se encontravam vestígios estruturais mais imponentes. Isso era tanto mais verdade em cidades como Roma e Atenas, com a onipresença de vestígios antigos, mas também valia para Paris (antiga Lutetia Parisiorum), Lisboa (Olisippo) ou mesmo uma cidade da era moderna, como Madri, que acabou por englobar a antiga Complutum. Nas colônias passou-se o mesmo, ainda que tenha tardado mais. Tão logo o Império Otomano foi desfeito, ao término da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), cidades mesopotâmicas e palestinas foram escavadas, como no caso de Jericó, a mais antiga do mundo. No continente americano, o caso de Machu Picchu, descoberta em 1912, é paradigmático, pois abriu espaço para que outras cidades fossem exploradas, assim como foi no caso das cidades maias na Mesoamérica. De certa maneira, pode afirmar-se que a Arqueologia Urbana confunde-se com a própria disciplina arqueológica, como pondera Steven Penderey (2012) e o tema da vida em cidade nunca deixou de ter uma posição central na reflexão disciplinar. Talvez o conceito de revolução urbana, formulado por Vere Gordon Childe (1892-1957), seja o melhor exemplo disso. Childe pode ser considerado o arqueólogo cujas obras mais foram influentes em relação ao público em geral e aos acadêmicos. Seu artigo sobre a revolução urbana (Childe 1950) é, provavelmente, o texto arqueológico mais lido de todos os tempos (Smith 2009). Childe propôs que era possível distinguir a cidade de uma aldeia por dez características detectáveis pela Arqueologia 1 : 1 1 ‘In point of size the first cities must have been more extensive and more densely populated than any previous settlements.’ (p. 9) 2 ‘In composition and function the urban population already differed from that of any village … full-time specialist craftsmen, transport workers, merchants, officials 4 1. Em tamanho, as primeiras cidades são muito mais extensas e populosas que assentamentos anteriores; 2. A população urbana já mostrava diferenciação profissional inexistente em aldeias; 3. A produção rural serviu para a concentração de excedente na cidade; 4. Construções monumentais urbanas distinguem cidades de aldeias; 5. A concentração de renda em uma classe dominante surgiu com as cidades; 6. Escrita; 7. Surgiram ciências preditivas, como a aritmética, a geometria e a astronomia; 8. Estilos artísticos; 9. Redes de comércio de longa distância; 10. Surgimento do Estado para além das relações familiares; Embora nem todos esses aspectos sejam aceitos, hoje, como ligados à vida urbana, não resta dúvida que seus postulados continuam a fazer refletir sobre o fenômeno urbano como manifestação material a ser interpretada pela evidência material ou and priests.’ (p. 11) 3 ‘Each primary producer paid over the tiny surplus he could wring from the soil with his still very limited technical equipment as tithe or tax to an imaginary deity or a divine king who thus concentrated the surplus.’ (p. 11) 4 ‘Truly monumental public buildings not only distinguish each known city from any village but also symbolise the concentration of the social surplus.’ (p. 12) 5 ‘But naturally priests, civil and military leaders and officials absorbed a major share of the concentrated surplus and thus formed a “ruling class”.’ (pp. 12–13) 6 ‘Writing.’ (p. 14) 7 ‘The elaboration of exact and predictive sciences – arithmetic, geometry and astronomy.’ (p. 14) 8 ‘Conceptualised and sophisticated styles [of art].’ (p. 15) 9 ‘Regular “foreign” trade over quite long distances.’ (p. 15) 10 ‘A State organisation based now on residence rather than kinship.’ (p. 16) 5 arqueológica. Mas, quais as diversas interpretações sobre o que seria a disciplina Arqueologia Urbana? Conceitos de uma disciplina Nesta altura, o leitor estará a perguntar-se como se define a Arqueologia Urbana. Há divergências, quanto a isso. Uma perspectiva mais abrangente considera que a Arqueologia Urbana trata da vida em cidades, daí que tenha surgido, como vimos, com as escavações de Pompeia, em pleno século XVIII. Deste ponto de vista, há uma unidade de perspectiva dada pelo fato de que as cidades geraram sempre uma dinâmica de vida urbana, desde Jericó, há muitos milhares de anos, até hoje. Isto significa que a ênfase está dada na urbanidade, por oposição à vida em culturas sem cidades, como entre os indígenas brasileiros ou australianos e à vida no campo, em civilizações que conheceram cidades, como nas fazendas escravistas romanas ou brasileiras. Haveria, pois, diferenças entre as maneiras de viver em cidades e isto explicaria a especificidade da Arqueologia Urbana: o estudo da cultura material em cidades. Como constata Henri Galinié (2000: 20): “A cidade é um lugar de concentração de atividades, de ações humanas. Uma cidade é tanto mais uma cidade, quanto ele concentra atividades variadas. Ela é um lugar de ação privilegiada de seres humanos e instituições”2. Não há dúvida que a cultura material urbana apresenta características muito particulares e que a imensa maioria da pesquisa arqueológica foi e continua a ser sobre contextos urbanos. Contudo, há estudiosos que definem a Arqueologia Urbana não pelo fato de estudar a cultura material de uma cidade – que hoje pode estar fora do contexto urbano, como é o caso de Pompeia, de Machu Picchu e das cidades maias -, mas por pesquisar tudo o que está dentro de uma cidade atual, mesmo que tais vestígios sejam rurais (Lemos e Martins 1992). Outros ficam no meio termo, pois reconhecem tanto as especificidades do estudo das cidades antigas, como dos vestígios em ambiente urbano moderno e esta, provavelmente, é a posição mais compartilhada, na qual se insere este artigo (Fabião 1994). A disciplina, portanto, é bifronte: por um lado estuda cidades antigas e, por outro, cidades atuais e os seus vestígios, mesmo quando não urbanos. A Arqueologia Urbana e as cidades atuais 2 La ville est um lieu de concentration des activités, des actions humaines. Une ville est d’autant plus ville que’elle concentre d’activités variées. Elle est Le lieu d’action privilegie des hommes et des institutions. 6 Embora bifronte, as principais discussões contemporâneas sobre a disciplina voltam-se para a pesquisa em ambientes urbanos atuais e isso não é de se estranhar. As cidades estão, cada vez mais, às voltas com a descoberta de vestígios do passado e com as questões referentes ao patrimônio em um contexto de grande diversidade étnica, social, cultural e religiosa em ambiente urbano. Isto tem criado situações de particular desafio para todos que se dedicam à gestão urbana, em particular no que se refere ao patrimônio histórico e cultural. Nem sempre foi assim, claro. A Arqueologia Urbana esteve, de início, a serviço da descoberta e preservação de bens das elites e pouco preocupada com a população e seus anseios. Isso estava bem de acordo com a visão que se tinha também nos ambientes acadêmicos sobre a sociedade. De fato, a ciência iluminista considerava a sociedade como um conjunto homogêneo de pessoas, em busca de uma coesão social que eliminasse os conflitos e contradições. Estudiosos como Emile Durkheim e Max Weber, fundadores da moderna Sociologia, enfatizavam que as normas sociais compartilhadas seriam desafiadas apenas pelos desviantes, cujo comportamento deveria ser corrigido