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152092340-Canevacci-Massimo-Culturas-eXtremas

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Culturas eXtremas: mutações juvenis nos corpos das metrópoles 
Massimo Canevacci 
Título original 
Culture eXtreme: mutazioni giovanili tra i corpi dcllc I11clropoli 
Tradução dos subcapftulos "Cllerokee" e "K - ncardcatll c.xpcricncc" 
Jaime Clasen 
Prepamção de originais e revisão de provas 
Daniel SeidI 
Projeto gráfico e gerência de produção 
Maria Gahriela Delgado 
Imagem da capa 
Manikins-corpse, performance dos Autoconslrulores, Roma, 1996 
Imagens 
p. 6 - Ciberolho; p. 11- Mutoid Waste Company, Roma, Villaggio Globale; 
p. 12 - Kerosene: Auto-retrato; p. 40 - Mutek; p. 56 - Kerosene: Cal-girl; 
p. 158 - Mazinga, Roma, 1993: Rave ex Snia Viscosa; 
p. 187 - Berlim: squatter descansando 
CIP-Brasil. Catalogação·na·fonte 
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ 
M369c 
Canevacci, Massimo, 1942-
Culturas eXtremas: mutações juvenis nos corpos das metrópoles I 
Massimo Canevacci; tradução de Alba Olmi. - Rio de Janeiro: DP&A, 
2005. 
20Dp.; i1.; 14 x 21cm 
Tradução de: Culture eXtreme: mutazioni giovanili tra i corpi delle 
metropolL 
Inclui bibliografia 
ISBN 85-7490-371-X 
1. Juventude urbana -Itália. 2. Itâlia - Usos e costumes. 3. Itália-
Condições sociais - 1994. l. Título. 
CDD 305.230945 
CDU 316.346.32-053.6 
Massimo Canevacci 
Culturas eXtremas 
Mutações juvenis nos corpos das metrópoles 
Tradução 
Alba Olmi 
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DP&A 
editora. 
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IC da tradução DP&A editora Ltda. 
Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer 
meio ou processo, seja reprográfico, fotográfico, 
gráfico, microfilmagem etc. Estas proibições aplicam-se 
também às características gráficas e/ou editoriais. 
A violação dos direitos autorais é punível como crime 
(Código Penal arl. 184 e §§; Lei 6.895/80). 
com busca, apreensão e indenizações diversas 
(Lei 9.610/98 - Lei dos Direitos Autorais -
arts. 122, 123, 124 e 126). 
DP&A editora 
Rua Joaquim Silva, 98 - 2U andar - Lapa 
CEP 20241-110 - RIO DE JANEIRO - RJ - BRASIL 
Tel./Fax: (21) 2232-1768 
Endereço eletrônico: dpa@dpa.com.br 
Sítio: www.dpa.com.br 
Impresso no Brasil 
2005 
Sumário 
IntroduçãolLoop - FFWD ~~ 
capitulo I Das contra culturas às culturas intcnninávcis 
Morte da contracultura, 13 Fim das subculturas, 16 Os jovens 
entre metrópole, mídia e consumo, 20 Os jovens intermináveis, 28 
Zona em trânsito 
Do K ao X, 41 Do extremo ao eXtremo, 45 
capitulo II Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 
TAZ - Rewind '4'4,57 Interzonas,60 Mercadorias tatuadas, 62 
Fucking Barbies, 65 Fikafutura, 70 Corpos inorgãnieos, 73 
Torctta,7S Torazine,81 Rave,90 Fluid Video Crcw, 96 
LutherBlissett,100 Anarcociclistas,108 Dceodcr,l12 Link,121 
Piratarias de Porta, 124 Squatters,128 Chcrokcc, 130 
Brain machinc, 136 Fin*Tcehklan,138 
hup://www.kyuzz.orglordanomade, 147 
K - near death experienee, 153 
7 
13 
41 
57 
capitulo III Conceitos líquidos 159 
Aporia, 160 Skullpturc, 162 PolEitics, 163 Diáspora, 164 
E-spaec, 165 Nonordcr, 168 Anomia, 170 Mcdiascapc, 171 
Amnésia, 173 Liquid days, 176 Flamc-wing, 178 
lnconcretc, 180 X-seapc, 181 
Loop :e-space .. x-scape: '4'4 ~~, 182 
Bibliografia 189 
Miscelânea 195 
IntroduçãolLoop 
FFWD ~~ 
Este ensaio nasce de uma grande insatisfação. As pesquisas jorna-
lísticas, as pesquisas quantitativas, as abordagens generalistas, as 
visões prescritivas não conseguem dar, em minha opinião, o l11ultis-
sentido das perspectivas emitidas por aquelas que se definem "culturas 
juvenis". Elas desenham constelações móveis, desordenadas, de faces 
múltiplas. Multicodes. Trata-se de fragmentos e de fraturas cheias de 
significados líquidos: um sentido fluido alterado é posto em ação por 
um panorama contextual e metodológico no qual não é mais possível 
organizar, com tipologias ou tabelas, um suposto "objeto" da pesquisa. 
Produziu-se uma fratura disjuntiva nas narrativas dessas culturas que 
aqui se tentará abordar por perspectivas atípicas, talvez pouco rigo-
rosas, por vezes euróricas, sempre delicadas-descentralizadas-dialógi-
caso E multinarrativas. 
a) O contexto panorâmico pelo qual passam as culturas juvenis 
assume a metrópole comunicativa e imaterial como o novo sujeito 
plural, diferenciado e móvel. Um humor que corrompeu o conceito 
tradicional de sociedade. Inútil e deprimido, esse conceito não con-
segue mais dar o sentido, a pulsação, o ritmo da contemporaneidade. 
Como escreveu J. Shirley num romance antecipatório, City come a-
walhín' fazendo desaparecer a sociedade assim organizada, dualista, 
sintética, produtiva, moderna, política. A última não consegue de-
senhar a anatomia da história presente e menos ainda a anatomia de 
sua transrormação revolucionária. Enquanto o caminho da metrópole, 
iniciado no século XIX, irrompe no cenário já interpretado pelo social 
(com seus atores asseados, os papéis fixos, o status declarado) e ali se 
inserem suas representações per formativas até deprimir qualquer 
tradição. 
Na metrópole - em seus módulos diferenciados e escorregadios-
difunde-se o consumo, a comunicação, a cultura; os estilos, o híbrido, 
a montagem: patchwork girl e mosaic mano 
DP&A editora 
8 
Cultllrils eXtremas 
b) O método é desafiado por esses contextos panoramáticos. É 
desafiado tanto na busca quanto na realização. O método é uma gaiola 
enferrujada que pré-criou e encerrou seus sujeitos, organizando-os em 
objetos puros dos quais extrair regras, leis, previsões, tipologias, pres-
crições, tratamentos. Contra tudo isso, eu quis descentralizar o mé-
todo, multiplicá-lo em seu próprio agir, construÍ-lo e diferenciá_lo ao 
longo de narrativas assimétricas: assumir como irredutíveis sujeitos, 
em cada seu momento, os protagonistas das culturas juvenis eXtremas. 
Contrariamente à tradição socioantropológica, são as zonas limüro-
fes, os espaços vazios, os desafios panoramáticos, os atraveSSélmcntos 
que me interessam. 
Aqui se reivindica uma espol1taneidade metodológica polifônica que 
vai de encontro a todo rigor formal monológico, a toda e qualquer 
moral holística pensativa, a toda e qualquer implacável estatística. Ou 
então, para sermos mais exatos, minha metodologia é o gozo da dife-
rença. 
Recuso-me explicitamente a elaborar tipologias que serVem para a 
banalização resumitiva e rígida. Rótulos da planície e do enquadra-
mento: a hard-techno, a bad grrrl etc. A aliança Upológica entre soció-
logos/antropólogos e jornalistas constituiu guetos conceituais contra a 
mudança dos paradigmas, obrigados somente a "fixar" e "uniformi_ 
zar" aquilo que é plural, Ouido, cambiante. 
Tipologias e taxonomias estão exauridas. Não está inscrito no esta-
tuto de ferro das ciências sociais que se devem reproduzir essas gaio-
las. E se no estatuto epistemológico de sociologias/antropologias hou-
ver a elaboração de modelos (patterns), eu não os seguirei. A viagem 
aqui empreendida é de outro lipo. Não satisfará nenhum sistematiza_ 
dor, nem classificações ou comparações. O objetivo explícito é o de 
aplicar uma metodologia das diferel1ças, a fil11 de acentuar os traços de 
dcsordenação das produções juvenis intermináveis. 
Não existe Uma visão unitária e global das culturas juvenis que 
seja passível de resumir a Um número, a um código ou a uma receita. 
A síntese é o instrumento conceitual de ordem, nascido da pólis, que 
Introduç5.o/Loop 9 
aqui é rompido; o que resta - fragmentos líquidos - cruza-se e afasta-se 
sem possibilidade alguma de reconstruir o quebra-cabeça perspectiva 
do social. 
* * * 
o texto é articulado em três partes: 
- A primeira busca redefinir os cenários múltiplos dentro dos 
quais se colocam os fragmentos juvenis contemporâneos; contra qual-
quer tradição continuísta, entretecem-se os fios que eliminamtodo re-
síduo conceitual de subcultura ou de contracultura, e propõe-se o ce-
nário múltiplo das culturas intermináveis. Ou melhor, eX-terminadas: 
condições juvenis e produções culturais e comunicacionais não são 
tennil1áveis. Por isso elas são intermináveis, sem fim, infinitas, sem li-
mites. 
Entretanto, nem todas as culturas juvenis são eXtremas. Aliás, gos-
taria de esclarecer logo as diferenças entre uma visão do extremo como 
totalmente interna aos lugares do domínio e de sua reprodução territo-
rializada e seus visares do eXtremo que produzem temporárias dcsterri-
torializações. 
- A segunda paTle é um excursus multi narrativo entre um defiuir 
de interzonas nas quais se experimenta o eXtremo intennilIcível. Há 
muitos anos venho freqüentando essas zonas - em primeiro lugar, para 
meu prazer. Talvez para a parte interminável de minha condição/per-
cepção juvenil. Foi-me dada uma extraordinária possibilidade de en-
contrar, ouvir, olhar e dialogar com muitos jovens estudantes que 
constituíram as bases móveis das quais aprender e satisfazer uma 
minha curiosidade excessiva, talvez demasiado entusiasta, sempre par-
cial. O menos possível institucional. Nunca "científica", instrumento 
para obter financiamentos, fazer carreira, falar "em nome de". 
Repentinamente, encontrei-me diante de uma quantidade imensa 
de narrativas, saberes, fiyers, músicas, emoções, comunicações Oui-
das. E decidi que tentaria contar algumas dessas formações comunica-
cionais, utilizando estilos diferenciados e de facetas diferentes. As 
10 Cultums eXtremas 
narrativas englobam e envolvem apenas algumas entidades que acen-
deram minha paixão cognitiva, embora de formas diferentes, ou tal-
vez com as quais soube ou pude relacionar-me melhor. A narrativa, de 
rato, dialoga com o sujeito outro, "percebe" -o. 
- Na terceira parte eu poderia tcr escolhido realizar conexões, fazer 
comparações, genealogias e tipologias entre as culturas eXtremas; pelo 
contrário, minha escolha foi diferente: todo o texto se baseia numa 
acentuação das diferenças. Conseqüentemente, pensei em desenvolver 
esta última parte de forma a torná'-la estridente em relação às ante-
riores, por meio da emergência de conceitos líquidos: tensões que 
conectam as interzonas eXtremas (as correntes diferenciadas entre si 
das culturas intermináveis) e alguns exploradores de sentido (artistas 
diaspóricos, arquitetos dissonantes, pesquisadoras pós-coloniais, 
etnógrafos anêmicos, filósofos desviados etc.). 
Culturas intermináveis, interzonas eXtremas, conceitos líquidos: no 
decorrer dessas três diferenças, o texto se articula, se constrói e deflui. 
Sem uma relação dialógica constante com as muitas subjetividades 
que são aqui apresentadas, este texto não seria sequer imagináveL A 
todas essas pessoas multivíduas é dedicado este livro, e de qualquer 
maneira a elas é dirigido meu agradecimento eXtremo. Gostaria que 
esta publicação pudesse favorecer um salto temporal em direção a 
produções experimentais e intermináveis. 
Apesar de tudo, sinto o desejo de revelar duas entities que acompa-
nharam desde o início este livro, lido e inclusive criticado duramente 
e, enfim, tornado possível. Sem elas, ele não teria nutuado. Ambas-
em sua diversidade - contribuíram para inflamar e alterar o texto. As 
chamas e as alterações se disseminaram por todo lugar, e justamente 
através dessas duas entilies - que tentaram resfriar alguns entusiasmos 
meus, por vezes demasiado fáceis, e certas instâncias talvez demasiado 
eufóricas - o texto pôde encontrar uma solução parcial. A elas vai um 
pensamento final: líquido e interminável, naturalmente. .. 
i 
~. .. .,. I . 
! . ...... <. ; 
I 
L-------- --~---~ 
\ 
capítulo I 
Das contraculturas às culturas intermináveis 
Morte da contracultura 
Já faz tempo que a "coisa" movimenta energia, 
transforma o pensamento em ação, vive a um 
metro de distãncia por interesses e objetivos co-
muns. A "coisa" entcnclida como MULTICONNI::CTlON 
de pessoas que - misturando suas prôprias ex-
periências realizadas nos últimos anos com obje-
tivos como música, livre expressão criativa, au-
toproduções, performances - deram vida a uma 
única força determinada cúmplice e consciente 
de sua complexidade. Precisamos concentrar e 
não dispersar em 7 hectares nossa força que, em 
algum estranho jogo de cruzamentos, unindo-
se, cria. Esta área nos dá oxigênio e, parece-nos, 
merece a vida. Nosso passo parou aqui. 
FIWTECHKLAN INFlNITEK'DESIRE 
A expressão "contracultura" nasce pelo final dos anos 1960 e mor-
re no início dos 1980. O prefixo "contra" atestava a dimensão da 
oposição que as novas culturas juvenis dirigiam à cultura dominante 
ou hegemônica. Ser contra significava que, antes de qualquer possi-
bilidade de falar em cultura, aliás, ainda antes de chegar ao termo 
"cultura", era preciso ser antagonista, opositor. O prefixo não era Ca-
sual: enfatizava também lexicologicamente um antes que informava 
tudo o que vinha depois. Por isso o duplo sentido do vocábulo. Por um 
lado, era possível produzir cultura somente se se declarasse, preven-
tiva e publicamente, contra; era, pois, necessário postar-se contra a 
cultura dominante, não só contra os valores, os estilos de vida, as vi-
sões de mundo ao poder, mas também contra a cultura intelectual 
dominante (a filosofia, a religião, a arte ... ). Por outro lado, esse contra 
T"\D.C ... A nrl;t~~n 
14 Culturas eXtremas 
inicial não era mais suficiente e empurrava em direção a um para, ou 
seja, em direção a projetualidades afirmativas, práticas, cotidianas, de 
repensar a cultura em termos de total e radical diferença. 
Dentro do conceito de contracultura transita-se, portanto, de uma 
oposição radical contra alguma coisa dominante, em relação a pro-
postas criativas) para algo totalmente distinto. Contra a cultura do po-
der e para as culturas da revolLa, para a transformação do mundo, para 
acender um processo revolucionário nem tanto na estrutura socioeco-
nõrnica, mas, sobretudo, no cruzamento de novas formas de pensar e 
velhas ideologias. 
As contraculturas se caracterizam por uma abordagem contrária à 
ortodoxia marxista, hegemônica não somente na URSS ou nos partidos 
"irmãos", mas também em grande parte nos grupos revolucionários 
que nasciam na época; para os sujeitos contraculturais, não era a es-
trutura econõmica que determinava o ser ou a consciência (muito me-
nos a do partido), mas era possível, mesmo nas condições do capita-
lismo tardio, dar saltos diretamente entre experiências individuais e 
supra-estruturais, para alcançar e acender possíveis libertações. 
Praticamente isso significava depreciar os conOitos sociais (os 
conDitos de classe sobre salário, qualificações, horário de trabalho 
etc.), eliminar toda pesquisa ideológica sobre as instituições (Estado, 
governo, sindicatos), reCUsar a organização científica da política 
(o partido como máquina para alcançar o poder). E, ao contrário, acen-
tuava-se a dimensão individual, geralmente descuidada em favor da 
coletiva, de classe ou de massa. 
Essas culturas juvenis são, pois, contra "a" cultura ao poder - aque-
la cultura burguesa, de classe, ou dominante, herdeira do Iluminismo 
- que tende a virar ideologia: uma falsa consciência historicamente 
necessária que busca afirmar sua parcialidade como se fosse universal. 
A cultura burguesa se transforma em ideologia justamente neste movi-
mento "secreto", acionado particularmente pelos intelectuais: transfi-
gurar valores, instituições e filosofias de parciais (de classe, de sexo, 
de geração) em gerais (da humanidade toda). A tarefa dos intelectuais 
Das cOnlraculturas às culturas intermináveis 15 
é fazer passar como pertencendo à "natureza-das-coisas" ou ao "gê-
nero-humano" interesses brutos que, ao contrário, são parciais: de 
urna burguesia masculina, adulta e branca. Poressa razão a função da 
universidade - e depois também a da mídia - caracteriza-se como 
adestramento ao papel, como pedagogia que reproduz e atualiza essa 
cultura transformada em ideologia. 
Todo esse modelo não funciona mais já faz tempo. Um processo ir-
resistível, culminado nos anos 1990, dissolveu qualquer possibilidade 
de uma cultura dominante. A clássica dicotomia cultura hegemônica/ 
culturas subalternas (que fez com que antropólogos gramscianos, 
empenhados em contrastar qualquer inovação conflitiva nascida nos 
anos 1960, escrevessem uma infinidade de textos) exauriu-se definiti-
vamente. Fruto cultural da dialética do século xx, essa dicotomia 
afunda como um Titanic com o fim de toda cultura - inclusive domi-
nante - quando se apresenta como universal, quando se transfigura em 
ideologia. Ao mesmo tempo, as culturas juvenis mais inovadoras estão 
desinteressadas em contrastar os fantasmas que sobreviveram à ca-
tástrofe de todas as hegemonias culturais. Tais culturas não são mais 
contra: nem contra urna cultura dominante, que justamente não existe 
mais e que, de qualquer modo, diluiu-se numa série policêntrica de 
poderes em competição entre si; nem a favor de uma cultura contra, 
porquanto nada é mais desejável ou imaginável do que uma cultura de 
oposição revolucionária. 
Não existe mais uma contracultura, pois morreu a política como 
utopia que transforma o mundo empenhando o futuro próximo. Não 
há mais contracultura, pois não há mais o contra. O término da hege-
monia, o fim da ideologia e o fim da política enxugaram o conlra. E li-
berlaram as culturas extremas ... aliás, eXtremas: lá onde esse X (como 
veremos: não tem nenhuma relação com a incógnita de uma geração. 
Já na citação inicial deste capítulo apresenta-se um "estranho jogo 
de cruzamentos" ao longo de hectares de território temporário, onde 
se misturam as experiências. É aqui que a "coisa" se difunde ao longo 
de conexões múltiplas e movimenta. 
Culturas eXtremas 
16 
Fim das subculturas 
Fads swept thcyouth ofthe Sprawl at lhe speed 
oflight; entire subcultures could rise overnight, 
lhrive for a dazen weeks, and then vanish ut~ 
terly.l 
William Gibson (1984, p. 74) 
Inclusive o conceito de subcultura foi progressivamente se exau-
rindo. Diferentemente da contracultura, que possui uma matriz mais 
político-alternativa, é ligado em nó duplo ao clássico conceito antro~ 
pológico de cultura. E, por isso, atesta o empurrão a englobar e a uni~ 
ficar _ em seu "complexo conjunto" - modelos, crenças, valores, de 
acordo com modelos unitários. Apesar das tentativas de distinguir e de 
explicitar, por parte das diversas e até demasiado opostas escolas 
etnoantropológicas, todo conceito de cultura acabou em posições ge-
neralistas e homogeneizantes. Essa obsessão cientificista derivava do 
desejo de dar também à cultura o mesmo critério de objetividade 
(e de "seriedade") epistemológica conferido à natureza por biólogos, 
zoólogos, físicos etc. 2 
Além disso, há uma estreita simetria entre um conceito de cultura 
expresso de" modo globalizado-uniforme e um de seus êxitos mais 
infelizes: aquele "caráter nacional" que, lamentavelmente, continua 
sobrevivendo inclusive além do âmbito estritamente antropológico 
("os italianos" ... os alemães ... ). O caráter nacional como subcultura. 
Parte-se da existência do caráter nacional de "a" cultura italiana - por 
seu turno subcultura da cultura européia, ocidental, complexa -, da 
qual nascem outras diversas subculturas (romana, juvenil, feminina, 
operária, estudantil). Em suma, a subcultura é uma classe menor den-
tro de uma maior - um subgrupo não apenas social, mas também ter-
"As modas varrem a juventude do Sprawl com a velocidade da luz; enquanto 
inteiras subculturas podiam nascer numa noite, prosperar por uma dúzia ele 
semanas, para depois desaparecer completamente." 
2 Uma conhecida frase de Clifford Geertz diz que "a antropologia não é uma 
ciência em busea de leis universais, mas uma ciência em busca do significndo" 
(1988, p. 41). 
Das contraculturas às culturas intermináveis 17 
ritorial, sexual, étnico, de geração, desviante etc. - que, por sua vez, 
pode ser outra classe para uma outra ordem ainda menor. Por isso, a 
idéia de subcultura - em seu particular - herda todos os limites do 
conceito de cultura mais geral do qual é parte. 
Não há, portanto, um sentido depreciativo na expressão "subcul-
tura", concentrado no prefixo "sub": ele não indica algo que está 
"abaixo" e, conseqüentemente, é inferior em relação a alguma outra 
coisa que fica "acima". N o emprego do termo permanece a instância 
cientificista de identificar, ou melhor, de recortar uma fatia compor-
tamental caracterizada por possuir estilos, ideologias, valores homo-
gêneos. Selecionam-se esses traços culturais, vistos como idênticos 
para cada estrato, e se privilegiam em relação a uma série de outros 
traços que os tornariam diferentes. A história da antropologia afir-
mou-se não apenas ao privilegiar as (supostas) uniformidades, mas 
também na destruição sistemática e "objetiva" das diferenças.} São as 
diferenças que devem ser aplainadas para que seja possível fazer nuir 
o carro triunfante e cientificista de "a" cultura. 
Para contrastar o perigo das diferenças - vistas como desordem - a 
antropologia (como a filosofia, a psicologia, a sociologia, a arquitetu-
ra) estruturou-se como apologia e defesa da identidade. Como foi dito, 
a elaboração do "caráter nacional" favoreceu cada preconceito e re-
forçou cada estereótipo, levando em consideração sociedades moder-
nas em larga escala, com milhões de pessoas: e assim a subcultura -
como sua matriz "cultura" - seleciona o homogêneo em detrimento 
do heterogêneo, o uniforme contra o fragmentário, o singular contra o 
plural, o estático contra o Ouido, o holístico contra o parcial, as cone-
xões contra as disjunções, a identidade contra as diferenças. 
3 "Os instrumentos teóricos proporcionados por Kant e Hegel, o juizo e a dinlética, 
revelam-se incapazes de sustentar o impacto de uma experiência que não pode 
mais ser contada nem como subsunção do particular ao universal, nem como 
superação da contradição 1 ... l. O mais originnl e o mais importante [acontecimento 
filosófico 1 do século xx reside na noção de diferença, entendida como não-
identidade, como uma dessemelhança mais ampla do conceito lógico de diversidade 
e do conceito dialético de distinção" (Perniob, 1997, p. 154). 
18 Culturas eXtremas 
o erro produzido é duplo: não só se estendem às culturas nacio-
nais aqueles conceitos e métodos aplicados nas pesquisas etnográficas 
em contextos restritos (aldeias), mas se acaba inclusive sustentando 
que nas sociedades chamadas "simples" haveria um caráter uniforme 
(mas não nacional) e sem indivíduos! 
Assim, nas sociedades "complexas" há somente um caráter na-
cional, e nas chamadas "simples" há somente um caráter individual. 
Está na hora de eliminar as distinções etnocêntricas entre socieda-
des simples e complexas, juntamente com os caracteres nacionais e as 
várias subculturas, todas marcadas pela idéia de uniformidade e pela 
reproduçãO de estereótipos. É tempo de defender os fragmentos, as 
parcialidades, as diferenças, como uma parte da antropologia já come-
çou a fazer. 
O problema é que o conceito de caráter nacional não consegue 
unificar uma complexidade que não é unificável, ao contrário, é dife-
renciável. Não pode conferir ordem a uma desordem que é móvel. Fe-
lizmente ... O conceito de cultura como algo global e unificado, com-
plexo e identitário, que elabora leis universais, dissolveu-se seja 
debaixo dos golpes da nova antropologia crítica, seja, ainda antes, pela 
difusão de fragmentos parciais que não aspiram mais a ser unificados, 
mas que reivindicam, vivem e praticam parcialidades extremas, irre-
dutíveis diferenças. 
Contudo, ao longo dosfluxos móveis das culturas juvenis contem-
porâneas - plurais, fragmentárias, disjuntivas - as identidades não são 
mais unitárias, igualitárias, compactas, ligadas a um sistema produtivo 
de tipo industrial, a um sistema reprodutivo de tipo familiar, a um sis-
tema sexual de tipo monossexista, a um sistema racial de tipo purista," 
a um sistema geracional de tipo biologista. 
.. Em Salvador, na Bahia, vi camisetas eom o dizer "100% negro", como para 
reivindicar uma "pureza" sem gotas de sangue intruso. Num país de COl1lras[es 
como o Brasil, é realmente uma estranha mensagem para uma estranha pureza. É 
preciso lembrar que ali o termo "negro" não tem uma acepção ofensiva como nos 
EUA, enquanto e o "preto" (escuro", black) a ser considerado tal. 
Das contraculturas às culturas intermináveis 19 
Assim, em relação às culturas juvenis, uma subcultura não é, por 
sua natureza, uma contracultura, porque pode ser também uma cul-
tura pacificada, organizada, mística etc. Por isso, é importante distin-
guir os dois conceitos que não coincidem ou que, de qualquer modo, 
podem não coincidir. Em todo caso, uma cultura é "sub" não porque 
considerada inferior. O prefixo "sub" indica mais um conceito que as-
pira a uma maior neutralidade científica. Esse segundo prefixo, por-
tanto, "fixa" (prefixa) cada segmento de cultura dentro de uma cultura 
mais ampla. 
Não existe mais uma categoria geral que possa englobar nela uma 
particular, ao longo de segmentos homogêneos (o caráter nacional). Por 
isso morreram as subculturas. Não exisle mais (se é que alguma vez 
existiu) um "acima", mas um "através de" - ou melhor, muitos "atra-
vés": atravessar os segmentos, as parcialidades, os fragmentos do eu e 
do outro. Transitar entre os "cus" e os outros. Particularmente para as 
pluralidades dos universos juvenis que não são passíveis de serem 
encerrados nas gaiolas das subculturas. São pluriversos. 
O sucesso anglo-saxônico do termo "subcultura" deve-se sempre a 
uma leitura (sob alguns aspectos até providencial) de Gramsci, por 
isso pôde desenvolver-se um tipo de marxismo sensível à mais ou me-
nos relativa autonomia da cultura - em relação à já citada ortodoxia 
que proclamava a centralidade da estrutura acima (e contra), toda su-
perestrutura à qual vinha associado um sentido depreciativo de se-
cundário, derivado. Ainda assim, esse termo "subcultura" hoje é de 
pouca significação, pois não existe mais uma cultura geral unitária 
(por exemplo, a cultura britãnica) em relação à qual uma determinada 
subcultura se define como parte dela, como um "abaixo". 
Se já desde o princípio era difícil definir os punks uma expressão 
subcultural (Hebdige, 1983), agora a morte do caráter nacional- que 
ordenava uma escala hierárquica piramidal com uma ponta hegemô-
nica até uma base subalterna, sobre cujos desníveis se organizavam 
essas "culturas-abaixo" - arrasta consigo também a morte das subcul-
turas. Um hacker ou um raver se movimenta através e contra qualquer 
20 
Culturas eXtremas 
distinçào geopolítica nacional, e qualquer definição subcultural se 
apresenta inadequada e antiquada, até um tanto ridícula. 
É a própria idéia de caráter nacional que se dissolveu definitiva-
mente no ar. 
A citação inicial de Gibson é interessante por sua ambigüidade 
genial: a literatura ciberpunk - que inventa conglomerados de espaços 
e de tempos (o sprawl) - mantém como um achado o conceito de sub-
culturas, mas logo a seguir insere nele os novos fluxos comunicacio-
nais que as fazem respingar pelo espaço de não mais do que uma dúzia 
de semanas e depois desaparecer. É hora de as ciências sociais também 
transitarem da subcultura ao sprawl. 
Os jovens entre metrópole, mídia e consumo 
Bateria e baixo calaram, em espera dramática. 
Os grandes olhos de ouro de Catz se abriram 
ainda mais. O suor lhe havia grudado na cabeça 
os cabelos platinados. Seu rOSlo perdeu qualquer 
incerteza e anuiu ao homem de óculos, e depois 
cantou: "A cidade se levanta e caminha! reclama 
o que ê dela! Por vezes o mundo toma a forma 
dos deuses/por vezes os deuses tomam a forma de 
homens/por vezes os deuses caminham sobre a 
terra como mortais .. .I E esta noite a Cidade se 
levantou, caminhou, e nós somos todos obso-
letos ... ". 
johnShirley(l981,p.ll) 
Se, como se viu, aparecem conceitualmente sempre mais contraí-
das as noções de contracultura e de subcultura, a categoria de jovem, 
ao contrário, estende-se sem tempo CCanevacci, 1995). As tradicionais 
distinções em faixas etárias se abrem, a idéia de jovem se dilata. Em 
termos sociológicos, a faixa etária chamada "jovem" é recente. Nasce, 
grosso modo, nos anos 1950, com um Significado totalmente distinto 
do anterior: um significado descontínuo ligado a contextos descontí-
nuos. O jovem teenager afirma-se com prepotência na comunicação 
r 
Das contraculturas às culturas inLermináveis 21 
metropolitana e midiática do Ocidente, particularmente por meio de 
sua visibilidade musical e fílmica. 
Todas as premissas são antecipadas já em outubro de 1927, quando 
nasce o cinema sonoro com The jazz sínger [O cantor de jazz] , dirigido 
por Alan Crosland, "um filme mudo com algumas inserções faladas 
ou cantadas" (Sadoul, 1964, p. 309). Mesmo uma breve análise do 
filme pode fornecer elementos preciosos para o discurso que aqui se 
desenvolveu. Para aqueles que não se lembram, AI jolson - famo-
síssimo cantor, na época não mais jovem - interpreta o papel de um fi-
lho que decide ser cantor contra a vontade patriarcal do pai, que vê 
como imoral e degenerado o mundo do jazz em relação à música dita 
"clássica". A mãe - fraca e doente, maternal e amorosa - não consegue 
opor-se ao marido e é obrigada a suportar a expulsão de casa do filho. 
Depois de alguns eventos, AI se torna um cantor [amoso~.porém, para 
não ser reconhecido, pinta o rosto de Ce como) preto, camuflando-se 
de blaclL Pela dor, a mãe adoece cada vez mais, e o pai se fecha em sua 
cega condenação ao poder nascente da mídia. É assim que AI grava um 
de seus grandes sucessos mundiais da música popular: "Ma mie" . 
"How I love you, how I love you my little mamie." No espetáculo final, 
toda a elite da cidade corre para ouvi-lo a fim de decretar seu triunfo 
no teatro, enquanto o rádio prolonga sua mensagem nos EUA Ce o cine-
ma em qualquer parte). A mãe morre de desgosto, o filho chora, can-
tando como estrela da nova mídia, o pai se desespera por ser dema-
siado retrô; todo mundo se comove pela morte da mãe, condena a 
excessiva rigidez do pai e se alegra ainda mais por ter podido escutar 
e, ao mesmo tempo, ver, pela primeira vez, um cantor de jazz, fruto 
sincrônico do enxerto da vitrola com o cinema. 
Dessa forma se especifica o conceito de democracia visual Ce da-
quela que será chamada indústria cultural): o espectador é instado a 
identificar-se com o filho inovador e contra o pai autoritário e passa-
dista: isto é, a favor do cinema sonoro e da nova mídia, contra a músi-
ca tradicional pré- e antimídia. 
22 Culturas eXtremas 
o personagem do cantor AI Jo150n não resulta fundamental so-
mente para o cinema sonoro, mas também porque esse novo meio 
apresenta a ascensão e a legitimação do jazz (ou melhor, de um jazz 
branco e choroso, camuflado de blach)5 como cultura de massa expres-
sa pela geração dos filhos contra a geração dos pais. Mesmo que do 
ponto de vista visual AI seja tudo senão jovem (ao menos segundo 
aquilo que logo depois será o modelo "tecn"), ele prevê o nexo fun-
damental entre autonomia das culturas juvenis nas metrópoles, ascen-
são irresistível da mídia, dilatação do consumo (= imoral) contra a 
produção (= moral), o conflito com os pais autoritários e perdedores. 
É esse nexo, tornado ainda mais conflituoso em termos de geração 
do contexto do pós-guerra, que produzirá a ascensão das culturas ju-
venis corno subculturas, corno contraculturase corno mídia-culturas: 
as culturas expressas e veiculadas pelos meios de comunicação social 
que então estavam nascendo, que terão corno principais sujeitos de 
consumo justamente os jovens. 
Um elemento posterior de inovação caracterizará "os jovens" co-
mo traço decisivo da contemporaneidade: a escola de massa. Os jovens 
antes não existiam como faixa etária, enquanto se transitava direta-
mente da adolescência (entendida muito elasticamente) para o traba-
lho. Aliás, como é amplamente sabido, tanto o trabalho agrícola (ain-
da pior) quanto o trabalho industrial absorveram em seguida, já desde 
a mais tenra adolescência, os filhos das classes popuhres; e então "jo-
vem", em sentido estrito, podia ser o aristocrata iS('''ltO do trabalho ou, 
mais adiante, o filho do burguês educado para o tr8.halho. 
Então: a escola de massa separa um segmento interclassista da po-
pulação da família e da produção; a mídia (discos, rádio, cinema) pro-
duz um novo tipo de sensibilidade e de sexualidade, modo e estilo de 
vida, valores e conflitos; a metrópole se difunde como cenário panora-
mático repleto de signos e sonhos (mediascape) O cruzamento desor-
S O intérprete não podia ser negro pela equivalência jazz '" blnck; porém, ao mesmo 
tempo não podia não ser branco, a fim de decretar o sucesso mundial. 
Das contraculturas às culturas intermináveis 23 
denado e intrigante desses três fatores constitui o terreno autônomo, 
inovador, conflituoso no qual se constrói a categoria sociológica do 
"jovem". Os jovens como faixa etária autônoma da modernidade nas-
cem entre os fios que os ligam à escola de massa, à mídia, à metrópole. 
Escola, mídia e metrópole constituem os três eixos que suportam a 
constituição moderna do jovem como categoria social. 
Dos anos 1950 em diante, esse cruzamento configura o fenômeno 
da cultura juvenil que oscila desde logo entre subcultura e contracul-
tura, entre integração e conflito. O jovem é um teenager que entra na 
escola e pode chegar à universidade, ou então se "matricula" no mundo 
dos adultos, entrando no mundo do trabalho. O trabalho é uma espécie 
de rito de passagem que separa dolorosamente o jovem do adulto. Um 
rito sem mito. Não há mais uma história narrada para sublinhar de for-
ma evocativa a mudança definitiva. O trabalho como trabalho assala-
riado se apresenta desde logo como um corte nítido do qual não se po-
de voltar. É uma passagem uni direcional e irreversível. Ele assume a 
forma besuntada e deprimente do emprego fixo (no Estado, nas prefei-
turas, no público etc., uma espécie de prisão perpétua com a permis-
são de fugir uma vez ao dia), ou do trabalho explorado na fábrica, alie-
nado, mas vivo, do qual é preciso tentar livrar-se de todas as maneiras. 
Contudo, antes de tornar-se adulto, entrando no mundo sério e irre-
versível do trabalho, o jovem é tal porque consome. E, pela primeira 
vez, o consumo juvenil adquire um papel central que se amplia con-
centricamente para toda a sociedade. O jovem consome - o adulto 
produz. A expressão, sociológica por excelência, que nasce desse con-
texto é, não por acaso, "a sociedade do consumo". Na idéia da socie-
dade do consumo, há uma espécie de horror político-conceitual, uma 
aporia do bem e uma inflação do mal, um escãndalo da ética tanto 
revolucionária quanto conservadora. A sociedade só pode ser a do tra-
balho. Do conflito entre classes. Da arte científica da política e do par-
tido como sua expressão mais elevada para a tomada do poder. 
Na emergência desordenada e descomposta da sociedade do con-
sumo, todos os olhares convergem para uma condenação sem apelo: 
24 Culturas eXtremas 
hedonismo, narcisismo, relaxamento, superficialidade. A prodUÇãO 
salva a alma; o consumo é sua danação. A produção é o anjo que aban-
dona os escombros da existência e que os resgata. O consumo é o anjo 
decaído que afunda na danação do prazer, do vistoso, do supérfluo. Na 
produção, o sujeito é de classe; no consumo, o indivíduo é de massa. 
Na primeira, ele é alienado e revolucionário; na segunda, é homolo-
gado e apaziguado. 
A condenação do consumo unifica pontos de vista divergentes e 
opostos: para o marxismo, o consumo é o momento final do processo 
de acumulação capitalista e é determinado pela produção. Por essa ra-
zão, o conflito de classe nasce e se resolve dentro da prodUÇàO: das fá-
bricas ao Estado. Sobre essas premissas incrustam-se preconceitos de 
ordem ética a respeito do consumo como supérfluo; no marxismo do-
minante emergem somente modelos austeros e disciplinados de espar-
tanos ou de espártacos. O mesmo é afirmado pela ética protestante, 
que vê no sucesso econômico um lance mundano nunca adquirido pa-
ra sempre pela salvação eterna. O consumo é dissipação e, sobretudo, 
danação. Sem falarmos do fascismo e de suas éticas guerreiras de legio-
nário romano, e de seu ódio visceral por tudo aquilo que provém das 
plutocracias anglo-americanas. 
Pois bem, pela primeira vez na história da humanidade, de forma 
tão nítida e radical, os jovens provenientes de qualquer classe (burgue-
sa, operária e popular) são emancipados da produção agrícola ou 
industrial e podem atirar-se ao consumo. Do ponto de vista do sujeito 
político (e adulto) produtor de riqueza (ou de consciência de classe), 
o jovem não apenas não trabalha, mas também consome! Daqui os 
ressentimentos ... 
E então a crítica à sociedade do consumo envolve e arrasta toda 
ideologia, eleva o desdém, faz as pessoas sentir-se boas e sofredoras. 
Sobretudo condena. A sociedade do consumo é um espetáculo indig-
no: aliás, é "a sociedade do espetáculo" ... 
Lamentavelmente, a mídia estava muito à frente de seus críticos. Já 
as exposições universais - como Benjamin percebeu primeiro - eleva-
Das contraculturas às culturas intermináveis 25 
vam as mercadorias a comunicação, duplicavam os conflitos: além do 
valor em sentido econômico, elas, após terem sido entro nadas como 
fantasmagoria universal, produziam valores como estilos, visões, es-
quemas de comportamento. Já desde a primeira metade do século XIX, 
para o capital o conflito não era somente o da produção, mas também 
o do consumo; e os novos espaços do consumo se transfiguram em es-
petáculo a fim de capturar as consciências ou, ao menos, os comporta-
mentos. E mais: se nos conflitos sobre a prodUÇão o capital algumas 
vezes podia perder, nos conflitos com o consumo ganhava sempre e 
recuperava tudo aquilo que havia perdido (e também muito mais) nas 
lutas estruturais. 
A capital do século xx é Paris - ou seja, uma metrópole vista como 
mercadoria luminosa e poderosa -, não suas fábricas. Suas alamedas 
político-militares, as caricaturas animistas de Grandville ou as pros-
titutas, "que são mercadoria e são sonho". E é Paris, para Walter Ben-
jamin, que deve ser libertada (ou redimida) de seus fetiches, não o 
Crédit Immobilier, a Citroen ou a Gaumonl. 
A mercadoria multiplicada como espetáculo, como visão - a merca-
doria visual -, possui um poder dissolvente semelhante ou superior 
àquele das mercadorias "materiais" e tradicionais de tipo industrial. 
Na primeira metade dos anos 1950, aparecem alguns filmes que 
justamente exemplificam esse conflito mais avançado. Na Itália, uma 
tradução traidora e censora transforma o título do filme Rebels Wit/lOut 
a cause, de Nicholas Ray (1954), emJuvenlude transviada. Ray retoma 
o tema que AIJolson deixara em 1927: a hipocrisia e a corrupção inte-
rior da geração dos pais, contra a qual se atira a geração dos filhos, 
mesmo sem uma causa clara, mas numa tensão limpa e regeneradora. 
Há uma seqüência decisiva do conflito entre pais e filhos. Mãe, pai 
e Jim estão na escada interna da casa. Jim - que quer ir à polícia por 
causa da morte de seu colega de escola - diz: "Papai, não foi você 
quem disse que é preciso dizer sempre a verdade? Não falou assim? 
(o pai se cala). Não pode engolir issoagora, não pode!". A mãe: "Não 
diga isso, diga que você não pode fazer o voluntário". Jim: "Isto é, dizer 
OFRGS 
- O"! ' 0_ '""-' •• l' amu~m~ StI ,,~, kL .. ,-"", .. 
26 Culturas eXtremas 
uma pequena mentira". O pai (apontando o indicador contra o filho 
de forma agressiva): "Vai aprender!". Jim (ele também levanta o indi-
cador, mas com delicadeza firme): "Não, eu não quero aprender a vi-
ver dessa forma". 
o título complexo de Nicholas Ray transforma-se na Itália numa 
apriorística condenação da juventude que queimou a si mesma como 
uma ponta de cigarro, uma ardência breve e intensa, para logo ser jo-
gada fora, como um dejeto. Juventude rejeitada. Jim, que no entanto vive 
numa classe média e branca (WASP - white anglo-saxan pagan), não 
quer aprender. No ano seguinte, o diretor Richard Brooks realiza The 
blackboard jungle [Sementes da violência], filme no qual a rebelião juve-
nil explode nas escolas-guetos, onde, também ali, não se quer apren-
der o mesmo modelo do saber. Não se quer repetir a mesma música. 
"O professor, interpretado por Glenn Ford, procura encontrar um 
espaço comunicativo, levando aos rapazes seus discos de jazz, símbolo 
do intelectual branco progressista. Os rapazes rasgam em pedaços a 
coletânea e colocam no prato da vitrola 'Rock around the clock'" 
(Colombo, 1995, p. 73). À visão metropolitana clássica, que vê a flo-
resta na metrópole ou no quadro-negro da sala de aula, numa escola-
gueto socialmente degradada, corresponde a tradução de uma "semen-
te" quase bíblica que gera violência e caos. De fato, apesar do atraso 
traidor dos aparatos tradutórios do cinema nacional (públicos e parti-
culares), o conflito passa do jazz ao rock. 
Só que não haverá mais invocações às mães. 
É ao redor das anarquias elétricas e das descomposturas corporais 
emitidas pelo rock que estão nascendo as culturas juvenis. Emergem 
em primeiro lugar com clareza e Com dureza nos Estados Unidos, por-
que ali nasce a indústria cultural. E porque ali existem as metrópoles. 
O processo histórico-político que vai dos anos 1950 ao final dos 
anos 1970 é conhecido, e não se deseja reconstruí-lo aqui. Somente é 
necessário enfatizar que durante aquele período afirma-se de modo 
sutil, descentralizado, informal e implícito um tipo de galáxia juvenil 
Das contraculmras às culturas intermináveis 27 
transnacional, que segue com paixão e competência o que acontece de 
novo nos vários laboratórios juvenis. Normalmente os códigos adultos 
de cientistas sociais ou de sindicalistas vêem nisso somente imitação, 
homologação, subordinação: com efeito está emergindo algo mais 
complexo e desordenado. Difunde-se um processo de traduções legí-
timas, de adaptações locais - um local knowledge, parafraseando uma 
abordagem da nova antropologia - de tímidas hibridizações, de trocas 
assimétricas, de viagens incertas, de ansiedades obscuras e vitais. 
Política, cinema e música se entrecruzam de forma tão inextricá-
vel quanto, com demasiada freqüência, removida ou considerada se-
cundária (superestrutura I) em relação à desforra da tradição socio-
econômica. Poder-se-ia ler o conflito dos anos 1960 não só como o 
conflito externo que todos conhecemos, mas também com um confli-
to interno, entre os muitos sujeitos que participam do movimento, en-
tre o poder "clássico" da política - sua organização "científica", sua 
ressurreição em partidos e partidos menores, sua centralidade na classe 
e no salário, sua anestesia no cenlralismo democrático _ e as novas for-
mas metropolitanas do sentir. De fato, em 1968 venceu a política e 
continuou vencendo até o ano de 1977, quando se rasga definiti-
vamente, entre quem vê em Aldo Moro um símbolo e um ataque ao 
coração do Estado e quem muda de rumo da militância e brinca com 
os sinais; entre quem está no partido e em suas variadas reformulações 
e quem dá voltas nas metrópoles e em suas mutações/inovações. Entre 
quem se fixa na sociedade e quem se movimenta na comunicação. 
Depois de 1977 não será mais possível a política, ao menos a po-
lítica conjugada aos movimentos. Poderá continuar somente "A Po-
lítica", a dos partidos e a das instituições. As culturas juvenis, que se 
libertaram dessa política, podem finalmente abrir alas nos fluxos de-
sordenados e polifônicos/dissonantes da comunicação metropolitana 
e dos panoramas midiáticos. Os anos 1980, em vez de continuarem 
sendo percebidos como os anos obscuros do yuppismo, afinnam tam-
bém um processo criativamente desagregador, que é visto como nor-
malizador, somente porque continuam a ser empregadas as categorias 
28 Culturas eXtremas 
tradicionais da sociologia política, já totalmente inadequadas para 
saber ler, e ainda mais para colaborar na transformação da chamada 
"sociedade". De uma sociedade cada vez mais reduzida. 
Desta vez, a citação inicial se refere a um livro de ficção que troca 
a percepção da metrópole. John Shirley, em Il roch della curd viventc6 
(1981), continua dando volLas ao redor do nexo música rock-metró-
pole, só que desta vez a relação não é somente próxima: é interna. A 
metrópole se torna carne e se abre ao longo das notas ácidas do rock 
emitidas por Cats, a loura platinada de olhos dourados: "Esta noite a 
cidade se levantou, caminhou", canta Cats, mas não em serltido meta-
fórico. A cidade se fez carne, corpo, sangue. Ela se mexe. "E todos nós 
somos obsoletos" ... conclui assim. Obsoletos: não funciona mais 
nenhuma categoria compacta que tenha a sociedade como ponto de 
partida, como fonte epistêmica, como projeto unificado. A metrópole 
- atroz, chocante, ensurdecedora como o rock - em seu levantar-se e 
encaminhar-se dissolve o nós social. 
Os jovens intermináveis 
Eu tenho mil rostos e mil nomes. Não sou 
ninguém sou todos. Sou eu sou tu. Sou aqueles 
lá para frente para trás dentro fora. Estou em 
toda parte não estou em lugar nenhum. Estou 
presente estou ausente. 
William Burroughs (1985) 
Nesse contexto - caracterizado por culturas fragmentadas, híbri-
das e transculturais, consumo panoramático, comunicações mass-mi-
diáticas - afirma-se uma dilatação do conceito de jovem, virando do 
avesso as categorias que fixavam faixas etárias definidas e claras passa-
gens geracionais. Trata-se de uma passagem intricada e decisiva que se 
buscará delinear aqui, a seguir, partindo da seguinte proposição: os jo-
vens são intermináveis. Isso não deve ser entendido - obviamente - no 
6 Tradução italiana do original City come a-walkin'. (N.T.) 
Das contraculturas às culturas intermináveis 29 
sentido de que são eliminados,7 pelo contrário: no sentido de que os jo-
vens não acabaram. Que podem não se acabar. Cada jovem, ou melhor, 
cada ser humano, cada indivíduo pode perceber sua própria condição 
de jovem como não-terminada e inclusive como não-terminável. Por 
isso, assiste-se a um conjunto de atitudes que caracterizam de modo 
absolutamente único nossa era: as dilatações juvenis. O dilatar-se da 
autopercepção enquanto jovem sem limites de idade definidos e 
objetivos dissolve as barreiras tradicionais, tanto sociológicas quanto 
biológicas. Morrem as faixas etárias, morre o trabalho, morre o corpo 
natural, desmorona a demografia, multiplicam-se as identidades 
móveis e nômades. E nasce a antropologia da juventude. 
- Fim das faixas etárias. Esta categoria, que no passado definia uma 
geração em relação às outras, foi pré-aposentada. Ela tentava homoge-
neizar ritual ou estatisticamente aquele processo fluido da passagem 
da geração de adolescente para adulto, de conferir uma identidade o 
mais possível reconhecível e compreensível (no sentido literal de 
compreender como circunscrever, controlar) à troca de geração, de 
exercitar aquele controle social sobre o ciclo da natureza ou, para 
dizê-lo melhor, sobre uma natureza reduzida a ciclo, a eterno retorno: 
daqui é que surge aquela obsessão filosófica e demográficado con-
trole, aquela filosofia demográfica que executa o ato de prender sobre 
e contra o novo que avança. 
Reduzir a idade a um ciclo. O jovem a taxa demográfica. A nature-
za a novo epílogo. Esta filosofia adulta do domínio explodiu. 
Elemento caracterizador da contemporaneidade é a extrema incer-
teza, a imprecisão, a instabilidade em definir a percepção de si e do 
outro sobre o ser "jovem". A passagem da juventude ao mundo dos 
adultos tornou-se algo indeciso, uma espécie de zona cinzenta e lenta 
que se pode atravessar ou dilatar pelo sujeito. Os motivos para essa di-
latação juvenil são múltiplos. Como o eu: o multiple selJ. 
7 O termo usado pelo autor é "sterminati", que em italiano pode ser lido como 
"exterminados" ou, a exemplo desse caso, "intermináveis". (N. T) 
30 Culturas eXtremas 
- Fim do trabalho. Um dos elementos que de forma mais determi-
nante estão modificando, na raiz, os comportamentos aparentemente 
consolidados e dados como "naturais" diz respeito justamente ao 
trabalho. Diz]eremy Rifkin: "A idéia de uma sociedade que não se 
fundamente no trabalho é tão alheia a qualquer noção sobre as mo-
dalidades de organização de grandes massas de indivíduos, num aglo-
merado social, que nos obriga a enfrentar a incômoda perspectiva de 
ter de repensar integralmente as próprias bases do contrato social" 
(1995, p. 37). No entanto, é justamente isso que está acontecendo: uma 
"transição do trabalho humano para o seu substituto mecânico-eletrô-
nico" (ib., p. 27). Essa idéia poderia anunciar o cenário de "um mundo 
sem trabalho que marcará o início de um novo período histórico, no 
qual os seres humanos serão liberados, a longo prazo, da fadiga física 
e da repetição compulsiva de gestos automáticos" (ib., p. 37). 
A mutaçào antropológica da libertaçào do trabalho (repetitivo, 
alienado, fixo) pode permitir a difusão descentralizada e diferenciada 
de um trabalho outro (criativo, individual, temporário). Entre as mui-
tas coisas que essa mutação laboral implica, existem conexôes muito 
estreitas com uma condição juvenil inédita. Em sua posterior frag-
mentação interna (por causa de uma fraca conexão com setores fortes 
da produção, como no passado o setor agrícola, industrial e terciário), 
os jovens presentes-futuros, encontrando-se num mundo sem traba-
lhadores, dilatam sua condição de não-mais-adolescentes e ainda-não-
adultos. Esse rito de passagem se dilata sem tempo. E sem passagens. 
Ou seja, não existe mais aquele tempo histórico como momento certo 
no qual se passa de status: esse tempo se pluraliza e se dilata sem li-
mites que não sejam as autopercepçôes. Quero dizer que desmoronou 
a delimitação clara e fixa, determinada pelas regras sociais objetivas 
ou lingüísticas (teen ... ager) do ser jovem. 
Não se é mais jovem de modo objetivo ou coletivo, mas sim tran-
sitivo. Transita-se ao longo de uma condição variável e indeterminável, 
atravessa-se essa condição de acordo com modalidades determinadas 
Das contraculturas às culturas intermináveis 31 
pelas individualidades momentâneas do sujeito-jovem. Das contra-
tações entre seus vários, heterogêneos, múltiplos eus (selves). 
- Fim do corpo. Inclusive para o corpo acontece algo semelhante ao 
trabalho. A irrupção das novas tecnologias compenetra-se não somen-
te nos processos produtivos, mas também nas articulações corporais. 
As tecnologias incorporadas: os componentes naturais do corpo - afir-
mação de per si já ambígua, pois cada traço do corpo, assim como o 
corpo em sua totalidade, foi sempre atravessado por poderosos signi-
ficados simbólicos (e por isso nunca Se pode falar apenas de corpo 
biológico) - foram progressivamente subtraídos à dimensão natu-
ralista do século XIX, para abrir-se e desarticular-se numa miríade de 
micro tecnologias, microprocessadores, chips que podem ser substi-
tuídos como próteses temporárias. 
As antropologias de tipo filosófico, de tipo Gehlen - que ainda defi-
niam as tecnologias como extensões de atividades corporais, conti-
nuando a afirmar uma visão "humanista" e irracional do mundo-, 
manifestavam quase um terror nos processos de relativa autonomiza-
ção das tecnologias tradicionais. Com as novas tecnologias tudo isso 
termina decaindo. Esse falso humanismo de cunho conservador, con-
ceitualmente imobilista, procura não ver como as tecnologias incor-
poradas não signifiquem extensões das capacidades tradicionais dos 
órgãos humanos, mas algo mais e diferente. É um processo disjuntivo 
que se afirmou, e não um mero evolucionismo demovido do terreno 
biológico ao tecnológico. Trata-se de mutações constitutivas de corpos 
pós-orgânicos. 
O salto do golem ao ciborgue é de qualidade, é justamente disjun-
tivo e não meramente continuativo. No golem havia um concentrado 
mágico-irracional de poder autonomizado do monstro, da criatura 
não-criada ou recriada; havia o terror cristão-judaico de ver o homem 
substituir-se a Deus na criação da vida (e da imagem: fonte de ambição 
e perversão teológica): da argila à vida. Ainda no genial- embora de 
forma figurada - Metropolis, de Fritz Lang (1927), o duplo animado é 
32 Culturas eXtremas 
marcado pelo mal, por uma aliança entre o mal do capitalista e o do 
maligno. Esse terror do duplo, para o simulacro, para o serial, chega 
até Baudrillard e Philip Dick, que não conseguem encontrar o corte ní· 
tido entre golem e cibOl'gue. Por isso se lenta permanecer fixos no golem 
como metáfora do não-criado que desafia Deus ou a natureza ou a filo-
sofia. O duplo como golem - concentrado de um mal c de um pecado, 
de uma hybris como infração suprema - deveria ser debochado. 
No ciborgue há um salto decisivo, um corte nítido em relação a 
esses traços arcaicos da memória que arrastavam o artificial nos sub-
terrâneos dos ínferos, entre pactos diabólicos, juventudes cternas, ri-
quezas desmedidas. Com a invasão dos pós-corpos, sorrimos relendo 
o terror do homem sem sombra:H agora se utilizam membros protéti-
cos, circuitos implantados, cirurgia cosmética, alterações genéticas, 
ícones neuronais, antenas cerebrais, videotclefones táteis. 
"Roy Bakay, professor da Universidade de Emory, em Atlanla, inse-
riu no cérebro [de um paciente que sofreu um ictus cerebral, que não 
podia respirar, falar, movimentar-se, porém ainda de posse de suas fa-
culdades mentais} um chip, coligando-o por um lado com o sistema 
nervoso e pelo outro com um radiotransmissor" (La Repubblica, 16 out. 
1998). Dessa forma, controlando os impulsos elétricos, o paciente é 
capaz de clicar num ícone colocado no monitor de um computador ao 
qual corresponde um comando ou uma frase. É somente o último 
exemplo das mutações tecnológico-científicas que conduzirão a um 
crescente cruzamento entre orgânico e inorgânico. Ou melhor, toda a 
temática do pós-orgânico, que vai dos laboratórios cirúrgicos à vi-
deoane, difunde uma série de comportamentos mutantes que tornarão 
sempre mais flexíveis os limites naturais do corpo humano. O desafio 
que algumas correntes da arte contemporânea estão trazendo para 
dentro das cirurgias, çm vez de paralisar-se em condenações apriorís-
!! Von Chamisso escreve este romance extraordinário, no qual se narra a história de 
Peler Schlemil que, ao vender a alma ao diabo, fica sem sombra. E quem é sem 
sombra é o diabo, um morto-vivo. 
Das contraculluras às culturas intermináveis 33 
ticas e irracionais, é decisivo para novos modos de explorar as muta-
çõesY Com uma biologia enxertada de tecnologias, com os neurochips, 
ser jovem se faz devir. O ser se torna mutante. E essas mutações não 
sâo mais marcadas pelo desafio luciferino a Deus, mas, ao contrário, 
assiste-se a uma fratura radical entre os terrores do golem e os prazeres 
do ciborgue. 
- Desmoronamento demográfico. Sobre as motivações do desmo-
ronamento demográfico no Ocideme, em particular na llália, discutiu-
se muito inclusive deum ponto de vista antropológico (Harris, 1983). 
No entanto, essas análises parecem todas caracterizadas com base na 
observação das características dos "jovens" - "as jovens gerações" _ a 
parlir de uma visão tradicionalista, ainda ligada às faixas etárias. Con-
seqüentemente, oscila-se entre complexos de Peter Pan e inexauríveis 
apegos maternos. Mas as mutações que estão ocorrendo não estão sob 
o signo psicanalítico do complexo - isto é, de um suposto mal-estar ou 
anormalidade -, e sim dentro do contexto interminável de um juvenil 
"normal". O casamento perde valor, o estudo se estica na pós-gradua-
ção, não se encontram casas. Uma pesquisa Istat-Eurostat num pri-
meiro momento define o jovem entre os 15 e os 24 anos (14%); logo 
após, é jovem também quem está entre os 15 e os 29 anos de idade 
(21 %). Contudo, o fenômeno l11utante foge às estatísticas. Ficar com 
os pais não significa viver com eles. Possuir experiências etnográficas 
de tipo individual clareia as diferenças profundas. Basta olhar o quarto 
de um jovem, sua decoraçâo interna descontínua, tão opositiva à dos 
pais. Decorar o quarto significa, para um jovem "interminável", trans-
formar a tapeçaria - aqueles horríveis papéis de parede com os quais 
as mães tecem o habitat filial - em patchworks coloridos. O espaço 
doméstico, chato e plano, pluraliza-se num espaço mutável, cheio de 
appliques e collages: uma espécie de carteira de identidade que recusa 
~ Cf. Frnnccsca Alfano Migliclli (ViniS, 1996-99), Teresa Macri (1996), Mario Perniola 
(1994). 
34 Culturas eXtremas 
qualquer congelamento identitário e que, ao contrário, expõe as mui-
tas caras-signos temporárias por meio das quais deseja constituir-se. 
É uma constituição individual. Uma constituição musical e visual-
mente interminável. 
Existem outras analogias singulares - chamamentos, tensões 
dialógicas - entre o modo juvenil de vestir-se e o de "vestir" o próprio 
quarto. Entre a decoração pública (uma roupa) e a particular (um 
pôster) estabelecem-se conexões e citaçôes. É uma forma pela qual o 
sujeito-jovem estabelece não apenas módulos de aceitação, mas tam-
bém de prodUÇãO do seu eu. O que aparentemente pode parecer um 
amontoado de códigos de massa sem significado, na verdade, torna-se 
um conjunto pleno de sentido para seu idealizador e portador, e para 
as relações com amigos/que. Assim, o eu se prolonga e se amplia ao 
longo desses códigos que são fixos na parede e móveis no corpo. 
Como foi visto, a distinção dicotômica orgânicolinorgânico se 
exaure nesses espaços intermináveis. Tanto a pele quanto as paredes 
são parte integrante e interna/externa do corpo. Ambas são pós-or-
gânicas. Por isso todas as coisas vestidas sobre a pele ou penduradas 
nas paredes - mas também se poderia dizer exatamente o contrário: 
coisas grudadas na pele e vestidas nas paredes - contribuem para fazer 
parte de um novo sentido de identidade: uma identidade móvel, flui-
da, que incorporou os muitos fragmentos que - no espaço temporário 
de suas relações possíveis com o seu eu ou com o outro - se "veste" ou 
se "traveste" de acordo com as circunstâncias. Lá onde o olhar adulto 
só vê uniformidade, para os olhares intermináveis do jovem dilatam-
se diferenças vitais, pequenas minúcias apaixonantes, identidades 
micro lógicas. 
De acordo com uma impostaçâo, tão conhecida quanto datada, 
elaborada por Cristopher Lasch - de caráter psicossociológico gene-
ralista -, a chamada personalidade narcisista emergente em nossa so-
ciedade expressaria uma estrutura de caráter "que perdeu interesse 
pelo futuro", auspícios do crescimento zero da população, recusa da 
paternidade-maternidade. E então "o pensamento de nossa substitui-
Das contraçulturas às culturas intermináveis 35 
ção definitiva e de nossa morte torna-se absolutamente insustentável e 
produz tentativas de abolir a velhice e de prolongar a vida indefini-
damente". E conclui assim: "Quando os homens se descobrem incapa-
zes de experimentar algum interesse por aquilo que acontecerá no 
mundo após sua morte, desejam permanecer eternamente jovens e, 
pela mesma razão, não desejam mais reproduzir-se" 0981, p. 234). 
Reproduzir-se significa autodestruir-se. Porém, essa análise é decisiva-
mente voltada a um passado protestante-fundamentalista em cada sua 
passagem. A decadência do fascinio pelo futuro em favor do fluir no 
presente, aliás, nos presentes, reclama - ao invés da protelação cons-
tante em direção a um imaginário utópico - uma libertação aqui e 
agora. Isto é, aquela lenta "morte da utopia", já iniciada a partir do fi-
nal dos anos 1960, está definitivamente trespassada nas heterotopias. 
Ao mesmo tempo, os processos de remoção da morte - do mo-
mento mori - libertaram-se de Uma presença opressiva da morte (pen-
semos nos funerais públicos que atravessavam as ruas de minha juven-
tude): de uma excedência da morte que oprimiu e comprimiu toda e 
qualquer desordem vital, proclamou a sabedoria do luto, expressou a 
vitória da política cadavérica. Com freqÜência se confunde remoção 
com atenuação, ou libertação daquele excesso de morte emanado pe-
los símbolos do domínio que paralisavam qualquer diversão ou per-
versão. Ou seja, passar da remoção à coabitação não significa enfra-
quecer a filosofia, mas exatamente o oposto: desagregar aqueles 
caracteres mortuários presentes em tanto pensar a filosofia e a política 
da modernidade. Ter um bom relacionamento com a possível vizi-
nhança da morte - contra as remoções, mas ainda mais contra as 
apologias obscurantistas - não deve ressignificar a presença obsessiva 
da morte, mas, ao contrário, sua presença possível e descentralizada. 
Em lugar de um narcisismo generalizado e simplificador, que blo-
quearia a relação eu-outro (em termos mais do que pulsionais, genera-
listicamente psicoculturais), está se produzindo algo absolutamente 
inédito que não quer ser enjaulado nos aparatos conceituais do pas-
sado. É a percepção do ser e do sentir que mudou: aqui dentro o jo-
36 Culturas eXtremas 
vem, em vez de remover a morte, recusando os filhos e o envelheci-
mento, dissolve os enfaixados de idade nos quais estava envolvido no 
passado e ultrapassa fronteiras. Esse ultrapassar as fronteiras das coa-
ções do passado até tornar-se adulto - termo que geralmente significa 
normativizar-se, parar, repetir o mesmo até a aposentadoria, fixar-se 
ao trabalho imóvel, bloquear as polifonias da afetividade - permite 
alongar a fase mais móvel e criativa do sentir-se jovem: tornar-se um 
jovem interminável. Esse módulo, que se choca com os inúmeros códi-
gos incorporados pelos diversos segmentos juvenis, chega até aquelas 
que eram as faixas posteriores - misturando-as. É o biológico dica to-
mizado do cultural que entra em colapso. 
"Sou um rapaz de 30 anos, estudante da Faculdade de Engenharia 
Aeroespacial", escreve Marco, de Roma, à coluna "Questione di cuore" 
I Coisas do coração], que Natalia Aspesi assina no Venerdt de La 
Repubblica (30 out. 1998), extraordinário indicador de como as pes-
soas diferentes se autopercebem como jovens atemporais. Somente 
poucas décadas atrás, aos 30 anos nos considerávamos homens ma-
duros. Ou solteironas de idade avançada. 
"Sou um rapaz de 40 anos", escreve Giancarlo, de Turim, em feve-
reiro de 1993, sempre para Aspesi, com o título "Se ele é perfeito e ne-
nhuma o quer", "aparento menos da idade que tenho, trabalho como 
técnico, tenho um diploma em Psicologia, falo línguas, viajei pelo 
mundo, pratico diversos esportes, sei dançar, agrado. No entanto. 
O crescendo não tem mais limites. As distinções modernas entre as 
faixas etárias não funcionam mais. Os jovens são atemporais no sen-
tido de que ninguém pode sentir-se como excluído desse horizonte ge-
racional. Evidentemente há profundas e diversificadas pressões cultu-
rais e comunicacionais que empurram, ou melhor, auxiliam pessoas 
normaisa sentir-se ainda (para sempre?) dentro de uma condição que 
não é mais determinada - para utilizar exatamente uma palavra anglo-
saxõnica - pela teenage. 
Fim do trabalho fordista, estilos móveis de vida, tratamentos e 
modificações do corpo, cirurgias estéticas, práxis estáticas, quedas 
Das contracu!lUras às culturas intermináveis 37 
demográficas, desmoronamento das hegemonias, aumento da idade 
universitária (bolsas, aperfeiçoamentos, mestrados, doutorados), 
valores descentralizados, identidades múltiplas exigem indivíduos 
diferentes entre si a remodelar-se em continuidade, de acordo com 
aqueles padrões in progress com os quais as pessoas se definem jovens 
a cada vez. Mas é ainda adequado este termo - "indivíduo" _ para de-
signar o sentido heterogêneo e heterotópico do sujeito? 
- Entity. Quando se fala da força invasiva da comunicação, como 
fluxo que dissolve o conceito tradicional de sociedade e faz emergir 
outro ainda nebuloso e sprawl, um conceito-dimensão aglomerado, 
não se pode deixar de enfrentar o modo pelo qual a internet e as tecno-
logias visuais estão constituindo novos visores e novas visões per-
ceptivas e auto perceptivas. Inclusive a inovação terminológica é o 
indicador de mudanças profundas. No entanto, nas cartas ao Venerdl, 
ainda se utiliza uma linguagem que, embora seja estranho que um jo-
vem de 30 ou de 40 anos se defina "rapaz", continua o filão das distin-
ções clássicas do pensamento ocidental, enquanto a profunda alteração 
mutóide se define quando se pula (se dica) nas novas formas comuni-
cacionais tecnovisuais. 
E então no sprawI do ciberespaço é inútil ou indiferente definir-se 
ainda "jovem", "hornem", "estudante", "heterossexual", "noivo", "traí-
do" etc. (a "correspondência do coração"!). Ou seja, não significa 
mais nada, no sentido de que não comunica nada certo ou que possa 
ser compartilhado em parâmetros acenados. Inclusive aquele termo 
"indivíduo" - depois daquele mais filosoficamente nobre, "sujeito" _ 
foi arquivado. É obsoleto. 
"Todos nós somos obsoletos. 
Agora, "entity" -literalmente "entidade" - é o pós-conceito com o 
qual se torna quase impossível classificar, ao menos segundo os parâ-
metros duais ou sintéticos da modernidade, mas que, entretanto, ou 
melhor, justamente em virtude dessa impossibilidade ou inutilidade 
38 Culturas eXtremas 
de classificar, de tipologizar, de tipificar, produz e comunica sentido. 
Entidade fica além de qualquer definição possíveL não mais vade retro, 
mas vade ultra. Um ir além da compreensão como ato de circunscrever 
o conhecido, de traçar o círculo de uma ratio que defende e conjuga a 
extrema mutabilidade do empírico: compreender como "prender 
com" a fixidez de um conceito, para recompactar o heterogêneo em 
homogêneo c, assim, controlá-lo. 
Entidade está além de qualquer faixa etária possível, além do 
dualismo macho-fêmea, jovem-velho, público-privado, individual-co-
letivo, Estado-sociedade. Entidade dilui como potência do espectrovi-
sar as fixações binárias até dissolvê-las no ar, aliás, no espaço: no ci-
berespaço.10 Entidade é o além-orgânica-inorgânico. Desvinculado de 
qualquer resíduo místico-arcaico, agora enLidade se configura e con-
figura novas espacialidades pós-corporais que comunicam e, portanto, 
existem através de canais invasivos. Com entidade é totalmente inútil 
perguntar se aquilo que era um sujeito agora é um site, um grupo de 
amigos, a seçâo de um indivíduo, um coletivo estudantil, uma tribo 
metropolitana, uma multinacional glocal. Se entramos na entidade, 
ela/eles ri de quem continua utilizando distinções úteis no passado, 
mesmo que de um passado, diga-se de passagem, recente, do passado 
industrial; nâo há nada de natural no modo de ser, sentir-se, classificar-
10 "Specialized guest ofhonour: General GoH:John Shirley, Raymond Fedennan. An 
Annual Convergence of the Bleak & Absurd in Arts & Media. Cyberspace, the 
pixellated environment where the material we recontextualize into new forms of 
potential meaning is in many ways 'immaterial'. Whereas the use of junkyard 
detritus from the post-industrial ruins of everyday !ife has beco me almost 
commonplace in the garage-sale poetics of the contemporary art world [ ... I to 
create para-media construclS that assault the banal procluction values inherent in 
mainstream culture" (Acker, Web). ("Convidado de honra especializado: [ ... J. 
Uma Convergência Anual do Deserto & Absurdo nas Artes e Mídias. Ciberespaço, 
o ambiente pixelizado onde o material que recontextualizamos em novas formas 
de significado potencial é de vários modos 'imaterial'. Enquanto o uso de detritos 
do ferro-velho das ruínas pós-industriais do dia-a-dia tornou-se quase usual na 
poética da liquidação de garagem na arte contemporânea do mundo [ ... ] para 
criar construtos paramidiáticos que investem contra a produção banal de valores 
inerentes à cultura mainstream. ") 
Das contraculturas às culturas intermináveis 39 
se como "jovem". Quem entrou na entidade compreendeu que é so-
mente artificial, é uma autoconstruçâo relacional e híbrida. Contra os 
homologadores de signos (Baudrillard) ou os temerosos da velocida-
de (Virilio), as novas formas de autopercepção e de multicomunicação 
libertam das opressões modernistas embasadas na divisão do trabalho, 
sexo, idade, raça e ainda de espaço-tempo: em suma, do político. 11 
Entity entre visores e visões, sprawls conceituais, descompreen-
sões, pós-corpos. Vade ultra ... Não somente os jovens são interminá-
veis, deslocados, infinitos, desemoldurados. Não somente "eu", mas o 
eu tem mil caras e mil nomes. Mil idades. A citação inicial de William 
Burroughs nos insere numa alteração que não é somente da experiên-
cia e do sensível, do conceito e do político, mas num exílio do eu. A di-
ferença é que as multiperspectivas baseadas no interminável, infinito, 
deslocado, exilado, desemoldurado podem ser percebidas de muitas 
mane'iras: porém aqui são explicitamente reivindicadas como territó-
rios espaciais, metropolitanos, comunicacionais, do conflito e da ino-
vação, da experimentação e do desejo. São ex-saltados [exaltados]: 
entity, vade ultra ... 
11 Note-se que há bem outra espessura interminável neste anúnciolbiografia que 
encontrei num sile, no Forte Prenestino: "Nome e Sobrenome (Rome _) is 
known as Macchina, a digital entity who was bom inAvAnA Bbs (an activist radical 
Bulletin Board System of Rome), working as sysop (system operator) in ir and 
animating areas free from any kind of moderation: lhe 'Debate Cyberpunk' and 
'Nomadism' areas. The Bulletin Board Systems were the spaces of the mutation in 
aet ofhuman pereeption, through the connection of tools bodies and mind" (em 
<http://www.kyuzz.orglordanomade>). ("[ ... 1 é conhecido como Macchina, uma 
entidade digital que nasceu em AvAnA Bbs (um Bulletin Board System ativista 
radical de Roma), trabalhando nele como sysop (operador de sistema) e estimulando 
áreas livres de qualquer tipo de moderação: as áreas do 'Debate Ciberpunk' e do 
'Nomadismo'. Os Bulletin Board Systems eram os espaços de mutação no ato da 
percepção humana, por meio da conexão das ferramentas corpos e mentes. ") 
Auto-renomear-se Maccltina e definir-se uma digital entity significa que ela/ele/este/ 
eles está realmente ultra. 
Zona em trânsito 
Do KaoX 
Das ruínas de um bairro de Nápoles, ao calar das 
sombras, na antevéspera do melaverso solar, um 
grito de aço se levanta, evocando uma era que 
passou. Os cibernautas vão a galope, orgulhosos 
do milênio vencido. As catedrais do deserto in-
dustrial estão ocupadas durante uma noite por 
criaturas biodigitais e fenômenos psicoacús-
ticos. Nas primeiras luzes do alvorecer a luz in-
discreta revelará os semblantes desfigurados do 
presente futurável. 
[urlo deU'acciaieria 
Rave Parly, 19 dejulho de 1997 
ltalsider - Bagnoli (NA) 
Para um trânsito multinarrativo pelas interzonas das culturas 
juvenis, poder-se-iam assumir, como indicadores, duas letras: o K e o 
X. A letra K é um indicador das contraculturas juvenis de tipo antagô-
nico que se desenvolveram nos anos 1970. Nela, enfatizava-se alguma 
coisa lexicamente estranha ao patrimônio lingüístico nacional e, ao 
mesmo tempo, engrossava-se - sobre esse K - um conjunto de alusões 
autoritárias que tinham uma matriz americana. K como algo alheio, 
que vem de fora e que fixa esse fora num léxico anglo-saxônico. No K, 
portanto, concentravam-se cachos de significados que caracterizavam 
seu sujeito como alguém portador de domínio. Assim "Kultura" signi-
ficava que a cultura - como forma livre e expressiva do saber - havia 
se transformado em algo oposto: na transmissão de valores autoritá-
rios. Ou então "Kossiga" definia aquilo que se tornaria presidente da 
República, e que na época era ministro de assuntos internos, como 
uma pessoa que exercia um poder policial autoritário contra os movi-
mentos juvenis de oposição. Particularmente contra o movimento de 
1977. Nesse sentido, o K de Kissinger - secretário de Estado de Nixon 
OP&A editora 
42 Culturas eXtremas 
e até dos Kennedy - exercia uma poderosa atração semântica que de-
terminava seu significado na política dominante. 
Já nos anos 1980, a partir do movimento da Pantera, essa equipa-
ração "K = domínio" se perdeu. Grande foi minha surpresa quando as 
primeiras ocupações de escolas, centros sociais e até faculdades ins-
creveram em seu léxico um K duplo: tipo "okkupações" ou "Virgílio 
okkupado". De forma silenciosa - porém eloqüentíssima - assistia-se 
a um deslizamento de significados exemplificativos da transição para 
os anos 1990. O K perdia seu caráter de domínio autoritário e adquiria 
ou apenas herdava o sentido do poder: do poder à potência. Essa era a 
transição semântica. Então se produziu uma catástrofe simbólica tão 
lenta quanto estranha. 
Se no passado a pura e nua letra K atestava, em nível simbólico, a 
vontade de reunificar o portador do K para um significado maior ins-
crito, como já foi dito, no horizonte semântico do domínio (K como 
significante do domínio), agora, ao contrário, o K se dessimboliza, 
produz-se uma sua ressemantização e ele se torna signo para algo 
alheio e poderoso. Quem veste o K é, por isso, alguém que é alheio, no 
sentido de que é estranho ao poder da sociedade, está fora das normas 
dos partidos, é outro em relação às instituições, pouco controlável e 
quase inexplicável; e, ao mesmo tempo, é também poderoso, não se 
deixa aquietar nem dominar, mas, ao contrário, sabe exercer seu poder 
conflitual, sabe praticar novos conflitos. Quem se inscreve no K é, 
portanto, o jovem que okkupa e preokkupa. 12 
Toda essa, apenas aparentemente inocente, mutação de sentido é 
um denso indicador para outras complexas mutações. Por exemplo, 
durante aquele movimento estudantil que usou seu nome, sempre no 
final dos anos 1980, também a pantera inclui um deslizamento de 
significado. Ela se dessimboliza, perde o poder afro ligado às Black 
12 Outros Kssignificativos são os de "cK" CCalvin Klein) e da "ShaKe". Para ambos não 
é por acaso que o K é maiúsculo: trata-se de um ideograma supradeterminado por 
um forte poder comunicativo. 
Zona em trânsito 43 
Panthers e coincide com uma pantera livre "verdadeira", que foge pela 
campanha romana. O fato de que tenham sido dois "ex-77", na época pu-
blicitários criativos que enviaram, via fax (era o primeiro viés antagônico 
desse meio), o logotipo da pantera a "A Sabedoria okkupada", intro-
duz uma outra inovação nas mudanças semi óticas e também socioló-
gicas. Importância crescente da comunicação (fax) e dos códigos 
(pantera) como ato político-comunicacional. Dois antagonistas do 
movimento de 1977, que se tornaram publicitários, remetem via fax 
um símbolo de 1968 (Black Panther), que se torna O logotipo de 1989 
(a Pantera). 
Para o X, ao revés, o processo é totalmente distinto. Ele não peflen-
ce em nada aos panoramas político-comunicacionais dos anos 1960-80. 
Nunca o X emergiu como algo significativo durante aqueles trinta anos, 
a não ser como sobrenome - escolhido voluntariamente e desconhecido 
- de Malcolm, para afirmar sua recusa diante de uma paternidade ligada 
a um sistema classificatório de cunho branco. Um parentesco assimi-
lador que marcha através do signo mais identitário possível, que é o 
nome. 
O X como concentrado de um significado supradeterminado co-
meça a emergir no movimento punk, com o grupo Generation X: do 
desconhecido à incógnita, mas sempre contra a geração dos pais. Para 
afirmar-se nos sites da internet (nas pegadas dos locais pornôs), Em 
muitos sites, especialmente de origem norte-americana, a letra aparece 
como código que indica possíveis infrações excessivas. Por outro lado, 
o X se associa ao extraterrestre, ao outro radical ou paranormal. Nave-
gando via internet - onde o léxico utilizado geralmente é do inglês-, 
o X se conjuga ao excesso, ao irregular, ao alheio, ao pornô. X como 
"versus", XXX como luzes vermelhas, XL como "extra large",13 como 
"X-file", Mas, sobretudo, o grande X como signo do exstasy, a nova 
substância empatógena que irrompe nas culturas juvenis, misturando-
se com a música techno e as raves. 
J3 5, M, L, XL é o tilulo de um livro já excessivo no formato, de Rem Koolhaas, 
arquire[O holandêS entre os mais experimentais e irregulares CPuglisi. 1997). 
44 Culturas eXtremas 
Além dessa carga semântica de "contra" e de "proibido", o X assu-
me outrOs concentrados de sentido: escrevendo x-s, por exemplo, um 
público avisado compreende que se encontra diante de algo excessivo 
(ex-cess). E a publicidade de um perfume utilizou só essas consoantes 
ambíguas para sugerir outras tantas ambíguas atmosferas perfumadas. 
Em suma, o X, pouco a pouco, tornou-se uma espécie de ideograma 
que, em virtude da fonética inglesa eX = ecs), acabou por incorporar o 
timbre sonoro do irregular. A medida "extra extra large" como inca-
paz de conter, a música hardcore como impossível de ouvir, as ima-
gens-grafite como insuportáveis, o pornô XXX como invisível. Muitas 
formas da comunicação juvenil de oposição assumem o X como có-
digo (lema) que explode os limites e fica contra os limites. E nisso se 
encontram - e não pela primeira vez - próximos, demasiado próxi-
mos, aos léxicos dos publicitários, seriais, websites. E o jogo lingüís-
tico se torna duro. Aliás, X-treme. li 
Concluindo, o trânsito do K ao X atesta (de maneira densa de estra-
tificações de significados) de que forma a oposição juvenil passou do 
conflito político-social, próprio dos anos 1968-77-89 (que assume o K 
como concentrado de poder ou de potência, para desmascarar ou rei-
vindicar, K como domínio do imperialismo ou como controle no pró-
prio território), aos conflitos não-políticos, comunicacionais, metro-
politanos, conferidos ao X, que incorpora atravessamentos corporais, 
espaciais, lingüísticos caracterizados pelo irregular, pelo incontível, 
pelo imaterial, pelo extra como além e como anomalia. O extremo 
como eXtremo procura ultrapassar esses códigos e esses sentidos. 
X não mais o inominável, a recusa explícita do nome, o homem 
sem nome (porque o que lhe foi imposto não somente não é o dele, 
mas é o nome do escravagista de seus antepassados) e sem origens: X é 
agora o interminável e, por isso, é eXtremo. E o eXtremo não se pode 
"compreender", não se movimenta na lógica férrea da ratio, não pode 
mais ser encerrado nos lugares fechados do conceito, da escritura ou 
14 "X é a letra do cruzamento, do board crossing, da interzona da membrana osmótica. 
X é múltiplo sem raízes, identidade sem identidade" (De Giovanni, 1999, p. 97). 
Zona em trânsito 4S 
da pesquisa pura. Tentar atravessar o eXtremo irá significar, de minha 
parte, aceitar o irregular, entrar no incontível, explicitar

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