1 Publicado em Revista do Arquivo Municipal, Arquivo Histórico de São Paulo, ano 80, 2014, volume 205, pp. 137-154. Arqueologia urbana: trajetória e perspectivas Pedro Paulo A. Funari Rita Juliana Soares Poloni A Arqueologia urbana é ramo mais antigo e produtivo da disciplina e isso se deve à própria importância das cidades. Neste artigo, será traçado um perfil da trajetória da Arqueologia urbana no mundo, desde os seus inícios, tratando, em detalhe, das tendências recentes. Em seguida, será abordada os rumos da disciplina no Brasil, com as suas peculiaridades. Antes disso, contudo, convém explicitar a abordagem adotada. Uma visão social da disciplina A história da ciência é sempre um objeto controverso. Existe uma longa e respeitada tradição de considerar a ciência como o acúmulo de conhecimento, de geração para geração, acrescentado a realizações e descobertas anteriores. Nos ombros de gigantes, até pequenos passos podem ser considerados como progresso, como ponderavam nossos mestres renascentistas. Essa abordagem tem sido descrita por alguns como enfatizar os principais fatores internos que afetam mudanças em qualquer disciplina acadêmica. De fato, Eratóstenes no século três a.C. não teria sido capaz de calcular o diâmetro do nosso planeta sem os experimentos e raciocínios prévios de matemáticos e geógrafos anteriores. Ele se utilizou de conhecimentos prévios e não há discussão sobre isso. Mas dois outros tópicos têm de ser acrescentados: o contexto e ambiente alexandrinos, por um lado, e o destino de suas ideias. A Biblioteca de Alexandria como instituição acadêmica resultante da saída do império alexandrino da polis da Grécia Antiga é fator determinante para explicar as conquistas intelectuais, muito além do limitado escopo de cidades em relação direta com o império e a sua visão de mundo. Foi um movimento dependente da mudança da cidade para mundo, de polis para cosmopolitas. Em alguns séculos o mundo não seria mais considerado redondo e nem as precisas medidas da circunferência da Terra feitas por Eratóstenes seriam consideradas certas. Por algumas centenas de anos o mundo se tornou plano e nenhum matemático, geógrafo ou filósofo grego, apesar de conhecido, era suficiente para mudar a perspectiva perseverante da Terra como um lugar completamente diferente. A ciência não é construída sobre antecessores, mas mudando princípios. Então, mas importante que acúmulo de conhecimento, os contextos históricos, políticos e sociais são essenciais para determinar e explicar mudanças na ciência. Isso também é chamado de abordagem externalista da história da ciência, ao enfatizar como circunstâncias sociais prevalecem ao moldar o pensamento científico, como considera Thomas Patterson ao discutir a história social da Antropologia dos Estados Unidos e esse é o principal guia da abordagem usada nesse trabalho. Em termos filosóficos continentais, tomar Heidegger, Wittgenstein, Derrida e Foucault, entre outros, também pode ser considerado como uma maneira de focar na forma em que só é possível pensar e falar em circunstâncias 2 específicas. Qualquer que seja o nível de sofisticação do nosso entendimento, seja ele pragmático da matriz filosófica anglo-saxônica, ou mais elaborado e abstruso na linha hermenêutica continental, alemã e francesa, é claro que há mais do que o mero acúmulo de conhecimento, este é o principal argumento deste artigo. A Arqueologia urbana não pode ser desatrelada do contexto histórico, social e político. As origens nacionalistas e imperialistas da disciplina Em linhas gerais, pode-se dizer que a história da Arqueologia institucionalizada começa com o surgimento da figura do arqueólogo. Até o final do século XVIII, o estudioso da Antiguidade era o antiquário, que, a partir daí, é substituído pelo arqueólogo. Com a nova figura do arqueólogo, as pesquisas se desenvolveram na medida em que escavações foram sendo realizadas. Todavia, de início, as realizações eram de caráter individual, até que se tornasse coletiva ao longo do século XIX. A mais célebre e importante instituição foi o Instituto de Correspondência Arqueológica, fundado em 1829 na cidade de Roma. Nesse mesmo espírito, a Grécia cria seu Departamento de Arqueologia em 1834 e a Sociedade Arqueológica de Atenas em 1837. A França também cria sua Sociedade de Arqueologia Grega em 1837, e, logo depois, a primeira instituição estrangeira na Grécia, a Escola Francesa de Atenas em 1846, sendo seguida por outras de várias nações, como o Instituto Alemão de Arqueologia em 1875, a Escola Americana de Estudos Clássicos em Atenas em 1882, a Escola Britânica em Atenas em 1885. O mesmo se deu na Itália com a fundação da Escola Francesa de Roma em 1873, da Escola Italiana de Arqueologia em 1875, do Instituto Alemão de Arqueologia em 1929. Ainda que estas instituições tenham promovido o surgimento de uma ciência arqueológica e a institucionalização da disciplina, elas significaram também um interesse dos Estados pelo patrimônio monumental de seu passado, levando-os à apropriação dos mesmos e influenciando, assim, os rumos da pesquisa arqueológica. Arqueologia urbana: tudo começou em Pompeia A Arqueologia surgiu em uma cidade que ainda continua, em certo sentido, a definir a disciplina: Pompeia. Tanto no imaginário popular, como científico, Pompeia mantém-se como a quintessência da Arqueologia, em geral, e urbana, em particular. Pompeia era uma cidade antiga conhecida, desde a Antiguidade, pelo destino trágico. O escritor Plínio o jovem (61-112 d.C.) foi testemunha ocular da erupção do vulcão Vesúvio, em 24 de agosto de 79 d.C., que acabou por cobrir toda a cidade de mais de dez mil habitantes como pedras-pome e lava. A cidade ficou por séculos soterrada, sem que se soubesse ao certo sua localização, embora fosse sempre lembrado seu soterramento como uma catástrofe. Pode dizer-se que a Arqueologia urbana iniciou-se, justamente, com a descoberta, no século XVIII, da antiga cidade soterrada. O ano de 1748 marcou o início do desenterramento do que, alguns anos depois, viria a ser identificado como a antiga 3 cidade de Pompeia. As escavações iniciais já revelaram tesouros impressionantes e, em alguns casos, inigualados até hoje em outros sítios arqueológicos, como é o caso de pinturas parietais e uma infinidade de inscrições nos muros. Nas décadas seguintes, as pesquisas de campo continuaram, com grande ímpeto após a unificação italiana em 1861 e a nomeação de Giuseppe Fiorelli, com trabalhos mais sistemáticos e registros mais acurados. Outro grande período foi sob a égide de Amadeo Maiuri (1924-1961), de modo que Pompeia pode ser considerada a epítome da Arqueologia urbana, no sentido de um estudo sistemático de uma cidade antiga. Na esteira de Pompeia, desde o século XIX, as pesquisas arqueológicas em todo o mundo centraram-se na escavação de cidades, tanto nas metrópoles, como nas colônias ou regiões periféricas. Nas grandes potências, o desenvolvimento urbano derivado da industrialização levou a um crescimento exponencial da população nas cidades, sem precedentes na História, com a ocupação intensa de territórios de antigos centros urbanos. Além disso, já em meados do século XIX, surgiam soluções urbanas que envolviam grandes intervenções no subsolo, na forma de sistemas de águas e esgotos e transporte de massa, como os metrôs, sendo o mais antigo o de Londres, em 1863. Isto significava que se multiplicavam os achados de vestígios arqueológicos por toda parte. O Museu Britânico, assim, conta com essas descobertas iniciais e fortuitas, mas também escavações eram levadas a cabo sempre que