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Sepse e Choque Séptico Luciano César Pontes de Azevedo Vladimir Ribeiro Pinto Pizzo Rogério Zigaib CAPÍTULO 29 INTRODUÇÃO E DEFINIÇÕES Em 1991, uma conferência de consenso envolvendo es- pecialistas de diversas áreas que atuam no tratamento do pa- ciente séptico realizou uma tentativa de padronizar as definições destas doenças (Tabela 29.I). A partir de então, os termos SRIS (síndrome da resposta inflamatória sistêmica) e sepse passaram a ser incorporados definitivamente no jargão médico e os termos prévios vagos septicemia e síndrome séptica foram abandonados. De acordo com os critérios ado- tados nessa conferência, sepse é a síndrome da resposta in- flamatória sistêmica associada a infecção fortemente suspei- ta ou documentada, ou seja, não há necessidade de culturas positivas para o diagnóstico. Do mesmo modo, choque sép- tico é a sepse na qual há necessidade de uso de vasopressores após uma reposição volêmica adequada (Tabela 29.I). A despeito de considerável debate acerca da inespecifici- dade das definições de SRIS e sepse, esta terminologia persiste atual e adequada. Uma nova conferência de consenso realiza- A evolução dos pacientes com sepse/choque séptico depende fundamentalmente da identificação precoce do quadro, bem como da precocidade e da eficácia do tratamento adotado na sala de emergência. O tratamento geral da sepse inclui ressuscitação volêmica precoce guiada por metas, antibioticoterapia imediata e remoção de focos infecciosos. Quando necessário, o suporte com drogas vasoativas e inotrópicos deve ser instituído. Sepse é uma das condições associadas a maior morbimortalidade em UTIs, bem como a custos elevados de tratamento. A despeito de sua considerável inespecificidade para diagnóstico de sepse, os termos SRIS, sepse, sepse grave e choque séptico permanecem atuais e úteis na classificação das diversas etapas da doença. A fisiopatologia do episódio séptico depende da interação entre células inflamatórias do hospedeiro com produtos bacterianos, com produção de diversos mediadores responsáveis pelo surgimento de disfunção orgânica. Os critérios diagnósticos para sepse incluem os achados clínicos e laboratoriais habituais, bem como sinais de disfunção orgânica. A ausência de uma característica clínica, bem como de exames laboratoriais específicos para sepse, tornam mais importante a suspeita clínica precoce com o objetivo de evitar a progressão da doença para disfunção de múltiplos órgãos. Estratégias específicas para sepse grave/choque séptico incluem ressuscitação volêmica guiada por PVC e saturação venosa central (SvcO2) nas seis primeiras horas no pronto-socorro. Outras medidas, como controle glicêmico, corticoterapia (em baixas doses) e uso de proteína C ativada, podem ser úteis e melhoram o prognóstico desses pacientes em determinadas situações. O prognóstico da sepse depende fundamentalmente do número de órgãos envolvidos, contudo, mesmo pacientes com recuperação completa das disfunções orgânicas podem permanecer limitados em suas atividades diárias. A mortalidade em pacientes com choque séptico e mais de três órgãos disfuncionais é em torno de 80%. Pacientes que desenvolvem SARA/LPA devem receber ventilação mecânica com estratégia protetora: volume corrente baixo (4 a 6 mL/kg) e limitando pressões de vias aéreas (Pplatô < 30 cmH2O). TÓPICOS IMPORTANTES Infecção: Fenômeno microbiano caracterizado por resposta inflamatória reacional à presença de microrganismos ou à invasão de tecidos normalmente estéreis àqueles microrganismos. SRIS (síndrome da resposta inflamatória sistêmica): Resposta inflamatória generalizada do organismo a diversos agressores, como: trauma, queimaduras, pancreatite, sepse etc. Dois ou mais dos critérios abaixo são necessários para estabelecer o diagnóstico: • Temperatura maior que 38,3ºC ou central menor que 36ºC. • Frequência cardíaca acima de 90 bpm. • Frequência respiratória maior que 20 ipm, ou PaCO2 menor que 32 mmHg ou ainda necessidade de ventilação mecânica por um processo agudo. • Leucocitose maior que 12.000/mm3 ou leucopenia menor que 4.000/mm3 ou ainda presença de mais de 10% de formas imaturas (bastonetes). Sepse: Síndrome da resposta inflamatória sistêmica relacionada à infecção documentada ou presumida. Sepse grave: Sepse associada à hipoperfusão tecidual, hipotensão ou disfunção orgânica (cardiovascular, neurológica, renal, respiratória, hepática, hematológica, metabólica). Choque séptico: Sepse com hipotensão e hipoperfusão não responsiva a volume com necessidade de uso de agentes vasopressores. Síndrome da disfunção de múltiplos órgãos: Presença de função orgânica alterada em pacientes gravemente enfermos, nos quais a homeostase do organismo não pode ser mantida sem intervenção. Tabela 29.I – Definições de infecção, SRIS, sepse, sepse grave e choque séptico CAPÍTULO 29 – SEPSE E CHOQUE SÉPTICO 259 da dez anos após a conferência de 1991 reafirmou o uso dess- es termos, apesar de reconhecer suas diversas limitações. ETIOLOGIA E FISIOPATOLOGIA Apesar dos recentes avanços no entendimento de sua fi- siopatologia e na terapêutica, a sepse é ainda frequente- mente letal, com taxas de mortalidade variando em torno de 20 a 50%, dependendo da série examinada. Além da grande mortalidade associada a essa condição, a morbidade e consequentemente os custos do tratamento também são bastante elevados. A tendência é que o número de casos de sepse venha a aumentar nos próximos anos pelo progressi- vo envelhecimento da população e melhora na sobrevida de pacientes imunossuprimidos (como os portadores de SIDA e neoplasias), o que torna estes indivíduos mais sujeitos a infecções. O uso indiscriminado de antimicrobianos e o consequente surgimento de resistência bacteriana a essas drogas podem também contribuir para o aumento. Os dados epidemiológicos nacionais confirmam a mor- bimortalidade elevada da sepse. O estudo BASES (Brasilian Sepsis Epidemiological Study) identificou entre pacientes internados em diversas UTIs nacionais taxas de mortali- dade de 24,2%, 33,9%, 46,9% e 52,2% para pacientes com SRIS, sepse, sepse grave e choque séptico, respectivamente. Fisiopatologia Embora nos últimos anos tenham ocorrido avanços consideráveis no conhecimento da fisiopatologia da sepse, muito ainda permanece por ser esclarecido, na medida em que a interação microrganismo-hospedeiro é extremamente complexa e o mecanismo fisiopatológico depende, entre ou- tras coisas, do agente causador e do local da infecção. Em termos gerais, após o estímulo infeccioso inicial, a resposta do organismo se compõe da liberação de inúmeros media- dores inflamatórios responsáveis por muitas das caracterís- ticas clínicas que observamos no indivíduo com sepse. As- sim sendo, a liberação de citocinas, como IL-1 β, IL-6 e TNF-α, é associada ao aumento na produção de espécies reativas de oxigênio e óxido nítrico (NO), sendo este último o principal responsável pela vasoplegia que esses pacientes apresentam. Por sua vez, a liberação de citocinas é responsá- vel por ativar leucócitos, com seu recrutamento ao local de infecção, sua adesão ao endotélio, diapedese e liberação nos tecidos de espécies reativas de oxigênio e enzimas como a elastase neutrofílica, que por sua vez causarão lesão tecidual, contribuindo assim para a disfunção de múltiplos órgãos. A ativação de células do sistema imune é também capaz de in- duzir a ativação da cascata de coagulação com expressão de fator tecidual e inibição da fibrinólise, com formação de mi- crotrombos em arteríolas e capilares, os quais, por obstruí- rem o fluxo sanguíneo, geram hipoxia tecidual e agravam a disfunção orgânica. Por outro lado, muitos investigadores acreditam que a sepse, após ou mesmo durante esse estado de imunoestimulação, associa-se a um quadro de imunode- pressão por liberação conjunta de citocinas anti-inflamató- rias,o qual pode ser responsável pela incidência aumentada de novas infecções durante a internação na UTI. Em termos de microbiologia, qualquer microrganismo pode provocar sepse ou choque séptico, incluindo bactérias, vírus, protozoários, fungos e espiroquetas. Atualmente, vem aumentando a incidência de sepse fúngica e por Gram-posi- tivos. Frequentemente a sepse por Gram-negativo é indistin- guível daquela por Gram-positivo, quando avaliada apenas sob características clínicas. Contudo, alguns fatores epidemio- lógicos, do hospedeiro e clínicos podem aumentar a probabi- lidade de infecção por um determinado microrganismo. ACHADOS CLÍNICOS Além dos critérios descritos na definição de sepse, di- versos outros achados clínicos podem ser encontrados nos indivíduos sépticos. Estes achados, reunidos abaixo e des- critos pelos especialistas após a conferência de definições de sepse de 2001, frequentemente são correlacionados com sinais de disfunção orgânica (Tabela 29.II). Em termos hemodinâmicos, a sepse caracteriza-se inicial- mente por uma fase hipodinâmica às custas de redução do volume intravascular e eventualmente depressão miocárdica. Após ressuscitação, tipicamente ocorre evolução para um padrão hemodinâmico de débito cardíaco elevado, redução da resistência vascular sistêmica por vasoplegia, bem como elevação do lactato arterial e redução da perfusão tecidual, com alteração do enchimento capilar. A saturação venosa tipicamente é alta e a presença de ânions não mensuráveis al- tera o déficit de base na gasometria arterial. É importante salientar que o diagnóstico precoce de sepse, principalmente nas suas formas mais graves, reveste-se de importância prognóstica, na medida em que, uma vez sendo adiados o diagnóstico e o tratamento, a chance de que haja evolução para insuficiência de múltiplos órgãos aumenta, o que, em úl- tima análise, é a grande causadora de óbito nesses indivíduos. EXAMES COMPLEMENTARES Infelizmente, não existe um exame laboratorial especí- fico para o diagnóstico de sepse. Em termos laboratoriais, a presença de leucopenia, a despeito de ser previamente con- siderada como indício de infecção por Gram-negativo, atualmente é mais correlacionada com infecção grave e imunossupressão, o que confere a esses pacientes um pior prognóstico. Estes indivíduos têm ainda frequentemente re- dução das contagens plaquetárias, bem como alteração dos tempos de coagulação, com aumento dos produtos de de- gradação da fibrina, dímero-D e redução do fibrinogênio, o que indica a presença de coagulopatia de consumo. A hiperglicemia é achado comum nesses pacientes e usualmente reflete a ação de hormônios contrarreguladores, como epinefrina, cortisol e glucagon. Outros achados labo- ratoriais se correlacionam com as disfunções orgânicas e in- cluem elevação de enzimas hepáticas e bilirrubinas, elevação das escórias nitrogenadas, hipoxemia e hipocapnia na gasome- tria, bem como presença de acidose metabólica. A incidência de culturas positivas em pacientes sépticos é de cerca de 45% das amostras. Apesar disso, todos os pa- cientes sépticos devem ter culturas colhidas imediatamente após o diagnóstico, pois diversos estudos demonstram que PRONTO-SOCORRO SEÇÃO II – ABORDAGEM INICIAL DO PACIENTE GRAVE260 a antibioticoterapia precoce e empírica inicialmente segui- da por ajuste após resultado de culturas associa-se a re- dução da mortalidade nestes indivíduos. Os exames de imagem são úteis no choque séptico para identificar o local de infecção. Assim, a radiografia de tórax pode demonstrar presença de pneumonia ou síndrome do desconforto respiratório agudo. A ultrassonografia e a to- mografia computadorizada podem ser úteis para identificar o local da infecção e na identificação de novas coleções em pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos prévios e que estejam evoluindo com novos episódios de sepse. TRATAMENTO Princípios gerais Indivíduos em sepse grave e choque séptico devem ser conduzidos em UTI, ou, numa fase inicial, em unidades de emergência adequadas para o seu cuidado, com monitori- zação eletrocardiográfica e de oximetria de pulso contínuas. Seu manejo clínico deve, de modo geral, ser norteado pelos princípios descritos na Tabela 29.III. Aqueles indivíduos em que as metas não são atingidas com a simples infusão volêmica são bons candidatos à monitorização hemodinâmica invasiva. Volemia Em linhas gerais a medida inicial sempre é a restauração da volemia conseguida por expansão do intravascular, feita através de provas de volume, ou seja, infusão rápida de uma solução de expansão, que pode ser cristaloide ou coloide. As “provas de volume” devem ser pautadas pelos seguintes princípios (capítulo sobre Hipotensão e choque): 1. Escolha da solução: basicamente se será utilizado um cristaloide (soro fisiológico). 2. Objetivos: o que se espera alcançar para avaliar a efetivi- dade do processo, assim como decidir se a prova volêmi- ca deve ser continuada ou interrompida (por exemplo: queda da frequência cardíaca, elevação da pressão arteri- al ou da saturação venosa). 3. Limites: até quando levar a prova sem gerar prejuízos ao paciente (congestão pulmonar, elevação das pressões de enchimento além de valores predeterminados). Vasopressores Dopamina e noradrenalina são eficientes na elevação da pressão arterial, em especial se o indivíduo está adequada- mente ressuscitado do ponto de vista volêmico. A dopamina eleva o débito cardíaco, porém é potencialmente mais arrit- mogênica que a noradrenalina. A noradrenalina pode ter atividade vasopressora mais pronunciada em determinados indivíduos e parece associar-se a um efeito benéfico mais Infecção documentada ou suspeita e alguns dos seguintes critérios (1, 2, 3, 4, 5): 1 – Variáveis gerais • Febre (temperatura central > 38,3ºC) • Hipotermia (temperatura central < 36ºC) • Frequência cardíaca > 90 bpm • Taquipneia (frequência respiratória > 20 ipm) • Alteração neurológica • Edema significativo ou balanço hídrico positivo (> 20 mL/kg em 24 horas) • Hiperglicemia (glicemia maior que 120 mg/dL) na ausência de diabetes 2 – Variáveis inflamatórias • Leucocitose (> 12.000/mm3) • Leucopenia (< 4.000/mm3) • Contagem leucocitária normal com mais de 10% de formas imaturas • Níveis plasmáticos de proteína C-reativa aumentados 2 vezes do normal • Níveis plasmáticos de procalcitonina aumentados 2 vezes do normal 3 – Variáveis hemodinâmicas • Hipotensão arterial (PAS < 90 mmHg, PAM < 70 mmHg ou decréscimo maior que 40 mmHg em adultos) • SvO2 > 70% • Índice cardíaco acima de 3,5 L/min/m2 4 – Variáveis de disfunção orgânica • Hipoxemia (PaO2/FiO2 < 300) • Oligúria aguda (débito urinário < 0,5 mL/kg/h por pelo menos 2 horas) • Aumento na creatinina maior que 0,5 mg/dL • Íleo (ruídos hidroaéreos ausentes) • Trombocitopenia (contagens plaquetárias < 100.000/mm3) • Hiperbilirrubinemia (> 4 mg/dL) • Alterações de coagulação (INR > 1,5 ou TTPa > 60 s) 5 – Variáveis de perfusão tecidual • Hiperlactatemia • Redução do enchimento capilar Tabela 29.II – Critérios diagnósticos para sepse • Instituição de antibioticoterapia precoce e adequada (idealmente orien- tada por pesquisas microbiológicas como culturas e bacterioscopias). • Resolução de processos instalados, localizados e tratáveis por intervenções médicas (drenagens de coleções, exérese das lesões responsáveis etc.). • Ressuscitação hemodinâmica iniciada prontamente e perseguida vigorosamente. Medidas de otimização da perfusão tissular são mais efetivas se atingidas precocemente. • Monitorização invasiva de pressão arterial é preferida, pois permite medidas mais acuradas e entendimento batimento a batimento dos processos envolvidos na instabilidade. • As metas de ressuscitação devem ser definidas do ponto de vista clínico (frequência cardíaca, pressão arterial,débito urinário, nível de consciência) e laboratorial (níveis de lactato, excesso de base e saturação venosa de oxigênio). • Acesso às pressões de enchimento das câmaras cardíacas pode ser obtido através da cateterização venosa central ou utilização de cateter de artéria pulmonar que pode, ainda, fornecer dados como débito cardíaco e saturação venosa central mista. • Ressuscitação volêmica: deve ser o passo inicial do processo e orientada por metas. Tabela 29.III – Princípios do manejo do choque séptico CAPÍTULO 29 – SEPSE E CHOQUE SÉPTICO 261 importante que a dopamina nos indivíduos sépticos (capí- tulo sobre Hipotensão e choque). Um estudo recente de grande porte em pacientes com choque de qualquer etiolo- gia demonstrou que, a despeito de não haver diferença em termos de mortalidade, a utilização de dopamina para su- porte vasopressor nesses pacientes associou-se a uma maior incidência de arritmias cardíacas, sugerindo assim que a no- radrenalina é a melhor droga para suporte hemodinâmico de pacientes com choque. Na Tabela 29.IV estão relaciona- dos os medicamentos mais usados no choque séptico, com os princípios para o uso de cada um deles. Ressuscitação volêmica precoce guiada por metas Esta estratégia baseia-se num protocolo de condução inicial de doentes com sepse grave e choque séptico ressus- citados nas primeiras 6 horas (golden hours), ainda na sala de emergência. Neste estudo, o tratamento era guiado pela pressão venosa central (PVC), pressão arterial média (PAM), débito urinário nos dois grupos com a adição da saturação venosa central (SvcO2) no grupo-intervenção. A variável- objetivo do grupo-intervenção era uma SvcO2 acima de 70%. Esta monitorização só é possível com a obtenção de um acesso venoso profundo (no caso um cateter venoso central com um sensor que monitorizava, em tempo real, a porcentagem de hemoglobina saturada por oxigênio naque- la posição). Com base nas variáveis hemodinâmicas acima eram tomadas medidas terapêuticas com o intuito de “otimi- zar” a oferta de oxigênio aos tecidos baseado no conceito de adequação oferta/consumo de oxigênio estimando uma taxa de extração de oxigênio (SaO2-SvcO2/SaO2) em torno de 25 a 30%. Estas estratégias eram perseguidas através de adequa- ção volêmica (estimada pela PVC – pressão de enchimento do átrio direito), pressão arterial média (estimativa de pres- são de perfusão orgânica) e hematócrito, lançando-se mão, portanto, de medidas como expansão volêmica, indução de vasoconstrição ou vasodilatação, transfusões sanguíneas ou uso de inotrópicos (dobutamina) para atingir cada um des- tes objetivos, norteados por um objetivo final comum, qual seja, o de obter SvcO2 acima de 70%. A primeira estratégia terapêutica do estudo em questão era a ressuscitação volêmica com soluções cristaloides com estimativa de 30 mL/kg de peso e limitadas a valores de PVC entre 8 e 12 cmH2O ou sinais de sobrecarga volêmica. Uma vez atingidos tais valores, a próxima etapa era a manutenção de uma PAM adequada, a qual seria estabiliza- da com drogas vasopressoras (dopamina ou norepinefrina em doses crescentes) se abaixo de 65 mmHg ou reduzida ar- tificialmente com vasodilatadores (nitroglicerina ou nitro- prussiato) se acima de 90 mmHg. A etapa seguinte de ajuste da oferta/consumo de oxigê- nio do estudo era a obtenção ou manutenção de um hema- tócrito acima de 30% através da oferta de concentrados de hemácias aos pacientes até que fossem atingidos estes valo- res. Uma vez que não houvesse indicação de transfusão ou o valor de SvcO2 ainda não tivesse sido alcançado utilizava- se dobutamina em infusão contínua em doses crescentes com incrementos de 2,5 µg/kg/min a cada 30 minutos até a obtenção da estratégia-alvo. A oferta abundante de oxigê- nio, bem como eventual intubação orotraqueal e paralisa- ção com o intuito de diminuir a demanda de oxigênio, tam- bém faziam parte do protocolo. Um dos dados mais interessantes deste estudo é a ausên- cia de necessidade de determinação do valor número do débito cardíaco (dado extrapolado do conceito de extração, que avalia a adequação DO2 e VO2) para adequação da reposição volêmica. Em relação à análise dos resultados, ob- servou-se que o grupo intervenção recebeu uma quantidade Tabela 29.IV – Medicamentos mais utilizados no choque séptico e princípios para uso Ação Atua em receptores adrenérgicos (principalmente α1 e β1). Aumenta consistentemente a pressão arterial, parece promover melhora sobre a perfusão esplâncnica. Quando comparada à dopamina, causa menos taquicardia e menos alterações endócrinas. Atua em receptores adrenérgicos e dopaminérgicos (daí seus efeitos neuroendócrinos). Quando comparada à noradrenalina aumenta menos consistentemente a pressão arterial, causa taquicardia e taquiarritmias e o uso deve ser limitado em pacientes taquicárdicos. Atua em receptores adrenérgicos. Está indicada em estados de choque refratário. O uso de adrenalina pode estar associado ao aparecimento de febre, diminuição de fluxo esplâncnico e hiperlactatemia. Atua predominantemente em receptores adrenérgicos β1 e β2, atua em diversas condições clínicas, funciona como inotrópico, aumenta a perfusão periférica. Aumenta a frequência cardíaca e o consumo miocárdico de oxigênio, o que limita o uso em pacientes com insuficiência coronariana. Os vasodilatadores estão indicados para pacientes com PAM > 90 mmHg em vigência de quadro séptico, têm a vantagem de início de ação rápida e meia-vida curta quando suspensos. O nitroprussiato é um vasodilatador balanceado arterial e venoso, enquanto a nitroglicerina é predominantemente venosa. Medicamentos Noradrenalina Dopamina Adrenalina Dobutamina Nitroglicerina Nitroprussiato Dose 0,05-2,0 µg/kg/min 5-20 µg/kg/min 0,005-0,1 µg/kg/min 2-30 µg/kg/min 0,05-5 µg/kg/min 0,25-10 µg/kg/min Diluição 1 amp = 4 mg/4 mL 4 amp + 250 mL (SG 5%) conc. 60 µg/mL 1 amp = 50 mg/mL 5 amp + 200 mL (SG 5%) conc. 1.000 µg/mL 1 amp = 1 mg/1 mL 2 amp + 250 mL conc. 8 µg/mL 1 amp = 250 mg/20 mL 4 amp + 170 mL (SG 5%) conc. 4.000 µg/mL 1 amp = 50 mg/10 mL 1 amp + 240 mL (SG 5%) conc. 200 µg/mL 1 amp + 50 mg/2 mL 1 amp + 248 mL (SG 5%) conc. 200 µg/mL PRONTO-SOCORRO SEÇÃO II – ABORDAGEM INICIAL DO PACIENTE GRAVE262 de volume muito semelhante à do grupo controle no total das primeiras 72 horas de tratamento, com a diferença que o volume nas primeiras 6 horas foi muito maior no grupo in- tervenção, ressaltando assim a importância da precocidade da reposição volêmica. Outro dado interessante é a porcenta- gem de uso de dobutamina ainda na sala de emergências do grupo intervenção, 13,7% contra 0,8% no grupo controle. Quanto aos resultados, os indivíduos ressuscitados pre- cocemente com reposição volêmica guiada pela saturação venosa obtiveram uma correção mais rápida dos parâmetros de perfusão tecidual (lactato e excesso de base), redução dos escores de disfunção orgânica e, mais importante, redução de mortalidade aos 28 dias e hospitalar quando comparados aos pacientes do grupo controle, provavelmente às custas de diminuição da incidência de disfunções orgânicas. Mais recentemente, outros estudos ofereceram alterna- tivas à ressuscitação volêmica guiada por saturação venosa de oxigênio. Um estudo em pacientes sépticos realizado em 2010 demonstrou que a ressuscitação hemodinâmica basea- da no clareamento do lactato em 10% nas primeiras 6 horas era equivalente à reanimação utilizando a SvcO2 como refe- rência. Em outro estudo em pacientes hiperlactatêmicos na UTI (não somente sépticos), o clareamento de lactato em 20% reduziu a incidência de disfunções orgânicas. Assim, o lactato também pode ser usado como objetivo da ressuscita- ção volêmica em pacientes sépticos com hiperperfusão. Controle de glicemia Embora seja conhecida há algum tempo a relação entre taxas elevadasde glicemia e mortalidade em UTI, os últi- mos trabalhos com pacientes com complicações predomi- nantemente clínicas não demonstraram redução de mortali- dade quando comparados com pacientes com controle estrito (80-110 mg/dL). Parece haver menor tempo de in- ternação em pacientes com controle estrito que necessitam de internação prolongada. Do ponto de vista prático o protocolo de insulina regu- lar humana diluído em soro fisiológico em infusão con- tínua deve ser ajustado de acordo com a glicemia capilar visando manter os níveis entre 80 e 150 mg/dL. Esses níveis também parecem ser eficientes em diminuir a ocorrência de hipoglicemias associadas ao controle glicêmico. Uso de corticosteroides em baixas doses Foi realizado um estudo multicêntrico, prospectivo, aleatorizado, duplo-cego, placebo-controlado no qual foi administrada dose de 50 mg de hidrocortisona endovenosa a cada 6 horas em associação com 50 µg/dia de fludrocorti- sona ou placebo por 7 dias aos pacientes com critérios de choque séptico em 19 centros franceses após coleta de cor- tisol basal e teste de estimulação com ACTH. Da análise dos dados observou-se que 77% dos pa- cientes apresentavam insuficiência adrenal relativa, ou seja, não apresentavam elevação dos valores do cortisol em níveis adequados após administração do ACTH. Em espe- cial neste grupo, foi observada diminuição do número de dias de uso de drogas vasoativas, assim como de mortali- dade, em comparação com os pacientes que não receberam corticosteroides exógenos. É importante salientar que nesse estudo o uso de corticosteroides não foi associado a efeitos colaterais graves como aparecimento de novas infecções ou sangramento gastrintestinal. Estudos recentes não conseguiram reproduzir trabalhos prévios com administração de corticosteroides em baixas doses em pacientes com choque séptico. A recomendação atual é a administração de corticos- teroides (hidrocortisona 50 mg 6/6h) para pacientes com choque séptico, com necessidade crescente de doses de va- sopressores. Proteína C ativada humana recombinante (drotrecogina α) Dados de estudos experimentais constataram que a ad- ministração de proteína C ativada previne o surgimento de síndromes sépticas e dados em humanos demonstraram a diminuição do nível sérico dos produtos de degradação da fibrina e aparente controle dos processos inflamatórios as- sociados aos quadros sépticos com o seu uso. Essa substân- cia apresenta atividade anti-inflamatória – bloqueando a adesão de leucócitos ao endotélio e sua posterior passagem para os tecidos – antitrombótica – inibindo a cascata da co- agulação ao nível dos fatores Va e VIIIa – , e ainda efeito pró-fibrinolítico – bloqueando a ativação dos inibidores da fibrinólise: ativador do plasminogênio tipo I e inibidor da fibrinólise ativado por trombina. Neste contexto foi con- duzido um estudo aleatorizado, prospectivo, multicêntrico, duplo-cego, placebo-controlado com a administração da proteína C humana ativada recombinante em pacientes com sepse grave de início recente (dentro das primeiras 24 horas da definição da disfunção orgânica) contra placebo por 96 horas. A droga do estudo foi administrada em bom- ba de infusão contínua numa velocidade de 24 µg/kg/hora e interrompida por uma hora antes de procedimentos per- cutâneos, sendo reiniciada uma hora após nestes casos ou a partir de 12 horas após procedimentos cirúrgicos. Estudou-se mortalidade nos 28 primeiros dias, assim como o perfil de segurança da droga, sendo observada me- lhora da mortalidade no grupo tratado, em especial naque- les indivíduos mais graves – APACHE II acima de 24 – in- dependentemente dos níveis séricos de proteína C e uma incidência de sangramentos graves – que trariam risco de morte – relativamente baixa. Do ponto de vista prático, as grandes limitações ao uso desta medicação são seus poten- ciais efeitos adversos, em especial os sangramentos, assim como a relativa baixa disponibilidade em nosso meio, bem como seu elevado custo. Outras estratégias possivelmente úteis Neste tópico vale a pena comentar o uso de métodos de substituição renal – em especial a hemofiltração com altos fluxos –, cujo papel na remoção de determinadas citocinas potencialmente deletérias parece ser favorável em determi- nados casos, em especial se iniciada precocemente. No en- CAPÍTULO 29 – SEPSE E CHOQUE SÉPTICO 263 tanto, pelas dificuldades e questões específicas inerentes aos métodos – preço, necessidade de acesso venoso específico, entre outros – dificilmente haverá estudo bem controlado que teste a hipótese de benefício desta, motivo pelo qual, até o momento, é estratégia considerada de resgate em casos mais graves. O uso de substâncias que interfiram com o metabolis- mo do óxido nítrico não tem trazido resultados alenta- dores, contudo, dados experimentais e monitorização de biomicroscopia in vivo chamam a atenção para o uso de ni- troglicerina, por exemplo, como doador de NO para “re- crutamento” capilar no nível da microcirculação com a abertura de um novo paradigma para o entendimento e a monitorização da adequação oferta/demanda de oxigênio nos estados de choque circulatório. LEITURA ADICIONAL 1. Jones AE, Shapiro NI, Trzeciak S, et al. 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N Engl JMed 2001; 344(10): 699-709. 8-12 mmHg Inotrópicos Admissão hospitalar O2 suplementar ± IOT e ventilação mecânica CVC e cateter arterial Algoritmo 29.1 – Terapia precoce guiada por objetivos Bolus 500 mL cristaloide em 30 min Drogas vasoativas Não Sim PVC PAM SvcO2 Sedação, paralisia (se IOT) ou ambos Objetivos atingidos? ≥ 65 e ≤ 90 ≥ 70% < 8 mmHg < 65 mmHg ou > 90 mmHg < 70% ≥ 70% PVC = pressão venosa central; PAM = pressão arterial média; SvO2 = saturação venosa de oxigênio, Ht = hematócrito. (Modificado de Rivers et al. N Engl J Med 2001; 345(19): 1368-77.)
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