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4_FOUCAULT_A_escrita_de_si

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1983
,
A EscritadeSi
"Aesclitades1",Corpsécrit,nQ5:L'autoportrait,fevereirode1983,ps.3-23.
A "séliedeestudos"dequeM.Foucaultfalatinhasido1n1cialmenteconcebida
comoumaintroduçãopara Usodosprazeres,como título Cuidadodesi
Comoestetítulofoiconservadoparaumanovadistlibuiçãodoselementosde
Usodosprazeres,foientãoprogramadapelaÉd.du Seuilumaséliedeestu-
dosmaisgeraissobreagovernamentalidade,comotítuloLegouvemementde
soietdesautres.
Estaspáginasfazempartedeumasériedeestudossobre
"asartesdesi mesmo",ouseja,sobrea estéticadaexistência
e o domíniodesi e dosoutrosna culturagreco-romana,nos
doisprimeirosséculosdoimpério.
A VitaAntoniídeAtanásioapresentaaanotaçãoescritadas
açõese dospensamentoscomoumelementoindispensávelà
vidaascética:"Eis umacoisaa serobservadaparanosasse-
gurarmosde não pecar.Consideremose escrevamos,cada
um,asaçõeseosmovimentosdenossaalma,comoparanos
fazermutuamenteconhecê-los,eestejamoscertosdeque,por
vergonhadesermosconhecidos,deixaremosdepecar,enada
teremosde perversono coração.Pois quem,quandopeca,
consenteemservistoe, quandopecou,não preferementir
paraescondersua falta?Ninguémfornicariadiantedeteste-
munhas.Da mesmaforma,escrevendonossospensamentos
comose devêssemoscomunicá-losmutuamente,estaremos
maisprotegidosdospensamentosimpuros,porvergonhade
tê-losconhecidos.Queaescritasubstituao olhardoscompa-
nheirosdeascese:enrubescendotantopor escreverquanto
porsermosvistos,abstenhamo-nosdequalquermaupensa-
1983- AEsclitadeSi 145
I.
mento.Disciplinando-nosdessamaneira,podemosforçaro
corpoà submissãoefrustraras armadilhasdoinimigO."l
A escritadesi mesmoapareceaquiclaramenteemsuare-
laçãodecomplementaridadecoma anacorese:elaatenuaos
perigosdasolidão;ofereceaquiloquesefezousepensouaum
olharpossível;o fatodeseobrigara escreverdesempenhao
papeldeumcompanheiro,suscitandoo respeitohumanoea
vergonha;épossívelentãofazerumaprimeiraanalogia:oque
os outrossãoparao ascetaemumacomunidade,o caderno
denotasseráparaosolitário.Mas,simultaneamente,élevan-
tadaumasegundaanalogia,queserefereàpráticadaascese
comotrabalhonão somentesobreos atos,porémmaispre-
cisamentesobre o pensamento:o constrangimentoque a
presençade outroexercena ordemda conduta.a escritao
exerceránaordemdosmovimentosinterioresdaalma;nesse
sentido,elatemumpapelmuitopróximodaconfissãoaodire-
tor espiritualsobrea qual Cassianodirá,na linha da espi-
ritualidadeevagriana.* que ela deverevelar.semexceção.
todosos movimentosda alma(omnescogitationes).Enfim.a
escritadosmovimentosinterioresaparecetambém,segundo
o textodeAtanásio,comoumaarmano combateespiritual:
enquantoodemônioéumapotênciaqueenganaefazcomque
osujeitoseenganesobresi mesmo(todaumagrandeparteda
VitaAntoniiéconsagradaa essasastúcias).aescritaconstitui
umaexperiênciaeumaespéciedepedradetoque:revelando
osmovimentosdopensamento.eladissipaa sombrainterior
ondesetecemastramasdoinimigo.Essetexto- umdosmais
antigosquea literaturacristãnosdeixousobreotemadaes-
critaespiritual-estálongedeesgotartodasassignificaçõese
formasqueestaassumirámaistarde.Masépossíveldestacar
algunsdosseusaspectosquepermitemanalisarretrospecti-
vamentea funçãoda escritana culturafilosóficadesi pre-
cisamenteantesdo cristianismo:sua estreitaligaçãocoma
"
I
1.(N.A.)SantoAtanásio,VitaAntonii(VieetconduitedenotreSaint-PereAntoi-
ne. écriteet adresséeaux moineshabitanten pays étranger.par notre
Saint-PereAthanase.évêqued'Ale.xandrieJ,trad.B. Lavaud,Palis, Éd. du
Cerf,col."FoiViyante",nQ240,reedição1989,3~parte,§ 55:"Consellsspirt-
tuelsdu solitalreà sesv1si~eurs",ps.69-70.
-(N.T.)Evágno- santomártir.
146 MichelFoucault- DitoseEsclitos
corporaçãodecompanheiros,seugraudeaplicaçãoaosmoVi-
mentosdopensamento,seupapeldeprovadaverdade.Esses
diversoselementosjá se encontramem Sêneca,Plutarco,
MarcoAurélio,mas comvaloresextremamentediferentese
segundoprocedimentostotalmentediversos.
*
Nenhumatécnica,nenhumahabilidadeprofissionalpode
seradquiridasemexercício;nãosepodemaisaprenderaarte
deViver,a technêtoubiou,semumaaskêsisquedevesercom-
preendidacomoumtreinodesi porsi mesmo:esteeraumdos
princípiostradicionaisaos quais, muito tempodepois,os
pitagóricos,os socráticos,os cínicosderamtantaimportán-
cia.Pareceque,entretodasasformastomadasporessetreino
(e que comportavaabstinências,memorizações,examesde
consciência,meditações,silêncioeescutadooutro),a escrita
- ofatodeescreverparasi eparaoutro- tenhadesempenha-
doumpapelconsiderávelpormuitotempo.Em todocaso,os
textosdaépocaimperialqueserelacionamcomaspráticasde
si constituemboapartedaescrita.É precisoler,diziaSêneca,
mastambémescrever.2E Epícteto,quenoentantosódeuum
ensinooral,insisteváriasvezessobreopapelda escritacomo
exercíciopessoal:deve-se"meditar"(meletan),escrever(gra-
phein),exercitar-se(gummazein);"quepossaa mortemeapa-
nharpensando,escrevendo,lendo".3Ou ainda:"Mantenhaos
pensamentosnoiteediaà disposição[prokheiron];coloque-os
por escrito,façasua leitura;queelessejamo objetodetuas
conversaçõescontigomesmo,comum outro[...]seteocorrer
algumdessesacontecimentoschamadosindesejáveis,encon-
trar;ísimediatamenteumalívionopensamentodequeaquilo
nãoéinesperado.',4NessestextosdeEpícteto,a escritaapare-
2.Sêneca,LettresàLucilius(trad.H.Noblot),Pans,LesBellesLettres,"Collec-
tiondesUruversitésdeFrance",1957,t. m, livroXI, carta84,§ 1,p. 121.
3.Epícteto,Entretíens(trad.J. Souilhé),Pans,LesBellesLettres,"Collection
desUruversitésdeFrance",1963,1.m, livrom, capoV: À ceuxquiquittent
l'écolepourraisonsdesanté,§ lI, p. 23.
4.Ibíd.,op.cit..livrom,capoXXIV:"Nãoéprecisoseemocionarcomoquenão
dependedenós",§ 103,p. 109.
1983- A EsclitadeSi 147
.!
ceregularmenteassociadaà"meditação",aoexercíciodopen-
samentosobreelemesmoquereativao queelesabe,toma
presentesumprincípio,umaregraouumexemplo,refleteso-
breeles,assimila-os,e assimsepreparaparaencararo real.
Mastambémsepercebequea escritaestáassociadaaoexer-
cíciodepensamentodeduasmaneirasdiferentes.Umatoma
a formadeumasérie"linear";vaidameditaçãoà atividadeda
escritaedestaaogummazein,querdizer,aoadestramentona
situaçãorealeà experiência:trabalhodepensamento,traba-
lho pelaescrita,trabalhona realidade.A outraé circular:a
meditaçãoprecedeas notas,quepermitema releitura,que,
porsuavez,revigoraa meditação.Emtodocaso,sejaqualfor
o ciclodeexercícioemqueelaocorre,a escritaconstituiuma
etapaessencialnoprocessoparao qualtendetodaa askêsis:
ou seja,a elaboraçãodosdiscursosrecebidosereconhecidos
comoverdadeirosemprincípiosracionaisdeação.Comoele-
mentodetreinamentodesi, a escritatem,parautilizaruma
expressãoqueseencontraemPlutarco,umafunçãoetopoiéiti-
ca:elaéa operadoradatransformaçãodaverdadeemêthos.
Essaescritaetopoiéitica,tal comoapareceemdocumentos
dosséculosI elI, pareceestarlocalizadanoexteriordasduas
formasjá conhecidaseutilizadasparaoutrosfins:os hupom-
nêmataea correspondência.
Os hupomnêmata
J
I
Os hupomnêmata.no sentidotécnico,podiamserlivrosde
contabilidade,registrospúblicos,cadernetasindividuaisque
serviamdelembrete.Suautilizaçãocomolivrodevida,guiade
condutaparecetersetornadocomumatodoumpúblicoculto.
Ali se anotavamcitações,fragmentosde obras,exemplose
açõesqueforamtestemunhadasou cujanarrativahaviasido
lida,reflexõesoupensamentosouvidosouquevieramàmente.
Elesconstituíamumamemóriamaterialdascoisaslidas,ouvi-
das ou pensadas;assim,eramoferecidoscomoum tesouro
acumuladoparareleituraemeditaçãoposteriores.Formavam
tambémumamatériaprimaparaa redaçãodetratadosmais
sistemáticos,.nosquaiseramdadosos argumentose meios
paralutarcontraumadeterminadafalta(comoacólera,ainve-
ja, a tagarelice,a lisonja)ouparasuperaralgumacircunstàn-
148 MichelFoucault- DitoseEscrttos 1983- A EscrttadeSi 149
5.(NA) Plutarco.De tranquülitate.464Q.(DeZatranquülitéde l'âme.trad.J.
DumortiereJ. Defradas.inOeuvresmorales.Parts.LesBellesLettres."Col-
lectiondesUniversitésdeFrance".1975.1.VII. parte1,p. 98 (N.E.).)
6.(NA) Ibid..465G.
Por maispessoaisquesejam,esseshupomnêmatanãode-
vemnoentantoserentendidoscomodiários,oucomonarrati-vasdeexperiênciaespiritual(tentações,lutas,derrotasevitórias)
que poderãoser encontradasposteriormentena literatura
cristã.Elesnãoconstituemuma"narrativadesi mesmo";não
têmcomoobjetivoesclarecerosarcanaconscientiae,cujacon-
fissão- oralouescrita- temvalordepurificação.O movimen-
toqueelesprocuramrealizaréoinversodaquele:trata-senão
debuscaro indizível,nãoderevelaro oculto,nãodedizero
não-dito,masdecaptar,pelocontrário,ojá dito;reuniroque
sepódeouvirouler,eissocomumafinalidadequenadamais
é quea constituiçãodesi.
Os hupomnêmatadevemestartambémnovamenteinseri-
dosnocontextodeumatensãomuitoevidentena época:em
umaculturamuitofortementemarcadapelatradicionalidade,
pelovalorreconhecidodojá dito,pelarecorrênciadodiscurso,
pelaprática"dacitação"soba chancelada antigüidadee da
autoridadesedesenvolviaumaéticamuitoexplicitamenteori-
entadaparao cuidadodesi na direçãodeobjetivosdefinidos
como:recolher-seem si, atingira si mesmo,viverconsigo
mesmo,bastar-seasi mesmo,aproveitaregozardesimesmo.
Taléoobjetivodoshupomnêmata:fazerdorecolhimentodo lo-
gos fragmentárioe transmitidopeloensino,pelaescutaou
pelaleituraum meioparao estabelecimentodeumarelação
desi consigomesmotãoadequadaeperfeitaquantopossível.
Paranóshánissoalgumacoisaparadoxal:comoseconfron-
tar consigopor meioda ajuda de discursosimemoriaise
recebidosdetodolado?Naverdade,sea redaçãodoshupom-
nêmatapodeefetivamentecontribuirparaa formaçãode si
atravésdesseslogoi dispersosé principalmentepor três ra-
zõesprincipais:os efeitosde limitaçãodevidosà junção da
escritacoma leitura,a práticaregradadodisparatequede-
terminaasescolhase a apropriaçãoqueelaefetua.
1)Sênecainsistenisto:a práticade si implicaa leitura,
poisnãosepoderiaextrairtudodoseupróprioàmagonemse
proverpor si mesmode princípiosracionaisindispensáveis
paraseconduzir:guiaou exemplo,a ajudadosoutrosé ne-
cessária.Masnãoéprecisodissociarleituraeescrita;deve-se
"recorreralternadamente"a essasduasocupações,e "mode-
rar uma por intermédioda outra".Se escrevermuitoesgota
(Sênecapensaaquinotrabalhodoestilo),oexcessodeleitura
cia difícil (um luto, um exílio,a ruína, a desgraça).Assim,
quandoFundanuspedeconselhosparalutar contraasagita-
çõesdaalma,Plutarco,naquelemomento,quasenãotemtem-
podecomporumtratadoemboaedevidaforma;elevaientão
lheenviartoscamenteoshupomnêmata,queelehaviaredigido
sobresi mesmoarespeitodotemadatranqüilidadedaalma:é
pelomenosassimqueeleapresentaotextodoPerieuthumias.5
Falsamodéstia?Era estasemdúvidaumamaneiradejustifi-
carocaráterumtantodescosidodotexto;mastambémépreci-
soverneleumaindicaçãodoqueeramaquelascadernetasde
anotações- assimcomodo usoa fàzerdoprópriotratadoque
conservavaumpoucodasuaformaoriginal.
Não se deveriaconsideraresseshupomnêmatacomoum
simplessuportedememória,quesepoderiaconsultardetem-
posemtempos,casoseapresentasseumaocasião.Elesnão
sedestinama substituiraseventuaisfalhasdememória.Cons-
tituemdepreferênciaummaterialeumenquadreparaexercÍ-
ciosa seremfreqüentementeexecutados:ler, reler,meditar,
conversarconsigomesmoecomoutrosetc.E issoparatê-Ios,
deacordocomuma expressãoquefreqüentementeretorna,
prokheiron,ad manum,inpromptu."Àmão",porém,nãosim-
plesmenteno sentidodequepoderiamserchamadosà cons-
ciência,masnosentidodequedevempoderserutilizados,tão
logosejanecessário,naação.Trata-sedeconstituirum logos
bioêthikos,um equipamentodediscursosauxiliares,capazes
- comodizPlutarco- delevantarelesmeSlllosavozedefazer
calaras paixõescomoumdonoque,comumapalavra,acal-
maorosnardoscães.6E, porisso,éprecisoqueelesnãoeste-
jam simplesmentecolocadosemumaespéciedearmáriode
lembranças,masprofundamenteimplantadosna alma,"nela
arquivados",dizSêneca,equeassimfaçampartedenósmes-
mos:emsuma,quea almaosfaçanãosomenteseus,massi
mesmo.A escritadoshupomnêmataéumreléimportantenes-
sasubjetivaçãododiscurso.
150 Mich~1Foucault- DitoseEscritos 1983- A EscritadeSi 151
dispersa:"Abundânciadelivros.conflitosdamente."?Quan-
,do sepassaincessantementedelivroa livro.semjamaisse
deter.semretomardetemposemtemposà colméiacomsua
provisãodenéctar.semconseqüentementetomarnotas.nem
organizarparasi mesmo.porescrito.um tesourodeleitura.
arrisca-sea nãoreternada.a sedispersarempensamentos
diversos.ea seesquecerdesi mesmo.A escrita.comomanei-
ra derecolhera leiturafeitae deserecoll).ernela,éum exer-
cício racional que se opõeao grandedefeitoda stultitia.
possivelmentefavorecidapelaleiturainterminável.A stultitia
sedefinepelaagitaçãodamente.pelainstabilidadedaaten-
ção,pelamudançade opiniõese vontades.e conseqüente-
mentepelafragilidadediantedetodososacontecimentosque
podemseproduzir;caracteriza-setambémpelofatodedirigir
a menteparaofuturo.tomando-aávidadenovidadeseimpe-
dindo-adedara simesmoumpontofixonapossedeumaver-
dadeadquirida.8A escritadoshupomnêmataseopõea essa
dispersãofixandoos elementosadquiridose constituindode
qualquerformacomeles"opassado",emdireçãoao qualé
semprepossívelretomare se afastar.Essa práticadeveser
encadeadaa um temamuitocomumna época;dequalquer
maneira,eleé comumà moraldosestóicose à dosepicuris-
tas:arecusadeumaatitudedepensamentovoltadaparaofu-
turo (que.devidoà sua incerteza,suscitaa inquietudee a
agitaçãoda alma)e o valorpositivoatribuídoà possedeum
passado.doqualsepodegozarsoberanamentee sempertur-
bação.A contribuiçãodoshupomnêmataéumdosmeiospelos
quaisa almaé afastadada preocupaçãocomo futuro.para
desviá-Iana direçãodareflexãosobreo passado.
2)Entretanto.seelapermiteseoporà dispersãodastulti-
tia,aescritadoshupomnêmatatambémé(edevepermanecer)
umapráticaregradaevoluntáriadodisparate.Ela éumaes-
colhadeelementosheterogêneos.Nissoelaseopõeaotraba-
lho do gramáticoque procuraconheceruma obra em sua
totalidadeoutodasasobrasdeumautor;elatambémseopõe
aoensinodosfilósofosdeprofissãOquereivindicamaunidade
doutrinaldeumaescola."Poucoimporta".dizEpícteto."que
se tenhalido ou nãotodoZenãoou Crisipo;poucoimporta
quesetenhaapreendidoexatamenteaquiloqueelesquiseram
dizer.equesesejacapazdereconstituiroconjuntodesuaar-
gumentação".9A cadernetade notas é dominadapor dois
princípios.quepoderia,mserchamadosde"averdadelocalda
sentença"e"seuvalorcircunstancialdeuso".Sênecaescolhe
o queeleanotaparasi mesmoe paraseuscorrespondentes
emumdosfilósofosdesuaprópriaseita.mastambémemDe-
mócritoouEpicuro.10Oessencialéqueelepossaconsiderara
fraseretidacomoumasentençaverdadeiranoqueelaafirma.
adequadanoqueprescreve.útil deacordocomascircunstân-
ciasemquenosencontramos.A escritacomoexercíciopes-
soalfeitopor si e parasi é umaartedaverdadedíspar;ou.
maisprecisamente.umamaneiraracionaldecombinara au-
toridadetradicionalda coisajá ditacoma singularidadeda
verdadequenelaseafirmae a particularidadedascircuns-
tânciasquedeterminamseuuso."Leiaentãosempre".dizSê-
necaaLucilius."autoresdeumaautoridadereconhecida;ese
o desejote levaa avançaremoutros.retomarápidoaospri-
meiros.Assegura-tecotidianamenteumadefesacontraa po-
breza.contraa morte.semesquecernossosoutrosflagelos.
Detudoo quetiverespercorrido.extraiumpensamentopara
digerirbemessedia.É tambémoquefaço.Entreváriostextos
queacabodeler.façodeum delesa minhaescolha.Eis meu
ganhodehoje;é emEpicuro queo encontrei.pois também
gostodeinvadiroterrenoalheio.Comotrânsfuga?Não;como
explorador[tanquamexplorator]".11
3)Essedisparatepropositalnãoexcluia unificação.Mas
estanãoserealizanaartedecomporumconjunto;eladevese
estabelecernoprópriocopistacomooresultadodoshupomnê-
mata.de sua constituição(e.portanto.no própriogestode
escrever).desuaconsulta(e.portanto.nasua leituraerelei-
tura).Doisprocessospodemserdistinguidos.Trata-se.porum
7.(N.A.)Sêneca.LettresàLucilius.op.cit..1945.t.I, livroI. carta2.§3.p.6.
8.(N.A.)Ibid.,op.cit..1947.t. 11.livroV. carta52.§§ 1-2.ps. 41-42.
9. (N.A.)Epícteto,Entretiens,op.cit.. 1943,t. lI. livro I, capoXVII: "DeIa néces-
sité de Ia logique".§§ 11-14,p. 65.
10.(N.A.)Sêneca,Lettresà Lucilius. op. cit.,t. I, livro I. cartas 2, § 5, p. 6; 3, §
6, p. 9; 4, § 10,p. 12;7, § 11.ps. 21-22;8. §§ 7-8, p. 24 etc.
11.(N.A.) Ibid.. carta 2, §§ 4-5. p. 6.
152 MichelFoucault- DitoseEscritos
lado,-deunificaressesfragmentosheterogêneospelasuasub-
jetivaçãonoexercíciodaescritapessoal.Sênecacomparaessa
unificação,deacordocommetáforasmuitotradicionais,quer
à coletadonéctarpelasabelhas,querà digestãodosalimen-
tos, ou aindaà adiçãode algarismosformandouma soma:
"Nãosoframosquandonadadaquiloqueentraemnósperma-
neceintacto,pormedodequeelejamaissejaassimilado.Digi-
ramos a matéria: caso contrário,el~ entrará em nossa
memória,nãoemnossainteligência[inmemoriamnonin inge-
niumJ.Unamo-noscordialmenteaospensamentosdooutroe
saibamosfazê-Iosnossos,visandoa unificarcemelementos
diversostal comoa adiçãofaz,denúmerosisolados,umnú-
meroúnicO."12O papeldaescritaéconstituir,comtudooque
a leituraconstituiu,um "corpo"(quicquidlectionecollectum
est,stUusredigatincorpus).E éprecisocompreenderessecor-
ponãocomoumcorpodedoutrina,massim- segundoame-
táforada digestão,tão freqüentementeevocada- comoo
própriocorpodaqueleque,transcrevendosuasleituras,delas
seapropriouefezsuaaverdadedelas:a escritatransformaa
coisavistaououvida"emforçaseemsangue"(invires,insan-
guinem).Ela setomanopróprioescritorumprincípiodeação
racional.
Mas, inversamente,o copistacria suaprópriaidentidade
atravésdessanovacoletadecoisasditas.Nessamesmacarta
84- queconstituiumaespéciedepequenotratadodasrela-
çõesentreleituraeescrita- Sênecasedetémporuminstante
noproblemaéticodasemelhança,dafidelidadeedaoriginali-
dade.Nãosedeve,explica,elaboraro queseguardadeum
autor,demaneiraqueestepossaserreconhecido;nãosetrata
decriar,nasnotasquesetomaena maneiracomquesere-
constituiporescritooqueseleu,umasériede"retratos"reco-
nhecíveis,porém"mortos"(Sênecase refereaqui àquelas
galeriasderetratosatravésdasquaisseatestavaseunasci-
mento,sevalorizavaseustatuse semarcavasua identidade
emrelaçãoaosoutros).É suaprópriaalmaqueéprecisocriar
noqueseescreve;porém,assimcomoumhomemtrazemseu
rostoa semelhançanaturalcomseusancestrais,tambémé
12.(NA) Ibid.,op.cit..t. m. livroXI. carta84.§§ 6-7.p. 123.
1983- A EscritadeSi 153
bomquesepossaperceberno queeleescrevea filiaçãodos
pensamentosquesegravaramemsuaalma.Atravésdojogo
dasleiturasescolhidasedaescritaassimiladora,deve-sepo-
derformarumaidentidadeatravésdaqualselêtodaumage-
nealogiaespiritual.Em um coro,há vozesagudas,gravese
médias,timbresdehomensedemulheres:"Nenhumavozin-
dividualpodenelesedistinguir;somenteo conjuntoseimpõe
aoouvido[...].Gostariaquefosseassimcomnossaalma,que
elativesseboaprovisãodeconhecimentos,preceitos,exem-
plos retiradosde muitasépocas,mas convergindoemuma
unidade."
A correspondência
~
As cadernetasde notasque,nelas mesmas,constituem
exercíciosdeescritapessoal,podemservirdematéria-prima
paratextosquesãoenviadosa outros.Em troca,a missiva,
textopordefiniçãodestinadoa outro,tambémpermiteoexer-
cíciopessoal.É que,comolembraSêneca,aoseescrever,selê
oqueseescreve,domesmomodoque,aodizeralgumacoisa,
seouveo quesediz.13A cartaqueseenviaage,pormeiodo
próprio gestoda escrita,sobreaqueleque a envia,assim
como,pelaleituraereleitura,elaagesobreaquelequea rece-
be.Nessaduplafunçãoa correspondênciaestábempróxima
doshupomnêmata,e suaformamuitasvezesseassemelhaa
eles.A literaturaepicuristaexemplificaisso.O textoconheci-
docomo"lettreà Pythoc1es"começaacusandoo recebimento
deuma cartaemqueo alunomanifestousua amizadepelo
mestre,e se esforçoupara"lembrar-sedas argumentações"
epicuristasquepermitiamatingira felicidade;o autordares-
postadáseuaval:atentativanãoeramá;eeleexpededevolta
um texto- resumido do Peri phuseôs de Epicuro - que deve
servira Pythoc1esdematerialparasermemorizadoe desu-
porte para sua meditação.14 .
13.(NA.)Ibid..§§ 9-10.p. 124.
14.LettreàPythocles(ttad.A.Emout).ÚlLucrêce.Dererumnatura.Commen-
taireparAlfredEmoutetLéonRobÚl.Paris.LesBellesLettres."Collectionde
Commentairesd'AuteursAnciens",1925.t. I. §§ 84-85.p. LXXXVII.
154 MlchelFoucault- Ditose Escritos
As cartasde Sênecamostramuma atividadede direção
exercidaporumhomemidosoejá aposentadosobreumoutro
queaindaocupaimportantesfunçõespúblicas.Porém,nes-
sascartas,SênecanãoselimitaaseinformarsobreLuciliuse
seusprogressos;nãosecontentaemlhedarconselhoseco-
mentarparaelealgunsgrandesprincípiosdeconduta.Atra-
vés dessasliçõesescritas,Sênecacontinuaa se exercitar,
devidoa doisprincípiosporelefreqüentementeinvocados:o
dequeé necessárioadestrar-sedurantetodaa vida,e o de
que semprese precisada ajudade outrona elaboraçãoda
almasobresi mesma.O conselhoqueeledánacarta7consti-
tui uma descriçãode suas própriasrelaçõescom Lucilius;
nela,elecaracterizabemamaneirapelaqualocupaseuretiro
como duplotrabalhoque realizasimultaneamenteemseu
correspondenteeemsi mesmo:recolher-seemsi mesmotan-
toquantopossível;ligar-seàquelesquesãocapazesdeterso-
'~resi um efeitobenéfico;abrir suaportaàquelesquetêma
e~perançadese tornaremmelhores;são"oficiosrecíprocos.
Quemensinaseinstrui".15
A cartaqueé enviadapara ajudarseu correspondente-
aconselhá-Io,exortá-Io,admoestá-Io,consolá-Io- constitui
para aqueleque escreveuma espéciede treino:um pouco
comoossoldadosemtemposdepazseexercitamno manejo
dasarmas,osconselhosquesãodadosaosoutrosna urgên-
cia desua situaçãosãouma formadepreparara si próprio
paraumaeventualidadesemelhante.Assim,a carta99 a Lu-
cilius:elaprópriaéa cópiadeoutramissiva'queSênecahavia
enviadoa Marullus,cujo filho haviamorridohá algumtem-
pO.16O textopertenceaogêneroda"condolência";ofereceao
correspondenteasarmas"lógicas"paracombatero desgosto.
A intervençãoétardia,poisMarullus,"atordoadopelogolpe",
teveum momentode fraquezae se"afastoudesi mesmo";a
cartatem,portanto,emrelaçãoa isso,umafunçãodeadmo-
estação.Mas,paraLucilius,a quemelaétambémenviada,e
paraSêneca,quea escreve,eladesempenhao papeldeum
princípiodereativação:reativaçãodetodasasrazõesquepos-
15.(NA) Sêneca,op.cit, livro1,carta7,§ 8, p. 21.
16.Ibid.,op.cit.,1962,t. IV,livro XVI, carta99,ps. 125-134.
1983- A EscritadeSi 155
~
sibilitamsuperaro luto, se convencerdequea mortenãoé
umadesgraça(nema dosoutros,nema suaprópria).E, gra-
çasaoqueéleituraparaum,escritaparaoutro,LuciliuseSê-
necaterãoassimreforçadosuapreparaçãoparaocasodeque
um acontecimentodessegênerovenhaa ocorrercomeles.A
consolado,quedeveajudareequilibrarMarullus,éaomesmo
tempoumapraemeditadoútil paraLuciliuseSêneca.A escri-
taqueajudao destinatárioarmaaquelequeescreve- eeven-
tualmenteterceirosquea leiam.
Mas ocorretambémquea assistênciaespiritualprestada
poraquelequeescreveaoseucorrespondentelhesejadevolvi-
danaformade"retribuiçãodoconselho";à medidaqueaquele
queé orientadoprogride,elese tornamaiscapazdedar por
suavezconselhos,exortações,consolosàquelequetentouaju-
dá-Io:a orientaçãonãopermanecepor muitotempoemum
sentidoúnico;elaservedeenquadreparamudançasqueaaju-
dama setornarmaisigualitária.A carta34já assinalaesse
movimentoapartirdeumasituaçãoemqueSêneca,noentan-
to,podiadizeraoseucorrespondente:"Eu tereivindico;tu és
minhaobra";"euteexortei,inciteie,impacientecomqualquer
demora,euteempurreisemdescanso.Fui fielaométodo,mas
hojeexortoalguémqueprontamentejá partiuequeporsuavez
meexorta".17E, nacartaseguinte,eleevocaa recompensada
perfeitaamizade,emquecadaumdosdoisseráparaooutroo
permanentesocorro,a inesgotávelajuda,queseráo temada
carta109:"Ahabilidadedolutadorsemantématravésdoexer-
cícioda luta;aquelequeacompanha,estimulaa execuçãodo
músico.O sábiotemigualmentenecessidadedemantersuas
virtudesalerta;assim,estimulandoa si mesmo,ele recebe
tambémestimulodeumoutrosábio.,,18
Contudo,eapesardetodosessespontoscomuns,a corres-
pondêncianãodeveserconsideradaumsimplesprolongamen-
to da práticados hupomnêmata.Ela é algumacoisamaisdo
queum adestramentodesi mesmopelaescrita,atravésdos
conselhose advertênciasdadosao outro:'constituitambém
umacertamaneiradesemanifestarparasi mesmoeparaos
17.(NA) Ibid.,op.cit.,1.1,livroIV,carta34,§ 2, p. 148.
18.(NA) Ibid.,op.cit.,t.IV, livroXVIll, carta109,§ 2, p. 190.
156 MichelFoucault- DitoseEscritos
outros.A cartatornao escritor"presente"paraaquelea quem
elea envia.E presentenãosimplesmentepelasinformações
queelelhedásobresuavida,suasatividades,seussucessose
fracassos,suasventurasedesventuras;presentecomumaes-
péciedepresençaimediataequasefisica:"Tumeescrevescom
freqüênciaetesougrato,poisassimtemostrasa mim[temihi
ostendislpeloúnicomeiodequedispões.Cadavezquemeche-
gatuacarta,eis-nosimediatamenteJuntos.Seficamosconten-
tesportermososretratosdenossosamigosausentes[...1como
umacartanosregozijamuitomais,umavezquetrazossinais
vivosdoausente,a marcaautênticadesuapessoa.O traçode
umamãoamiga,impressosobreaspáginas,asseguraoquehá
demaisdocena presença:reencontrar.,,19
Escreveré,portanto,"semostrar",seexpor,fazeraparecer
seuprópriorostopertodooutro.E issosignificaquea cartaé
aomesmotempoum olharqueselançasobreo destinatário
(pelamissivaqueelerecebe,sesenteolhado)eumamaneira
deseoferecerao seuolharatravésdoquelheéditosobresi
mesmo.A cartapreparadecertaformaumfacea face.Aliás,
Demétrio,expondono Deelocutione20o quedevesero estilo
epistolar,enfatizavaqueelepodiaserunicamenteum estilo
"simples",livrena composição,despojadonaescolhadaspa-
lavras,já quecadaumdevenelerevelarsuaalma.A reciproci-
dadequea correspondênciaestabelecenãoésimplesmentea
doconselhoe da ajuda;elaé a do olhare doexame.A carta
que,comoexercício,trabalhaparaasubjetivaçãododiscurso
verdadeiro,para sua assimilaçãoe elaboraçãocomo"bem
próprio",constituitambém,eaomesmotempo,umaobjetiva-
çãodaalma.É notávelqueSêneca,começandoumacartaem
quedeveexpora Lucilius suavidacotidiana,lembraa máxi-
mamoraldeque"devemospautarnossavidacomose todo
mundoa olhasse",e oprincípiofilosóficodequenadadenós
mesmospodeserocultadodedeus,queestáeternamentepre-
senteemnossasalmas.21Pelamissiva,nos abrimosparao
19.(NA) Ibid..op.cit..t. I. livroIV. carta40.§ 1,p. 161.
20.(NA) DemétriodeFalero.Deelocutione.IV. §§ 223-225.(Del'élocution.
trad.E. Durassier.Paris.FirminDidot.1875.ps.95-99(N.E.).)
21.(NA) Sêneca,ibid..op.cit..t. m. livroX. carta83.§ 1,p. 110.
1983- A EscritadeSi 157
]1
olhar dos outrose alojamoso correspondenteno lugar do
deusinterior.Ela é umamaneiradenosoferecermosa esse
olhara respeitodo qualdevemosnos dizerqueeleestá,no
momentoemquepensamos,mergulhandonofundodonosso
coração(inpectusintimumintrospicere).
O trabalhoqueacartaoperariodestinatário,masquetam-
béméefetuadonaquelequeescrevepelaprópriacartaqueele
envia,implicaportantouma "introspecção";mas é preciso
compreendê-Iamenoscomoum deciframentode si por si do
quecomoumaaberturaquesedá ao outrosobresi mesmo.
Nãorestaa menordúvidadequeestamosdiantedeum fenõ-
menoquepodeparecerum poucosurpreendente,masqueé
carregadodesentidoparaaquelequequisesseescreverahistó-
ria daculturadesi: osprimeirosdesenvolvimentoshistóricos
dorelatodesinãodevemserbuscadosdoladodas"cadernetas
pessoais",doshupomnêmata,cujopapeléodepermitiracons-
tituiçãodesi a partirdacoletadodiscursodosoutros;podem-
seemcontrapartidaencontrá-Iosdo ladodacorrespondência
comoutremedatrocadeassistênciaespiritual.É fatoque,nas
correspondênciasde SênecacomLucilius, deMarcoAurélio
comFrontone emcertascartasdePlínio,é possívelvero de-
senvolvimentodeumanarrativadesi muitodiferentedoque
erapossívelencontraremgeralnascartasdeCíceroa seusfa-
miliares:nestas,tratava-seda narrativade si própriocomo
temadeação(oudedeliberaçãoparaumaaçãopossível)rela-
cionadaa amigose inimigos.a acontecimentosfelizese infeli-
zes.Em Sênecaou emMarcoAurélio,às vezestambémem
Plínio,anarrativadesiéanarrativadarelaçãoconsigomesmo,
enelaépossíveldestacarclaramentedoiselementos,doispon-
tosestratégicosquevãosetornarmaistardeobjetosprivilegia-
dosdoquesepoderiachamara escritadarelaçãoconsigo:as
interferênciasdaalmaedocorpo(asimpressõesmaisdoque
asações)easatividadesdolazer(maisdoqueosacontecimen-
tosexteriores);o corpoeosdias.
1)As noticiassobrea saúdetradicionalmentefazemparte
dacorrespondência.Maselasassumempoucoa poucoa am-
plitudedeumadescriçãodetalhadadassensaçõescorporais,
das impressõesdemal-estar,dasdiversasperturbaçõesque
puderamsersentidas.Àsvezes,procura-seunicamenteintro-
."
158 MlchelFoucault- DitoseEscritos
duzirconselhosdedietaconsideradosúteisparao seucorres-
pondente.22Às vezes,trata-setambémdelembraros efeitos
docorponaalma,a açãodestanocorpo,oua curadoprimei-
ro peloscuidadosdispensadosà segunda.Assim,a longae
importantecarta78 a Lucilius:elaé dedicadaemsuamaior
parteaoproblemado"bomuso"dasdoençasedosofrimento;
mascomeçacoma lembrançadeumagraveenfermidadede
juventudesofridaporSêneca,quef°t:aacompanhadadeuma
crisemoral.Sênecaconta,arespeito'do"catarro",dos"peque-
nosacessosdefebre"dequeLuciliussequeixa,queeletam-
bém os experimentou,muitos anos antes:"No início não
estavapreocupadocomeles;minhajuventudetinhaaindaa
forçaderesistiràscrisesederesistirbravamenteàsdiversas
formasdomal.Maistardechegueiaopontoemquetodami-
nha pessoasefundiaemcatarroe emquemevi reduzidoa
umaextremamagreza.Tomeiinúmerasvezesa bruscareso-
luçãodeacabarcoma existência,masumaconsideraçãome
deteve:a idadeavançadademeupai."O quelheproporcionou
a curaforamosremédiosdaalma;entreelesosmaisimpor-
tantesforam"osamigos,queoencorajavam,ovigiavam,con-
versavamcomele,e assimlhe traziamalívio".23Há também
casosemqueascartasreproduzemomovimentoquelevoude
umaimpressãosubjetivaaumexercíciodepensamento.Tes-
temunhaopasseio-meditaçãocontadoporSêneca:"Paramim
eraindispensávelagitaro organismo,casoa bílis sealojasse
emminhagarganta,parafazê-Iadescer,caso,por qualquer
motivo,o ar estivessemuitodenso[emmepspulmões],para
queelefosserarefeitoporumsacolejocomo qualeumesen-
tissemelhor.Por essemotivoprolongueiuma saídapara a
quala própriapraiameconvidava:entreCumese a casade
ServiliusVatiaelaseestreitou,eomardeumlado,eo lagodo
outro,a afunilaramcomoumaestreitacalçada.Umatempes-
taderecentehaviaendurecidoa areia[...].Entretanto,como
dehábito,eumepuseraaolharemtomoprocurandoalguma
22.(NA) Plínio,oJovem,Lettres,livrom.carta1.(Trad.A.-M.Guillem1n,Pa-
ris, LesBellesLettres,"CollectiondesUniversltésdeFrance",1927,1.I. ps.
97-100(N.E.).)
23.(NA) Sêneca,LettresàLucilius,op.cit.,t.m, livroIX,carta78,§§ 1-4,ps.
71-72.
1983- A EscritadeSI 159
coisadaqualpudessetirarproveito,emeusolhossedirigiram
paraacasaqueforaoutroraadeVatia":eSênecacontaaLuci-
lius o queconstituisuameditaçãosobreo retiro,a solidãoea
amizade.24
2)A cartaé tambémumamaneiradeseapresentara seu
correspondenteno desenrolarda vida cotidiana.Narrar o
seu dia - não absolutamentepor causada importànciados
acontecimentosqueteriampodidomarcá-Io,masjustamente
quandoelenão é senãosemelhantea todosos outros,de-
monstrandoassimnãoaimportànciadeumaatividade,masa
qualidadedeummododeser- fazpartedapráticaepistolar:
Luciliusachanaturalpedira Sênecapara"lheprestarcontas,
decadaumdosmeusdias,ehoraporhora".E Sênecaaceita'
essaobrigaçãodeboavontade,vistoqueelaoestimulaaviver
sobo olhardo outrosemnadater a esconder."Fareientão
comomepedes:a natureza,a ordemdeminhasocupações,
tudoissotecomunicareideboavontade.Eu meexaminareia
cadainstantee,seguindoumapráticadasmaissalutares,fa-
reia revisãodomeudia."Defato,Sênecaevocaprecisamente
aqueledia queacabadepassar,e queé ao mesmotempoo
maiscomumdetodos.Seuvalorestájustamenteemquenada
aconteceraquetivessepodidodesviá-Iodaúnicacoisaimpor-
tanteparaele:ocupar-sedesimesmo:"Estediaéinteiramen-
temeu;ninguémmetirounadadele."Umpoucodeexercício
físico,umacaminhadacomum pequenoescravo,um banho
emumaáguaquasemorna,umasimplescolaçãodepão,uma
sestamuitorápida.Masoessencialdodia- eéoqueocupao
maislongotrechodacarta- foidedicadoà meditaçãodeum
temasugeridoporumsilogismosofísticodeZenãoapropósito
daembriaguez.25
Quandoa missivasetornao relatodeum dia comum,de
um dia parasi, vê-sequeelaseaproximadeumapráticaà
qualSêneca,aliás,fazdiscretamentealusãonoiníciodacarta
83; eleevocaali o hábitotãoútilde"fazera revisãodo seu
I
24.(NA) Ibid.,op,'cit.,t. 11,livroVI, carta55,§§ 2-3,ps.56-57;outambéma
carta57,§§ 2-3,p. 67.
25.(NA) Ibid.,op.cit.,t. m, livroX, carta83,§§ 2-3,ps. 110-111.
160 MíchelFoucault- Ditose Escritos
dia":é o examedeconsciênciacuja fonnaelehaviadesCrito
emumapassagemdoDeira.26Essaprática- familiaremdife-
rentescorrentesfilosóficas:pitagórica,epicurista,estóica-
parecetersidosobretudoumexercíciomentalligadoàmemo-
rização:tratava-sesimultaneamentedeseconstituirem"ins-
petordesi mesmo"eentãoavaliarasfaltascomuns,ereativar
asregrasdecomportamentoqueéprecisotersemprepresen-
tesnoespírito.Nadaindicaqueessa"revisãododia"tenhato-
madoa fonnadeum textoescrito.Parecequefoina relação
epistolar- e conseqüentementeparacolocara si mesmosob
osolhosdooutro- queo examedeconsciênciafoifonnulado
comoumrelatoescritodesi mesmo:relatodabanalidadecoti-
diana,das açõescorretasou não, da dietaobservada,dos
exercíciosfísicos ou mentaisque forampraticados.Dessa
conjunçãodapráticaepistolarcomoexamedesi,encontra-se
umexemplonotávelemumacartadeMarcoAurélioaFroton.
Ela foi escritaduranteuma dessasestadasno campoque
erammuitorecomendadascomomomentosdedesligamento
dasatividadespúblicas,comotratamentosdesaúdee como
ocasiõesdeseocuparconsigomesmo.Encontram-seunidos
nessetextoosdoistemasdavidacampestre,saudávelporque
natural,edavidaociosadedicadaàconversa,à leituraeàme-
ditação.Aomesmotempo,todoumconjuntodeanotaçõessu-
tis sobreo corpo,a saúde,as sensaçõesfísicas,a dieta,os
sentimentosmostrama extremavigilãnciade uma atenção
queestáintensamentefocalizadaemsi mesmo."Nósnossen-
timosbem.Eu poucodormiporcausadeumpequenotremor
que,noentanto,pareceterseacalmado.Passeiotempo,des-
deasprimeirashorasdanoiteatéa terceiradodia,partelen-
do a Agriculturade Caton,parteescrevendofelizmente,na
verdade,menosdoqueontem.Depois,apóstersaudadomeu
pai,sorviáguacommelatéa goela;ecuspindo-a,adoceimi-
nha garganta,emboraeunãotenha'gargarejado';poisposso
empregaressapalavra,usadaporNoviuseporoutros.Minha
26.Sêneca.Deira (DeIa colere.trad.A. Bourgery.carta36.§§ 1-2.in IJiala-
gues,Paris.LesBellesLettres."CollectiondesUniversitésdeFrance".1922.t.
I. ps. 102-103).
-
1983- A EscritadeSi 161
gargantarestabelecida,fui parapertodemeupai e assistià
suaoferenda.A seguir,fomosalmoçar.O quepensasquejan-
tei?Um poucodepão,enquantoeuviaos outrosdevorarem
ostras,cebolasesardinhasbemgordas.Depois,começamosa
amassaras uvas;suamose gritamosbastante[...].Na sexta
hora,voltamosparacasa.Estudeium pouco,semresultado;
aseguirconverseiumpoucocomminhamãezinhaqueestava
sentadano leito[...].Enquantoconversávamosassim,e dis-
putávamosqual dos dois amariamais o outro [...],o disco
sooue anunciaramquemeupai entraranobanho.Ceamos
então,apóstennosnosbanhadono lagar;nãotomandoba-
nhono lagar,masapóstennosnosbanhado,ceamoseouvi-
mos comprazeras alegresconversasdos camponeses.De
voltaparacasa,antesdemevirardeladoparadormir,execu-
tominhatarefa[meumpensumexplico];prestocontadomeu
diaaomeudulcíssimomestre[dieirationemmeosuavissimo
magistroreddo]a quemeu gostaria- mesmoquetivessede
perdersua influência- dedesejaraindamais...,,27
As últimaslinhasdacartamostrambemcomoelasearti-
culacoma práticado examede consciência:o dia termina,
logoantesdosono,comumaespéciedeleituradodiadecorri-
do;desenrola-seaíempensamentooroloemqueestãoinscri-
tasasatividadesdodia,eé estelivroimagináriodamemória
queéreproduzidonodiaseguintenacartadirigidaàqueleque
éaomesmotempoo mestree o amigo.A cartaa Frontonre-
produzdequalquerfonnaoexamerealizadoànoitenavéspe-
ra pelaleituradolivromentaldaconsciência.
É claroqueseestáaindamuitolongedolivrodocombate
espiritualaoqualAtanásio,naVidadeAntônio,fazalusãouns
dois séculosmais tarde.Mas tambémé possívelavaliaro
quantoaquelamaneiradoprocedimentodorelatodesi noco-
tidianodavida,comumameticulosaatençãoaoquesepassa
nocorpoenaalma,édiferentetantodacorrespondênciacice-
ronianaquantoda práticados hupomnêmata,coletãneade
coisaslidaseouvidasesuportedosexercíciosdepensamento.
27.(NA.)MarcoAurélio.Lettres.livroIV. carta6. (Trad.A. Cassan.Paris.A.
Levavasseur.1830.ps.249-251(N.E.).)
--
162 MichelFoucault- DitoseEsclitos
Nessecaso - o dos hupomnêmata-, tratava-sede constituir a
si mesmocomoobjetodeaçãoracional pela apropriação,uni-
ficaçãoe subjetivaçãode um já dito fragmentárioe escolhido;
no caso da anotação monástica das experiênciasespirituais,
tratar-se-á de desalojar do interior da alma os movimentos
mais escondidosdeformaa poderdelesselibertar. Nocasodo
relatoepistolardesi mesmo,trata-sedefazercoincidir oolhar
do outro e aquele que se lança sobre si mesmo ao comparar
suas açõescotidianas com as regrasde uma técnica de vida.
---
.~..~..~.~.~.~.~P.J..~..o...~.&.~..~..~..~..~..~...o...~Y
. JFoucault
. U Ética,Sexualidade,
. 4Política
~ .9- ~ j)7./1~1/- r:;1- ~ '1
Organizaçãoe seleçãodetextos:'
ManoelBarrosdaMotta
Tradução:
ElisaMonteiro
InêsAutranDouradoBarbosa
Ditsetécrits
EdiçãofrancesapreparadasobadireçãodeDanielDeferte
FrançoisEwaldcomacolaboraçãodeJacquesLagrange
~I
FORENSE
UNIVERSITÁRIA
I' edição-2004
@ Édilions Gallirnard, /994
@ Pre.",esUniversilairesde Fral1ce.1984,Édiliol1sGallirnard. 1994e Livraria
Marrins FomesEditora. 200/. parao textoFoucau/I
Traduzido de:
Dils el écrils
Ce/ ouvrage.publii dons le cadredu pragrammed'aide à Ia publica/ion. biniJicie du sou/ie.ndu Mini.,/ire
Français desAffaires Errangires. de I'Ambassadede France ou Brisi/ erde Ia Maison de France de Rio de
Janeiro.
Este livro, publicadono âmbitodo programade panici~ à publicação,coutoucom o apoiodo MiniStério
FraucésdasRelaçõesExteriores,da Embaixadada França no Brasil e da Maison de Francedo Rio de Janeiro.
,
Ouvragepublii avecI'aide du Mini."ire Français Chargi de Ia Cul/ure -Cen/reNarional du Livre.
ObrapublicadacomaajudadoMinistérioFraucésdaCultura- CentroNacionaldoLivro.
Foto da capa:Jacques Roben
CIP-BrasiL Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacionaldos Editoresde Livros, RJ.
F1!6e Foucault, Michel, 1926-1984
Ética, sexualidade,política I Michel Foucault; organizaçãoe seleçãode
textosManoel Barrosda Moua; traduçãoElisa Monteiro, lnés Autran Dourado
Barbosa.- Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 2004.
(Ditos eescritos;V)
Traduçãode:Dits etécrits
ISBN 85-218-0324-7
I. Ética. 2. Sexo. 3. Ciência política. 4. Filosofia francesa- Século XX.
I. Título. 11.Série.
03-2557. COD 194
CDU 1(44)
""""da a rqrodução Io<a1ou parcial. de qualqua- fmoa ou p<rqualqua- meio e1etrâ1icoou mecânico,
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