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CAPÍTULO 4 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: 9 Descrever o processamento da língua falada e escrita. 9 Compreender as bases linguísticas e psicolinguísticas da organização do sistema alfabético do português do Brasil. 9 Conhecer as contribuições dos estudos psicolinguísticos para detectar problemas de processamento. 9 Aplicar os conhecimentos adquiridos para a compreensão de um caso de dificuldade de aprendizagem leitura e/ou escrita. 116 Neurociência: evolução e atualidade 117 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 Contextualização No capítulo anterior, você estudou muito sobre leitura, inclusive seus conceitos. Compreendeu como se dá a aprendizagem da leitura, quais as implicações maturacionais, entre elas, a reciclagem dos neurônios. Aprendeu, também, sobre a escrita, conheceu parcialmente a sua história relacionada aos suportes e sistema que surgiram. Entre eles está o nosso: o alfabético. Entretanto, é preciso ir adiante. Por isso, neste capítulo, iremos estudar a leitura e a escrita sob a ótica da psicolinguística, a qual vem contando, nos últimos anos, com os recursos das neurociências, os quais foram apresentados no capítulo 1. Como você pode perceber, a leitura compreensiva deste capítulo depende das informações alocadas nos capítulos anteriores e que devem ter sido compreendidas por você. Então, para finalizar e arrematar com o que foi produzido até aqui, organizamos este capítulo em três seções que dialogam entre si: o processamento da leitura e da escrita; as bases do sistema alfabético do português do Brasil para a descodificação e codificação; as contribuições dos estudos psicolinguísticos para detectar problemas de processamento. O Processamento da Leitura e da Escrita Antes de iniciarmos o estudo sobre este tema, gostaríamos de fazer uma breve revisão de aspectos teóricos que estão nos outros capítulos. Para isso, convidamos você a retomar o texto todo e construir um glossário dos termos que irá necessitar para a leitura desta unidade. Atividade de Estudos: 1) Construindo um glossário Memória: ____________________________________________ ____________________________________________________ Memória de trabalho: __________________________________ ____________________________________________________ 118 Neurociência: evolução e atualidade Memória de longo prazo: _______________________________ ____________________________________________________ Memória episódica: ____________________________________ ____________________________________________________ Memória semântica: ___________________________________ ____________________________________________________ Leitura: _____________________________________________ ____________________________________________________ Descodificação: _______________________________________ ____________________________________________________ Escrita: _____________________________________________ ____________________________________________________ Lobos cerebrais: ______________________________________ ____________________________________________________ Via fonológica: _______________________________________ ____________________________________________________ Via semântica: ________________________________________ ____________________________________________________ No caso dos estudos das neurociências e da psicolinguística, é importante que o leitor tenha claro todos os termos, a fim de compreender o texto com mais facilidade. Além disso, vai ampliando seu léxico científico e passa a usar a metalinguagem para se referir aos temas tratados. Como você já sabe, a psicolinguística é uma área multidisciplinar e, por isso, pode estudar mais e melhor as questões de aquisição da língua falada e da aprendizagem da língua escrita. Um dos primeiros passos para esta compreensão é a descrição de como se dá o processamento humano da linguagem. Vamos, então, estudar cada um dos processamentos, sempre partindo de uma perspectiva teórica, a qual, com novos estudos, vai sofrendo acréscimos, mudanças, desconfirmações e confirmações de hipóteses. A psicolinguística é uma área multidisciplinar. 119 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 A Leitura: Conceitos, Modelos, Mudanças e Processamento O texto que segue é parte integrante da tese: HEINIG, Otilia Lizete de O. M.. “É que a gente não sabe o significado”: homófonos não homógrafos. Pós-graduação em linguística, UFSC, 2003. A definição de leitura, adotada por diferentes linhas, está conectada com um modelo de processamento de leitura. Assim, a leitura pode ser entendida como a extração do significado; atribuição do significado ou como a interação com o texto. Caso tenha alguma dúvida, retorne ao capítulo 3 e releia a explicação dada para cada definição de leitura. Ao se postular que ler é extrair o significado, entende-se “significado como aquele segmento da realidade a que se chega através de um outro segmento” (LEFFA, 1996, p. 12), podendo, então, ser encontrado em vários lugares. No caso do texto impresso, é dele que o leitor extrai o significado, pois esse é o lugar em que ele se encontra preciso, exato e completo. Assim, tudo que está posto no texto deve ser analisado, a fim de que se possa extrair o verdadeiro significado. Tem-se, portanto, uma leitura linear, na qual o papel do leitor é comandado pela informação que entra pelos olhos. Nesse caso, a compreensão resulta de um processo ascendente. O modelo de extração, desenvolvido por Gough (1994), preocupa-se com o processamento letra por letra, palavra por palavra, ficando restrito à caracterização dos estágios iniciais da leitura. O processo, organizado em cinco etapas, pode ser assim descrito: inicialmente, o estímulo percebido é transformado em uma imagem visual. A seguir, há a identificação letra por letra, da esquerda para a direita, e a colocação dos tipos dentro do registro de caracteres. O processo continua com a interpretação das letras em fonemas. Para o autor, essa interpretação atinge A definição de leitura, adotada por diferentes linhas, está conectada com um modelo de processamento de leitura. 120 Neurociência: evolução e atualidade o nível mais abstrato do fonema; a representação fonêmica, gravada em uma fita, fica à espera de que a bibliotecária faça a busca lexical. Depois, ocorre o depósito dos itens lexicais, na memória operacional, que passam pelo Merlim (operador sintático-semântico), a fim de que se dê a compreensão no nível sentencial. Enfim, passa pelo editor para que as regras fonológicas sejam aplicadas à sentença interpretada, resultando, então, em um enunciado fonético. Ainda quanto ao modelo de Gough (1994), vale ressaltar que se restringe ao processamento inferior, ao nível da letra, da palavra, não demonstrando abertura para o processamento superior, além de só contemplar os sistemas alfabéticos ocidentais. Por outro lado, a leitura pode ser concebida como atribuição do sentido e este passa, então, a ter origem no leitor. Assim, o mesmo texto pode provocar leituras diferentes, uma vez que não contém uma realidade, mas reflete segmentos dela, apresentando também lacunas que serão preenchidas pelo leitor a partir de seu conhecimento prévio. Portanto, a leitura não é mais vista como um procedimento linear, mas comode levantamento de hipóteses. Desse modo, a compreensão é um processo que vai se desenvolvendo durante a realização da leitura. Tem-se, então, um processo descendente. Os modelos descendentes, surgidos na década de 70, período em que se fez um questionamento intenso sobre o processo de leitura, têm como um dos principais autores Goodman. O processamento da leitura é apresentado sob um novo enfoque teórico, no qual o sentido é dado ao texto posteriormente, pois o leitor o atribui a partir de sua experiência prévia e seus objetivos. Os estudos desenvolvidos neste período deram origem ao modelo psicolinguístico de leitura. Goodman (1971) acredita que a leitura seria “[...] um jogo psicolinguístico de adivinhação”. O autor desenvolveu seu modelo de leitura partindo do pressuposto de que, no processo de leitura, contínuas interações entre pensamento e linguagem estão sendo envolvidas e o leitor busca obter o sentido partindo do texto impresso através desse tipo de interação. Para o autor, a leitura é um processo cíclico, que inicia com o ciclo ótico; depois vem o perceptual; a seguir, o gramatical e, enfim, o do significado. Além disso, nesse modelo, o leitor utiliza três fontes de informação: grafo- fonêmica, sintática e semântica. O modelo deste autor tem início no momento em que o leitor passa os olhos pelo papel, linha por linha, da esquerda para direita. Os olhos do leitor se fixam no estímulo grafêmico, permitindo a focalização. A partir daí, inicia-se o processo de seleção dos indícios textuais. Aqui, a imagem perpectual começa a se formar, sendo usados os indícios selecionados e os antecipados. Tem início, então, o processo de antecipação ou “adivinhação”. O modelo de extração, desenvolvido por Gough (1994), preocupa-se com o processamento letra por letra, palavra por palavra, ficando restrito à caracterização dos estágios iniciais da leitura. 121 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 A seguir, começa o processo de relacionamento dos estímulos percebidos com suas formas sintáticas, fonológicas e semânticas através de um mapeamento da memória. Enfim, caso não haja falhas nesse relacionamento, a descodificação é extendida, o significado é assimilado com as expectativas prévias e os significados prévios, então, sendo criadas outras expectativas sobre o texto, dando continuidade ao ciclo de leitura. As memórias de curto e longo prazo são usadas constantemente durante todo esse processo. Nesse modelo, os processos mentais de ordem superior são privilegiados na leitura e esta é entendida como um processo dinâmico na inter-relação de vários componentes utilizados para o acesso ao sentido. É justamente pela subordinação ao processamento superior, embora a necessidade dos estímulos gráficos não seja descartada, que os modelos descendentes são criticados. As pesquisas realizadas nas décadas de 70 e 80 procuraram mostrar que, no que diz respeito à leitura, as etapas do processo representadas nos modelos ascendentes e descendentes são complementares. É essa complementaridade que fica evidenciada nos modelos interativos de leitura. Dentre os modelos interativos estão os de Rumelhart (1984), Stanovich (1981; 1982) e Scliar-Cabral (1991). Aqui iremos aprofundar o último. Atividade de Estudos: 1) Preencha o esquema que segue com as informações apresentadas na parte referente aos conceitos e modelos de leitura. 122 Neurociência: evolução e atualidade O Modelo Integrado, Contextual, Interativo, Dinâmico e Criativo de Recepção e Produção Scliar-Cabral (1991, p. 121-141) apresenta um modelo integrado, contextual, interativo, dinâmico e criativo de recepção e produção que, embora se detenha no processamento da cadeia da fala, pode ser extrapolado para o processamento da leitura. O processamento de leitura é assim explicado: o leitor coloca na memória operacional a fatia extraída da folha impressa; a seguir, faz a segmentação provisória e o emparelhamento do item lexical com aquele que foi buscado na memória lexical e na semântica. Em textos posteriores, a autora enfatiza que uma das diferenças essenciais é a separação das palavras em espaços em branco e o contraste entre as letras. Se houver compatibilidade, o processo continua e o subitem seguinte é buscado. Nesse processo, o leitor se vale tanto do que provém do texto impresso e foi descodificado quanto da informação contextual e do conhecimento prévio. A autora justifica a abertura de um espaço para o sistema lecto-escrito em seu modelo afirmando que (SCLIAR-CABRAL, 1991, p. 140): [...] existe um arquivo específico para o sistema grafêmico e para o léxico (significante ortográfico). Quanto aos componentes textual, sintático e os morfemas puramente gramaticais, a diferença dos sistemas decorre de a comunicação no sistema lecto-escrito ocorrer com a ruptura espaço-temporal entre emissor (quem escreve) e o receptor (o leitor), com toda uma gama de repercussões na forma como se dá a enunciação, os anafóricos, enfim, os elementos de coerência e coesão e respectivos marcadores gráficos que devem estar arrolados nos paradigmas. O modelo de Scliar-Cabral se fundamenta nos seguintes princípios: integração e contextualidade; interação; dinamismo; gradiente dos processos automáticos aos criativos e sistemas de linguagem. O referido modelo é organizado em três sistemas: sistema periférico, executivo central e arquivo. Fora, agindo de forma a influenciar todos eles, encontra-se a afetividade. Passa-se, então, à apresentação do modelo com destaque aos aspectos voltados ao sistema lecto-escrito. Nesse modelo, é dada ênfase às conexões que se estabelecem entre as várias áreas no sistema nervoso central e para a intermodalidade. Isso explica tanto “[...] a possibilidade de canais de entrada distintos estarem associados a áreas motoras diferentes (sistema audiovocal, lecto-escrito, visogestual)” (SCLIAR-CABRAL, 1991, p. 133) como a possibilidade de haver intercomunicação entre sistemas linguísticos distintos como do audiovocal para o lecto-escrito e também o contrário. O processamento de leitura é assim explicado: o leitor coloca na memória operacional a fatia extraída da folha impressa; a seguir, faz a segmentação provisória e o emparelhamento do item lexical com aquele que foi buscado na memória lexical e na semântica. 123 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 O fato de a memória semântica ser comum para todas as linguagens verbais é que explica a intercomunicação. Dessa forma, os significantes diferentes, por serem gerados por distintos canais sensoriomotores, apontam para os significados que estão estruturados na memória semântica, a qual é comum a todos. O sistema central se encontra no centro do modelo e é responsável por alocar a atenção, delimitar o problema que deve ser resolvido, especificar quais os procedimentos para a resolução do problema, selecionando-os, comandar os fatiamentos, realizar os cálculos temporais, integrar as consecutivas saídas e coordenar a ordem na qual deve ocorrer a realização dos processos. Um dos componentes desse sistema é o metaconhecimento linguístico, que exerce duas funções: rejeitar uma língua desconhecida e identificar variedades linguísticas. Quanto a esta última, vale ressaltar que aí se encontra uma diferença significativa entre os processos de recepção e produção, pois o homem é capaz de reconhecer diferentes variedades linguísticas, mas dificilmente será capaz de produzi-las. O arquivo, que se localiza na parte superior do modelo, é compostopelo componente cognitivo e pelos sistemas de linguagem. O primeiro é composto, basicamente, por esquemas que se reestruturam constantemente devido às informações que provêm das novas experiências. Fazem parte desse componente o conhecimento de mundo e o enciclopédico, bem como o pragmático, o compartilhado, a memória episódica e as memórias icônica e ecoica, estando todos ligados por linha pontilhada, o que aponta para um número aberto e ilimitado. Já os sistemas de linguagem se dividem em verbal, musical, matemático, semafórico e outros. O sistema verbal, por sua vez, subdivide-se em lecto-escrito e audiovocal. No sistema lecto-escrito, encontram-se os seguintes elementos: grafêmico, sintático, textual, morfológico, gramatical e lexical ortográfico. Como já foi mencionado, a memória semântica, localizada no sistema audiovocal, é comum aos dois sistemas. No que se refere a como a memória semântica está estruturada (SCLIAR- CABRAL, 1999; 2002a; 2002b), desde os experimentos de Lúria, na década de 30, tem-se a oposição entre a estratégia taxionômica e a funcional, mas sofreu várias implementações. Com desenvolvimento da Psicolinguística, no que se refere aos estudos sobre a memória, foram propostas diversas explicações não só quanto aos tipos de memória, de curto prazo, de trabalho e permanente; no caso da memória permanente se propuseram vários tipos (não vamos entrar na questão da representação, se existe representação ou não) como caso da memória taxionômica, do estudo dos ordenados, superordenados, dos infraordenadores, como a memória semântica estaria organizada até a proposta de se ter um protótipo em torno do qual se dá uma configuração semântica, isso de um lado. Do outro, na memória cognitiva, há vários tipos de memórias: episódica, esquemas, mais recentemente o que se denominou a memória de eventos. O arquivo, que se localiza na parte superior do modelo, é composto pelo componente cognitivo e pelos sistemas de linguagem. 124 Neurociência: evolução e atualidade Quanto à última, debate-se muito o efeito da educação sistemática sofre as estratégias preferenciais dos indivíduos quando evocam os significados, ou seja, quanto mais letrado, mais escolarizado, mais ele usa uma estratégia taxionômica que se baseia numa reclassificação a partir dos traços semânticos dos itens em termos de coordenação ou subordinação, enquanto os menos letrados ou que têm um letramento menos desenvolvido fazem uma associação com a memória cognitiva, particularmente com o evento, com o contexto de uso daquele item, associado a uma imagem mais icônica, e não ao conceito mais abstrato. Scliar-Cabral (1997, p. 5-6) explica que a proposta da divisão entre um léxico mental, que arquiva os significantes de forma estruturada, e uma memória semântica, que organiza os significados básicos e virtuais em campos semânticos entrecruzados e vinculados ao conhecimento, “se torna necessária para elucidar questões como a sinonímia (inclusive a parafrástica), a homonímia e a polissemia”. Em indivíduos letrados há, ainda, um léxico mental ortográfico. Entretanto, a autora esclarece que, por defender um modelo integrado e contextual de processamento, “a atribuição da correspondência grafêmico-fonológica adequada não se deve apenas à existência do léxico mental ortográfico, mas também à informação morfossintática e semântica advinda do próprio texto. Além disto, esta informação é absolutamente necessária para desmanchar possíveis ambiguidades no caso dos homônimos”. Ainda que a leitura e a escritura tenham em comum os mesmos sistemas linguísticos, apresentam diferenças significativas no que se refere ao processamento. Ler é um processo receptivo, uma vez que o indivíduo recebe o texto produzido, cabendo a ele a descodificação, compreensão, interpretação e retenção da informação. Vários conhecimentos são necessários para que ocorra a aprendizagem da leitura e também da escritura. A relação entre esses dois processos é fundamental, pois a escrita se apoia na leitura, entretanto, por ser um processo produtivo, escrever é mais complexo do que ler. Assim como o processamento da leitura, o da escritura pode ser dividido em etapas. Inicialmente, será apresentada a perspectiva teórica adotada por Scliar-Cabral (2001; 2003). Para a autora, o que acontece inicialmente é a motivação, que leva o redator, por intenções pragmáticas, a escrever o texto. Depois, ocorre a seleção dos esquemas mentais, bem como a dos registros linguísticos que devem ser adequados ao gênero textual, ao receptor e objetivos, a fim de que o texto alcance seus propósitos. Feito isso, vem a fase de planejamento; depois acontece a linearização linguística. Interessa, aqui, especialmente, a escolha dos grafemas depois de selecionada a inserção do item lexical na frase. Nesse momento, o redator deverá Ler é um processo receptivo, uma vez que o indivíduo recebe o texto produzido, cabendo a ele a descodificação, compreensão, interpretação e retenção da informação. 125 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 selecionar que grafemas codificam a realização de determinados fonemas; no caso dos homófonos não homógrafos, urge observar o contexto, uma vez que este é competitivo e sua escolha depende do significado atribuído ao item lexical. Além disso, há outro fator que interfere na escolha: a variação sociolinguística, uma vez que o aprendiz, durante a aquisição de sua língua, esteve exposto a uma variedade que foi internalizada. Outro elemento que faz parte desse modelo é a monitoria, considerada um “processo metacognitivo que consiste em acompanhar de uma forma reflexiva a produção escrita” (Scliar-Cabral). A monitoria pode ocorrer em duas etapas: pari passu ou a posteriori. A primeira acompanha todas as etapas da produção escrita e acontece tanto durante a fase de planejamento quanto na de execução; a outra é feita ao final da produção do texto. As reflexões apresentadas nesta seção com base em Scliar- Cabral pertencem as notas das aulas da disciplina Seminários de Psicolinguística, ministrada no I semestre de 2001, no curso de Pós- graduação em Linguística da UFSC, pela Dr.ª Leonor Scliar-Cabral. Atividade de Estudos: 1) Ao longo do texto, você deve ter encontrado palavras que, ao serem processadas, não tiveram acesso à memória semântica. Isso significa que se faz necessário ampliar a memória enciclopédica e também a rede de significados em sua memória de longo prazo. Por isso, retome o texto, destaque (pinte, sublinhe...) as palavras cujos significados não sejam dominados por você e faça uma definição para cada uma dessas palavras. Feito isso, retome o texto e analise como se dá seu processamento agora que ampliou seu léxico. __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ 126 Neurociência: evolução e atualidade Outras Contribuições Acerca do Processamento Também Poersch (1986, p. 29-30) advoga que o processo de escritura pode ser analisado em etapas, sendo algumas, às vezes, simultâneas. O autor apresenta cinco etapas: estímulo externo ou interno; intenção de comunicar; codificação da mensagem; recodificação da mensagem e emissão gráfica da mensagem. A primeira está relacionada ao que quem escreve quer dizer, ou seja, à substânciade conteúdo do processo comunicativo. Na outra etapa, ocorre o momento de definição da intenção da comunicação e a partir daí será elaborada, mentalmente, a princípio, a substância de conteúdo que ganhará forma e organização. A terceira etapa se refere à codificação na qual o produtor recorre a um sistema linguístico específico e, então, são selecionados os signos linguísticos adequados que serão produzidos de acordo com as regras específicas e apresentados linearmente. A recodificação da mensagem é a próxima etapa, que consiste na transformação dos signos orais em signos gráficos. Por fim, a mensagem é gravada em um suporte e fica aguardando um possível leitor. Assim, pode-se perceber que os modelos atuais de escritura, embora apresentem as etapas discretizadas, admitem certa recursividade, como se pode perceber também no modelo de Flower e Hayes (1981). Os autores ampararam sua teoria na análise de protocolos verbais de redatores proficientes. Nesse modelo, os processos não acontecem de forma linear: é o autor do texto quem estabelece o caminho da construção. O modelo inclui três unidades: a situação comunicativa – os elementos externos ao escritor (o tema, a audiência, o canal...); a memória de longo prazo – armazena os conhecimentos que o autor usa durante o processo de comunicação sobre o tema, a audiência ou os diferentes tipos de texto; os processos de escritura: planejamento subdividido em geração, organização e estabelecimento de meta; tradução e revisão, que é composto por leitura e editoração; existe também, neste módulo, o monitor, que controla esses três subprocessos. Enquanto os dois últimos, a memória de longo prazo e os processos de escritura, acontecem no cérebro do escritor, a situação comunicativa contém elementos externos ao escritor, em especial, o problema retórico e o texto escrito. Finalmente, vale ressaltar que, para que o processo de composição aconteça, é necessário que todos os processos e subprocessos sucedam com normalidade. Este modelo está relacionado com outros, em especial com o de Flower, que parte da análise direta de textos de escritores para identificar dois tipos de prosa - a de escritor e a de leitor – que são caracterizados segundo função, estrutura e estilo. A memória de longo prazo e os processos de escritura, acontecem no cérebro do escritor, a situação comunicativa contém elementos externos ao escritor, em especial, o problema retórico e o texto escrito. 127 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 Kato (1995, p. 89-92) faz uma crítica ao modelo anterior e, a partir da reformulação dele, apresenta outro no qual o processamento é mais interativo e recursivo. As principais alterações acontecem nos processos de escritura. A geração deixa de estar ligada diretamente às instruções e a ligação passa a ser entre o contexto da tarefa e os processos de escritura. O subprocesso planejamento também sofre alterações, passando a ser denominado como processamento de ideias, já o termo planejamento passa a fazer parte do monitor, bem como o estabelecimento da meta e a editoração, a qual, para a autora, ocorre ao final de cada processo ou operação. Enfim, no subprocesso de revisão, no lugar da editoração fica a correção. Por último, será apresentado o modelo de Meurer (1997, p. 14-28), que leva em consideração tanto os aspectos linguísticos como os sociocognitivos do ato de escrever. Este modelo está organizado em módulos interligados dos quais fazem parte: fatos/realidade; história discursiva individual, discursos institucionais e práticas sociais; parâmetros de textualização; representação mental de fatos/ realidade por parte do escritor; monitor. Como no modelo de Scliar-Cabral (1991), a motivação é o primeiro passo; a partir dela, o escritor inicia o percurso de produção textual, formando uma representação mental, imagem ou representação dos fatos formados anteriormente na mente do escritor. Esta representação é controlada pelo monitor e seu funcionamento depende de: fatos/realidade; história discursiva individual, discursos institucionais e práticas sociais e dos parâmetros de textualização que são apresentados em número de sete. Os parâmetros são monitorados pelo escritor durante o processo de composição do texto. Comparado com o modelo de Flower e Hayes (1981), aqui também o monitor se mantém ativo em todo o processo de produção e é responsável tanto pela geração de ideias, como pelo planejamento, organização, execução e editoração das diversas partes do texto. Na rota inicial de produção de textos escritos de Meurer (1997), há ainda dois módulos que são denominados de estágio A e B. O estágio A é representado por duas subpartes: representação mental dos fatos/ realidade por parte do escritor e focos de atenção. É neste estágio que o escritor seleciona um enfoque, partindo da representação mental de certa realidade e passa, então, ao estágio B, no qual, através de representações linguísticas, tenta concretizar o que foi mentalizado. É aí que começa a surgir o texto escrito em sua primeira versão. O autor adverte que, em situações escolares, o texto em geral termina por aqui, mas para grande parte dos escritores este é apenas o começo, por isso, a necessidade de operações para a recomposição e polimento do texto, que são também discutidas pelo autor, mas que não serão enfocadas aqui. 128 Neurociência: evolução e atualidade As Bases do Sistema Alfabético do Português do Brasil para a Descodificação e Codificação a) Um pouco mais de história: o contexto de surgimento do sistema de escrita alfabética Você já sabe, mas não custa relembrar: A escrita propriamente dita surgiu no Oriente Médio e na China há cerca de 6.000 anos. Destes dois focos principais, a escrita se irradiou para diversas outras partes da Eurásia. Vários povos investiram tempo e pesquisa (a seu modo) para a elaboração de um sistema de escrita. Interessa-nos, especialmente, o desenvolvimento do sistema alfabético. Antes de falarmos sobre ele, iremos recuperar um pouco da sua história, estabelecendo, assim, um link com o capítulo anterior. Há muita história antes, mas escolhemos como ponto de partida a civilização fenícia. Por volta de 1.200 a.C., os fenícios – que se apossaram da complicada escrita lexical-silábica dos egípcios - desenvolveram uma escrita mais simples, a partir das escritas logossilábicas, devido à necessidade de uma forma prática de escrita para que seu império comercial de então pudesse funcionar melhor. Nesse sistema, cada símbolo representava uma consoante. As vogais tinham que ser reconstituídas pelo leitor. Para cada consoante, foi escolhido um símbolo que previamente era um logograma, representando uma palavra de uso comum, e foi-lhe dado um valor puramente fonético, de acordo com seu som inicial. Com os gregos surgiu o alfabeto denominado de “alfabeto vocálico-consonantal”. Os árabes e os hebreus nunca sentiram a necessidade de marcar as vogais devido à peculiar estrutura morfológica de suas línguas, que são do grupo semítico, assim como os antigos fenício e aramaico. Nas línguas desse grupo, as conjugações se dão através do correto preenchimento de um esqueleto de três consoantes por certo grupo de vogais, portanto, pelo contexto pode-se deduzi-las claramente. Já o grego, uma língua indo-europeia como o português, não tem paradigmas vocálicos tão fixos como o das línguas semíticas, o que levou à criação das letras para as vogais, adaptadas a partir de consoantes fenícias que não tinham utilidade para o grego. Além disso, outra mudança do grego foi a de escrever da esquerda para a direita, pois o fenício, assim como o árabe e o hebraico moderno, era escrito da direitapara a esquerda. Inicialmente, contudo, os gregos se utilizavam do sistema Os árabes e os hebreus nunca sentiram a necessidade de marcar as vogais devido à peculiar estrutura morfológica de suas línguas, que são do grupo semítico, assim como os antigos fenício e aramaico. 129 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 denominado “boustrophédon” (arado), em que uma linha ia da esquerda para a direita e a seguinte da direita para a esquerda e assim por diante. Os etruscos foram os antecessores dos romanos no domínio da península itálica. Mesmo Roma lhes foi subalterna. Dos gregos, os etruscos tomaram muitas coisas, entre elas o alfabeto vocálico-consonantal, inventado pelos gregos, que era de fácil adaptação a qualquer língua. A Etrúria se extinguiu, Roma se ergueu, mantendo, ligeiramente modificado, o seu alfabeto. Enfim, a descoberta de que cada símbolo representa um som mostra que o homem consegue trabalhar de forma consciente com a organização fonológica da língua. Igualmente as crianças precisam fazer esta “descoberta” para poder aprender a ler e escrever no sistema alfabético. Sintetizando-se a história da escrita, pode-se perceber que o homem, desde a inexistência da escrita, passou por diferentes sistemas. Inicialmente, o pictográfico, depois o ideográfico, o logográfico, o silábico até chegar ao alfabético. Este último, descoberto no século X a.C., marcou profundamente a história da humanidade e até hoje é ensinado nas escolas das culturas que o adotam. b) Os princípios do sistema alfabético para o português do Brasil Neste material será dado enfoque ao sistema alfabético do português do Brasil cujas regras de descodificação e codificação foram formalizadas por Scliar- Cabral (2003). O seu conhecimento é capital para que o processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita, na escola, aconteçam de forma reflexiva. A autora explica algumas descobertas importantes que o estudo dos referidos princípios proporcionaram (SCLIAR-CABRAL, 2003, p. 20-21): A formalização dos princípios do sistema alfabético do português do Brasil, que me consumiu anos de reflexão, permitiu-me a descoberta e/ou confirmação de teorias linguísticas tais como a quase total transparência para a descodificação (exceção feita, basicamente, para os grafemas “e” e “o” e três valores do grafema “x”); as intuições fonológicas dos codificadores, neste caso, começando pelo português de Portugal, com Gonçalves Viana, como, por exemplo, a representação ortográfica dos arquifonemas |R| e |S|, o efeito da oposição entre vogais posteriores e não posteriores e parcimônia para contemplar o acento gráfico, reconhecendo a forma não marcada do vocábulo canônico em português, [...]; ratifica a proposta se Mattoso Câmara Jr. de rever processos de derivação, como possíveis composições, como é exemplo o comportamento do prefixo “trans-”. Os princípios do sistema alfabético do português do Brasil estão organizados em dois grandes grupos: as regras de descodificação (que dizem respeito à leitura) e as de codificação (relacionadas à forma como grafamos as palavras). 130 Neurociência: evolução e atualidade Os princípios do sistema alfabético do português do Brasil estão organizados em dois grandes grupos: as regras de descodificação (que dizem respeito à leitura) e as de codificação (relacionadas à forma como grafamos as palavras). Antes de apresentarmos as regras, é necessário fazer um breve estudo sobre as consoantes e vogais do nosso sistema e seus valores representados por fonemas, no caso da descodificação, e por grafemas quando há necessidade de grafar as palavras, fazendo a representação do fonema. Se você não lembra mais que é fonema e grafema, retorne ao capítulo 3 e confira lá a explicação. Para a compreensão das relações entre fonemas e grafemas, é preciso, primeiro, uma revisão de como os fonemas estão organizados e classificados no Português do Brasil. Para tal, apresentamos, a seguir, dois quadros: um relacionado ao sistema vocálico e outro referente ao quadro fonêmico das consoantes. É importante lembrar que esta é uma forma de “representar” os fonemas de nossa língua, entretanto, nossos alunos chegam às escolas cada um falando de acordo com sua variante sociolinguística, o que justifica a compreensão entre o sistema oral e escrito. Esta compreensão permite, por exemplo, ao professor, construir hipóteses para a codificação, levando o aprendiz a perceber que existe uma única língua escrita; entretanto, ao ler, o fará de acordo com sua variante sociolinguista, assim que tiver domínio do código. Além disso, permitirá, no caso do espaço escolar, que o professor compreenda por que os alunos em fase inicial de alfabetização escrevem como falam, em um continuum, ou seja, não há ainda a percepção dos espaços em branco. Caro pós-graduando, o quadro 1 representa todas as vogais existentes no português do Brasil, observe que apesar de possuir cinco grafemas para representar as vogais, há 12 valores sonoros para esses grafemas, dentre estes, 7 são orais e 5 nasais. 131 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 Quadro 1 - Sistema Vocálico do PB + Orais - posterior-arredondado (anteriores) +posterior - arredondado +posterior + arredondado +alta i u -alta -baixa e o +baixa ε (pé) a כ (pó) -orais (nasalizadas) +alta ĩ ũ -alta ẽ õ +baixa ã Fonte: Sistema vocálico do PB, conforme modelo de Quicoli (1990), com acréscimo das vogais nasalizadas. (SCLIAR-CABRAL, 2003). Neste quadro, fique atento à classificação das vogais em [+ anteriores] e [- anteriores] porque este fator é determinante para muitas das regras para lermos e escrevermos palavras. Para compreender a classificação das consoantes, é importante saber como está organizado o nosso aparelho fonador, pois é dele que partem os termos que são usados para a denominação de cada um dos fonemas. Observe o aparelho fonador abaixo e depois tente colocar nele o quadro das consoantes. Irá perceber, por exemplo, que [p] e o [b] são produzidos tocando lábio no lábio, por isso, são chamados de bilabiais, ou seja, esse é o seu ponto de articulação. Para compreender a classificação das consoantes, é importante saber como está organizado o nosso aparelho fonador, pois é dele que partem os termos que são usados para a denominação de cada um dos fonemas. 132 Neurociência: evolução e atualidade Figura 30 - O aparelho fonador Fonte: Disponível em: <http://astropt.org/blog/2010/11/29/prahlad-jani-o-homem- que-nao-come-nem-bebe-ha-70-anos/>. Acesso em: 12 dez. 2012. Quadro 2 - Sistema Fonêmico das Consoantes +ant -cor (labiais) +ant +cor (anteriores) -ant +cor (posteriores) -ant -cor -post (posteriores) -ant -cor -post (posteriores) +obstruinte -cont (oclusivas) -son (surdas) +son p b t d k g (galo) +cont (fricativas) -son +son f v s z ∫(chá) ʒ (já) R (rosa) -Obstruinte +nasal m n ր(vinho) (+vocálico) +lateral -lateral -cons (semivogais) l r(caro) ʎ (velha) j (pai) w (teu) Fonte: Scliar-Cabral (2003), conforme modelo de Lopez (1979), com acréscimo das semivogais, exemplos e termos comparativos (entre parênteses) à nomenclatura de Mattoso Câmara Jr. (1975). 133 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 Para auxiliar na leitura e compreensão do quadro, apresentamos,abaixo, uma lista com os termos e sua respectiva explicação: Modos de articulação: • Oclusivos: “sons produzidos com um bloqueio completo à corrente de ar em algum ponto do aparelho fonador...” (CAGLIARI, 2001, p. 122) [p,b,t,d,k,g]. • Nasais: “sons produzidos com um bloqueio à corrente de ar na cavidade oral, com concomitante abaixamento do véu palatino, o que permite a saída do ar pelas narinas” (CAGLIARI, 2001, p. 122) [m, n, ր]. • Fricativos: “sons produzidos com um estreitamento em qualquer parte do aparelho fonador (da glote até os lábios), de tal modo que o ar fonatório, passando por essa parte, produza fricção” (CAGLIARI, 2001, p. 122) [f,v,s,z, ∫,ʒ, R]. • Laterais: “são os sons que bloqueiam a passagem central da corrente de ar na parte anterior da cavidade oral, permitindo um escape lateral. [...] No caso da lateral palatal, a corrente de ar passa por trás dos últimos molares, saindo por entre a parte externa dos dentes e a bochecha” (CAGLIARI, 2001, p. 123) [l, r]. • Vibrantes: “[...] entendem-se os sons produzidos por batidas rápidas da ponta da língua ou do véu palatino, em geral, 3 ou 4. Esse tipo de consoante também é chamada de vibrante múltipla [...]. Quando ocorre apenas uma batida rápida da ponta da língua contra os dentes ou alvéolos dos dentes incisivos superiores, o som tem o nome de tepe (ou vibrante simples...)” (CAGLIARI, 2001, p. 123) [R, r]. Lugares de articulação: • Labial: “é o som produzido com um estreitamento ou fechamento produzido pela aproximação dos lábios...” (CAGLIARI, 2001, p. 124) Bilabiais: [p,b,m], Labiodentais [f,v]. • Coronal: “os sons coronais são produzidos com o ápice ou a lâmina da língua elevada acima de sua posição neutra. Considera-se posição neutra o lugar onde se articula a vogal [ε], como em “café”. [...] na produção de sons coronais o ápice ou a lâmina da língua se eleva em direção à parte posterior dos incisivos posteriores entre a região da arcada alveolar e o palato duro [...]. Consoantes dentais, alveolares, alvéolo-palatais, retroflexas e palatais são [+cor]. Todas as outras consoantes são [-cor]” (MORI, 2001, p. 164) [+cor]: [t,d,s,z,n,l, ∫, ʒ]. 134 Neurociência: evolução e atualidade • Anterior: “os sons anteriores são produzidos com uma obstrução na parte anterior do trato vocal, numa região situada entre os lábios e a arcada alveolar.” (MORI, 2001, p. 164) [+ant]: [p,b,f,v,m, t,d,s,z,n,l, r]. Vozeamento: Classificam-se os sons com base na oposição surdo/sonoro. Os sons produzidos com vibrações das cordas vocais são chamados de sonoros (+son). Já os surdos são aqueles produzidos sem vibração das cordas vocais (-son). As vogais são sons sonoros, mas consoantes podem ser surdas ou sonoras. Observe esses pares mínimos: pato, bato; faca, vaca; chá, já; cato, gato. Agora que você já conhece os fonemas e sua respectiva classificação, fica mais fácil ler e compreender as regras que serão apresentadas a seguir. Como Lemos as Palavras da Mesma Maneira: as Regras de Descodificação As regras de descodificação dizem respeito ao processamento da leitura, discutido anteriormente. Interessa, aqui, a primeira fase, na qual o leitor reconhece e identifica as letras que representam os grafemas e seus valores; a partir daí, dá-se a busca das palavras e seu acesso. A conversão dos grafemas em fonemas é feita pelo leitor levando em conta sua variedade sociolinguística e este aspecto não pode ser desconsiderado por quem está envolvido no processo de ensinar a ler. A autora desdobra as regras de descodificação em quatro subgrupos: as regras de correspondência grafo-fonêmica independentes do contexto; as regras de correspondência grafo-fonêmica dependentes do contexto grafêmico; as regras dependentes da metalinguagem e/ou do contexto textual morfossintático e semântico; valores imprevisíveis para o grafema “x” e a leitura de “muito”. O primeiro subgrupo é constituído de grafemas que correspondem, independente da posição em que ocorrem na palavra, ao mesmo fonema. Na tabela abaixo (SCLIAR-CABRAL, 2003b, p. 44), são apresentados quais os valores dos grafemas que se incluem neste subgrupo. As regras de descodificação dizem respeito ao processamento da leitura. A conversão dos grafemas em fonemas é feita pelo leitor levando em conta sua variedade sociolinguística e este aspecto não pode ser desconsiderado por quem está envolvido no processo de ensinar a ler. 135 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 Tabela 1 – Valores dos grafemas, independentes do contexto Grafema Valor Exemplos Grafema Valor Exemplos p /p/ pato B /b/ bola t /t/ tatu D /d/ dado f /f/ café V /v/ uva ss /s/ massa Ç /s/ moça sc /s/ desço Ch /∫/ chave j / ʒ / janela Nh / ր/ linha rr /R/ carro ü /w/ sagüi ó / כ/ óculos Õ /õ/ põe á /a/ água À /a/ à â /ã/ lâmpada à /ã/ rã Fonte: Scliar-Cabral (2003, p.44). O trema ainda se mantém a leitura deste grafema, pois está em muitos materiais que ainda não tiveram a revisão dentro do novo sistema ortográfico. O segundo subgrupo sofre influência do contexto grafêmico. Assim, para atribuir valor ao grafema, é necessário observar as letras que o precedem ou seguem e/ou a sua posição no vocábulo. A autora reuniu as várias situações em vinte e três regras. Como exemplo, será apresentada a regra D2.1 (SCLIAR-CABRAL, 2003a, p. 83), a qual sistematiza, entre outros aspectos, a leitura da letra “s” em contexto intervocálico, dificuldade comum entre os aprendizes do nosso sistema escrito: “o grafema ‘s’ se lê como a transposição à realização do fonema /s/, quando estiver em início do vocábulo [...] ou quando, em início de sílaba, estiver depois das letras “n”, “l” ou “r” [...]; o grafema “s” se lê como a transposição à realização do fonema /z/ quando estiver entre as letras que representam as vogais ou semivogais [...]”. Há, também, um conjunto de regras dependentes da metalinguagem e/ou do contexto textual morfossintático e semântico que regulam a leitura: da sílaba Para atribuir valor ao grafema, é necessário observar as letras que o precedem ou seguem e/ou a sua posição no vocábulo. 136 Neurociência: evolução e atualidade mais intensa; dos ditongos decrescentes seguidos ou não de s; dos ditongos orais fechados, por oposição aos abertos. O ponto-chave, neste subgrupo, é a descodificação das letras “e” e “o” na metafonia verbal, cujas regras foram internalizadas desde cedo pela criança em seu processo de aquisição da linguagem. Para sua utilização, basta apenas a aplicação de conhecimentos morfossintáticos. Dessa forma, se o vocábulo “gosto” for indicado como verbo (não como substantivo) em um contexto como: “Eu gosto de maçã!”, o “o” será lido com o valor de / כ/. Isso acontece “em virtude da harmonia vocálica entre o radical /o/, com a vogal temática subjacente da 1ª conjugação /a/.” (SCLIAR- CABRAL, 2003 a, p. 115). Por fim, são apresentados os valores dependentes exclusivamente do léxico mental ortográfico: 1) Os três valores atribuídos à letra “x”: /∫/, /s/ e /k(i)s/ em contextos entre letras que representam vogais, com exceção da letra “e”, como em “abacaxi”, “máximo” e “fixo”, e entre ditongo /aw/ e vogal como em “auxílio”. 2) O vocábulo “muito” que é marcado para ser pronunciado como ditongo nasalizado. Diante de um sistema transparente para a leitura, como é o nosso, é importante a compreensão das regras de descodificação para simplificar o ensino de língua materna. Atividade de Estudos: 1) A fim de verificar se você compreendeu mesmo a organização dos princípios do sistema alfabético para a descodificação, realize o exercício que segue: Abaixo você encontrará váriaspalavras. Leia-as com atenção, observando o grafema sublinhado. Depois, agrupe-as conforme os valores e suas relações: a) independentes do contexto; b) dependentes do contexto escrito (regras) e c) imprevisíveis (memorizadas). TENHO, DEUSA, AUXILIADORA, CRUCIFIXO, CALMA, CASCA, CÓLICA, GANSO, PANELA, CAFÉ, BARRO, EXCEÇÃO, FAZER, TÓRAX, XÍCARA, CHAVE, ALMOÇO, CINEMA, CINCO, CURSO, JATO, TETO, SAPATO, ZEBRA, SALA, RESPEITO, DESCE, EXISTE, FROUXA, NORMA, SINO, MATA, SEDEX, EXAUSTO, AZARES, CINTO, NASCI, ABACAXI, GOSTO (verbo), DOÍDO, ESTÁ, HÉLICE. 137 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ A Escrita das Palavras: a Conversão de Fonemas em Grafemas Considerando Contextos e Necessidade de Memorização O processo de codificação é inverso ao apresentado anteriormente, pois nele acontece a conversão da realização dos fonemas em grafemas a partir da variedade sociolinguística praticada pelo falante. Para converter fonemas em grafemas, o redator poderá ou não levar em conta o contexto, o que explica a existência destes cinco subgrupos: regras independentes do contexto; regras dependentes da posição e do contexto fonético; as alternativas competitivas; as regras dependentes da morfossintaxe e do contexto fonético e a derivação morfológica. No primeiro subgrupo se incluem as variantes alofônicas determinadas pelo contexto fonético, não percebidas pelo redator de O processo de codificação é inverso ao apresentado anteriormente, pois nele acontece a conversão da realização dos fonemas em grafemas a partir da variedade sociolinguística praticada pelo falante. 138 Neurociência: evolução e atualidade forma consciente e os ditongos abertos /εj/ e / כj/. Analisando a tabela a seguir (SCLIAR-CABRAL, 2003b, p. 78), é possível notar que, na codificação, há menos possibilidades de atribuir um valor do que na descodificação. Portanto, já se pode ir percebendo que escrever é mais complexo que ler. Tabela 2 – Conversão dos fonemas aos grafemas, independente do contexto Fonema Grafema Exemplos Fonema Grafema Exemplos /p/ p pato /b/ b bola /t/ t tatu /d/ d dado /f/ f faca /v/ v uva /m/ m mato /n/ n nata / ր / nh linha / l / lh bolha / εj / éi anéis / כj / ói dói O segundo subgrupo é formado por dezesseis regras dependentes só do contexto fonético. Um grupo delas é organizado levando-se em consideração que o fato de as vogais e semivogais serem posteriores ou não posteriores influi na grafia das consoantes. A regras C2.1 explica que a realização da consoante /k/ se transcreve com “c” antes de vogal posterior, oral ou nasalizada e com “qu” antes de vogal não posterior, oral ou nasalizada como em “cola” e “quinto”. A regra C2.2, parecida com a anterior, formaliza a grafia do fonema /g/ que antes de vogal posterior, oral ou nasalizada se transcreve com “g” e diante de não posterior, oral ou nasalizada, com “gu”, como em “sagu” e “guerra”. Já a regra C2.4 explica a conversão do fonema /s/ em início de vocábulo e entre a semivogal /j/ e as vogais [-post] e [+post] como em “foice” e “feição”; a regra C2.8 elucida a conversão do fonema /ʒ/, ou seja, antes de [+post] grafa-se com “j” e, antes de [-post], grafa-se com “j” ou “g” e a explicação é completada pela regra C3.7. As regras, que versam sobre a conversão do fonema /R/ no grafema “rr”; do flape alveolar /r/ na letra “r” e do arquifonema |R| na letra “r”, auxiliam para explicar estas grafias que constituem uma dificuldade para o aprendiz, sobretudo, a codificação do encontro consonantal com flape /r/. A última regra apresenta uma forma prática de aplicação, ou seja, salvo no contexto entre vogais, o fonema /R/ sempre se escreve com um “r”. As regras C2.13 e C2.14 explicam como as semivogais /j/ e /w/, respectivamente, devem ser grafadas. Scliar-Cabral (2003a, p. 139) alerta quanto à primeira regra que se “[...] trata de uma das codificações mais complexas e 139 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 opacas do português, uma vez que o ditongo nasalizado fica obscurecido na escrita, já que as letras “m” e “n”, quando em final de vocábulo, representam simultaneamente a nasalidade e a semivogal /j/”. Para grafar a semivogal /w/, o princípio da distribuição das vogais também deve ser levado em consideração. Outro ponto que aparece entre as dificuldades de grafia de alunos de vários níveis de ensino é o ditongo nasalizado /ãw/. O primeiro aspecto que deve ser observado é a tonicidade, que pode ser completado pela morfossintaxe, ou seja, a que classe gramatical, verbo ou nome, a palavra pertence. A regra C2.15, subdividida em outras seis, regula que acento de intensidade poderá ser grafado nas vogais e em que condições. A última regra desse subgrupo aborda a grafia das vogais nasalizadas sob três aspectos: o uso do til em “ã” e “õ”; a nasalização da vogal, em final de sílaba não final de vocábulo, na qual se explica a grafia de “m” diante das consoantes [+ ant, -cor] como em “tempo”; a nasalização das vogais em final de vocábulo, por exemplo, “ruim”, “batons”. Atividades de Estudos: 1) Leia com atenção o texto que segue e depois realize as tarefas solicitadas: EMERGÊNCIA É fácil identificar o passageiro de primeira viagem. É o que já entra no avião desconfiado. O cumprimento da aeromoça, na porta do avião, já é um desafio para a sua compreensão. - Bom dia... - Como assim? Ele faz questão de sentar num banco de corredor, perto da porta. Para ser o primeiro a sair no caso de alguma coisa dar errado. Tem dificuldade com o cinto de segurança. Não consegue atá-lo. Confidencia para o passageiro ao seu lado: - Não encontro o buraquinho. Não tem buraquinho? Acaba esquecendo a fivela e dando um nó no cinto. Comenta, 140 Neurociência: evolução e atualidade com um falso riso descontraído: “Até aqui, tudo bem”. O passageiro ao lado explica que o avião ainda está parado, mas ele não ouve. A aeromoça vem lhe oferecer um jornal, mas ele recusa. - Obrigado. Não bebo. Quando o avião começa a correr pela pista antes de levantar voo, ele é aquele com os olhos arregalados e a expressão de Santa Mãe do Céu! No rosto. Com o avião no ar, dá uma espiada pela janela e se arrepende. É a última espiada que dará pela janela. Mas o pior está por vir. De repente ele ouve uma misteriosa voz descarnada. Olha para todos os lados para descobrir de onde sai a voz. “Senhores passageiros, sua atenção, por favor. A seguir, nosso pessoal de bordo fará uma demonstração derotina do sistema de segurança deste aparelho. Há saídas de emergência na frente, nos dois lados e atrás”. - Emergência? Que emergência. Quando eu comprei a passagem ninguém falou nada em emergência. Olha, o meu é sem emergência. Uma das aeromoças, de pé ao seu lado, tenta acalmá-lo. - Isto é apenas rotina, cavalheiro. - Odeio a rotina. Aposto que você diz isso para todos. Ai meu santo. “No caso de despressurização da cabina, máscaras de oxigênio cairão automaticamente de seus compartimentos”. - Que história é essa. Que despressurização? Que cabina? “Puxe a máscara em sua direção. Isso acionará o suprimento de oxigênio. Coloque a máscara sobre o rosto e respire normalmente”. - Respirar normalmente?! A cabina despressurizada, máscaras de oxigênio caindo sobre nossas cabeças – e ele quer que a gente respire normalmente?! “Em caso de pouso forçado na água...” 141 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 - O quê?! “... os assentos de suas cadeiras são flutuantes e podem ser levados para fora do aparelho e...” - Essa não! Bancos flutuantes, não! Tudo, menos bancos flutuantes! - Calma, cavalheiro. - Eu desisto! Parem este troço que eu vou descer. Onde é a cordinha? Parem! - Cavalheiro, por favor. Fique calmo. - Eu estou calmo. Calmíssimo. Você é que está nervosa e, não sei por quê, está tentando arrancar as minhas mãos do pescoço deste cavalheiro ao meu lado. Que, aliás, também parece consternado e levemente azul. - Calma! Isso. Pronto. Fique tranquilo. Não vai acontecer nada. - Só não quero mais ouvir falar de banco flutuante. - Certo. Ninguém mais vai falar em banco flutuante. Ele se vira para o passageiro ao lado, que tenta desesperadamente recuperar a respiração, e pede desculpas. Perdeu a cabeça. - É que banco flutuante foi demais. Imagine só. Todo mundo flutuando sentado. Fazendo sala no meio do Oceano Atlântico! A aeromoça diz que lhe vai trazer um calmante e aí mesmo é que ele dá um pulo: - Calmante, por quê? O que é que está acontecendo? Vocês estão me escondendo alguma coisa! Finalmente, a muito custo, conseguem acalmá-lo. Ele fica rígido na cadeira. Recusa tudo que lhe é oferecido. Não quer o almoço. Pergunta se pode receber a sua comida em dinheiro. Deixa cair a cabeça para trás e tenta dormir. Mas, a cada sacudida do avião, 142 Neurociência: evolução e atualidade abre os olhos e fica cuidando a portinha do compartimento sobre sua cabeça, de onde, a qualquer momento, pode pular uma máscara de oxigênio e matá-lo do coração. De repente, outra voz. Desta vez é a do comandante. - Senhores passageiros, aqui fala o comandante Araújo. Neste momento, à nossa direita, podemos ver a cidade de... Ele pula outra vez da cadeira e grita para a cabina do piloto: - Olha para a frente, Araújo! Olha para a frente! Fonte:VERISSIMO, Luis Fernando. Emergência. Para gostar de ler. São Paulo: Ática, 1981. a) Localize, no texto, 10 palavras em que estejam presentes codificação independente do contexto. Destaque nelas os grafemas que são exemplos desta situação. b) No texto, você irá encontrar situações em que a grafia é dependente do contexto grafêmico ou da posição do grafema. Sua tarefa é localizar exemplos referentes aos fonemas ou casos enumerados e, partindo, deles, explicar a regra de codificação: a) /k/ _________________________________________________ b) /g/ _________________________________________________ c) / ʒ / _________________________________________________ d) /l/ __________________________________________________ e) /s/ __________________________________________________ f) /∫/ __________________________________________________ g) /r/ __________________________________________________ h) /R/ _________________________________________________ i) Grafia das vogais nasalizadas __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ 143 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ Até aqui você aprendeu que há situações como em “pata” que não temos problemas algum para escolher que grafemas irá representar qual fonema, pois para representar o fonema /p/ existe apenas o grafema “p”. Depois, você estudou que há situações em que não é necessário decorar a grafia das palavras, pois há uma regra que pode generalizar a situação. Um exemplo disso é a grafia de deixa com “x” e não “ch” para representar o fonema /∫/. Agora, iremos entrar na parte mais complexa da grafia: os contextos competitivos, ou seja, situações em que um mesmo fonema pode ser representado por dois ou mais grafemas, o que acarreta a dúvida na grafia. As alternativas competitivas constituem a maior dificuldade ortográfica na aprendizagem do sistema escrito. Em casos como o do fonema /s/, que apresenta o maior número de possibilidades de conversão, “[...] é necessário selecionar no léxico mental ortográfico o item que emparelhe semântica e morfossintaticamente com a forma fonológica” (SCLIAR-CABRAL, 2003a, p. 151). Situações dessa natureza podem ser resolvidas e compreendidas se houver um ensino inteligente da gramática que considere: 1) O papel do significado quando os dois itens forem da mesma classe gramatical. Assim, a grafia de “paço” ou “passo”, “sessão” ou “seção” só pode ser resolvida em um contexto no qual o sentido possa ser atribuído pelo redator, uma vez que as duas situações se apresentam diante de vogal [+post]. 2) A morfologia, especialmente, a derivação. Já a codificação do fonema /ʒ/ em “viagem” e “viajem” se dá de forma diferente, pois, no primeiro caso, tem-se um substantivo derivado do radical “via-“ acrescido do sufixo “-agem”; em “viajem” (terceira pessoa do plural do presente do subjuntivo do verbo viajar), tem- se uma derivação da primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Outra dificuldade encontrada na aprendizagem dos contextos competitivos é a realização do fonema /z/ entre vogal oral ou semivogal e vogal oral ou nasalizada, pois é possível grafar tanto com “s” quanto com “z”. Em situações como a grafia de “quiser”, “fizer”, “inglesa”, “beleza” e “lapiseira”, novamente o ensino da morfologia auxiliará na resolução da dúvida levando-se em conta: a forma primitiva do perfeito; os femininos pátrios; os substantivos abstratos femininos que usam o sufixo “-eza” e os derivados de radicais atemáticos terminados em “s” como “lápis”. 144 Neurociência: evolução e atualidade A conversão do arquifonema |W| pode ocorrer em quatro diferentes situações nas quais se escreve competitivamente: 1) “o” ou “u” nos ditongos crescentes orais; 2) “u” ou “l” em ditongo decrescente em sílaba interna como em “calda” e “cauda”; 3) “o”, “u” ou “l” em final de vocábulo nos ditongos decrescentes como em “mau” e “mal”; 4) “o” ou “u” no ditongo seguido do arquifonema |S| como em “ateus”. Destes casos, o mais complexo é o terceiro, visto que “[...] é particularmente difícil decidir quando escrever ‘mal’ ou ‘mau’, pois, dada a semelhança semântica, somente os conhecimentos de morfologia e de sintaxe podem resolver.” (SCLIAR- CABRAL, 2003b, p. 95). No exemplo dado na situação 2, novamente a atribuição do sentido irá auxiliar na escolha de que letra usar na conversão do arquifonemaem questão. Outro contexto competitivo é o das vogais orais [+alt] postônicas seguidas ou não do arquifonema |S| que podem ser grafadas com “e”/”i” ou “o”/”u”. Em uma situação como em “descrição” e “discrição”, a realização das vogais pretônicas orais [+alt] é livre, podendo ser pronunciada tanto com [e] como com [i]. Casos assim são comuns entre os homônimos não homógrafos (vocábulos com a mesma pronúncia, mas grafia distinta), daí a necessidade de um ensino que, além do significado dos radicais, também contemple a significação de alguns prefixos que constituem pares mínimos na escrita como é o caso de: “dis-”/”des-”, “e-”/ “i-”, “anti-”/ “ante-”, “en(m)-”/ “in(m)-”. Por exemplo, é fácil distinguir descrição e discrição, anti-horário e antebraço, emigrar e imigrar apenas considerado seu prefixo e o significado que ele imputa à palavra. Este subconjunto de regras sinaliza que o ensino dos contextos competitivos requer um profissional que trabalhe os conhecimentos gramaticais e o significado de forma a auxiliar o aprendiz a resolver suas dúvidas, compreendendo que conhecimentos são necessários para tomar a decisão certa em cada situação. O que se percebe nos contextos competitivos é que não há necessidade de memorizar todos os vocábulos, a fim de armazená- los no léxico mental ortográfico, pois há muitas dúvidas que podem ser resolvidas com o auxílio da informação semântica, da informação morfológica ou do radical, no caso dos termos cognatos. Atividade de Estudos: 1) Uma das maiores dificuldades para a codificação se deve às alternativas competitivas. Sua tarefa é localizar em materiais Nos contextos competitivos é que não há necessidade de memorizar todos os vocábulos, a fim de armazená-los no léxico mental ortográfico. 145 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 utilizados por você palavras que ilustrem as três situações distintas e discutir cada uma delas: a) Explicadas pela informação semântica: ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ b) Explicadas pela diferença morfológica: ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ c) Dependentes do léxico mental ortográfico: ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ As Contribuições dos Estudos Psicolinguísticos para Detectar Problemas de Processamento Até aqui você pode compreender que a aprendizagem da leitura e da escrita depende de uma série de fatores, entre eles, o processamento e a compreensão de como o sistema alfabético do português do Brasil está organizado. Com os conhecimentos produzidos pela psicolinguística, aliados às contribuições das neurociências, é possível realizar diagnósticos que permitam aos educadores traçar um perfil dos alunos que recebem no que tange às dificuldades de aprendizagem e uma reflexão sobre as metodologias e materiais usados para o ensino da leitura e da escrita. Vale ressaltar que aqui não se faz referência apenas aos anos iniciais, pois há alunos que chegam aos anos finais sem domínio pleno da leitura e da escrita. Diagnosticar é o primeiro passo para o desenvolvimento de ações que sejam eficazes. 146 Neurociência: evolução e atualidade a) Instrumentos de diagnóstico Uma das primeiras ações é conhecer mais sobre a infância do aluno analisado e suas relações familiares, especialmente no que tange ao contato com material escrito, tarefas escolares, desempenho em anos anteriores, momento em que entrou na escola, situação na educação infantil. Para isso, pode-se elaborar um questionário que pode ser aplicado em uma visita domiciliar, a fim de conversar com a família. Aliado a isso, sugerimos duas ações: a) aplicação da bateria de testes de recepção e produção da língua portuguesa de Scliar-Cabral; b) análise de textos escritos. A bateria de testes tem, como objetivo, segundo Scliar-Cabral (2003b, p.119): [...] detectar sintomas mais evidentes sobre desvios na recepção oral e escrita e respectiva produção, a fim de que o professor possa encaminhar o aluno para exames mais acurados pelo especialista. Assim, se o aluno apresentar dificuldades no teste de recepção oral, deve ser encaminhado para exame audiométrico pelo fonoaudiólogo e/ou otorrino; se não apresentar dificuldades no teste de recepção oral, porém articular mal os gestos fonoarticulatórios, deverá ser encaminhado a um fonoaudiólogo. Se não apresentar nenhum problema no teste de recepção e produção oral, mas se sair mal nos testes de descodificação dos grafemas ou codificação dos fonemas, poderá ter problemas específicos de leitura e escrita, quer congênitos, quer de aprendizagem, que deverão ser examinados pelo especialista. Se o aluno se sair bem nos testes de descodificação e codificação, mas apresentar baixos escores nos testes de compreensão, seu problema não está no reconhecimento ou produção da palavra escrita, mas sim em aspectos semânticos e/ou cognitivos mais gerais. Aqui se fará uma breve descrição dos testes que compõem a referida bateria, mas aconselhamos que você consulte a obra referendada, a fim de ter acesso a todo o matéria: cartelas de aplicação, detalhamento das condições de aplicação, fichas de anotação e orientação de análise de resultados. Vamos, então, a um panorama: ao todo são nove testes a serem aplicados os quais são apresentados nesta ordem: • Testes de recepção oral, subdivididos em recepção auditiva dos traços fonéticos do português do Brasil e em compreensão de frases, cuja complexidade e extensão são crescentes. O primeiro visa a detectar se o indivíduo percebe os traços fonéticos que diferenciam os vocábulos no português do Brasil e o segundo verifica se o indivíduo apresenta problemas de processamento em sua memória imediata e operacional. 147 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 • Testes de produção oral também subdivididos em produção oral de itens e de frases. Estes testes objetivam detectar se o indivíduo comanda os gestos fonoarticulatórios da sua variedade sociolinguística. • O objetivo do teste Invenção a partir de uma sequência é examinar se os esquemas narrativos estão bem desenvolvidos. • O teste Reconto da história “O galo vaidoso” verifica tanto se os esquemas narrativos estão bem desenvolvidos (habilidades cognitivas de ordenação) como avalia as capacidades da memória imediata e operacional. • Emparelhamento de palavras e frases escritas com gravuras visa a avaliar a habilidade de o indivíduo perceber a oposição entre grafemas em pares mínimos. Este teste é subdividido em emparelhamento de itens e de frases escritas. • Produção a partir de gravuras é o teste que tem como finalidade averiguar se o indivíduo transpõe para a escrita suas representações fonológicas. Este também é subdividido em produção escrita de itens e frases. • Teste de correspondência fonológico-grafêmica testa se as regras de codificação dos fonemas em grafemas foram internalizadas de uma forma controlada, uma vez que se trata de pseudopalavras. O teste está organizado a fim de detectar quatro dificuldades: de percepção da distinção do traço fonético em um parmínimo e sua codificação fonêmica; de percepção dos traços gráficos; adivinhação ou alfabetização pelos nomes das letras; falta de domínio das regras de codificação dependentes do contexto fonético. • O teste de correspondência grafêmico-fonológica foi elaborado a fim de detectar cinco dificuldades: de articular o traço que diferencia os pares mínimos; de perceber as distinções ocasionadas pelo traço de rotação ou combinatória de outros traços; adivinhação ou nome da letra; falta de domínio da regra de correspondência grafêmico- fonológica; problemas fonoarticulatórios. • Teste de leitura em voz alta e de compreensão de palavras. O de leitura em voz alta visa a confirmar o desempenho nos testes anteriores quanto à descodificação e o de compreensão , como o próprio nome indica, verifica se o indivíduo compreendeu o que leu. Este conjunto de testes irá permitir ao educador ou profissional da área de problemas de aprendizagem traçar um perfil do sujeito, tanto quanto às suas dificuldades para aprender a ler e escrever, como Este conjunto de testes irá permitir ao educador ou profissional da área de problemas de aprendizagem traçar um perfil do sujeito, tanto quanto às suas dificuldades para aprender a ler e escrever, como também possibilitará o levantamento de conhecimentos já construídos pelo aluno e que, muitas vezes, são desconsiderados ou esquecidos em seu processo escolar. 148 Neurociência: evolução e atualidade também possibilitará o levantamento de conhecimentos já construídos pelo aluno e que, muitas vezes, são desconsiderados ou esquecidos em seu processo escolar. Outro aspecto importante, na aplicação da bateria, é a quebra de rótulos indevidos atribuídos ao aluno. Muitas vezes, o aluno é considerado disléxico, mas a aplicação revela que o que ele apresenta não é esse problema, mas outro que está relacionado às questões de aprendizagem do sistema escrito. Diante disso, é importante, antes de afirmar que o aluno tem um outro problema, que seja feito um diagnóstico sério. A bateria é um bom instrumento, mas não consegue abarcar todos os problemas de escrita, por isso, sugerimos que sejam coletados textos do aluno tanto em situação normal de aprendizagem (os cadernos são um bom material para análise) e em situação em que ele seja solicitado a produzir, por exemplo, uma narrativa com base nos quadros de sequência do teste 3 da bateria. Mas pode ser outra sugestão de produção a ser negociada com o sujeito a ser investigado. Um dos primeiros aspectos a serem considerados nos textos do aluno é se as necessidades básicas para alfabetização foram alcançadas. Para que você tenha ciência disso, apresentamos uma síntese comentada do que Lemle (1998) apresenta em sua obra. A ideia de símbolo: “a ideia de símbolo é complicada. Uma coisa é símbolo de outra sem que nenhuma característica sua seja semelhante a qualquer coisa simbolizada”. (LEMLE, 1998, p.7) Dá exemplo de símbolos: sinais, placas, dedos, bandeira, etc. “Uma criança que ainda não consiga compreender o que seja uma relação simbólica entre dois objetos não conseguirá aprender a ler”.(LEMLE, 1998, p. 8). A discriminação das formas: “As letras, para quem ainda não se alfabetizou, são risquinhos pretos na página branca. O aprendiz precisa ser capaz de entender que cada um daqueles risquinhos vale como símbolo de um som da fala. Assim sendo, o aprendiz deve poder discriminar as formas das letras. As letras do nosso alfabeto têm formas bastante semelhantes e, por isso, a capacidade de distingui- las exige refinamento de percepção”. (LEMLE, 1998, p. 8). A autora dá exemplo das letras: p/b; b/d; n/m; l/a/o. Aqui podem ser recuperados os estudos sobre fenômeno da rotação discutidos na área de psicolinguística e neurociências. “[...] Só será capaz de escrever aquele que tiver a capacidade de perceber as unidades sucessivas de sons da fala utilizadas para enunciar as palavras e de distingui-las conscientemente uma das outras. [...] a análise [...] é bem sutil: ela deve ter consciência dos pedacinhos que compõem a corrente da fala e perceber as diferenças de som pertinentes à diferença de letras”. (LEMLE, 1998, p. 9). Na bateria de testes, os testes 7 e 8 são contemplados com palavras que permitem 149 As Contribuições Teóricas das Neurociências e da Psicolinguística para a Compreensão do Processo de Ensino-Aprendizagem da Língua Escrita Capítulo 4 identificar problemas com a rotação de traços. Por exemplo, na cartela 1 (abaixo), o “q’ de “qudo” apresenta rotação de traço em relação ao “p” e ao “b”. Podendo, assim, ajudar a identificar esse tipo de problema. pudo Budo qudo lopa pude A discriminação dos sons da fala: o aprendiz precisa ter consciência da percepção auditiva. É preciso saber ouvir diferenças: pé/fé (consoante inicial com modo de articulação distinto); toca/doca (surdo e sonoro); vim/vi (nasalidade/ oralidade). A cartela 1, apresentada anteriormente, mostra esta oposição entre o fonema /p/ de “pudo” e o fonema /b/ de “budo”. Além desses testes, também os testes 1,2, 5 e 6, cujas cartelas são organizadas com pares mínimos, permitem identificar problemas dessa natureza. Entre os pares mínimos selecionados para o diagnóstico, estão, por exemplo, faca/vaca, queijo/queixo, bote/pote, concha/ coxa, três/trens. “Essas três capacidades [...] São as partes componentes da capacidade de fazer uma ligação simbólica entre sons da fala e letras do alfabeto. A 1ª é a capacidade de compreender a ligação simbólica entre letras e sons da fala. A 2ª é a capacidade de enxergar as distinções entre letras. A 3ª é capacidade de ouvir e ter consciência dos sons da fala, com suas distinções relevantes na língua.” (LEMLE, 1998, p. 9). Consciência da unidade palavra: “[...] o importante, na ideia da unidade palavra, é que ela é o cerne da relação simbólica essencial contida numa mensagem linguística: a relação entre conceitos e sequências de sons da fala. Temos, portanto, na escrita, duas camadas sobrepostas de relação simbólica: uma relação entre a forma da unidade palavra e seu sentido e a sequência de letras que transcrevem a palavra.” (LEMLE, 1998, p. 11). Esta relação, na prática escolar da alfabetização, torna-se uma questão polêmica: “[...] alguns acham essencial que todas as palavras utilizadas nas primeiras etapas da alfabetização sejam conhecidas pelo alfabetizando. [...]. Outros acham que pode ser bom aprender palavras novas e brincar com sons desprovidos de sentido, pois isso ajuda o aprendiz a compreender a ideia de que as letras representam os sons da fala, e não diretamente o sentido.” (LEMLE, 1998,, p. 12). “O tipo de dificuldade na depreensão de unidades vocabulares que se observa muitas vezes [...] são umavez, nonavio, minhavó, ou seja, falta de separação onde existe uma fronteira vocabular.” (LEMLE, 1998,, p.10). Quanto a esse aspecto, Scliar-Cabral (2003 150 Neurociência: evolução e atualidade b) chama atenção para o fenômeno sândi que pode ser externo ou interno o qual pode ser observado no teste de leitura em voz alta. “A alocação errada de fronteiras vocabulares onde não existe acontece, por exemplo, com palavras femininas que começam com [a] – minha miga, em vez de minha amiga – ou com palavras masculinas que começam com [u] – o niverso, em vez de o universo.” (SCLIAR-CABRAL, 2003b, p.10-11). o alfabetizando também deve reconhecer sentenças que são representadas por letra maiúscula para indicar o início e o ponto, o término. Mas isso não precisa acontecer logo no início, “[...] pois o aprendiz pode aprender a tomar consciência dessa unidade no decorrer de suas primeiras leituras.”(SCLIAR-CABRAL, 2003b, p. 2). A organização da página escrita: desde o início do trabalho de alfabetização, deve ficar estabelecida a compreensão
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