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VIOLÊNCIA DE GÊNERO, LINGUAGEM E DIREITO Análise de Discurso Crítica em Processos na Lei Maria da Penha VIOLÊNCIA DE GÊNERO, LINGUAGEM E DIREITO ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA EM PROCESSOS NA LEI MARIA DA PENHA ©2013 Lúcia Freitas; Veralúcia Pinheiro Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor. F884 Freitas, Lúcia; Pinheiro, Veralúcia. Violência de Gênero, Linguagem e Direito: Análise de Discurso Crítica em Processos na Lei Maria da Penha /Lúcia Freitas; Veralúcia Pinheiro. Jundiaí, Paco Editorial: 2013. 164 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-8148-134-0 1. Lei Maria da Penha 2. Violência Contra a Mulher 3. Análise de Discurso 4. Feminismo. I. Lúcia Freitas II. Veralúcia Pinheiro. CDD: 340 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Foi feito Depósito Legal Índices para catálogo sistemático: Direito 340 Processo Social 303 Sociolinguística 306.44 Rua 23 de Maio, 550 Vianelo - Jundiaí-SP - 13207-070 11 4521-6315 | 2449-0740 contato@editorialpaco.com.br Conselho Editorial Andrea Domingues Benedita Cássia Sant’anna Carlos Bauer Cristianne Famer Rocha Fábio Régio Bento José Ricardo Caetano Costa Luiz Fernando Gomes Milena Fernandes Oliveira Romualdo Dias Thelma Lessa Victor Hugo Veppo Burgardt Rua 23 de Maio, 550 Vianelo - Jundiaí-SP - 13207-070 11 4521-6315 | 2449-0740 contato@editorialpaco.com.br AgrAdecimentos Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec- nológico - CNPq, pelo financiamento da pesquisa. À Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação – PrP da UEG, pelo apoio institucional. À Diretora da UEG Unidade de Jaraguá, Professora Iraí Cor- deiro Guerra Silva, pelo apoio ao projeto. À professora Carmen Rosa Caldas-Coulthard e ao Professor Osmar Domingos de Barros pela colaboração acadêmica. A Wilma Pimentel de Moraes Carvalho, Rafaela Calixto de Oliveira, Ângela Márcia da Cruz Arruda Chaves, Maria Eduarda Sussekind Rocha Vieira de Freitas e Paulo Afonso Hernandez, pelo apoio logístico e colaboração. Às médicas, médicos, agentes de saúde, operadoras e operado- res do Direito da cidade de Jaraguá, pelas entrevistas concedidas. À juíza de direito, presidenta do Fórum da Comarca de Jara- guá-GO, Mariana de Azevedo Lima, pela autorização de acesso aos processos da Lei Maria da Penha. Prefácio No momento em que escrevo este texto, discuto com minhas colegas da Universidade Federal de Santa Catariana um caso recen- temente ocorrido com uma aluna de Pós-Graduação do curso de Pedagogia que foi agredida por seu namorado, professor e chefe do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Educação, e ironicamente, membro de um Comitê de Ética da mesma institui- ção. Ela relata: “Na noite de quinta-feira (15/11/2012), entre 18h e 22h da noite, no apartamento dele, fui agredida. Levei um soco no olho esquerdo sem motivo”. Ainda menciona seu medo em relatar o ocorrido devido à sua relação de inferioridade com o professor: ela uma aluna, ele um acadêmico renomado. Depois de alguma hesitação, no entanto, a aluna vai à Delegacia de Mulheres para registrar o Boletim de Ocorrência da agressão sofrida. Lá, foi recebida por um agente que lhe disse que deveria aprender a se defender sozinha. Em outra de- legacia, onde também foi dar queixa, o policial que a atendeu, nem tinha conhecimento da “Lei Maria da Penha”. Ao denunciar seu caso para suas e seus colegas estudiosas/os das relações de gênero da UFSC, a aluna, que também é jornalista, expressa sua indignação ao dizer: “Comprovei que mulheres fra- gilizadas são muito maltratadas pelo sistema e, por isso, sentem-se intimidadas e relutam em seguir com a denúncia”. Outros dados salientam ainda mais a imensidade do problema da violência de gênero no Brasil: números do Anuário das Mulheres Bra- sileiras 2011, divulgado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres e pelo Dieese, mostram que quatro entre cada dez mulheres brasileiras já foram vitimas de violência doméstica (http://www.brasil.gov.br/so- bre/saude/saude-da-mulher/violencia-contra-a-mulher). Ainda, de acordo com o Mapa da Violência de 2012 publica- do pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos e pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Social, 70 mil casos de violência contra mulheres foram registrados no Brasil em 2011. Num ranking de 87 países onde as mulheres são mais assassinadas, o Brasil se coloca no sétimo lugar. O caso mencionado acima, ocorrido entre pessoas supostamente educadas, assim como os dados das agências, exemplificam a impor- tância do presente livro Violência de Gênero, Linguagem e Direito: Análise de Discurso Crítica em Processos na Lei Maria da Penha, de autoria de Lúcia Freitas com a colaboração de Veralúcia Pinheiro. Nesta obra, as autoras conflagram 3 áreas de extrema importân- cia para os estudos das Ciências Sociais: Discurso, Gênero e Direito. Resultado de uma extensa e elaborada pesquisa de campo, Lú- cia e Veralúcia demonstram que a violência de gênero, ainda impul- sionada por uma ideologia patriarcal onde a mulher é inferior ao homem, é um grande problema em nossa sociedade pós-moderna e precisa ser combatida de todas as formas. A obra salienta, de ma- neira cuidadosa e competente, as interseções entre o fazer, o social, as ideologias e os discursos que materializam estas ideologias, prin- cipalmente as de ordem jurídica. Como prova o principal argumento que perpassa todo o li- vro, é pelas estruturas discursivas que as práticas sociais são rea- lizadas, já que o discurso constitui a realidade e é construído ao mesmo tempo por ela. Nas Ciências Sociais, muita relevância é dada a fatos e a teorias, mas pouco importância é dada à questão linguística e discursiva, que estrutura tudo o que é representado no nível do social. O principal arcabouço teórico adotado na argumentação do li- vro provém dos novos estudos críticos do discurso, que pretendem, em essência, desconstruir discriminação, exclusão e relações assimé- tricas. Para a Análise Crítica do Discurso ou Análise de Discurso Crítica, como denominam as autoras, a prática linguística é o princi- pal meio pelo qual os processos sociais operam e não como um con- junto isolado de significados ou formas textuais A diversidade social e institucional é estabelecida e perpetuada através da diversidade no uso linguístico, ou nas diferentes “maneiras de falar ou representar o mundo”. O enfoque crítico tenta não simplesmente descrever, mas também interpretar e explicar diferentes formas de comunicação em seus contextos sociais, já que para uma analista crítica do discurso, o código linguístico deve ser considerado como parte integrante do processo social. A própria análise já é considerada interpretação, pois a/o analista faz parte do processo interativo. As relações de poder, como a violência de gênero, são codifi- cadas pela linguagem, e causam seu efeito sobre a prática social. Como apontam as autoras, o relacionamento entre interação, pers- pectiva e ideologia, são a principal preocupação da pesquisa que tenta abordar as ideologias do fazer legal e das práticas de agressão contra a mulher. Em suas análises das narrativas de violência, as autoras com- provam que os textos analisados têm em sua forma discursiva claras implicações políticas e ideológicas, as quais refletem posições do/a produtor/a textual assim como da instituição legal a que julgam finalmente os/as atores/as sociais envolvidos. O objetivo principal da análise crítica aqui apresentada é o de expor a discriminação e os abusos do poder nos discursos da lei para que as pessoaspossam ter consciência das assimetrias sociais provadas por esses textos. Pretende também apontar como dis- cursos dominantes e preconceituosos são transmitidos através do código linguístico e, assim fazendo, criar uma consciência crítica nos/as leitores, os/as quais, como agentes, podem iniciar mudan- ças sociais. Na medida em que estruturas agem em detrimento de grupos, como neste caso das mulheres violentadas, a análise espera proporcionar mudanças e transformação não somente das práticas discursivas, mas também das práticas e estruturas sociopolíticas que produzem essas práticas discursivas. Por sua apresentação cuidadosa e por sua arguição perspicaz e inovadora, recomendo o livro Violência de Gênero, Linguagem e Direito: Análise de Discurso Crítica em Processos na Lei Maria da Penha como um precursor importantíssimo na iniciante área interdisciplinar de pesquisa em Discurso, Gênero e Direito, a qual tem como objetivo principal produzir uma conscientização social mais atuante e erradicar a violência de gênero de nossa sociedade. Finalizo com as palavras proverbiais da aluna agredida da UFSC: A violência só tem cara a partir do momento em que escan- caramos sem anseios de seguir em frente. Ser mulher em uma sociedade patriarcal e machista, que trata a diversidade como doença mental não é uma tarefa fácil. Mas as mudanças só acontecem quando estamos dispostas. A minha disposição é grande e constante. Perene. Nesse momento, preciso de apoio. É o pedido mais franco e desarmado que faço a todas e a todos. Outras pessoas calaram diante de casos parecidos. Fa- lar (e escrever) é o que sei fazer. Faço disso frente de uma luta. Carmen Rosa Caldas-Coulthard Professora Titular dos Programas de Pós-Graduação em Inglês e Estudos da Tradução da Unziversidade Federal de Santa Catarina Pesquisadora Sênior do Department of English, University of Birmingham, Grã-Bretanha. sUmário APRESENTAÇÃO...................................................................................15 PARTE I – SITUANDO O PROBLEMA E SUA ABORDAGEM 1. Violência de gênero, violência contra a mulher: de que violência falamos?..................................................................................23 2. O enfoque da Análise de Discurso Crítica...................................31 3. Os processos na Lei Maria da Penha como sistema de gêneros..34 4. Os significados resgatados dos autos: ação, representação e identificação.........................................................................................41 4.1 Boletim de ocorrência e Termo de Representação.............43 4.2 Inquérito Policial.....................................................................46 4.3 Denúncia e Termo de Audiência e Suspensão.....................53 PARTE II – A RECUPERAÇÃO DAS HISTÓRIAS DE VIOLÊNCIA PELOS AUTOS PROCESSUAIS 1. O terror após a separação.................................................................65 1.1 Comprei uma arma e vou te matar!.......................................66 1.2 Deixo você no escuro, jogo pedras no seu telhado e depois te mato .................................................................................66 1.3 Destruição material e espiritual: pedras no telhado e tapas seguidos de chutes.................................................................67 1.4 Vou ensinar a não me fazer de palhaço!................................67 1.5 Vou comprar uma arma pra te matar e quem estiver com você............................................................................................68 2. Ciúme doentio...................................................................................68 2.1 Uma mordida na boca..............................................................69 2.2 A garota arrastada pelos cabelos por quatro quarteirões...69 2.3 Vou arrancar dente por dente seu até você estrebuchar no chão! ............................................................................................70 2.4 Um passeio de carro na estrada .............................................70 3. Alcoolismo.........................................................................................71 3.1 Uma mordida na mão..............................................................72 3.2 Não mate a minha mãe!...........................................................72 3.3 Briga no bar................................................................................73 3.4 Vou te cortar com a faca de baixo para cima, começando pela...! ...........................................................................73 3.5 Carnaval......................................................................................74 3.6 Você não faz comida porque está na rua com outros homens! ................................................................................74 4. Brigas em que os filhos são pivôs, vítimas ou agressores............75 4.1 Fraldas para o filho....................................................................77 4.2 O recibo da pensão...................................................................77 4.3 As roupas da filha......................................................................78 4.4 Um soco na barriga da filha grávida......................................78 4.5 Vou te dar um tiro na cabeça!.................................................79 4.6 A mãe agredida pelo filho........................................................79 5. Agressão instrumentalizada.............................................................80 5.1 Uma facada no olho .................................................................81 5.2 Lata de ervilhas...........................................................................81 5.3 O caso da mulher assassinada pelo marido com 15 facadas..........................................................................................82 5.4 A mulher que mata o marido .................................................83 PARTE III – AS PERFORMANCES GENDERIZADAS NAS CONJUGALIDADES VIOLENTAS 1. Performances de masculinidade hegemônica e machismo......88 2. Performances de amor fati e dominação.......................................96 3. A linguagem simbólica das performances violentas................103 PARTE IV – A PERFORMANCE DOS OPERADORES DO DIREITO E A TRIDIMENSIONALIDADE DO DISCURSO JURÍDICO 1. Dualismo discursivo e ação burocrática em casos de retratação...............................................................................112 2. Conservadorismo, automatismo e banalização no arquivamento dos processos..............................................................120 3. Suspensão de processos e extinção de punibilidade: a dimensão coercitiva............................................................................130 CONSIDERAÇÕES........................................................................141 REFERÊNCIAS.................................................................................153 15 APresentAÇÃo Este livro reúne parte dos resultados do estudo realizado no pe- ríodo de 2009 e 2010, intitulado Violência contra a mulher em uma cidade do interior de Goiás: silêncio e invisibilidade? e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológi- co (edital MCT/CNPq/SPM-PR/MDA nº. 57/2008). Os termos Violência de Gênero, Linguagem e Direito, que formam seu título, nos remetem de imediato à proposta tripartida que ora apresentamos. O primeiro elemento que encabeça esse tripé, a “violência de gênero”, constitui o problema central de nosso estudo. Do “direi- to” buscamos os dados concretos sobre esse problema, a partir de processos enquadrados na Lei Maria da Penha. Além disso, procu- ramos apreender de que forma o campo jurídico interpreta os di- reitos conquistados pela mulher brasileira na contemporaneidade, uma vez queele é idealizado como instrumento capaz de promover a justiça, formado por instituições que têm a função de garantir a efetivação dos direitos do ser humano como ser livre em cada con- figuração histórica. E, por fim, na “linguagem”, que ao mesmo tem- po registra e lida com a questão, concentramos nossas ferramentas analíticas. A união dessas três áreas independentes é conveniente a uma abordagem transdisciplinar, que busca superar as limitações de teorias baseadas em visões fechadas, construídas a partir da crença na pureza conceitual e na ideia de autonomia de campos do conhecimento que procuramos romper nesta obra. Sobre a violência de gênero, é importante lembrar que, embora ela atinja as relações pessoais em geral, especialmente a de casais, os dados nos mostram que as mulheres sofrem de forma mais di- reta e contundente as consequências das relações conflituosas. Daí o fato de diversas pesquisas utilizarem os termos “gênero” e “mu- lher” como sinônimos. Não obstante, neste livro, o primeiro termo é escolhido em função de expressar uma perspectiva de abordagem mais dinâmica e relacional, que procura captar tanto o processo de Lúcia Freitas & Veralúcia Pinheiro 16 construção social da feminilidade e da masculinidade quanto a for- ma como os gêneros se conectam ao fenômeno da violência. Nos últimos vinte anos, vem ocorrendo na sociedade brasileira o reconhecimento de que a violência contra a mulher é um pro- blema de proporções que demandam uma intervenção mais direta do Estado. Aqui, assim como em outros países, as estatísticas sobre o perfil das vítimas de violência são muito eloquentes quanto ao maior grau de insegurança para a população feminina no âmbito familiar. Segundo Strey (2004, p. 38), “existe uma estimativa de 300.000 mulheres vítimas da violência de seus maridos ou compa- nheiros cada ano no Brasil”. Essa violência é um tipo de ação que envolve uma forma de poder extralegal/ilegal, que se utiliza de di- versas espécies de sujeição e opressão econômica, psicológica, mo- ral, até as formas de poder selvagem e criminal contra a integridade física das mulheres. Essa realidade corrobora para o entendimento de que a violên- cia contra a mulher é um atentado aos Direitos Humanos, um obs- táculo ao desenvolvimento e à consolidação plena da democracia, por isso está entre as prioridades da agenda da Organização das Na- ções Unidas (ONU), que iniciou seus esforços ainda na década de 1950, com a criação da Comissão de Status da Mulher. Nas últimas décadas, em decorrência das lutas desencadeadas pelas mulheres, tem havido uma convergência de interesses de âmbito internacio- nal e nacional que impõe uma série de metas e ações específicas de combate a essa forma de violência considerada incompatível com o próprio projeto de modernidade. Nessa tarefa, recai sobre o judiciário um papel extremamente importante, uma vez que o paradigma de um Estado democrático e de Direito requer dele decisões que satisfaçam a exigência de dar curso e reforçar a crença na legalidade, entendida como segurança jurídica. Como as práticas sociais são mediadas pela linguagem e considerando-se que é substancialmente por meio da linguagem que o direito se estabelece, é inegável que a união de campos como Linguística e Direito é propícia ao objeto de estudo que nos pro- Violência de Gênero, Linguagem e Direito 17 pusemos enfrentar. Desse modo, os textos dos processos que cons- tituíram o corpus de nossa pesquisa, são considerados um material valioso para uma análise da cultura jurídica. É nessa direção, por- tanto, que se dirige nosso interesse pelos documentos que regis- tram as demandas de violência contra a mulher enquadradas na Lei Maria da Penha. A violência e a opressão contra a mulher tem se tornado mais visível no Brasil. As mudanças determinadas pela Constituição Fe- deral de 1988 têm exercido grande influência na sociedade, alte- rando as condutas tanto dos agentes públicos quanto dos próprios indivíduos envolvidos em relações dessa natureza. Todavia, con- trariando essa tendência de maior visibilidade sobre o problema, constatamos que na cidade onde trabalhamos como professoras e pesquisadoras, em um campus da Universidade Estadual de Goi- ás, esse tipo de violência não era claramente percebido e nem exis- tiam estudos a esse respeito. Embora muitas pesquisas tenham sido publicadas sobre o tema (Almeida, 2001; Azevedo, 1985; Fausto, 1984; Gregori, 1993; Grossi e Werba, 2001), dando-lhe maior visi- bilidade, permanece ainda uma lacuna no que se refere às mulheres do interior, posto que as pesquisas em geral retratam o universo das mulheres que residem nas capitais ou grandes cidades. As pequenas cidades e suas respectivas instituições raramente são contempladas por estudos que se propõem a desvendar processos de continuida- de ou ruptura com valores, visões de mundo que conduzem quase sempre à violência, seja ela física, moral, sexual, etc. Assim, o foco sobre a cidade de Jaraguá, que é tomada neste estudo como refe- rencial para a compreensão da violência contra a mulher, provê um ponto de visão diferenciado sobre a problemática. Ao focarmos o objeto de estudo no contexto local desse muni- cípio, impomos um recorte da realidade do interior do estado de Goiás, que a exemplo de outros contextos brasileiros, é marcado por uma formação cultural e política a partir da atuação de gru- pos oligárquicos, constituídos com base em famílias patriarcais. A cidade escolhida é um exemplo típico dessa origem, carregando, Lúcia Freitas & Veralúcia Pinheiro 18 por isso mesmo, uma herança cultural autoritária que, certamen- te, ainda exerce influência nas práticas sociais de parte significativa da população, especialmente em relação à mulher no espaço fami- liar. Evidentemente, a urbanização ao longo das últimas décadas do século XX insuflou uma entusiástica onda de independência feminina e contribuiu para que a mulher se promovesse em vários sentidos. Não obstante, a evidência de que o tema da violência con- tra mulher era silenciado e invisível se constatou, em um primeiro momento, justamente em meio ao público feminino local, entre nossas alunas do curso de Pedagogia, futuras professoras. Embora a violência não seja rara no interior de suas próprias famílias, de- monstraram quase sempre pouca compreensão em termos legais e culturais do tema por nós levantado. Surgiu, então, o interesse em descortinar um quadro de violên- cia contra a mulher nas relações afetivas no município. Essa é uma iniciativa que poderia ser tomada a partir de diferentes bases, no entanto, nossa opção foi abordar o problema a partir de um con- texto específico, a esfera judicial. Acessaríamos uma realidade que se encontrava encapsulada em documentos judiciais, guardados nos arquivos do Fórum local, fora do alcance da maioria das pes- soas, acessível apenas aos chamados “operadores do Direito”, eles próprios muitas vezes cegos frente a uma questão que é ofuscada em meio a um emaranhado de ações judiciais de toda natureza. Ao adentrarmos esse espaço, deparamo-nos com uma realidade que envolvia ameaças, vias de fatos que provocaram leões leves e graves e até assassinatos, além de estupros e outros crimes sexuais. Revela- va-se aos nossos olhos um quadro de violência bem mais amplo que o imaginado. Contudo, a Justiça não disponibiliza todos os casos, especialmente os últimos mencionados, que correm em “segredo de Justiça”, de forma que, descontados os processos assim enqua- drados, além dos que estavam nas mãos de advogados e outros que já estavam arquivados, constituímos um corpus com um montante que foi possível acessar. Violência de Gênero, Linguagem e Direito 19 Assim, os dados levantados para o livro foram colhidos em um conjunto de mais de 250 textos de 25 processos penais en- quadrados na LeiMaria da Penha. A partir desses registros foi possível depreender um conjunto de histórias violentas, com seus protagonistas, mulheres e homens agressores, os tipos de ofensas que cada um desempenha nas cenas denunciadas, bem como o próprio cenário em que acontecem. Ao mesmo tempo, os textos ainda indicaram as providências acionadas pelo poder público e os posicionamentos de seus agentes legais na lida com o proble- ma. Sobre esses últimos, ainda fizemos algumas entrevistas em que foram ouvidos juízes e juízas, promotoras e promotores, um delegado da Polícia Civil e um comandante de Polícia Militar, além de médicas e médicos e outros agentes de saúde que também representam a esfera oficial. Espera-se do poder público, especialmente do judiciário, que suas decisões satisfaçam a exigência de dar curso e reforçar a crença na legalidade, entendida como segurança jurídica. O Brasil, como signatário de vários tratados e convenções internacionais de direi- tos humanos, tem se comprometido formalmente com o combate à violência de gênero e com a implementação de políticas voltadas à garantia dos direitos das mulheres. A Lei Maria da Penha é re- sultado de um empenho na direção de atender tal demanda. Não obstante, sua implantação, durante todo o processo, foi alvo de inúmeros problemas de resistência no meio jurídico. Reconhece-se ainda a ineficiência e a morosidade desse Poder no trato aos casos de violência contra a mulher, que para muitos estudiosos da área (Izumino, 2004; Monteiro, 2003; Pimentel, Pandjarjian e Bello- que, 2006; Castilho, 2008) é o reflexo da cultura patriarcal e ma- chista da qual o judiciário brasileiro é impregnado. Essas evidências tornam o sistema passível de inúmeras críticas e, conforme declara Izumino (2004), na prática, contrariando sua função precípua, tem funcionado como instância reprodutora de desigualdades. É nessa direção, portanto, que se dirige nosso in- teresse pelos documentos que registram a ação do judiciário com Lúcia Freitas & Veralúcia Pinheiro 20 relação à violência contra a mulher. O objetivo é estudar o fenôme- no por uma abordagem transdisciplinar que vincula uma análise crítica da linguagem jurídica registrada nos processos e as práticas sociais em que os mesmos se inserem. Dentro desse norte, o livro se divide em quatro partes. Na pri- meira, apresentamos os eixos temáticos principais da obra, quais sejam, violência e gênero, bem como as afiliações teóricas que os contemplam, a linguagem, captada na Análise de Discurso Crítica, referencial que é aplicado a Processos da Lei Maria da Penha, dados situados no campo do Direito. Essas demarcações são esclarecidas para situar os pontos que ancoram nossas análises e discussões. Na segunda parte, reconstruímos, a partir dos registros proces- suais, 25 narrativas de violência. Cada caso, na sua singularidade, é parte de uma história de vida específica, que em conjunto repre- sentam uma cronificação do conflito de gênero e, assim, expressam também significados coletivos sobre o fenômeno. Dispomos as narrativas recuperadas, que nos remetem a uma espécie de teatra- lidade trágica, para melhor compreendermos os contextos em que o fenômeno se localiza, com seus personagens, enredos e cenários próprios, bem como provemos algumas tipificações. Na terceira parte, questões sobre conjugalidade violenta são abordadas tanto na dimensão ideológica, no plano dos discursos, quanto no plano das ações materiais, enfaticamente reafirmadas pelos homens e mulheres, protagonistas das histórias. Foram par- ticularmente analisados os elementos do universo machista que amparam e sustentam atitudes agressivas entre casais, bem como os discursos de amor que expressam a cultura e o contexto de nossa época. Os dois elementos norteadores de nossas reflexões sobre as conjugalidades, o discurso e a performance, unem-se no sentido de descrever aspectos simbólicos da violência como uma linguagem própria de grande poder coercitivo nas relações conjugais. A quarta parte do livro ocupa-se da discussão sobre como os operadores do direito atuam nos casos de agressão, ou seja, que pro- vidências tomam, quais as consequências concretas de suas ações e Violência de Gênero, Linguagem e Direito 21 que conhecimentos e valores sustentam suas defesas, suas acusações e suas decisões como sujeitos públicos. Exploram-se os principais desfechos dos processos, quais sejam arquivamentos e suspensões, captando as dimensões retórica, burocrática e coercitiva do discur- so jurídico. Nessa direção, levantamos as concepções ideológicas que subjazem as decisões dos agentes da Lei, operacionalizadas pelos elementos linguísticos que constroem sentenças, termos de retratação, alegações finais e outros gêneros forenses por eles ma- nipulados, e que moldam suas performances na condução dos casos e nas questões de punibilidade. As análises oferecem um enfoque linguístico sobre a cultura jurídica contemporânea, com suas ten- sões e jogos de força que se escondem por trás de uma retórica de “objetividade”, “neutralidade” e de “transparência”. Chamamos atenção também para a relevância dos estudos lin- guísticos na compreensão de problemas sociais como o que ora abor- damos e que interessam não apenas linguistas, mas profissionais de diferentes áreas e, no caso desta obra, aqueles envolvidos com o cam- po das Ciências Sociais, especialmente o do Direito. As análises aqui empreendidas expõem a instrumentalidade do recorte teórico-me- todológico da Análise de Discurso Crítica na detecção dos aspectos de linguagem que permeiam, influenciam ou mesmo determinam circunstâncias de desigualdade e iniquidade. Nessa medida, reforça- -se a importância da Linguística Aplicada, como ciência moderna, e o papel coadjuvante de suas pesquisas e ação pedagógica nos proces- sos de luta por mudanças sociais. 23 PArte i sitUAndo o ProBLemA e sUA ABordAgem 1. Violência de gênero, violência contra a mulher: de que violência falamos? Ao nos interessarmos por processos de violência enquadrados na Lei Maria da Penha, estamos lidando com um fenômeno cuja complexidade se reflete na própria variedade e polissemia dos ter- mos que se utilizam para se referir a ele: violência contra a mulher, violência intrafamiliar, violência conjugal, violência doméstica, violência de gênero, apenas para citar algumas designações. As definições da palavra violência agregam significados etimológicos relacionados a força, transgressão, algo que perturba a ordem, que excede ou ultrapassa e que revela um descontrole (Ruiz e Mattioli, 2004). Na definição jurídica, violência se dá mediante “constran- gimento físico ou ficto, exercido sobre a vontade de alguém, para obrigá-lo a submeter-se à vontade de outrem ou a consentir” (Nu- nes, 1999, p. 1082). Já a Organização Mundial de Saúde define o termo como a imposição de um grau significativo de dor e sofri- mento (Minayo, 2006). Essas definições sintetizam que toda vio- lência implica em uma imposição dolorosa de poder. Aqui, nosso objetivo é tratar desse tipo de imposição com re- lação às mulheres, o que delimita o tema sobre o rótulo de “vio- lência contra a mulher”. A esse respeito, uma primeira demarcação é proposta na Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres (Cedaw), de dezembro de 1993, segundo a qual: Lúcia Freitas & Veralúcia Pinheiro 24 A violência contra as mulheres é uma manifestação de rela- ções de poder historicamente desiguais entre homens e mu- lheres que conduziram à dominação e à discriminação contra as mulheres pelos homens e impedem o pleno avanço das mulheres... Essa definição está em consonância com a explicação de Strey (2004, p.24) sobre as raízes do problema: Parte ou grande parte desse movimento predatório sobre as mulheresvem da concepção historicamente baseada e sus- tentada por filosofias, teorias científicas e “humanísticas” e outros apoios ideológicos patriarcais, de que os homens são seres humanos superiores, construtores da Cultura e da His- tória, enquanto que as mulheres são seres inferiores, próximas à natureza, devendo, portanto, serem submetidas exatamente como tem sido a Natureza, ou por ordem divina ou por direi- to conquistado pelos seres humanos do sexo masculino. Tal compreensão perpassa noções de dominação masculina e patriarcal, que definem violência contra as mulheres como expres- são do domínio do homem sobre a mulher, sendo esta historica- mente vitimada pelo controle social masculino. Os paradigmas da dominação masculina (Chauí, 1985) e da dominação patriarcal (Saffiotti, 1994) prevaleceram nas pesquisas sobre violência contra a mulher nas últimas décadas. Contudo, neste livro, buscamos uma aproximação com o conceito de “gênero” (Scott, 1986), que tem direcionado trabalhos mais recentes sobre o tema no Brasil (Strey, Azambuja e Jaeger, 2004; Araújo e Mattioli, 2004; Izumino, 2004; Minayo, 2006; Grossi e Werba, 2001; Almeida, 2001). Esse viés é proposto em função das mudanças que vêm ocorrendo nos diferentes papéis que assumem mulheres em situação de violên- cia na atualidade, cuja complexidade torna as noções como patriarca- do e dominação masculina insuficientes nesse contexto. A especifici- dade da violência contra a mulher se sustenta sobre uma sujeição que não é apenas resultado de uma ideologia que se refere à superioridade Violência de Gênero, Linguagem e Direito 25 masculina versus a inferioridade feminina (Santos e Izumino, 2005). Nesse sentido, destacamos uma abordagem de violência contra a mu- lher não de forma absoluta e estática, mas sim de forma dinâmica e relacional, embora o termo relacional não implique necessariamente complementaridade, mas sim, assimetria de poder. A definição e o uso da categoria de gênero nas pesquisas atuais associam-se a debates teóricos internacionais e nacionais. Na Con- venção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Preve- nir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, adotada pela OEA em 1994), por exemplo, ficou definido que a violência contra a mulher é “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”. Essa demarcação reflete não apenas o paradigma de gênero como o paradigma internacional dos direitos humanos que tem influencia- do mudanças no cenário jurídico-político brasileiro. Tais mudanças implicam na promulgação de novas leis com vistas a ampliar for- malmente os direitos das mulheres, como é o caso da Lei 11.340 de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha. No texto legal, a violên- cia contra a mulher é assim definida: “Para os efeitos desta Lei, con- figura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Há nessa redação uma intertextualidade direta com a definição de violência contra a mulher da Convenção de Belém do Pará. Em seu Artigo 6o, o texto explicita o paradigma dos direitos humanos: “violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”. Observa-se, ainda, que a Lei agrega termos como violência doméstica e familiar e esclarece essas relações nos seguintes modos: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vín- culo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; Lúcia Freitas & Veralúcia Pinheiro 26 II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independente- mente de coabitação. Essas definições esclarecem as sobreposições entre os termos violência familiar e doméstica, ambas compreendidas dentro da violência de gênero. Além de definir os contextos dessa violência, a Lei, em seu Artigo 7o do Capítulo II, propõe uma espécie de tipifi- cação das diferentes formas de violência contra mulher, dividindo- -a em física, psicológica, sexual, patrimonial e moral: I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer con- duta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto- -estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desen- volvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chan- tagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saú- de psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimô- nio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, Violência de Gênero, Linguagem e Direito 27 chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer con- duta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, in- cluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. A Lei Maria da Penha incorpora claramente não apenas a pers- pectiva dos direitos humanos como, principalmente, a de gênero, registrando na redação de seu texto que a violência contra a mulher é “qualquer ação ou omissão baseada no gênero”. O conceito tem sido utilizado nas ciências sociais em função de propor uma visão mais aprofundada das relações sociais entre os sexos, captando a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios dos homens e das mulheres. Nesse sentido, a noção de gênero (Scott, 1986) rejeita explicações biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum para várias formas de subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior. Assim, importa que se estude sob esse conceito, como a construção social tanto da feminilidade quanto da mascu- linidade se conecta ao fenômeno da violência. Tal abordagem defende que estudar as mulheres de forma iso- lada perpetua o mito de que a experiência de um sexo tem muito pouco ou nada a ver com o outro sexo (Scott, 1986). Enfatiza-se, portanto, o papel de homens e mulheres nas relações de violência, considerando a participação de ambos na produção dos papéis sociais que a legitimam. Segundo Izumino (2004), a violência de gênero ocorre normalmente no sentido homem contra mulher, mas pode ser perpetrada, também, por um homem contra outro homem ou por uma mulher contra outra mulher. Sob o conceito Lúcia Freitas & Veralúcia Pinheiro 28 de gênero não se pode compreender o fenômeno da violência como algo que acontece fora de uma relação de poder. Para Scott (1986), o gênero é uma forma primária de signifi- cação das relações de poder, pela qual ele é articulado.O poder, segundo Foucault (1995), não é algo que possa ser dividido entre aqueles que o possuem e o detêm exclusivamente e os que não o possuem e lhe são submetidos, como em uma estrutura hierárquica rígida, em que há dominantes e dominados. Para o autor, o poder deve ser analisado como algo que funciona em cadeia, e se exerce em rede. Nunca está localizado neste ou naquele ponto, não está exclusivamente na mão de uns ou é apropriado como uma riqueza ou um bem de outros. Nessa perspectiva, os indivíduos nunca são alvos inertes e consentidos de poder, são sempre centros de trans- missão, revezando-se na posição de exercer ou sofrer a sua ação (Foucault, 1988). Articulando o conceito de poder de Foucault e o de gênero de Scott, Izumino (2004) propõe uma alteração no modo de ver os termos em que se baseiam as relações entre homens e mulheres nas sociedades, de forma a considerar essas relações como dinâmicas de poder e não mais como resultado da dominação estática e polariza- da dos homens sobre as mulheres. Nessa perspectiva, a autora argu- menta que a violência de gênero não pode ser definida como uma relação de dominação do homem sobre a mulher, simplesmente. Ela ainda propõe que a situação de violência conjugal, por exem- plo, encerra uma relação de poder muito mais complexa e dinâmica do que a descrita pelo viés da dominação patriarcal. No tocante ainda à violência conjugal, Santos e Izumino (2005) compreendem que as mulheres têm autonomia e poder para mudar a situação na qual porventura se encontrem, conforme demonstram novos estudos sobre o tema (Izumino, 2004). Nesse sentido, alerta-se para a necessidade de se relativizar a perspectiva teórica da dominação-vitimização. Tal relativização é captada pela expressão “mulheres em situação de violência” proposta por Soares (1999) e é oportuna, segundo Santos e Izumino (2005), para que Violência de Gênero, Linguagem e Direito 29 possamos compreender como não apenas os homens, senão tam- bém as mulheres, praticam e conferem significado à violência em específicos contextos socioculturais, já que ambos participam na produção dos papéis sociais que a legitimam. Nesse sentido, é importante que se estude como a construção social tanto da feminilidade quanto da masculinidade está conec- tada com o fenômeno da violência. Para captar essa dinâmica, ao construto de gênero (Scott, 1986) é necessário outro enlace teórico, que aqui vinculamos com as noções de performatividade de gênero (Butler, 2008). Segundo a proposta de Judith Butler, o gênero se produz por um processo performático semelhante ao que descreve Austin (1967) em sua Teoria dos Atos da Fala, no qual o autor demonstra como fazemos coisas por meio da linguagem e, ao mesmo tempo, o poder que a linguagem nos aufere na produção de realidades no mundo. É o que acontece, por exemplo, quando uma juíza ou juiz profere uma sentença ou proclama uma união matrimonial de duas pessoas. Esses atos linguísticos geram consequências nos diversos campos da vida social, criando e transformando a realidade. No que se re- fere ao gênero, especificamente, Butler (2008) argumenta que seu caráter performático já se manifesta a partir do momento em que se pronuncia que um bebê é “menino” ou “menina”. Esse anúncio determina uma cadeia de atos que visam a moldar o gênero, como o controle sobre o tipo de roupas que a criança usará, as cores, os brinquedos, enfim, a forma como o indivíduo viverá sua sexuali- dade. A enunciação, portanto, de um gênero específico força tal gênero a existir sob regras e normas, o que leva à criação de toda uma performance para ele. Compreendido dessa forma, o gênero está constantemente sendo construído nas práticas discursivas cotidianas em nossas per- formances como homens e mulheres, com base em padrões domi- nantes do que é ser homem ou ser mulher. Isso significa que não possuímos características de um gênero que existe antes da perfor- mance, mas produzimos nosso gênero continuamente por meio Lúcia Freitas & Veralúcia Pinheiro 30 das coisas que fazemos: “o gênero como performance é algo que o sujeito faz nos posicionamentos que ocupa, nas narrativas que conta, nos modos de sentar, agir, mover o corpo, aceitar e recusar parceiros sexuais etc.” (Moita Lopes, 2009, p. 134). Podemos con- siderar, portanto, que tanto a feminilidade quanto a masculinidade se engendram em performances que surgem no processo de cons- trução de significados. Desse modo, é impossível definir a masculi- nidade ou a feminilidade como construtos unitários e fixos, como se todos os homens ou todas as mulheres compartilhassem uma essência e pudessem ser identificados pelos traços, experiências e interesses comuns a seu gênero. A concepção de gênero como norma pela qual noções de mas- culino e feminino são produzidas e naturalizadas permite também, de forma paradoxal, que o gênero seja o dispositivo pelo qual esses mesmos termos sejam desconstruídos e desnaturalizados (Butler, 2008). É crescente o número de pesquisas que se tem dedicado a configurações e performances de gênero que desafiam ideais de fe- minilidade e masculinidade culturalmente predominantes, como é o caso dos estudos “Queer” ( Jagose, 1996; Lauro, 2004). Essas pers- pectivas teóricas têm proporcionado novos focos de visão sobre a temática das relações de gênero e provido inclusive uma rearticula- ção nos interesses de estudo, trazendo uma maior problematização para o termo “homem”, relativamente negligenciado nas pesquisas do passado. Nesse campo, vale mencionar a contribuição de Ro- bert Connell (1995), que cunhou a expressão “masculinidades” no plural, para distinguir o que denomina de masculinidade “hegemô- nica”, (que corresponderia a um ideal cultural implícito no modelo patriarcal) e de masculinidades. Estes dois conceitos manteriam relações de subordinação, cumplicidade ou de marginalização. O trabalho de Connell (1995) aliado ao de Buttler (2008) tem iluminado muitas questões sobre a relação entre performance de gê- nero e violência, discutindo de que forma esta age na constituição de certas masculinidades. No Brasil, dentre as pesquisas que se li- gam à temática, vale citar Machado (2001), que busca entender os Violência de Gênero, Linguagem e Direito 31 efeitos da construção das categorias de masculinidade em associa- ção com novas performances de violência a partir das falas de jovens infratores do Distrito Federal, entre eles agressores de mulheres e estupradores. Seguindo o mesmo viés teórico, Cecchetto (2004) analisa as rixas e lutas ritualizadas, presentes nos bailes funk, como uma performance “guerreira” que se constituiria como elemento de uma certa masculinidade associada a camadas populares no Rio de Janeiro. Do mesmo modo, Silva (2009) analisa as músicas funk que tocam nos celulares de garotos da periferia do sul do país como uma performatividade pública de masculinidade na qual a violência é estilizada. A exemplo desses trabalhos que expressam a tendência atual dos estudos de violência e gênero, neste livro buscamos uma anco- ragem nos conceitos de gênero e performatividade e seus vínculos indissociáveis com questões de linguagem, que são o cerne de nossa proposta, para analisar o fenômeno da violência contra a mulher a partir de uma abordagem própria aplicada a textos penais, confor- me esclarecemos a seguir. 2. O enfoque da Análise de Discurso Crítica A noção de que as atividades humanas são permeadas pela lin- guagem é o ponto de partida para que linguistas possam desenvol- ver trabalhos de interpretação sobre temas sociais como o que ora se apresenta: a violência de gênero no sistema judicial. Tal investi- da tornou-se possível a partir de uma concepção que, ao invés de priorizar categorias formais da linguagem, busca um deslocamento para o uso efetivo da língua emsociedade e das exigências reais e imediatas de seus usuários. As linhas de estudo linguísticos que en- veredaram por esse caminho adotam uma concepção de linguagem como instrumento de construção do conhecimento e da vida so- cial (Moita Lopes, 2009; Menezes, Silva e Gomes, 2009; Possenti e Benites, 2011). Busca-se focar a instância de linguagem que é ope- Lúcia Freitas & Veralúcia Pinheiro 32 rável tanto no nível linguístico quanto no extralinguístico, pois se reconhece que aí se encontra o liame que liga as significações de um texto às suas condições sócio-históricas. Esse âmbito é aqui identi- ficado nas vias do discurso, considerado capaz de integrar conhe- cimento linguístico, cognitivo e social, junto com as condições nas quais as pessoas/falantes interagem. Como o discurso se processa na interação, nele recai todo o peso da produção social, e, por isso, ele é considerado como o principal mediador da construção social. Dentre o extenso campo em que se constituem os estudos de dis- curso atualmente, nossa proposta se fixa na Análise Crítica do Dis- curso (Caldas-Coulthard, 2008) também denominada de Análise de Discurso Crítica (Rezende e Ramalho, 2006), termo que adotamos abreviado na sigla ADC. Essa linha ampara nosso estudo devido ao seu aspecto multidisciplinar e seu direcionamento sobre as relações entre linguagem, poder, dominação, discriminação e controle. A no- ção de “crítica” significa situar os dados no social e focalizá-los como práticas linguístico-discursivas, revelando como estas estão imbri- cadas com as estruturas sociopolíticas mais abrangentes de poder e de que forma contribuem para a desigualdade social e o domínio de algumas pessoas sobre as outras. Essas características fazem da ADC um recurso estratégico em uma proposta de estudo como a presente, voltada para a violência contra a mulher e o discurso do Direito, am- bos terrenos que têm no poder uma ancoragem central. Essa forma de pesquisa social crítica propõe-se a estudar a lin- guagem como prática social, observando o papel do contexto. Tal proposta permite unir a análise textual à tradição macrossociológica de análise da prática social, que se refere às estruturas sociais, assim como à tradição microssociológica, interpretativa, concebendo a prática social como atividade em que as pessoas se engajam. A verten- te proposta por Fairclough (2003) envolve basicamente um enfoque da gramática na disposição do texto, associando-a ao sentido sócio- -histórico desse texto e a uma abordagem crítica das práticas sociais em que ele se insere. O estudo concomitante desses três eixos procura lançar luz sobre as razões prováveis de certas escolhas na estrutura Violência de Gênero, Linguagem e Direito 33 linguística (vocabulário, gramática, estruturas textuais), bem como desvendar a que interesses essas formas linguísticas se voltam. Nesse sentido, a aplicação de uma abordagem analítica como a ADC sobre textos legais é oportuna à tentativa de revelar possíveis parcialidades escondidas sob a alegada objetividade do discurso ju- rídico. Tendo em vista a importância do sistema jurídico na vida das cidadãs e cidadãos, dado ao poder deste de decidir sobre ques- tões patrimoniais e até sobre a liberdade das pessoas, é bastante re- levante considerar uma análise mais detida das práticas sociais de- sempenhadas por meio de sua linguagem própria. Um olhar mais detido sobre o discurso legal contempla o que Rodrigues (2005, p. 20) sugere: “se (quase) todos os aspectos da nossa vida em socie- dade estão regulamentados, isto é, organizados em termos legais, é urgente que prestemos alguma atenção à análise dessa linguagem que define e estrutura os nossos comportamentos”. Ao mesmo tempo, conforme alerta Figueiredo (2004), no discurso legal, como em outros discursos que ilustram um siste- ma social calcado na assimetria entre os gêneros, a noção de que a lei sempre promove direitos individuais e sociais é uma questão complexa, uma vez que o sistema jurídico e as decisões judiciais tendem a refletir e construir relações assimétricas de poder entre seus operadores e membros de grupos com menos status social, é temerária uma visão desse sistema como veículo imparcial do bem social. Considerando que os agentes sociais não são agentes livres, mas sim socialmente constrangidos, seus textos acabam expondo relações ideológicas que os permeiam. Segundo Fairclough (2003), ideologias são representações de aspectos do mundo cuja contribuição para manutenção, estabele- cimento e mudança nas relações sociais de poder, dominação e ex- ploração, deve ser mostrada. Os efeitos ideológicos dos textos têm de ser uma prioridade nas análises críticas. A noção de texto que o autor propõe tem um sentido muito amplo, documentos escri- tos, impressos ou não, como listas de compras e artigos de jornais são textos, mas da mesma forma o são transcrições de fala como Lúcia Freitas & Veralúcia Pinheiro 34 conversas e entrevistas, assim como programas de televisão e pá- ginas da internet. O autor resume essa ideia, assumindo que texto é qualquer instância de uso efetivo da linguagem. Dessa forma, a analista de discurso, na perspectiva crítica, coleta material para a teorização sobre a sociedade a partir de textos efetivamente produ- zidos, teorizando a prática da linguagem a partir da noção de que o próprio enunciado é construído à luz dos aspectos sociais, políticos e ideológicos que o estruturam. Nessa perspectiva, portanto, signi- ficado linguístico e ideologia compreendem entidades inseparáveis e mutuamente dependentes da estrutura social. Analisar texto sob o enquadre teórico da ADC na linha de Fairclough significa contemplar simultaneamente forma e sentido da linguagem, tomando partido de práticas sociais reais e de textos concretamente produzidos, o que significa o envolvimento de su- jeitos reais, agindo em uma prática interativa efetiva. Nessa direção, o autor sugere uma análise de discurso “textualmente orientada”, que reforça a análise social, essencialmente por incidir sobre exem- plos concretos de prática e formas textuais e sobre processos de in- terpretação a elas associados (Fairclough, 2001, p.87). Assim, para compreendermos os sentidos produzidos sobre a violência contra a mulher na esfera jurídica, é necessário conhecer a função e a composição dos textos que são aí utilizados, basicamen- te os autos dos processos penais, bem como as atividades específi- cas que estes realizam por meio da linguagem. Para isso, é essencial captar a noção de texto sob o viés teórico da ADC, como ativida- de socialmente organizada, na perspectiva de “gênero discursivo” (Fairclough, 2003) aliada à noção de “sistema de gêneros” (Fuzer e Barros, 2008), conceitos que serão descritos no próximo tópico. 3. Os processos na Lei Maria da Penha como sis- tema de gêneros A palavra gênero é usada neste livro em associação às teorias sobre construção social de identidades sexuais, como as masculinas Violência de Gênero, Linguagem e Direito 35 e femininas, conforme Scott (1986) e Butler (2008). Contudo, o termo gênero também será usado dentro da noção de “texto” sob o viés teórico da ADC, como “atividade socialmente organizada sob alguma instância de linguagem” (Fairclough, 2003). Para fazer- mos distinção, associamos o termo “gênero social” para o primeiro e “gênero textual” para o último. De acordo com Fairclough (2003, p. 65), gêneros textuais “são o aspecto especificamente discursivo de formas de agir e interagir no curso dos eventos sociais”. Desse modo, analisar textos em termos de gênero é investigar como estes atuam em eventos sociais. O material linguístico sobre o qual se projeta o discurso de violência contra a mulher no contexto pes- quisado são textos da esfera jurídica, eminentemente, gêneros tex- tuais que compõem processosdo sistema penal. Nesse sentido, é importante que se compreenda quais são as principais atividades concernentes a essa esfera, como essas se organizam, quem pode ou deve realizá-las e por que se apresentam com tal organização. Segundo Fairclough (2003), uma primeira observação sobre os gêneros textuais é que eles têm de ser entendidos dentro de suas abstrações. Narrativa, argumentação, descrição e injunção, por exemplo, compreendem uma alta abstração, pois são categorias que transcendem a teia de práticas sociais particulares. Esse nível de abstração o autor classifica como pré-gênero. Assim, a narrativa é um pré-gênero, pois várias são as práticas sociais em que se empre- gam esse modo de organização textual. Nos documentos forenses, o padrão narrativo prevalece em alguns textos, como os “Termos de depoimento”, que basicamente registram os relatos de vítimas e acusados sobre o crime. Esse texto específico é classificado como gênero situado, em virtude de, como o próprio nome diz, situar-se dentro de uma prática social específica – nesse caso, a prática de inquirir e registrar depoimentos em processos criminais. As práti- cas sociais acionam gêneros de uma forma complexa e, ao mesmo tempo, criativa, intercalando-os ativamente. Na órbita penal circula todo um conjunto de gêneros textu- ais que determinam ações específicas em processos que, em última Lúcia Freitas & Veralúcia Pinheiro 36 instância, visam à solução de conflitos sociais. O processo penal é definido por Capez (2005, apud Fuzer e Barros, 2008, p. 48) como “uma série ou sequência de atos conjugados que se realizam e se de- senvolvem no tempo, destinando-se à aplicação da lei penal no caso concreto”. Essa noção é captada pelo conceito de sistema de gêneros denominado por Bazerman (2005) como os diferentes conjuntos de gêneros produzidos e utilizados de modo organizado e padroni- zado por um determinado grupo de pessoas. No sistema, um gênero segue um outro gênero em uma sequên- cia regular e em padrões temporais previsíveis, revelando um fluxo comunicativo típico do grupo que o originou. No subuniverso do processo penal, a produção dos gêneros que o constituem como sistema está a cargo dos chamados “Operadores do Direito”. De acordo com Pimenta (2007a, p. 2029), os operadores do direito são todos aqueles que atuam na atividade adjudicante: (advoga- dos, defensores públicos, o representante do ministério pú- blico); a juíza ou juiz, oficial de justiça, escrivã/escrevente, e os serventuários da justiça que trabalham nas secretarias das varas criminais Isso inclui também a Delegada ou Delegado de Polícia, seus auxiliares e policiais, muito embora estes não pertençam à comuni- dade forense, mas sim à comunidade policial judiciária. Cada sujeito processual atua por meio de textos de sua compe- tência específica, atendendo a critérios funcionais de determinados gêneros discursivos. A atuação desses operadores por meio de seus textos movimenta o sistema de gêneros que constitui o processo penal. Esse sistema é caracterizado pela disposição dos textos se- gundo uma lógica preestabelecida por regulamentos especiais que organizam as atividades a serem executadas pelos operadores. Para compreendermos melhor a forma e função dos gêneros que cons- tituem o corpus deste estudo, bem como a sequência em que são dispostos nos processos, é preciso, antes, pontuar algumas questões sobre o universo deste trabalho. Violência de Gênero, Linguagem e Direito 37 Os processos de violência contra a mulher no Fórum de Jara- guá são predominantemente de ameaças e lesão corporal. Há casos de homicídio, mais raros. Estupro e atentado violento ao pudor, porém, correm em segredo de justiça, o que inviabiliza o acesso das analistas. Antes da promulgação da Lei Maria da Penha em 2006, os crimes de lesão corporal e ameaça eram tratados pela Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, sem nenhuma distinção aos casos de violência contra a mulher. No âmbito da referida Lei, eram previstas medidas despenalizadoras, como a suspensão con- dicional do processo1 e o pagamento de multa, como cesta básica e outras formas de prestação pecuniária em substituição à pena. Tais procedimentos visavam maior agilização e facilitação do acesso à justiça a certos casos de ameaça e lesão corporal, procurando evitar o início de processos penais que poderiam culminar com a impo- sição de uma sanção ao agente de um crime tido como de “menor potencial ofensivo”. Segundo Campos (2004), o que determina esse potencial é a centralidade da pessoa na proteção jurídico-penal, assim, as lesões corporais, por exemplo, são consideradas menos ofensivas ao bem jurídico “vida” que o homicídio, devendo, portanto, serem trata- das com menos rigor que este e de forma mais simplificada. Na in- terpretação da Lei n. 9.099/95, lesão corporal e ameaça, as formas mais comuns de manifestação de violência doméstica contra as mulheres, de modo geral, eram crimes de importância diminuída. Opondo-se a essa minimização da gravidade de ações em que um agressor põe em risco a saúde de sua família, protegido pela privacidade do “lar”, o art. 41 da Lei Maria da Penha (11.340/06) determinou o afastamento da Lei anterior, a fim de tratar com mais rigor delitos praticados em situação de violência contra a mulher. Tal afastamento trouxe algumas alterações processuais. O 1A suspensão condicional do processo é uma forma de solução alternativa para pro- blemas penais, que busca evitar o início do processo em crimes cuja pena mínima não ultrapassa um ano, quando o acusado não for reincidente em crime doloso e não esteja sendo processado por outro crime. Lúcia Freitas & Veralúcia Pinheiro 38 primeiro passo, segundo o art. 12 da nova Lei é: “ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada”. A Lei Maria da Penha não afirma que a ação penal pública a respeito de violência doméstica tem natureza jurídica “incondicionada”, ou seja, que pode ser proposta independente- mente da vontade da vítima. Assim, é necessário que esta “repre- sente” formalmente contra seu agressor, a fim de que o Ministério Público possa tomar as medidas penais necessárias. A Lei prevê o direito de renúncia à representação, caso a vítima assim o deseje, mas somente perante a juíza ou juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade. Uma vez tomadas essas primeiras medidas, cabe então às auto- ridades policiais colher todas as provas que servirem para o escla- recimento do fato e de suas circunstâncias. A qualquer momento, nessa fase ou na instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor. A Lei ainda estabelece que, uma vez recebido o expedien- te com o pedido da ofendida, caberá à juíza ou juiz: I - conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência, no prazo de quarenta e oito horas; II - determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso; III - comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis; IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários; V - ouvir o agressor e as testemunhas; VI - or- denar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele. Essas medidas são tomadas na fase policial do processo, cada uma delas é mediada por um gênero próprio, a maioria de incum- bência da delegada ou delegado de polícia que dita ao seu escrivão o que ele deve escrever. Tais procedimentos são feitos de forma pa- drão e seguem alguns formatos próximos de um formulário. Em ge- ral, um modelo é salvo em arquivo eletrônico, alguns campos ficamem branco para que sejam preenchidos com os dados específicos de Violência de Gênero, Linguagem e Direito 39 cada caso. O documento é, então, salvo como um novo auto. Uma vez concluída a etapa policial, é redigido um relatório em que são descritas todas as medidas tomadas para a apresentação do crime traduzido para a linguagem do direito. Do nosso corpus constam os seguintes gêneros dessa fase: boletim de ocorrência; portaria; qualificação; nota de culpa; certidão; exame de corpo de delito; laudo médico; termo de representação; despacho; ordem de servi- ço; termo de depoimento; termo de prisão em flagrante; medidas protetivas de urgência; assentada e relatório. Esses são os gêneros mais comuns do Inquérito Policial (IP), que, uma vez concluído, é enviado ao Fórum para que seja instaurada a ação penal, começan- do aí a fase judicial do processo. Os procedimentos da fase policial são os mesmos para todos os crimes. Já na esfera judicial, os casos recebem tratamento dife- renciado de acordo com a natureza do delito cometido. Os homi- cídios, de competência do Tribunal do Júri, são tratados em duas fases distintas, lesão corporal e ameaça têm procedimento mais simplificado. A peça documental que inicia o processo penal é a “denúncia”. É através dela que se toma conhecimento do caso que é apresentado resumidamente com base nas informações extraí- das do IP. A primeira autoridade a examinar o IP é o representan- te do Ministério Público, a promotora ou promotor, que devem ser designados pela juíza ou juiz para acompanhar o caso. Na de- núncia, a promotoria faz o enquadramento do crime nos artigos do código penal e apresenta o rol de testemunhas, que em geral são as mesmas que depuseram na fase policial e serão ouvidas na fase de instrução criminal. O Direito Penal brasileiro tende a priorizar a luta contra a cri- minalidade considerada “grave”. Nos casos de ameaças e lesão cor- poral, tidos como de menor potencial ofensivo, há uma tendência de incentivo ao consenso e de se poupar trâmites processuais como audiências, interrogatórios, alegações finais, sentenças e recursos. Muito embora a Lei Maria da Penha diferencie ameaças e lesões corporais praticadas como violência contra a mulher das demais, Lúcia Freitas & Veralúcia Pinheiro 40 de modo geral, ainda permanece a tendência de dar tratamento sumário a todos os casos sem distinção. Assim, após oferecida a denúncia, designa-se dia e hora para a audiência de instrução e jul- gamento, na qual estarão presentes o representante do Ministério Público (MP), o agressor e a vítima, acompanhados por seus ad- vogados. Nesse momento, os procedimentos mais comuns podem ser: a) a juíza ou juiz esclarece às partes sobre a possibilidade da aceitação de proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade, sem ferir o Art. 17 da Lei Maria da Penha, que veda penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária; b) a mu- lher retrata-se da representação; c) a juíza ou juiz suspende o pro- cesso, com base no Art. 77 do Código Penal, que beneficia o réu cujo crime tenha pena mínima igual ou inferior a um ano, desde que este não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime. Nos dois primeiros casos, a juíza ou juiz homologa o resultado por sentença irrecorrível e se encerra o processo. Quanto à suspen- são, expirado o período determinado e não havendo revogação, a juíza ou juiz declarará extinta a punibilidade. Todos esses procedimentos ocorrem na fase judicial do pro- cesso, articulados por um sistema de gêneros engrenado a partir da “denúncia” e encerrado, em geral, no caso de Jaraguá, pelo “ter- mo de audiência e suspensão”. Em nosso corpus, os gêneros mais recorrentes são os da fase policial, uma vez que na fase judicial, a título de agilidade e simplificação, há uma certa economia proces- sual que procura reduzir número de audiências, interrogatórios e recursos, diminuindo, consequentemente, o número de autos. Há quem faça a esse modelo penal fortes críticas. Para Gomes e Bian- chini (2006), este é um sistema no qual não se escutam realmente as pessoas e nem se registra propriamente o que elas dizem. Há um abuso de frases estereotipadas (“o depoente nada mais disse nem lhe foi perguntado”, etc), o diálogo entre as partes envolvidas não é considerado e, por fim, dificilmente condena-se o agressor, Violência de Gênero, Linguagem e Direito 41 roubando-se, de certa forma, o conflito da vítima, que acaba tendo pouca participação no processo. A abordagem de gênero que aqui propomos, orientada princi- palmente para aspectos sociais, compreende que os textos incorpo- ram interesses e valores de grupos determinados, reforçando suas regras. Uma vez que os gêneros forenses têm efeitos muito concre- tos sobre a vida das pessoas, a abordagem crítica que se propõe para este estudo visa desvelar os propósitos sociais para os quais estes estão sendo utilizados, assim como suas ligações com os agentes que os estruturam e questões de poder mais complexas. Posiciona- mo-nos alternativamente frente ao sistema jurídico a fim de abrir espaços para que vozes silenciadas possam ser ouvidas. 4. Os significados resgatados dos autos: ação, re- presentação e identificação Nosso propósito neste tópico é apresentar os dados que “resso- am dos autos”, para usar uma expressão própria do meio judiciário. Essa tarefa demanda, antes, o conhecimento mais aprofundado de sua organização textual. Já esclarecemos na seção anterior que o processo penal é constituído por um sistema de gêneros (Fuzer e Barros, 2008), em que cada texto representa uma realidade e, ao mesmo tempo, realiza atividades específicas por meio da lingua- gem, em uma sequência que revela um fluxo comunicativo típico do grupo que o originou. A redação de um Boletim de Ocorrência (BO), por exemplo, geralmente o primeiro registro de uma série de outros que constituirão o processo, tanto nos informa sobre um de- lito praticado, reconstituindo-o sucintamente, como aciona provi- dências policiais de prender o infrator, colher provas, transmiti-las às autoridades competentes, etc. A faculdade dos textos de, ao mesmo tempo, representar o mundo e suas histórias e nele acionar atividades é explicada na Análise de Discurso Crítica (ADC), dentro das acepções propos- Lúcia Freitas & Veralúcia Pinheiro 42 tas por Fairclough (2003), sobre os “significados da linguagem”. Segundo o autor, de todo e qualquer texto é possível depreender três significados que agem de forma associada e simultaneamente, são eles: o “significado acional” (o texto como modo de ação e inte- ração em eventos sociais), o “significado representacional” (o texto como representação de aspectos do mundo físico, mental e social) e o significado “identificacional” (o texto como construção e nego- ciação de identidades no discurso). Analisar os autos processuais sob este viés teórico é procurar compreender como eles, ao mesmo tempo, representam a violên- cia contra a mulher como fenômeno social, como essa realidade é reconstruída nesses textos; que atividades eles acionam, como providências jurídicas, por exemplo; e que posicionamentos são to- mados por parte dos envolvidos. É, portanto, com o olhar voltado para esses significados que apresentaremos os gêneros processuais de onde depreendemos o fenômeno da violência contra a mulher, foco deste estudo. Como o processo penal movimenta um sistema com mais de 130 gêneros, conforme identificou Pimenta (2007a), selecionamos, aqui, apenas os textos que nos dão maiores informa- ções dentro desses significados. A partir desse momento, tomamos alguns gêneros de um mes- mo processo analisado, para demonstrar como o conflito denun- ciado vai sendo representado nos textos, revelando um quadro de violência moldado sob a ótica penal. Ao mesmo tempo,recompo- mos que atividades estes textos acionam discursivamente, como que providências jurídicas vão sendo tomadas por meio deles. E, por fim, buscamos identificar os posicionamentos assumidos e ne- gociados pelos personagens envolvidos, bem como pelos próprios operadores do direito. Seguindo esses passos, deparamo-nos com o cenário de violência que se delineia a partir desses conhecimentos. O processo em questão é o caso de lesão corporal, número: 2008.026.821.67. Antes de dispor os textos, é preciso fazer a res- salva de que os autos nos processos penais são ordenados seguindo os requisitos estabelecidos no Código de Processo Penal e, por isso, Violência de Gênero, Linguagem e Direito 43 a sequência dos documentos não se encontra necessariamente em ordem cronológica. O primeiro documento juntado aos autos é a “denúncia”, que embora produzida após os textos do inquérito po- licial, é disposta antes deles, logo na abertura do processo. Aqui, apresentamos os textos segundo a sequência das atividades que eles acionam no decorrer do processo. 4.1 Boletim de ocorrência e Termo de representação Começamos nossa exposição pelo BO, o gênero que, funda- mentalmente, presta-se a levar à autoridade de polícia judiciária (Federal ou Civil) a notícia de infração penal bem como a outros órgãos, públicos ou particulares, o relato sobre fatos que tenham demandado a intervenção da polícia, cuja solução subsequente es- teja afeta a esses órgãos (Tristão, 2009). Seu formato aproxima-se ao de um formulário, com diversas tabelas e campos, onde se regis- tram, às vezes em código, informações sobre tudo (pessoas, obje- tos, lugares, etc) que envolve a ocorrência denunciada. Neste estudo, os BOs foram utilizados, em um primeiro mo- mento, na constituição do perfil social dos envolvidos a partir de dados como, idade, estado civil, profissão, etc. Ao mesmo tempo, retiramos de um de seus campos, chamado de “histórico da ocor- rência”, os primeiros relatos sobre as cenas de agressão, uma vez que ele é a síntese das informações colhidas pela polícia a partir dos depoimentos dos envolvidos e dos dados observados sobre todo o contexto (local, tempo, envolvidos, etc). Esse campo fornece uma primeira visão da violência relatada, conforme se observa no extra- to a seguir. Histórico A comunicante é casada com o autor há quase quatro anos e tem com ele uma filha de um ano e dois meses. A comuni- cante está separada de fato do acusado há aproximadamente Lúcia Freitas & Veralúcia Pinheiro 44 dois meses. Compareceu nesta delegacia para comunicar que na data acima mencionada foi vítima de lesões corporais, ten- do o autor a agredido fisicamente, tendo quebrado um tijolo no rosto da comunicante, quebrou uma parede com altura de quatro tijolos em sua cabeça, a pegou pelo pescoço e a jogou no chão, arrastando-a pelo quintal, tendo a vítima ficado com lesões corporais. O autor ainda alegava que a vítima era “puta, piranha” e que deveria matá-la. A vítima foi submetida a exa- me de corpo de delito em Jaraguá. Segundo Tristão (2009), há uma orientação para que o operador redija o texto de forma concisa, contendo as informações imprescin- díveis. Essa orientação condiciona uma representação minimalista do conflito que se estrutura, em geral, na menção ao tipo de relação que vítima e agressor têm entre si, tempo de convivência, se há filhos em comum, as circunstâncias em que irrompeu a agressão, data, lo- cal, motivos alegados, a sequência e tipos de agressões sofridas. Tal representação é, inexoravelmente, perpassada pelas percep- ções do operador que redige o BO. Consequentemente, conforme observou Jesus (2009), ela tem natureza heterogênea, caracterizan- do-se tanto como um discurso referido, como um discurso relata- do, uma vez que o operador enuncia a presença da vítima ou co- municante, do agressor e das testemunhas, enfatizando o cenário, o pensamento e a linguagem do comunicante. Nesse processo, o campo identificacional se revela pela presença latente da perspec- tiva do operador com relação às convenções sociais da realidade vigente. Se por um lado, o operador, ao redigir o BO, segue uma orientação que determina uma escrita objetiva, e, por isso mesmo, o mais isenta possível de marcas de subjetividade, por outro lado, essa mesma orientação já denuncia o estilo próprio do campo no qual ele se posiciona, o campo do direito, com suas convenções e ideologias subjacentes. Se os significados representacionais no BO não nos permitem conhecer a violência com mais profundidade e se a sua estrutura também restringe suas marcas identificacionais, em termos de po- Violência de Gênero, Linguagem e Direito 45 der de ação esse gênero supera muitos outros, uma vez que ele pode acionar uma série de atividades judiciais com consequências bas- tante concretas na vida das pessoas. O BO é a peça que motivará a ação dos outros órgãos na solução dos problemas relatados, ele pode condicionar a prisão do acusado e dar início ao Inquérito Po- licial, desenvolvido pela polícia judiciária. Ele é, assim, considerado uma espécie de garantia de que o fato, uma vez registrado, propor- cionará a necessária intervenção do Estado no conflito social. Na sequência de atividades que o BO desencadeia, vem o Ter- mo de Representação, gênero cuja estrutura textual se redige a par- tir do próprio BO. Há, na primeira parte do texto, a qualificação dos envolvidos, extraída do BO. Em seguida é expresso o propósi- to do gênero: representar legalmente contra o agressor, conforme exigiu a Lei Maria da Penha. O contexto e a forma das agressões narrados no BO são novamente transcritos. Por fim, requer-se a instauração do Procedimento Policial competente, para que sejam tomadas as devidas providências legais que o caso exigir, e, em se- guida, pede-se o encaminhamento do caso ao Poder Judiciário para os fins de direito, conforme se observa no texto a seguir: Termo de Representação Aos cinco (05) dias do mês de maio (05) do ano de dois mil e oito (2008), nesta cidade de Jaraguá, Estado de Goiás, na Delegacia de Polícia local, onde presente se achava o Sr. Maurício Massanobu Kan, Delegado de Polícia, comigo, es- crivão de seu cargo, ao final assinado, ai compareceu a Sra. XXXXXXX, brasileira, casada, estudante, natural de Jara- guá – GO, nascida aos 16/08/1988, filha de XXXXXXX e XXXXXXXX, portadora da Carteira de identidade nº XXXXXXX, residente a Av. XXXXXXX, que REPRE- SENTOU verbalmente contra a pessoa de XXXXXXXXX, XXXXXXXXX, nesta cidade, pela prática dos crimes de lesão corporal dolosa e injúria, pois a representante no dia 29 de março de 2008, por volta das 16:40 min, foi agredida Lúcia Freitas & Veralúcia Pinheiro 46 fisicamente e xingada por XXXXXXX, fato ocorrido na re- sidência desse, quando a representante ali compareceu para pegar as roupas do filho. Na ocasião, a representante foi al- vejada com um tijolo e arrastada pelo pescoço pelo quintal. XXXXXX ainda xingou a representante de “puta”, “piranha”, dizendo que “deveria matá-la”. Requerendo a instauração do Procedimento Policial competente, tomando-se as devidas providências legais que o caso exigir, e, em seguida, seja o mes- mo encaminhado ao Poder Judiciário para os fins de direito. Nada mais disse, nem lhe foi perguntado. Lido e achado conforme, vai devidamente assinado pela autoridade, pela re- presentante e por mim, Escrivão que o digitei e assino. Em termos de representação, apenas são acrescidas algumas circunstâncias do delito, como a referência “quando apareceu para pegar a roupa do filho”. Quanto ao significado identificacional, observa-se que o último parágrafo do texto introduz uma estrutu- ra padrão do direito com uma sequência de frases estereotipadas. Tal estruturação situa o operador no campo do discurso jurídico, expressando
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