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1983 , A EscritadeSi "Aesclitades1",Corpsécrit,nQ5:L'autoportrait,fevereirode1983,ps.3-23. A "séliedeestudos"dequeM.Foucaultfalatinhasido1n1cialmenteconcebida comoumaintroduçãopara Usodosprazeres,como título Cuidadodesi Comoestetítulofoiconservadoparaumanovadistlibuiçãodoselementosde Usodosprazeres,foientãoprogramadapelaÉd.du Seuilumaséliedeestu- dosmaisgeraissobreagovernamentalidade,comotítuloLegouvemementde soietdesautres. Estaspáginasfazempartedeumasériedeestudossobre "asartesdesi mesmo",ouseja,sobrea estéticadaexistência e o domíniodesi e dosoutrosna culturagreco-romana,nos doisprimeirosséculosdoimpério. A VitaAntoniídeAtanásioapresentaaanotaçãoescritadas açõese dospensamentoscomoumelementoindispensávelà vidaascética:"Eis umacoisaa serobservadaparanosasse- gurarmosde não pecar.Consideremose escrevamos,cada um,asaçõeseosmovimentosdenossaalma,comoparanos fazermutuamenteconhecê-los,eestejamoscertosdeque,por vergonhadesermosconhecidos,deixaremosdepecar,enada teremosde perversono coração.Pois quem,quandopeca, consenteemservistoe, quandopecou,não preferementir paraescondersua falta?Ninguémfornicariadiantedeteste- munhas.Da mesmaforma,escrevendonossospensamentos comose devêssemoscomunicá-losmutuamente,estaremos maisprotegidosdospensamentosimpuros,porvergonhade tê-losconhecidos.Queaescritasubstituao olhardoscompa- nheirosdeascese:enrubescendotantopor escreverquanto porsermosvistos,abstenhamo-nosdequalquermaupensa- 1983- AEsclitadeSi 145 I. mento.Disciplinando-nosdessamaneira,podemosforçaro corpoà submissãoefrustraras armadilhasdoinimigO."l A escritadesi mesmoapareceaquiclaramenteemsuare- laçãodecomplementaridadecoma anacorese:elaatenuaos perigosdasolidão;ofereceaquiloquesefezousepensouaum olharpossível;o fatodeseobrigara escreverdesempenhao papeldeumcompanheiro,suscitandoo respeitohumanoea vergonha;épossívelentãofazerumaprimeiraanalogia:oque os outrossãoparao ascetaemumacomunidade,o caderno denotasseráparaosolitário.Mas,simultaneamente,élevan- tadaumasegundaanalogia,queserefereàpráticadaascese comotrabalhonão somentesobreos atos,porémmaispre- cisamentesobre o pensamento:o constrangimentoque a presençade outroexercena ordemda conduta.a escritao exerceránaordemdosmovimentosinterioresdaalma;nesse sentido,elatemumpapelmuitopróximodaconfissãoaodire- tor espiritualsobrea qual Cassianodirá,na linha da espi- ritualidadeevagriana.* que ela deverevelar.semexceção. todosos movimentosda alma(omnescogitationes).Enfim.a escritadosmovimentosinterioresaparecetambém,segundo o textodeAtanásio,comoumaarmano combateespiritual: enquantoodemônioéumapotênciaqueenganaefazcomque osujeitoseenganesobresi mesmo(todaumagrandeparteda VitaAntoniiéconsagradaa essasastúcias).aescritaconstitui umaexperiênciaeumaespéciedepedradetoque:revelando osmovimentosdopensamento.eladissipaa sombrainterior ondesetecemastramasdoinimigo.Essetexto- umdosmais antigosquea literaturacristãnosdeixousobreotemadaes- critaespiritual-estálongedeesgotartodasassignificaçõese formasqueestaassumirámaistarde.Masépossíveldestacar algunsdosseusaspectosquepermitemanalisarretrospecti- vamentea funçãoda escritana culturafilosóficadesi pre- cisamenteantesdo cristianismo:sua estreitaligaçãocoma " I 1.(N.A.)SantoAtanásio,VitaAntonii(VieetconduitedenotreSaint-PereAntoi- ne. écriteet adresséeaux moineshabitanten pays étranger.par notre Saint-PereAthanase.évêqued'Ale.xandrieJ,trad.B. Lavaud,Palis, Éd. du Cerf,col."FoiViyante",nQ240,reedição1989,3~parte,§ 55:"Consellsspirt- tuelsdu solitalreà sesv1si~eurs",ps.69-70. -(N.T.)Evágno- santomártir. 146 MichelFoucault- DitoseEsclitos corporaçãodecompanheiros,seugraudeaplicaçãoaosmoVi- mentosdopensamento,seupapeldeprovadaverdade.Esses diversoselementosjá se encontramem Sêneca,Plutarco, MarcoAurélio,mas comvaloresextremamentediferentese segundoprocedimentostotalmentediversos. * Nenhumatécnica,nenhumahabilidadeprofissionalpode seradquiridasemexercício;nãosepodemaisaprenderaarte deViver,a technêtoubiou,semumaaskêsisquedevesercom- preendidacomoumtreinodesi porsi mesmo:esteeraumdos princípiostradicionaisaos quais, muito tempodepois,os pitagóricos,os socráticos,os cínicosderamtantaimportán- cia.Pareceque,entretodasasformastomadasporessetreino (e que comportavaabstinências,memorizações,examesde consciência,meditações,silêncioeescutadooutro),a escrita - ofatodeescreverparasi eparaoutro- tenhadesempenha- doumpapelconsiderávelpormuitotempo.Em todocaso,os textosdaépocaimperialqueserelacionamcomaspráticasde si constituemboapartedaescrita.É precisoler,diziaSêneca, mastambémescrever.2E Epícteto,quenoentantosódeuum ensinooral,insisteváriasvezessobreopapelda escritacomo exercíciopessoal:deve-se"meditar"(meletan),escrever(gra- phein),exercitar-se(gummazein);"quepossaa mortemeapa- nharpensando,escrevendo,lendo".3Ou ainda:"Mantenhaos pensamentosnoiteediaà disposição[prokheiron];coloque-os por escrito,façasua leitura;queelessejamo objetodetuas conversaçõescontigomesmo,comum outro[...]seteocorrer algumdessesacontecimentoschamadosindesejáveis,encon- trar;ísimediatamenteumalívionopensamentodequeaquilo nãoéinesperado.',4NessestextosdeEpícteto,a escritaapare- 2.Sêneca,LettresàLucilius(trad.H.Noblot),Pans,LesBellesLettres,"Collec- tiondesUruversitésdeFrance",1957,t. m, livroXI, carta84,§ 1,p. 121. 3.Epícteto,Entretíens(trad.J. Souilhé),Pans,LesBellesLettres,"Collection desUruversitésdeFrance",1963,1.m, livrom, capoV: À ceuxquiquittent l'écolepourraisonsdesanté,§ lI, p. 23. 4.Ibíd.,op.cit..livrom,capoXXIV:"Nãoéprecisoseemocionarcomoquenão dependedenós",§ 103,p. 109. 1983- A EsclitadeSi 147 .! ceregularmenteassociadaà"meditação",aoexercíciodopen- samentosobreelemesmoquereativao queelesabe,toma presentesumprincípio,umaregraouumexemplo,refleteso- breeles,assimila-os,e assimsepreparaparaencararo real. Mastambémsepercebequea escritaestáassociadaaoexer- cíciodepensamentodeduasmaneirasdiferentes.Umatoma a formadeumasérie"linear";vaidameditaçãoà atividadeda escritaedestaaogummazein,querdizer,aoadestramentona situaçãorealeà experiência:trabalhodepensamento,traba- lho pelaescrita,trabalhona realidade.A outraé circular:a meditaçãoprecedeas notas,quepermitema releitura,que, porsuavez,revigoraa meditação.Emtodocaso,sejaqualfor o ciclodeexercícioemqueelaocorre,a escritaconstituiuma etapaessencialnoprocessoparao qualtendetodaa askêsis: ou seja,a elaboraçãodosdiscursosrecebidosereconhecidos comoverdadeirosemprincípiosracionaisdeação.Comoele- mentodetreinamentodesi, a escritatem,parautilizaruma expressãoqueseencontraemPlutarco,umafunçãoetopoiéiti- ca:elaéa operadoradatransformaçãodaverdadeemêthos. Essaescritaetopoiéitica,tal comoapareceemdocumentos dosséculosI elI, pareceestarlocalizadanoexteriordasduas formasjá conhecidaseutilizadasparaoutrosfins:os hupom- nêmataea correspondência. Os hupomnêmata J I Os hupomnêmata.no sentidotécnico,podiamserlivrosde contabilidade,registrospúblicos,cadernetasindividuaisque serviamdelembrete.Suautilizaçãocomolivrodevida,guiade condutaparecetersetornadocomumatodoumpúblicoculto. Ali se anotavamcitações,fragmentosde obras,exemplose açõesqueforamtestemunhadasou cujanarrativahaviasido lida,reflexõesoupensamentosouvidosouquevieramàmente. Elesconstituíamumamemóriamaterialdascoisaslidas,ouvi- das ou pensadas;assim,eramoferecidoscomoum tesouro acumuladoparareleituraemeditaçãoposteriores.Formavam tambémumamatériaprimaparaa redaçãodetratadosmais sistemáticos,.nosquaiseramdadosos argumentose meios paralutarcontraumadeterminadafalta(comoacólera,ainve- ja, a tagarelice,a lisonja)ouparasuperaralgumacircunstàn- 148 MichelFoucault- DitoseEscrttos 1983- A EscrttadeSi 149 5.(NA) Plutarco.De tranquülitate.464Q.(DeZatranquülitéde l'âme.trad.J. DumortiereJ. Defradas.inOeuvresmorales.Parts.LesBellesLettres."Col- lectiondesUniversitésdeFrance".1975.1.VII. parte1,p. 98 (N.E.).) 6.(NA) Ibid..465G. Por maispessoaisquesejam,esseshupomnêmatanãode- vemnoentantoserentendidoscomodiários,oucomonarrati-vasdeexperiênciaespiritual(tentações,lutas,derrotasevitórias) que poderãoser encontradasposteriormentena literatura cristã.Elesnãoconstituemuma"narrativadesi mesmo";não têmcomoobjetivoesclarecerosarcanaconscientiae,cujacon- fissão- oralouescrita- temvalordepurificação.O movimen- toqueelesprocuramrealizaréoinversodaquele:trata-senão debuscaro indizível,nãoderevelaro oculto,nãodedizero não-dito,masdecaptar,pelocontrário,ojá dito;reuniroque sepódeouvirouler,eissocomumafinalidadequenadamais é quea constituiçãodesi. Os hupomnêmatadevemestartambémnovamenteinseri- dosnocontextodeumatensãomuitoevidentena época:em umaculturamuitofortementemarcadapelatradicionalidade, pelovalorreconhecidodojá dito,pelarecorrênciadodiscurso, pelaprática"dacitação"soba chancelada antigüidadee da autoridadesedesenvolviaumaéticamuitoexplicitamenteori- entadaparao cuidadodesi na direçãodeobjetivosdefinidos como:recolher-seem si, atingira si mesmo,viverconsigo mesmo,bastar-seasi mesmo,aproveitaregozardesimesmo. Taléoobjetivodoshupomnêmata:fazerdorecolhimentodo lo- gos fragmentárioe transmitidopeloensino,pelaescutaou pelaleituraum meioparao estabelecimentodeumarelação desi consigomesmotãoadequadaeperfeitaquantopossível. Paranóshánissoalgumacoisaparadoxal:comoseconfron- tar consigopor meioda ajuda de discursosimemoriaise recebidosdetodolado?Naverdade,sea redaçãodoshupom- nêmatapodeefetivamentecontribuirparaa formaçãode si atravésdesseslogoi dispersosé principalmentepor três ra- zõesprincipais:os efeitosde limitaçãodevidosà junção da escritacoma leitura,a práticaregradadodisparatequede- terminaasescolhase a apropriaçãoqueelaefetua. 1)Sênecainsistenisto:a práticade si implicaa leitura, poisnãosepoderiaextrairtudodoseupróprioàmagonemse proverpor si mesmode princípiosracionaisindispensáveis paraseconduzir:guiaou exemplo,a ajudadosoutrosé ne- cessária.Masnãoéprecisodissociarleituraeescrita;deve-se "recorreralternadamente"a essasduasocupações,e "mode- rar uma por intermédioda outra".Se escrevermuitoesgota (Sênecapensaaquinotrabalhodoestilo),oexcessodeleitura cia difícil (um luto, um exílio,a ruína, a desgraça).Assim, quandoFundanuspedeconselhosparalutar contraasagita- çõesdaalma,Plutarco,naquelemomento,quasenãotemtem- podecomporumtratadoemboaedevidaforma;elevaientão lheenviartoscamenteoshupomnêmata,queelehaviaredigido sobresi mesmoarespeitodotemadatranqüilidadedaalma:é pelomenosassimqueeleapresentaotextodoPerieuthumias.5 Falsamodéstia?Era estasemdúvidaumamaneiradejustifi- carocaráterumtantodescosidodotexto;mastambémépreci- soverneleumaindicaçãodoqueeramaquelascadernetasde anotações- assimcomodo usoa fàzerdoprópriotratadoque conservavaumpoucodasuaformaoriginal. Não se deveriaconsideraresseshupomnêmatacomoum simplessuportedememória,quesepoderiaconsultardetem- posemtempos,casoseapresentasseumaocasião.Elesnão sedestinama substituiraseventuaisfalhasdememória.Cons- tituemdepreferênciaummaterialeumenquadreparaexercÍ- ciosa seremfreqüentementeexecutados:ler, reler,meditar, conversarconsigomesmoecomoutrosetc.E issoparatê-Ios, deacordocomuma expressãoquefreqüentementeretorna, prokheiron,ad manum,inpromptu."Àmão",porém,nãosim- plesmenteno sentidodequepoderiamserchamadosà cons- ciência,masnosentidodequedevempoderserutilizados,tão logosejanecessário,naação.Trata-sedeconstituirum logos bioêthikos,um equipamentodediscursosauxiliares,capazes - comodizPlutarco- delevantarelesmeSlllosavozedefazer calaras paixõescomoumdonoque,comumapalavra,acal- maorosnardoscães.6E, porisso,éprecisoqueelesnãoeste- jam simplesmentecolocadosemumaespéciedearmáriode lembranças,masprofundamenteimplantadosna alma,"nela arquivados",dizSêneca,equeassimfaçampartedenósmes- mos:emsuma,quea almaosfaçanãosomenteseus,massi mesmo.A escritadoshupomnêmataéumreléimportantenes- sasubjetivaçãododiscurso. 150 Mich~1Foucault- DitoseEscritos 1983- A EscritadeSi 151 dispersa:"Abundânciadelivros.conflitosdamente."?Quan- ,do sepassaincessantementedelivroa livro.semjamaisse deter.semretomardetemposemtemposà colméiacomsua provisãodenéctar.semconseqüentementetomarnotas.nem organizarparasi mesmo.porescrito.um tesourodeleitura. arrisca-sea nãoreternada.a sedispersarempensamentos diversos.ea seesquecerdesi mesmo.A escrita.comomanei- ra derecolhera leiturafeitae deserecoll).ernela,éum exer- cício racional que se opõeao grandedefeitoda stultitia. possivelmentefavorecidapelaleiturainterminável.A stultitia sedefinepelaagitaçãodamente.pelainstabilidadedaaten- ção,pelamudançade opiniõese vontades.e conseqüente- mentepelafragilidadediantedetodososacontecimentosque podemseproduzir;caracteriza-setambémpelofatodedirigir a menteparaofuturo.tomando-aávidadenovidadeseimpe- dindo-adedara simesmoumpontofixonapossedeumaver- dadeadquirida.8A escritadoshupomnêmataseopõea essa dispersãofixandoos elementosadquiridose constituindode qualquerformacomeles"opassado",emdireçãoao qualé semprepossívelretomare se afastar.Essa práticadeveser encadeadaa um temamuitocomumna época;dequalquer maneira,eleé comumà moraldosestóicose à dosepicuris- tas:arecusadeumaatitudedepensamentovoltadaparaofu- turo (que.devidoà sua incerteza,suscitaa inquietudee a agitaçãoda alma)e o valorpositivoatribuídoà possedeum passado.doqualsepodegozarsoberanamentee sempertur- bação.A contribuiçãodoshupomnêmataéumdosmeiospelos quaisa almaé afastadada preocupaçãocomo futuro.para desviá-Iana direçãodareflexãosobreo passado. 2)Entretanto.seelapermiteseoporà dispersãodastulti- tia,aescritadoshupomnêmatatambémé(edevepermanecer) umapráticaregradaevoluntáriadodisparate.Ela éumaes- colhadeelementosheterogêneos.Nissoelaseopõeaotraba- lho do gramáticoque procuraconheceruma obra em sua totalidadeoutodasasobrasdeumautor;elatambémseopõe aoensinodosfilósofosdeprofissãOquereivindicamaunidade doutrinaldeumaescola."Poucoimporta".dizEpícteto."que se tenhalido ou nãotodoZenãoou Crisipo;poucoimporta quesetenhaapreendidoexatamenteaquiloqueelesquiseram dizer.equesesejacapazdereconstituiroconjuntodesuaar- gumentação".9A cadernetade notas é dominadapor dois princípios.quepoderia,mserchamadosde"averdadelocalda sentença"e"seuvalorcircunstancialdeuso".Sênecaescolhe o queeleanotaparasi mesmoe paraseuscorrespondentes emumdosfilósofosdesuaprópriaseita.mastambémemDe- mócritoouEpicuro.10Oessencialéqueelepossaconsiderara fraseretidacomoumasentençaverdadeiranoqueelaafirma. adequadanoqueprescreve.útil deacordocomascircunstân- ciasemquenosencontramos.A escritacomoexercíciopes- soalfeitopor si e parasi é umaartedaverdadedíspar;ou. maisprecisamente.umamaneiraracionaldecombinara au- toridadetradicionalda coisajá ditacoma singularidadeda verdadequenelaseafirmae a particularidadedascircuns- tânciasquedeterminamseuuso."Leiaentãosempre".dizSê- necaaLucilius."autoresdeumaautoridadereconhecida;ese o desejote levaa avançaremoutros.retomarápidoaospri- meiros.Assegura-tecotidianamenteumadefesacontraa po- breza.contraa morte.semesquecernossosoutrosflagelos. Detudoo quetiverespercorrido.extraiumpensamentopara digerirbemessedia.É tambémoquefaço.Entreváriostextos queacabodeler.façodeum delesa minhaescolha.Eis meu ganhodehoje;é emEpicuro queo encontrei.pois também gostodeinvadiroterrenoalheio.Comotrânsfuga?Não;como explorador[tanquamexplorator]".11 3)Essedisparatepropositalnãoexcluia unificação.Mas estanãoserealizanaartedecomporumconjunto;eladevese estabelecernoprópriocopistacomooresultadodoshupomnê- mata.de sua constituição(e.portanto.no própriogestode escrever).desuaconsulta(e.portanto.nasua leituraerelei- tura).Doisprocessospodemserdistinguidos.Trata-se.porum 7.(N.A.)Sêneca.LettresàLucilius.op.cit..1945.t.I, livroI. carta2.§3.p.6. 8.(N.A.)Ibid.,op.cit..1947.t. 11.livroV. carta52.§§ 1-2.ps. 41-42. 9. (N.A.)Epícteto,Entretiens,op.cit.. 1943,t. lI. livro I, capoXVII: "DeIa néces- sité de Ia logique".§§ 11-14,p. 65. 10.(N.A.)Sêneca,Lettresà Lucilius. op. cit.,t. I, livro I. cartas 2, § 5, p. 6; 3, § 6, p. 9; 4, § 10,p. 12;7, § 11.ps. 21-22;8. §§ 7-8, p. 24 etc. 11.(N.A.) Ibid.. carta 2, §§ 4-5. p. 6. 152 MichelFoucault- DitoseEscritos lado,-deunificaressesfragmentosheterogêneospelasuasub- jetivaçãonoexercíciodaescritapessoal.Sênecacomparaessa unificação,deacordocommetáforasmuitotradicionais,quer à coletadonéctarpelasabelhas,querà digestãodosalimen- tos, ou aindaà adiçãode algarismosformandouma soma: "Nãosoframosquandonadadaquiloqueentraemnósperma- neceintacto,pormedodequeelejamaissejaassimilado.Digi- ramos a matéria: caso contrário,el~ entrará em nossa memória,nãoemnossainteligência[inmemoriamnonin inge- niumJ.Unamo-noscordialmenteaospensamentosdooutroe saibamosfazê-Iosnossos,visandoa unificarcemelementos diversostal comoa adiçãofaz,denúmerosisolados,umnú- meroúnicO."12O papeldaescritaéconstituir,comtudooque a leituraconstituiu,um "corpo"(quicquidlectionecollectum est,stUusredigatincorpus).E éprecisocompreenderessecor- ponãocomoumcorpodedoutrina,massim- segundoame- táforada digestão,tão freqüentementeevocada- comoo própriocorpodaqueleque,transcrevendosuasleituras,delas seapropriouefezsuaaverdadedelas:a escritatransformaa coisavistaououvida"emforçaseemsangue"(invires,insan- guinem).Ela setomanopróprioescritorumprincípiodeação racional. Mas, inversamente,o copistacria suaprópriaidentidade atravésdessanovacoletadecoisasditas.Nessamesmacarta 84- queconstituiumaespéciedepequenotratadodasrela- çõesentreleituraeescrita- Sênecasedetémporuminstante noproblemaéticodasemelhança,dafidelidadeedaoriginali- dade.Nãosedeve,explica,elaboraro queseguardadeum autor,demaneiraqueestepossaserreconhecido;nãosetrata decriar,nasnotasquesetomaena maneiracomquesere- constituiporescritooqueseleu,umasériede"retratos"reco- nhecíveis,porém"mortos"(Sênecase refereaqui àquelas galeriasderetratosatravésdasquaisseatestavaseunasci- mento,sevalorizavaseustatuse semarcavasua identidade emrelaçãoaosoutros).É suaprópriaalmaqueéprecisocriar noqueseescreve;porém,assimcomoumhomemtrazemseu rostoa semelhançanaturalcomseusancestrais,tambémé 12.(NA) Ibid.,op.cit..t. m. livroXI. carta84.§§ 6-7.p. 123. 1983- A EscritadeSi 153 bomquesepossaperceberno queeleescrevea filiaçãodos pensamentosquesegravaramemsuaalma.Atravésdojogo dasleiturasescolhidasedaescritaassimiladora,deve-sepo- derformarumaidentidadeatravésdaqualselêtodaumage- nealogiaespiritual.Em um coro,há vozesagudas,gravese médias,timbresdehomensedemulheres:"Nenhumavozin- dividualpodenelesedistinguir;somenteo conjuntoseimpõe aoouvido[...].Gostariaquefosseassimcomnossaalma,que elativesseboaprovisãodeconhecimentos,preceitos,exem- plos retiradosde muitasépocas,mas convergindoemuma unidade." A correspondência ~ As cadernetasde notasque,nelas mesmas,constituem exercíciosdeescritapessoal,podemservirdematéria-prima paratextosquesãoenviadosa outros.Em troca,a missiva, textopordefiniçãodestinadoa outro,tambémpermiteoexer- cíciopessoal.É que,comolembraSêneca,aoseescrever,selê oqueseescreve,domesmomodoque,aodizeralgumacoisa, seouveo quesediz.13A cartaqueseenviaage,pormeiodo próprio gestoda escrita,sobreaqueleque a envia,assim como,pelaleituraereleitura,elaagesobreaquelequea rece- be.Nessaduplafunçãoa correspondênciaestábempróxima doshupomnêmata,e suaformamuitasvezesseassemelhaa eles.A literaturaepicuristaexemplificaisso.O textoconheci- docomo"lettreà Pythoc1es"começaacusandoo recebimento deuma cartaemqueo alunomanifestousua amizadepelo mestre,e se esforçoupara"lembrar-sedas argumentações" epicuristasquepermitiamatingira felicidade;o autordares- postadáseuaval:atentativanãoeramá;eeleexpededevolta um texto- resumido do Peri phuseôs de Epicuro - que deve servira Pythoc1esdematerialparasermemorizadoe desu- porte para sua meditação.14 . 13.(NA.)Ibid..§§ 9-10.p. 124. 14.LettreàPythocles(ttad.A.Emout).ÚlLucrêce.Dererumnatura.Commen- taireparAlfredEmoutetLéonRobÚl.Paris.LesBellesLettres."Collectionde Commentairesd'AuteursAnciens",1925.t. I. §§ 84-85.p. LXXXVII. 154 MlchelFoucault- Ditose Escritos As cartasde Sênecamostramuma atividadede direção exercidaporumhomemidosoejá aposentadosobreumoutro queaindaocupaimportantesfunçõespúblicas.Porém,nes- sascartas,SênecanãoselimitaaseinformarsobreLuciliuse seusprogressos;nãosecontentaemlhedarconselhoseco- mentarparaelealgunsgrandesprincípiosdeconduta.Atra- vés dessasliçõesescritas,Sênecacontinuaa se exercitar, devidoa doisprincípiosporelefreqüentementeinvocados:o dequeé necessárioadestrar-sedurantetodaa vida,e o de que semprese precisada ajudade outrona elaboraçãoda almasobresi mesma.O conselhoqueeledánacarta7consti- tui uma descriçãode suas própriasrelaçõescom Lucilius; nela,elecaracterizabemamaneirapelaqualocupaseuretiro como duplotrabalhoque realizasimultaneamenteemseu correspondenteeemsi mesmo:recolher-seemsi mesmotan- toquantopossível;ligar-seàquelesquesãocapazesdeterso- '~resi um efeitobenéfico;abrir suaportaàquelesquetêma e~perançadese tornaremmelhores;são"oficiosrecíprocos. Quemensinaseinstrui".15 A cartaqueé enviadapara ajudarseu correspondente- aconselhá-Io,exortá-Io,admoestá-Io,consolá-Io- constitui para aqueleque escreveuma espéciede treino:um pouco comoossoldadosemtemposdepazseexercitamno manejo dasarmas,osconselhosquesãodadosaosoutrosna urgên- cia desua situaçãosãouma formadepreparara si próprio paraumaeventualidadesemelhante.Assim,a carta99 a Lu- cilius:elaprópriaéa cópiadeoutramissiva'queSênecahavia enviadoa Marullus,cujo filho haviamorridohá algumtem- pO.16O textopertenceaogêneroda"condolência";ofereceao correspondenteasarmas"lógicas"paracombatero desgosto. A intervençãoétardia,poisMarullus,"atordoadopelogolpe", teveum momentode fraquezae se"afastoudesi mesmo";a cartatem,portanto,emrelaçãoa isso,umafunçãodeadmo- estação.Mas,paraLucilius,a quemelaétambémenviada,e paraSêneca,quea escreve,eladesempenhao papeldeum princípiodereativação:reativaçãodetodasasrazõesquepos- 15.(NA) Sêneca,op.cit, livro1,carta7,§ 8, p. 21. 16.Ibid.,op.cit.,1962,t. IV,livro XVI, carta99,ps. 125-134. 1983- A EscritadeSi 155 ~ sibilitamsuperaro luto, se convencerdequea mortenãoé umadesgraça(nema dosoutros,nema suaprópria).E, gra- çasaoqueéleituraparaum,escritaparaoutro,LuciliuseSê- necaterãoassimreforçadosuapreparaçãoparaocasodeque um acontecimentodessegênerovenhaa ocorrercomeles.A consolado,quedeveajudareequilibrarMarullus,éaomesmo tempoumapraemeditadoútil paraLuciliuseSêneca.A escri- taqueajudao destinatárioarmaaquelequeescreve- eeven- tualmenteterceirosquea leiam. Mas ocorretambémquea assistênciaespiritualprestada poraquelequeescreveaoseucorrespondentelhesejadevolvi- danaformade"retribuiçãodoconselho";à medidaqueaquele queé orientadoprogride,elese tornamaiscapazdedar por suavezconselhos,exortações,consolosàquelequetentouaju- dá-Io:a orientaçãonãopermanecepor muitotempoemum sentidoúnico;elaservedeenquadreparamudançasqueaaju- dama setornarmaisigualitária.A carta34já assinalaesse movimentoapartirdeumasituaçãoemqueSêneca,noentan- to,podiadizeraoseucorrespondente:"Eu tereivindico;tu és minhaobra";"euteexortei,inciteie,impacientecomqualquer demora,euteempurreisemdescanso.Fui fielaométodo,mas hojeexortoalguémqueprontamentejá partiuequeporsuavez meexorta".17E, nacartaseguinte,eleevocaa recompensada perfeitaamizade,emquecadaumdosdoisseráparaooutroo permanentesocorro,a inesgotávelajuda,queseráo temada carta109:"Ahabilidadedolutadorsemantématravésdoexer- cícioda luta;aquelequeacompanha,estimulaa execuçãodo músico.O sábiotemigualmentenecessidadedemantersuas virtudesalerta;assim,estimulandoa si mesmo,ele recebe tambémestimulodeumoutrosábio.,,18 Contudo,eapesardetodosessespontoscomuns,a corres- pondêncianãodeveserconsideradaumsimplesprolongamen- to da práticados hupomnêmata.Ela é algumacoisamaisdo queum adestramentodesi mesmopelaescrita,atravésdos conselhose advertênciasdadosao outro:'constituitambém umacertamaneiradesemanifestarparasi mesmoeparaos 17.(NA) Ibid.,op.cit.,1.1,livroIV,carta34,§ 2, p. 148. 18.(NA) Ibid.,op.cit.,t.IV, livroXVIll, carta109,§ 2, p. 190. 156 MichelFoucault- DitoseEscritos outros.A cartatornao escritor"presente"paraaquelea quem elea envia.E presentenãosimplesmentepelasinformações queelelhedásobresuavida,suasatividades,seussucessose fracassos,suasventurasedesventuras;presentecomumaes- péciedepresençaimediataequasefisica:"Tumeescrevescom freqüênciaetesougrato,poisassimtemostrasa mim[temihi ostendislpeloúnicomeiodequedispões.Cadavezquemeche- gatuacarta,eis-nosimediatamenteJuntos.Seficamosconten- tesportermososretratosdenossosamigosausentes[...1como umacartanosregozijamuitomais,umavezquetrazossinais vivosdoausente,a marcaautênticadesuapessoa.O traçode umamãoamiga,impressosobreaspáginas,asseguraoquehá demaisdocena presença:reencontrar.,,19 Escreveré,portanto,"semostrar",seexpor,fazeraparecer seuprópriorostopertodooutro.E issosignificaquea cartaé aomesmotempoum olharqueselançasobreo destinatário (pelamissivaqueelerecebe,sesenteolhado)eumamaneira deseoferecerao seuolharatravésdoquelheéditosobresi mesmo.A cartapreparadecertaformaumfacea face.Aliás, Demétrio,expondono Deelocutione20o quedevesero estilo epistolar,enfatizavaqueelepodiaserunicamenteum estilo "simples",livrena composição,despojadonaescolhadaspa- lavras,já quecadaumdevenelerevelarsuaalma.A reciproci- dadequea correspondênciaestabelecenãoésimplesmentea doconselhoe da ajuda;elaé a do olhare doexame.A carta que,comoexercício,trabalhaparaasubjetivaçãododiscurso verdadeiro,para sua assimilaçãoe elaboraçãocomo"bem próprio",constituitambém,eaomesmotempo,umaobjetiva- çãodaalma.É notávelqueSêneca,começandoumacartaem quedeveexpora Lucilius suavidacotidiana,lembraa máxi- mamoraldeque"devemospautarnossavidacomose todo mundoa olhasse",e oprincípiofilosóficodequenadadenós mesmospodeserocultadodedeus,queestáeternamentepre- senteemnossasalmas.21Pelamissiva,nos abrimosparao 19.(NA) Ibid..op.cit..t. I. livroIV. carta40.§ 1,p. 161. 20.(NA) DemétriodeFalero.Deelocutione.IV. §§ 223-225.(Del'élocution. trad.E. Durassier.Paris.FirminDidot.1875.ps.95-99(N.E.).) 21.(NA) Sêneca,ibid..op.cit..t. m. livroX. carta83.§ 1,p. 110. 1983- A EscritadeSi 157 ]1 olhar dos outrose alojamoso correspondenteno lugar do deusinterior.Ela é umamaneiradenosoferecermosa esse olhara respeitodo qualdevemosnos dizerqueeleestá,no momentoemquepensamos,mergulhandonofundodonosso coração(inpectusintimumintrospicere). O trabalhoqueacartaoperariodestinatário,masquetam- béméefetuadonaquelequeescrevepelaprópriacartaqueele envia,implicaportantouma "introspecção";mas é preciso compreendê-Iamenoscomoum deciframentode si por si do quecomoumaaberturaquesedá ao outrosobresi mesmo. Nãorestaa menordúvidadequeestamosdiantedeum fenõ- menoquepodeparecerum poucosurpreendente,masqueé carregadodesentidoparaaquelequequisesseescreverahistó- ria daculturadesi: osprimeirosdesenvolvimentoshistóricos dorelatodesinãodevemserbuscadosdoladodas"cadernetas pessoais",doshupomnêmata,cujopapeléodepermitiracons- tituiçãodesi a partirdacoletadodiscursodosoutros;podem- seemcontrapartidaencontrá-Iosdo ladodacorrespondência comoutremedatrocadeassistênciaespiritual.É fatoque,nas correspondênciasde SênecacomLucilius, deMarcoAurélio comFrontone emcertascartasdePlínio,é possívelvero de- senvolvimentodeumanarrativadesi muitodiferentedoque erapossívelencontraremgeralnascartasdeCíceroa seusfa- miliares:nestas,tratava-seda narrativade si própriocomo temadeação(oudedeliberaçãoparaumaaçãopossível)rela- cionadaa amigose inimigos.a acontecimentosfelizese infeli- zes.Em Sênecaou emMarcoAurélio,às vezestambémem Plínio,anarrativadesiéanarrativadarelaçãoconsigomesmo, enelaépossíveldestacarclaramentedoiselementos,doispon- tosestratégicosquevãosetornarmaistardeobjetosprivilegia- dosdoquesepoderiachamara escritadarelaçãoconsigo:as interferênciasdaalmaedocorpo(asimpressõesmaisdoque asações)easatividadesdolazer(maisdoqueosacontecimen- tosexteriores);o corpoeosdias. 1)As noticiassobrea saúdetradicionalmentefazemparte dacorrespondência.Maselasassumempoucoa poucoa am- plitudedeumadescriçãodetalhadadassensaçõescorporais, das impressõesdemal-estar,dasdiversasperturbaçõesque puderamsersentidas.Àsvezes,procura-seunicamenteintro- ." 158 MlchelFoucault- DitoseEscritos duzirconselhosdedietaconsideradosúteisparao seucorres- pondente.22Às vezes,trata-setambémdelembraros efeitos docorponaalma,a açãodestanocorpo,oua curadoprimei- ro peloscuidadosdispensadosà segunda.Assim,a longae importantecarta78 a Lucilius:elaé dedicadaemsuamaior parteaoproblemado"bomuso"dasdoençasedosofrimento; mascomeçacoma lembrançadeumagraveenfermidadede juventudesofridaporSêneca,quef°t:aacompanhadadeuma crisemoral.Sênecaconta,arespeito'do"catarro",dos"peque- nosacessosdefebre"dequeLuciliussequeixa,queeletam- bém os experimentou,muitos anos antes:"No início não estavapreocupadocomeles;minhajuventudetinhaaindaa forçaderesistiràscrisesederesistirbravamenteàsdiversas formasdomal.Maistardechegueiaopontoemquetodami- nha pessoasefundiaemcatarroe emquemevi reduzidoa umaextremamagreza.Tomeiinúmerasvezesa bruscareso- luçãodeacabarcoma existência,masumaconsideraçãome deteve:a idadeavançadademeupai."O quelheproporcionou a curaforamosremédiosdaalma;entreelesosmaisimpor- tantesforam"osamigos,queoencorajavam,ovigiavam,con- versavamcomele,e assimlhe traziamalívio".23Há também casosemqueascartasreproduzemomovimentoquelevoude umaimpressãosubjetivaaumexercíciodepensamento.Tes- temunhaopasseio-meditaçãocontadoporSêneca:"Paramim eraindispensávelagitaro organismo,casoa bílis sealojasse emminhagarganta,parafazê-Iadescer,caso,por qualquer motivo,o ar estivessemuitodenso[emmepspulmões],para queelefosserarefeitoporumsacolejocomo qualeumesen- tissemelhor.Por essemotivoprolongueiuma saídapara a quala própriapraiameconvidava:entreCumese a casade ServiliusVatiaelaseestreitou,eomardeumlado,eo lagodo outro,a afunilaramcomoumaestreitacalçada.Umatempes- taderecentehaviaendurecidoa areia[...].Entretanto,como dehábito,eumepuseraaolharemtomoprocurandoalguma 22.(NA) Plínio,oJovem,Lettres,livrom.carta1.(Trad.A.-M.Guillem1n,Pa- ris, LesBellesLettres,"CollectiondesUniversltésdeFrance",1927,1.I. ps. 97-100(N.E.).) 23.(NA) Sêneca,LettresàLucilius,op.cit.,t.m, livroIX,carta78,§§ 1-4,ps. 71-72. 1983- A EscritadeSI 159 coisadaqualpudessetirarproveito,emeusolhossedirigiram paraacasaqueforaoutroraadeVatia":eSênecacontaaLuci- lius o queconstituisuameditaçãosobreo retiro,a solidãoea amizade.24 2)A cartaé tambémumamaneiradeseapresentara seu correspondenteno desenrolarda vida cotidiana.Narrar o seu dia - não absolutamentepor causada importànciados acontecimentosqueteriampodidomarcá-Io,masjustamente quandoelenão é senãosemelhantea todosos outros,de- monstrandoassimnãoaimportànciadeumaatividade,masa qualidadedeummododeser- fazpartedapráticaepistolar: Luciliusachanaturalpedira Sênecapara"lheprestarcontas, decadaumdosmeusdias,ehoraporhora".E Sênecaaceita' essaobrigaçãodeboavontade,vistoqueelaoestimulaaviver sobo olhardo outrosemnadater a esconder."Fareientão comomepedes:a natureza,a ordemdeminhasocupações, tudoissotecomunicareideboavontade.Eu meexaminareia cadainstantee,seguindoumapráticadasmaissalutares,fa- reia revisãodomeudia."Defato,Sênecaevocaprecisamente aqueledia queacabadepassar,e queé ao mesmotempoo maiscomumdetodos.Seuvalorestájustamenteemquenada aconteceraquetivessepodidodesviá-Iodaúnicacoisaimpor- tanteparaele:ocupar-sedesimesmo:"Estediaéinteiramen- temeu;ninguémmetirounadadele."Umpoucodeexercício físico,umacaminhadacomum pequenoescravo,um banho emumaáguaquasemorna,umasimplescolaçãodepão,uma sestamuitorápida.Masoessencialdodia- eéoqueocupao maislongotrechodacarta- foidedicadoà meditaçãodeum temasugeridoporumsilogismosofísticodeZenãoapropósito daembriaguez.25 Quandoa missivasetornao relatodeum dia comum,de um dia parasi, vê-sequeelaseaproximadeumapráticaà qualSêneca,aliás,fazdiscretamentealusãonoiníciodacarta 83; eleevocaali o hábitotãoútilde"fazera revisãodo seu I 24.(NA) Ibid.,op,'cit.,t. 11,livroVI, carta55,§§ 2-3,ps.56-57;outambéma carta57,§§ 2-3,p. 67. 25.(NA) Ibid.,op.cit.,t. m, livroX, carta83,§§ 2-3,ps. 110-111. 160 MíchelFoucault- Ditose Escritos dia":é o examedeconsciênciacuja fonnaelehaviadesCrito emumapassagemdoDeira.26Essaprática- familiaremdife- rentescorrentesfilosóficas:pitagórica,epicurista,estóica- parecetersidosobretudoumexercíciomentalligadoàmemo- rização:tratava-sesimultaneamentedeseconstituirem"ins- petordesi mesmo"eentãoavaliarasfaltascomuns,ereativar asregrasdecomportamentoqueéprecisotersemprepresen- tesnoespírito.Nadaindicaqueessa"revisãododia"tenhato- madoa fonnadeum textoescrito.Parecequefoina relação epistolar- e conseqüentementeparacolocara si mesmosob osolhosdooutro- queo examedeconsciênciafoifonnulado comoumrelatoescritodesi mesmo:relatodabanalidadecoti- diana,das açõescorretasou não, da dietaobservada,dos exercíciosfísicos ou mentaisque forampraticados.Dessa conjunçãodapráticaepistolarcomoexamedesi,encontra-se umexemplonotávelemumacartadeMarcoAurélioaFroton. Ela foi escritaduranteuma dessasestadasno campoque erammuitorecomendadascomomomentosdedesligamento dasatividadespúblicas,comotratamentosdesaúdee como ocasiõesdeseocuparconsigomesmo.Encontram-seunidos nessetextoosdoistemasdavidacampestre,saudávelporque natural,edavidaociosadedicadaàconversa,à leituraeàme- ditação.Aomesmotempo,todoumconjuntodeanotaçõessu- tis sobreo corpo,a saúde,as sensaçõesfísicas,a dieta,os sentimentosmostrama extremavigilãnciade uma atenção queestáintensamentefocalizadaemsi mesmo."Nósnossen- timosbem.Eu poucodormiporcausadeumpequenotremor que,noentanto,pareceterseacalmado.Passeiotempo,des- deasprimeirashorasdanoiteatéa terceiradodia,partelen- do a Agriculturade Caton,parteescrevendofelizmente,na verdade,menosdoqueontem.Depois,apóstersaudadomeu pai,sorviáguacommelatéa goela;ecuspindo-a,adoceimi- nha garganta,emboraeunãotenha'gargarejado';poisposso empregaressapalavra,usadaporNoviuseporoutros.Minha 26.Sêneca.Deira (DeIa colere.trad.A. Bourgery.carta36.§§ 1-2.in IJiala- gues,Paris.LesBellesLettres."CollectiondesUniversitésdeFrance".1922.t. I. ps. 102-103). - 1983- A EscritadeSi 161 gargantarestabelecida,fui parapertodemeupai e assistià suaoferenda.A seguir,fomosalmoçar.O quepensasquejan- tei?Um poucodepão,enquantoeuviaos outrosdevorarem ostras,cebolasesardinhasbemgordas.Depois,começamosa amassaras uvas;suamose gritamosbastante[...].Na sexta hora,voltamosparacasa.Estudeium pouco,semresultado; aseguirconverseiumpoucocomminhamãezinhaqueestava sentadano leito[...].Enquantoconversávamosassim,e dis- putávamosqual dos dois amariamais o outro [...],o disco sooue anunciaramquemeupai entraranobanho.Ceamos então,apóstennosnosbanhadono lagar;nãotomandoba- nhono lagar,masapóstennosnosbanhado,ceamoseouvi- mos comprazeras alegresconversasdos camponeses.De voltaparacasa,antesdemevirardeladoparadormir,execu- tominhatarefa[meumpensumexplico];prestocontadomeu diaaomeudulcíssimomestre[dieirationemmeosuavissimo magistroreddo]a quemeu gostaria- mesmoquetivessede perdersua influência- dedesejaraindamais...,,27 As últimaslinhasdacartamostrambemcomoelasearti- culacoma práticado examede consciência:o dia termina, logoantesdosono,comumaespéciedeleituradodiadecorri- do;desenrola-seaíempensamentooroloemqueestãoinscri- tasasatividadesdodia,eé estelivroimagináriodamemória queéreproduzidonodiaseguintenacartadirigidaàqueleque éaomesmotempoo mestree o amigo.A cartaa Frontonre- produzdequalquerfonnaoexamerealizadoànoitenavéspe- ra pelaleituradolivromentaldaconsciência. É claroqueseestáaindamuitolongedolivrodocombate espiritualaoqualAtanásio,naVidadeAntônio,fazalusãouns dois séculosmais tarde.Mas tambémé possívelavaliaro quantoaquelamaneiradoprocedimentodorelatodesi noco- tidianodavida,comumameticulosaatençãoaoquesepassa nocorpoenaalma,édiferentetantodacorrespondênciacice- ronianaquantoda práticados hupomnêmata,coletãneade coisaslidaseouvidasesuportedosexercíciosdepensamento. 27.(NA.)MarcoAurélio.Lettres.livroIV. carta6. (Trad.A. Cassan.Paris.A. Levavasseur.1830.ps.249-251(N.E.).) -- 162 MichelFoucault- DitoseEsclitos Nessecaso - o dos hupomnêmata-, tratava-sede constituir a si mesmocomoobjetodeaçãoracional pela apropriação,uni- ficaçãoe subjetivaçãode um já dito fragmentárioe escolhido; no caso da anotação monástica das experiênciasespirituais, tratar-se-á de desalojar do interior da alma os movimentos mais escondidosdeformaa poderdelesselibertar. Nocasodo relatoepistolardesi mesmo,trata-sedefazercoincidir oolhar do outro e aquele que se lança sobre si mesmo ao comparar suas açõescotidianas com as regrasde uma técnica de vida. --- .~..~..~.~.~.~.~P.J..~..o...~.&.~..~..~..~..~..~...o...~Y . JFoucault . U Ética,Sexualidade, . 4Política ~ .9- ~ j)7./1~1/- r:;1- ~ '1 Organizaçãoe seleçãodetextos:' ManoelBarrosdaMotta Tradução: ElisaMonteiro InêsAutranDouradoBarbosa Ditsetécrits EdiçãofrancesapreparadasobadireçãodeDanielDeferte FrançoisEwaldcomacolaboraçãodeJacquesLagrange ~I FORENSE UNIVERSITÁRIA I' edição-2004 @ Édilions Gallirnard, /994 @ Pre.",esUniversilairesde Fral1ce.1984,Édiliol1sGallirnard. 1994e Livraria Marrins FomesEditora. 200/. parao textoFoucau/I Traduzido de: Dils el écrils Ce/ ouvrage.publii dons le cadredu pragrammed'aide à Ia publica/ion. biniJicie du sou/ie.ndu Mini.,/ire Français desAffaires Errangires. de I'Ambassadede France ou Brisi/ erde Ia Maison de France de Rio de Janeiro. Este livro, publicadono âmbitodo programade panici~ à publicação,coutoucom o apoiodo MiniStério FraucésdasRelaçõesExteriores,da Embaixadada França no Brasil e da Maison de Francedo Rio de Janeiro. , Ouvragepublii avecI'aide du Mini."ire Français Chargi de Ia Cul/ure -Cen/reNarional du Livre. ObrapublicadacomaajudadoMinistérioFraucésdaCultura- CentroNacionaldoLivro. Foto da capa:Jacques Roben CIP-BrasiL Catalogação-na-fonte Sindicato Nacionaldos Editoresde Livros, RJ. F1!6e Foucault, Michel, 1926-1984 Ética, sexualidade,política I Michel Foucault; organizaçãoe seleçãode textosManoel Barrosda Moua; traduçãoElisa Monteiro, lnés Autran Dourado Barbosa.- Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 2004. (Ditos eescritos;V) Traduçãode:Dits etécrits ISBN 85-218-0324-7 I. Ética. 2. Sexo. 3. Ciência política. 4. Filosofia francesa- Século XX. I. Título. 11.Série. 03-2557. COD 194 CDU 1(44) """"da a rqrodução Io<a1ou parcial. de qualqua- fmoa ou p<rqualqua- meio e1etrâ1icoou mecânico, sem permiss'o .'fUS.a do Edito!' (Lei n' 9.610. de 19.02.98). Reservadososdireitosdepropriedadedestaediçãopela: EDITORA FORENSE UNIVERSITÁRIA LIDA. Rio deJa1leiro: Rua do Rosário,100- 20041-002- Telefax:(21) 2509-3148/2509-7395 São Paulo: Largo de São Francisco. 20 - 01005-010- Telefax:(11)3104-2005/3107-0842 e-mail:editora@forenseuniversitaria.com.br http://wwwJorenseuniversitaria.com.br Impressono Brasil Prillted ill Brazil
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