convites para outras missões em Tanganica (atual Tanzânia), Zanzibar e Sudão, enquanto o próprio Washing- ton era convidado a ir para a África do Sul. Entre as outras atividades pan -africanistas do gênero de que participaram Tuskegee e Washington, convém citar reuniões organizadas em 1908 pela Negro Business League, nas quais Booker T. Washington mostrou que apreciava a noção de pan -africanismo no intercâmbio entre africanos e afro -americanos. Ao apresentar cinco enviados da Libéria que solicitavam ajuda financeira norte-americana, Washington enfatizou que “eles estão aqui nos Estados Unidos em visita oficial não só como enviados de seu país, mas também como represen- tantes de toda a raça negra [...]”49. Embora o crescimento real do comércio entre africanos e afro -americanos disso resultante tivesse sido fraco, uma companhia de navegação, a African Union Company, foi fundada em 1913 por um auxiliar de Washington, Emmett Scott, para promover a venda de produtos africanos no mercado mundial. A ideia de uma companhia de navegação entre os Estados Unidos e a África atraiu Garvey com muita força para Washington. Os encontros entre negros africanos e americanos no Tuskegee e durante outras iniciativas do instituto fizeram com que o “espírito do Tuskegee” se pro- pagasse numa progressão quase geométrica. A atividade desenvolvida na Nigéria por um diplomado pela Phelps Hall Bible Training School, do Tuskegee, nos dá um exemplo disso entre muitos. “Propus a meus compatriotas”, escreveu ele a seus antigos professores, “a criação de uma escola semelhante ao Tuskegee. Eles concordaram com satisfação. Um deles doou um terreno de vinte hectares e mil dólares para começar imediatamente.” E prosseguiu: “Logo que tiver construído duas ou três casas, começarei a pregar para difundir o espírito do Tuskegee”50. John Dubee D. D. T. Jabavu figuram na extensa lista de notáveis africanos que transmitiram o aprendido no Tuskegee. Durante os anos que passou nos Estados Unidos, estudando em Oberlin e em Nova York, Dube ligou -se ao edu- cador John Hope, de Atlanta, e a Booker T. Washington. Mais tarde, em 1913, Jabavu, que era aluno da Universidade de Londres, passou umas seis semanas 49 Liberian Bulletin , 1908, p. 64 -5. 50 Southern Letter, 1917. 903A África e o Novo Mundo no Tuskegee, onde observou as técnicas de agricultura, para visitar depois outras instituições negras do sul. Além disso, uma série de provas anuais de graduação, chamadas de “exercí- cios de eloquência africana”, foi organizada em Tuskegee, em função de certos objetivos pontuais de ajuda à África, tais como a coleta de fundos para uma capela Tuskegee na Libéria. Regra geral, alunos africanos e afro -americanos do instituto participavam dos exercícios, que consistiam em discursos e cantos. Os temas dos discursos pronunciados em 1916 iam do “Desenvolvimento da indústria do cacau na Costa do Ouro” e das “Possibilidades de desenvolvimento da agricultura na África do Sul”, por A. B. Xuma51, até a “Religião e vida social em Madagáscar”. O pan -africanismo, enquanto movimento político organizado, também desempenhou um papel importante, proporcionando a oportunidade para o estabelecimento de laços entre africanos colonizados e negros norte -americanos. Em 1900, Henry Sylvester Williams, jurista de Trinidad, organizou em Londres a primeira de uma série de conferências pan -africanistas, das quais participaram delegados dos Estados Unidos, das Antilhas, da América do Sul e da África. Ademais, Williams, admitido como “advogado do Supremo Tribunal da colônia do Cabo da Boa Esperança”, participou de diversas atividades políticas contes- tatárias na África. Também se sabe que Williams esteve associado, em 1907, às comemorações do sexagésimo aniversário da independência liberiana e que defendeu, conforme solicitara o presidente Barclay, a causa da emigração dos negros do Novo Mundo para a Libéria. É incontestável, no entanto, que foram os três congressos pan -africanistas convocados para diversas capitais da Europa (Paris, 1919; Londres, Bruxelas e Paris, 1921; Londres e Lisboa, 1923) por W. E. B. Du Bois, após a confe- rência organizada por Williams, que dominaram o movimento. O próprio Du Bois desempenhou um papel preponderante nos três congressos. Convocou o primeiro em 1919 quando se encontrava na França, a fim de: a) cobrir a Con- ferência da Paz para The Crisis; b) reunir informações para a proposta de uma “História do negro norte -americano na Grande Guerra”; c) fazer pressão pró- reconhecimento dos direitos políticos das “raças de cor que vivem nos Estados Unidos e no resto do mundo”52. Uma das resoluções adotadas no Congresso de Paris reclamava a autodeterminação dos africanos. 51 O autor deste capítulo trabalha atualmente numa biografia de A. B. Xuma. 52 The Crisis, 1921, p. 119 -20. 904 África sob dominação colonial, 1880-1935 Du Bois participou do II Congresso Pan -Africano, realizado em 1921, em companhia de Walter White, do artista afro -americano Henry O. Tanner, de Jessie R. Fauset, redator negro do The Crisis e o mais prolífico dos romancistas do Renascimento do Harlem, do cantor afro -americano Roland Hayes e do senegalês Blaise Diagne. O congresso de 1923 reuniu afro -americanos, repre- sentantes das Antilhas e africanos. Participaram dele, além de Du Bois, Rayford Logan e o bispo Vernon, da AME dos Estados Unidos, o chefe Amoah III, da Costa do Ouro, e Komba Simango, da África oriental portuguesa, contribuindo para a elaboração de várias resoluções de fundo e um apelo geral ao “desenvol- vimento da África em benefício dos africanos”53. O congresso reivindicou tam- bém uma representação na Comissão de Mandatos da Sociedade das Nações, a criação de um Instituto de Estudos do Problema Negro, o restabelecimento ou o melhor reconhecimento dos direitos dos negros, no conjunto do mundo negro, e a libertação da Abissínia, do Haiti e da Libéria “das garras dos monopólios e das práticas usurárias dos financistas que dominam o mundo”54. Du Bois foi em pessoa a Genebra comunicar essas resoluções à Sociedade das Nações. Talvez em razão das preocupações que traduziam em relação à Libéria, o presidente Coolidge pediu a Du Bois que representasse os Estados Unidos nas cerimônias de posse do presidente daquele país, em 1923. Durante sua permanência lá, Du Bois (efetuando assim sua primeira viagem à África) pro- vavelmente se declarou contrário à ação em favor da emigração desenvolvida por Garvey em nome do pan -africanismo, pois os liberianos rejeitaram pouco depois o plano da UNIA. Apesar das críticas sectárias das quais ele mesmo e a UNIA eram alvo, Garvey se tornou, de 1916 até cerca de 1935, a figura central de boa parte do movimento pan -africanista nos Estados Unidos, nas Antilhas e nas Áfricas ocidental, oriental, central e, sobretudo, austral. Por volta do fim da Primeira Guerra Mundial, seu jornal militante, The Negro World, cujo chefe de redação era Hubert Harrison, um jornalista antilhano que vivia em Nova York, tocou na ferida das massas negras de Nova York, de toda a América do Norte e da África. A mensagem que ele a todos dirigia era a seguinte: “Organizai -vos, comprai dos negros, dai apoio à Black Star Steamship Line [que podia levar emigrantes negros para a África e trazer matérias -primas] e ajudai a expulsar os brancos da África”. Garvey acentuava: 53 Ibid., 1924, p. 120. 54 Ibid., 1924, p. 121. 905A África e o Novo Mundo Somos os descendentes de um povo sofrido. Somos os descendentes de um povo decidido a não mais sofrer. [...] Não queremos o que pertenceu aos outros, embora os outros sempre tenham procurado privar -nos daquilo que nos pertencia. [...] As outras raças têm seus próprios países e é tempo de que os 400 milhões de negros [do mundo] reivindiquem a África para si próprios55. Se a influência pan -africanista de Du Bois era mais forte e mais difundida entre os intelectuais negros que viviam nos Estados Unidos, e a de Washington entre os agricultores e os artesãos, todas as camadas da população negra, na África e alhures, foram igualmente tocadas por Garvey. Este último recebeu boa parte de sua inspiração pan -africanista do intelectual egípcio Duse Moham- med Ali, que conheceu em 1912 na Inglaterra, bem como da autobiografia de Washington, Up From Slavery, que também leu em Londres. A UNIA de Garvey, criada inicialmente com a ideia de fundar uma escola de tipo Tuskegee da Jamaica, converteu -se num laço institucional para grande número de africanos e de negros norte -americanos. O periódico que editava, The Negro World, foi proveitoso para a expansão do pan -africanismo na África. De 1920 a 1938 foram realizadas oito convenções da UNIA. As cinco primeiras, cujo responsável foi Garvey, foram organizadas em Nova York, em agosto de cada ano, de 1920 a 1924. As duas seguintes ocorreram na Jamaica, depois de Garvey ter sido expulso dos Estados Unidos, em 1929 e 1934. A oitava e última decorreu no Canadá, em 1938. Desde a primeira convenção, Garvey preconizou a criação de escolas espe- ciais para ministrar ensino técnico aos negros da África e das Américas, o desenvolvimento “da agricultura, da indústria e do comércio” para promover o intercâmbio entre negros, o lançamento de navios da companhia Black Star para facilitar o comércio e a criação de um jornal diário “em várias das grandes cida- des do mundo”, particularmente em Londres, Paris, Berlim, Cidade do Cabo, Nova York e Washington, bem como na Costa do Ouro e nas Antilhas, “para criar um movimento de opinião a favor de toda a raça negra”. De acordo com ele, a realização desse programa permitiria unificar “os povos negros dispersospelo mundo, unindo -os no quadro de um único organismo”56. Para os contem- porâneos, sua mensagem “teve imenso eco na África” e “de seu pequeno posto estratégico do Harlem, [Garvey] tornou -se uma figura mundial”57. 55 Apud CRONON, 1962, p. 65. 56 HILL e KILSON, 1971, p. 241. 57 CLARKE, 1964, p. 15. 906 África sob dominação colonial, 1880-1935 Em 1917, o intelectual J. E. Casely Hayford, da Costa do Ouro, aproveitou o ímpeto geral imprimido pelo garveyísmo para fundar o National Congress of British West Africa, cuja sessão inaugural se verificou em Acra em março de 1920. Jamo Kenyatta, por sua vez, recordou que em 1921 nacionalistas do Quênia, que eram analfabetos, reuniam -se em torno de qualquer um que lhes lesse e relesse duas ou três vezes um artigo de The Negro World [...] depois corriam para a floresta a repetir meticulosamente tudo quanto tinham ouvido para africanos ávidos de dispor de doutrina própria que os libertasse da mentalidade servil a que a África estava reduzida”58. O próprio Garvey escrevia editoriais e longos artigos para The Negro World, cuja tiragem era de aproximadamente 200 mil exemplares, mas que atingia na realidade um público bem maior. Na Niassalândia, a criação de filiais da UNIA encontrou a oposição das autoridades coloniais e de alguns dirigentes africanos, como Clements Kada- lie, fundador da Industrial Commercial Workers’ Union59. Apesar da oposição declarada do socialista Kadalie à doutrina de “A África para os africanos” pre- gada pela UNIA, Garvey parece ter entrado em contato direto com estudantes africanos, inclusive com aqueles vindos da Niassalândia, que se encontravam nos Estados Unidos. Em consequência, a administração colonial britânica fez extenso inquérito sobre a atividade dos estudantes da Niassalândia, como o futuro dr. D. S. Malekebu, que, na década de 1920, cursou medicina no Meharry Medical College, reservado aos alunos negros. De regresso à África, Malekebu foi proibido até de entrar na Niassalândia e teve de passar algum tempo na Libéria. O temor do recrudescimento do espírito revolucionário que animara John Chilembwe foi uma das razões que levaram as autoridades coloniais britâ- nicas a proibir “uma viagem à Niassalândia e a outras regiões da África oriental projetada por Garvey e alguns colaboradores dele nos anos de 1920”. Para evitar que a influência deste último se exercesse por outras vias como, por exemplo, seu jornal tão prestigiado, ou pelos trabalhadores migrantes regressados da Africa do Sul60, as autoridades interditaram The Negro World em 1922. Talvez se sentissem particularmente desafiadas por certos artigos do jornal, como aquele, publi- cado mais tarde, em que Kamuzu Banda, que acabava de terminar seu curso na 58 JAMES, 1963, p. 396. 59 JOHNS, 1970. 60 Para indicações sobre as filiais sul -africanas da UNIA, ver The Negro World, 1927. 907A África e o Novo Mundo Universidade de Chicago, era apresentado como “[...] o herdeiro presuntivo da função de chefe de 25 mil africanos da Niassalândia [...]61. A viúva de Garvey, Amy Jacques Garvey, explicou, entretanto, como a influ- ência dele se propagara efetivamente pela África, por caminhos misteriosos: Marinheiros e estudantes de outras regiões da África [além da Libéria] conver- teram-se à doutrina de Garvey na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos da América. Ao regressarem à pátria, pregaram em segredo o evangelho da unidade e da liberdade; alguns se tornaram dirigentes, outros reuniram fiéis em torno de si pela virtude de seu ensino e de sua fé inspirada62. A influência de Garvey tornou -se evidente nas escolas de missão que Azi- kiwe frequentou. Kwame Nkrumah confessou mais tarde que nenhuma obra tivera sobre ele uma influência mais forte, quando estudava nos Estados Unidos, do que Philosophy and Opinions, de Garvey (1923). Enquanto Garvey e Du Bois agitavam politicamente o mundo negro, nas três primeiras décadas do século XX, formava -se uma corrente cultural orien- tada para a África, que teve larga influência. O valor da cultura negra foi par- ticularmente reafirmado com dinamismo na Europa, nas Antilhas e na África ocidental, sob o impulso de africanos e de antilhanos francófonos que haviam sido atraídos, enquanto estudantes em Paris, pelos congressos pan -africanistas, pelos programas da UNIA e pelo entusiasmo geral provocado pelo Renasci- mento do Harlem. Em resumo, a interação de negros francófonos das Antilhas (como o mar- tiniquês Aimé Césaire, cujo célebre poema Cahier d ’un retour au pays natal foi publicado em 1939) e de intelectuais da África ocidental (como o poeta e político senegalês Léopold Sédar Senghor) forjou o movimento da negritude. Convencidos de que todos os africanos e todos os povos de ascendência africana tinham um patrimônio cultural comum, os escritores ligados a esse movimento esforçaram -se para restabelecer laços entre os diversos componentes do mundo negro. A experiência dos negros de ultramar, assim como os textos e o dinamismo intelectual do Renascimento do Harlem, exerceram forte influência na noção de negritude. Por seu lado, o movimento do Harlem nutria -se da crescente identi- ficação cultural com a África. Countee Cullen perguntava em um poema: 61 The Negro World, 1932, p. 8. 62 GARVEY, 1969, p. 258. 908 África sob dominação colonial, 1880-1935 “Que é a África para mim?”. Langston Hughes, no poema intitulado “O negro fala dos rios”, evoca como ele construiu sua cabana às margens do Congo e ali adormeceu63. Um e outro influenciaram profundamente Senghor e os demais cantores da negritude. Foi outro jamaicano – Claude McKay –, porém, quem contribuiu com sua poesia para unificar o pan -africanismo cultural e político, insistindo em sua obra no fato de que os negros deviam tomar consciência de seus sofrimentos comuns, protestar contra eles e afirmar sua dignidade. Um de seus poemas – “Se temos de morrer” –, de tom provocante e cuja eloquência tem grande eficácia, haveria de ser empregado, sem citação do autor, por Winston Churchill durante a batalha da Inglaterra. McKay, como Garvey e milhares de estudantes africanos, fora atraído para os Estados Unidos pela reputação do Instituto Tuskegee, mas logo foi se juntar aos milhões de negros que viviam em Nova York na década de 1920. As relações entre africanos colonizados e negros norte -americanos encon- traram, por vezes, expressão simbólica na literatura e no pensamento populares. Várias comunidades africanas atribuíam um papel essencial aos negros norte- americanos em seus sonhos messiânicos de libertação do jugo colonial. Em mea- dos do século XIX, por exemplo, num dos momentos mais sombrios da história africana, o do desastroso sacrifício do rebanho dos Xhosa, muitos africanos acreditavam que suas terras e seus bens tradicionais, assim como os membros desaparecidos de suas famílias, lhes seriam devolvidos por negros vindos do lado de lá dos mares. Em 1910, na data da formação da União Sul -Africana, os jornais publicaram artigos sobre um bispo africano chamado Msiqinya, que pretendia ser um messias negro norte -americano. O tema reapareceu em 1921, quando Enoch Mjigima, adepto de Garvey e dirigente de um grupo cujos mem- bros se intitulavam Israelitas Negros, entrou em contato com a Afro -Arnerican Church of God and Saints of Christ, durante a rebelião de Bulhoek, bem como na profecia de Wellington, (ver o capítulo 27). Mjigima já se correspondia com Garvey e queria estabelecer uma filial da UNIA na África do Sul. O romance intitulado Prester John (1910) dá uma imagem comovente dessa expectativa de um messias afro -americano. Escrito por um branco, relata uma formidável revolta contra os brancos dirigida por um eclesiástico africano que havia estudado no exterior. Ele causou imediata sensação na África austral. Para alguns, prefigurava
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