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LÉVY-BRUHL - A mentalidade primitiva [livro completo]

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(C:L!II,IL\ t;r.I:-.!I.:Lr.l du L1Htl, SP, Ur,lsd)
Lévy-Bruhl, l.ucícn, 1857-19}9,
t\ mentalidade primitiva I Lucicn Lévy·Bruhl;
Irraduç[\o lvo Sroruiolo]. - SJO Paulo; Puulus, 2008,
- (Coleção Estudos antropoh"gicos)
Tíltllo original: La mcntnl ité prim iu vc.
Bihliografia.
ISBN 978-85-349-2842-7
1. Aru rupolouiu 2. Et nofilosotia 3. Etn(lpsic()hlgi,')
4. Psicologia social 5. Rel igiõo l . Tüulo. 11. Série.
08-07028 CDD-155.8
ínJiccs para catálogo sisternãnco:
I. Hábitos rnenruis: Psicologia rransculrural 155.8
2. Mcnrabilidnde primitiva: Antropologia psicológica 155.8
Tfrul o or iginal
La menwlhé primicive
1922
Tradução
Jvo Swmjolo
Edirorução
PAULUS
Impressão e acabamento
PAULUS
© PAULUS - 2008
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627. Te!. (11) 5087-3700
www.paolus.com.br • editorial@paulus.com.br
ISBN 978-85-349-2842-7
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LUCIEN LÉVY-BRUHL
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A MENTALIDADE
PRIMITIVA I:;?UI'~11,,1t',tV~ /14tJi2iP//217
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INTRODUÇÃO
1. Aversão da mentalidade primitiva às operações discursivas do
pensamento. Suas idéias restritas a um pequeno número de
objetos. Ausência de reflexão.
Entre as diferenças que separam a mentalidade das socieda-
des inferiores da nossa, há uma que deteve a reflexão de grande
número daqueles que as observaram nas condições mais favorá-
veis, ou seja, antes que elas tivessem se modificado por causa de
um contato prolongado com os brancos. Eles constataram nos
primitivos uma aversão decidida pelo raciocínio, por aquilo que
os lógicos chamam de operações d iscurs ivas do pensamento; ao
mesmo tempo, notaram que essa aversão não provinha de uma
incapacidade radical, ou de uma impotência natural de seu en-
tendimento, mas que ela se explicava mais pelo conjunto de seus
hábitos mentais.
Por exemplo, os padres jesuítas que viram em primeiro lugar
os índios do leste da América do Norte não puderam deixar de
fazer esta reflexão: "É preciso supor que os iroqueses são incapazes
de raciocinar como os chineses e os outros povos refinados, para
os quais se prova a fé e a verdade de um Deus ... O iroquês jamais
se conduz por razões. A primeira apreensão que ele tem das coisas
é a única chama que o ilumina. Os motivos de credibil idade , que
a teologia costuma usar para convencer os espíritos mais fortes,
aqui jamais são ouvidos; eles qualificam com o nome de mentiras
nossas maiores verdades. Acreditam ordinariamente apenas na-
I
I·
I
10 A MENTALIDADE PRIMITIVA
quilo que vêem";' O mesmo padre acrescenta, pouco mais adiante:
"As verdades do Evangelho não lhes teriam parecido aceitáveis,
caso fossem apoiadas unicamente sobre o raciocínio e sobre o bom
senso. Como lhes faltam o estudo e a educação, seria necessário
algo mais grosseiro e mais palpável para provocar impressão sobre
seus espíritos. Embora se encontre entre eles espíritos tão capazes
elas ciências quanto os dos europeus, sua educação, entretanto, e a
necessidade de procurar sua subsistência, os reduziu a esse estado
em que todos os seus raciocínios jamais ultrapassam aquilo que
é pertinente à saúde de seu corpo, ao feliz sucesso na caçada, na
pesca, no transporte e na guerra; e todas essas coisas funcionam
como princípios, dos quais eles tiram todas as suas conclusões, não
só para sua moradia, suas ocupações e seu modo de agir, mas até
para suas superstições e suas divindades".
Se aproximarmos essa passagem à precedente, obteremos os
elementos de uma descrição muito precisa da mentalidade dos iro-
queses sobre a questão que nos ocupa. A diferença essencial entre
esses "selvagens" e os infiéis, mais refinados que eles, não provém de
uma inferioridade intelectual que lhes seria própria: é um estado de
fato, cuja explicação, segundo os padres, se encontraria em seu estado
social e em seus costumes. Da mesma forma, o missionário Crantz
diz dos groenlandeses: "Sua reflexão ou sua invenção se desdobra nas
ocupações necessárias a sua subsistência, e aquilo que não se encontra
inseparavelmente associado a isso jamais detém seu pensamento.
Também podemos lhes atribuir uma simplicidade sem tolice, e bom
senso sem a arte de raciocinar".' Entendamos: sem a arte de seguir um
'aciocínio, por menos abstrato que seja. Pois não é de se duvidar que,
perseguindo as ocupações necessárias a sua subsistência, os groenlan-
deses deixem de raciocinar e de adaptar meios, por vezes complicados,
para os fins que eles procuram. Mas essas operações mentais não se
destacam dos objetos materiais que as provocam, e cessam logo que
seus fins são atingidos. Elas jamais são praticadas por si mesmas, e
i
I Relatórios dos Jesuítas (ed. Thwaires), t. LVII, p. 126 (1672·1673).
) D. CRANTZ, The History ofGroenlarul, I, p. 135 (1767).
I'
INTRODUÇ.Ã.O 11
c,
não nos parecem, por esse motivo, elevar-se à dignidade daquilo que
chamamos propriamente de "pensamento". É o que põe em evidência
um observador atual, que viveu cum os esquimós pobres. "Todas as
suas idéias, diz ele, giram em (Orno da pesca à baleia, da caçada e do
comer. Fora disso, para eles, o pensamento é em geral sinônimo de
enfado e fadiga. "Em que você está pensando?" - perguntei um dia,
durante a caçada, a um esquimó que parecia mergulhado em suas
reflexões. Minha pergunta o fez rir. "Eis aí vocês, os brancos, que se
ocupam tanto com pensamentos; nós, esquimós, pensamos apenas
em nossas reservas de carne: teremos ou não o suficiente para a longa
noite do inverno? Se houver carne em quantidade suficiente, então
não temos mais necessidade de pensar. Quanto a mim, tenho carne
em quantidade mais do que o necessário!". Compreendi que eu o
havia ferido, atribuindo-lhe "pensamentos"."
Os primeiros observadores que estudaram os indígenas da África
austral nos deixaram observações inteiramente semelhantes às prece-
dentes. Aqui, ainda, os missionários constatam que "só se crê naquilo
que se vê". "Em meio às gargalhadas e aos aplausos do populacho:
'O Deus dos homens brancos - ouviriam vocês de um interlocutor
pagão - pode ser visto por nossos olhos? .. Pois, se Morimo (Deus)
é absolutamente invisível, como um homem sensato adoraria uma
"coisa escondida?".' Da mesma forma, entre os bassutos. "Quanto a
mim, quero primeiro subir ao céu para ver se há realmente um Deus
- dizia de modo altivo um pobre mossuto, e, quando eu o tiver visto,
então acreditarei nele"." Outro missionário insiste sobre "a falta
de seriedade, a ausência de reflexão, que encontramos geralmente
entre esse povo (os bechuanas). Nessas pessoas o pensamento está,
por assim dizer, morto, ou pelo menos ele quase nunca sabe se elevar
acima da terra ... homens grosseiros que fazem do ventre seu deus"."
Burchell escreve o mesmo, a propósito dos bosquímanos: "As pessoas
cujo espírito foi aberto por uma educação européia não conseguem
4 Kn. RASMUSSEN, Neue Menschen, p. 140·141.
; Missions évangéliques, XXIIl (1848), p. 82 (SCHRUMPF).
6 lbid., XIV ([839), p. 57 (ARBOUSSET).
1 Ibid., XXVII (1852), p. 250 (FRÉDOUX).
12 A MENTALIDADE PRIMITIVA
de fato representar para si aquilo que eles chamariam de estupidez
dos selvagens, por tudo aquilo que ultrapassa as idéias mais simples
(' as noções rnn is clcrnc nrnrcs. do ponro ele vista tanta físico quanto
moral. Mas o faro é este: sua vida compreende tão poucos incidentes,
suas ocupações, seus pensamentos e suas preocupações estão circuns-
critas a um tão pequeno número de objetos que, necessariamente,
suas idéias são também muito pouco numerosas e muito circunscritas.
Por vezes fui obrigado a deixar Machunka livre, depois que ele me
havia ensinado com fadiga uma dúzia de palavras, pois era evidente
que o esforço de atenção, ou o trabalho ininterrupto da faculdade de
pensar esgotava depressa sua capacidadede reflexão e o tomava de fato
incapaz de se ligar durante muito tempo ao assunto. Nessas ocasiões,
sua desatenção, seu ar de ausência faziam ver que questões abstratas,
ainda que da espécie mais simples, o reduziam logo ao estado de uma
criança cuja razão ainda não despertou. Ele se queixava, então, de estar
com dor de cabeça ... ".I',Todavia, o mesmo viajante nos diz em outro
lugar, ao falar dos bosquímanos: "Eles não são lentos nem estúpidos;
ao contrário, são muito vivos, e sobre os assuntos que seu modo de
viver põe ao alcance de sua observação e de sua compreensão, eles
freqüentemente mostravam penetração e sagacidade","
Entre eles, portanto, assim como entre os iroqueses, a aversão
pelas operações discursivas do pensamento não provinha de uma
incapacidade constitucional, mas de um conjunto de hábitos que
regiam a forma e o objeto de sua atividade mental. O missionário
Moffat, que havia passado longos anos na África austral e que falava
correntemente a língua dos indígenas, nos diz a mesma coisa a respeito
dos hotentotes. "É extremamente difícil representar de modo exato
até onde vai a própria ignorância dos mais esclarecidos entre eles,
a respeito de questões que aqui são familiares para as criancinhas.
Todavia, não podemos negar, apesar dessas aparências gerais, que
8W. J. BURCHELL, Travels mto the interior of southem Africa, lI, p. 295. Do mesmo modo,
"logo que começamos a lhe fazer perguntas sobre sua língua, ele perdeu a paciência, queixou-se
de dor de cabeça, e mostrou que lhe é impossível prolongar tal esforço". SPIX e MARTIUS,
Reise in Brasilien, I, p. 384.
9 Ibid., li, p. 54-55.
INTRODUÇÃO 13
eles não raciocinem com penetração e que não saibam observar os
homens e suas características" .10
Outro missionário diz ainda dos horeritores: "Nossos amigos ch
Europa achariam certamente incríveis os exemplos que poderíamos
dar da lentidão de espírito dessas pessoas quando se trata de pensar,
de compreender c de reter. Eu mesmo, que os conhecia já há tempo,
não posso deixar de ficar surpreso quando vejo a enorme dificuldade
que existe para eles, a fim de compreender as verdades mais sirnple s
e, principalmente, eles mesmos fazerem um raciocínio - e como
esquecem depressa aquilo que compreerideram";"
O que lhes falta é aplicar ordinariamente sua mente a outros
objetos, diversos daqueles que caem sob os sentidos, ou de perseguir
outros fins, diversos daqueles dos quais percebem a utilidade imediata.
M. Campbell, em seu pequeno tratado da vida do africano, relata o
seguinte: quando lhe perguntaram qual idéia ele tinha de Deus, antes
de ter recebido o benefício de uma educação cristã, respondeu que
nessa época não tinha absolutamente nenhuma idéia sobre essa ordem
de questões, e que não pensava em mais nada, além de seu rebanho. I '
Moffat recolheu essa mesma confissão da boca de outro africano, que
era um chefe indígena poderoso e muito inteligente.
Entrando em relação com os europeus, e obrigados assim <I
esforços de abstração novos para eles, é natural que esses indígena-
da África austral tenham procurado, instintivamente, reduzir esses
esforços ao mínimo. Todas as vezes que sua memória, que é excelen-
te, pode dispensá-los de refletir e de raciocinar, eles não deixam de
empregá-Ia. Eis um exemplo instrutivo: "O missionário Nezel diz CI
Upungwane: 'Você ouviu o sermão no domingo passado; conte-me
aquilo que você guardou'. Upungwane primeiro hesitou, como é
costume entre os cafres, mas, a seguir, reproduziu palavra por palavra
todas as idéias principais. Algumas semanas depois, o missionário C'
observou durante o sermão, completamente desatento na aparência
10 R. MOFFAT, Missionary labours and scenes in Sowh Africa, 1842, p. 237.
11 Berichre der rheinischen MilSionsgesellschafr, 1865, p. 363.
I! R. MOFFAT, ibid., p. 124.
14 A MENTALIDADE PRIMITIVA
r ,
ocupado em talhar um pedaço de madeira. Depois do sermão, ele lhe
perguntou: 'Hoje, o que você guardou?'. O pagão pegou então seu
pedaço de madeira e reproduziu uma idéia depois da outra, guiando-
,e pelos entalhes".13
Essa tendência de substituir o raciocínio pela lembrança, todas
1S vezes que for possível, se manifesta já nas crianças, cujos hábitos
.nentais se modelam naturalmente sobre os de seus pais. Sabemos
que as crianças indígenas, em todos os lugares em que os missionários
conseguiram criar escolas, aprendem quase tão depressa e tão bem
quanto as de nossos países, ao menos até certa idade, em que seu
desenvolvimento se toma mais lento, e depois se detém. O pastor
~unod, entre os tongas da África austral, fez a seguinte observação:
"As crianças têm melhor sucesso quando se trata de um esforço de
memória, e isso explica por que ficam muito mais à vontade quando
aprendem os pesos e as medidas inglesas, com suas operações com-
plicadas de redução, do que quando as colocamos diante do sistema
métrico, que parece tão mais simples e mais racional. O sistema
inglês exige que a memória conserve com muita exatidão a relação
entre as diferentes medidas, jardas, pés, polegadas, galões, pintas etc.:
todavia, uma vez que a pessoa se familiariza com isso, o trabalho se
toma puramente maquinal. É isso que é necessário aos indígenas, ao
passo que, no sistema métrico, há. urna idéia única que anima o todo,
e um mínimo de raciocínio é indispensável para usá-lo''.
"É precisamente a necessidade desse mínimo que explica a
impopularidade do sistema métrico entre nossos alunos indígenas,
e a dificuldade é consideravelmente aumentada para eles quando
chegam a problemas que devem resolver sem que lhes digamos se é
lima adição ou uma subtração que deve ser feita. Por conseguinte, a
aritmética, quando é uma questão de memória, parece-lhes um estudo
Hcil e agradável. Se for preciso raciocinar, será um trabalho penoso". 14
Uma observação muito semelhante foi feita entre os barotzes. "É a
aritmética que apaixona nossos rapazes zambesianos, como também
JJ Dr. WANGEMANN. Die Berliner Mission im Zu/ande, p. 272.
14 H. A. JUNOD, The /ife of a South African tribe, I!, p. 152.
INTRODUÇÃO 15
os bassuros e os sul-africanos. Eles n50 conhecem n~lJLl ~détn du~
números; é a ciência das ciências, o critério indiscutível de uma boa
educação. Vocês conhecem o labirinto da aritmética inglesa com seu
sistema envelhecido, mas tanto mais venerável, de pesos e medidas?
Nossos zarnbesianos se deleitam com ele. Falem para eles de libras,
fanhings, pences, onças, dracmas etc., e seus olhos brilham, suas faces
se iluminam e, em um piscar de olhos, a operação é feita, caso se trate
apenas de uma operação ... É curioso como a mais positiva das ciências
pode se tornar uma admirável mecânica. Todavia, dêern-lhes um dos
mais simples problemas, mas que exija um pouco de raciocínio, e
eis que ficam diante de uma parede. "Sinto-me derrotado", dizem, e
acreditam-se dispensados de qualquer esforço intelectual. Noto esse
fato, que de modo nenhum se restringe aos zarnbesianos".'? "Entre os
namaquas, quando se trata de calcular, é extremamente difícil fazer
com que as crianças compreendam alguma coisa, ao passo que elas se
mostram mestras em tudo aquilo que pode ser aprendido mecanica-
mente, e que não exija pensamento ou reflexão". 16 Da mesma forma,
no Níger, "o mossi não sabe pesquisar o porquê das coisas e, enquanto
nossas crianças raciocinam e nos embaraçam por vezes com suas per-
guntas, um mossi jamais se pergunta: 'Como isso acontece? Por que é
assim e não de outro modo?' A primeira resposta lhe basta".
"Essa falta de reflexão é causa de seu atraso na civilização ... E
daí, ainda, sua falta de idéias. As conversas giram tão-somente sobre
as mulheres, o alimento e, na estação das chuvas, as culturas. Seu
círculo de idéias é muito restrito, mas é suscetível de ser aumentado,
porque o mossi pode ser considerado como inreligente'"!?
Para concluir, naquilo que se refere a essas sociedades africa-
nas, tomamos as próprias expressões domissionário X. H. Bentley,
que foi um excelente observador, e que acreditou poder resumir sua
experiência nos seguintes termos: "O africano, negro ou banto, não
" Missions évangéliques, LXXVI, i (1901), p. 402-403. Cf. ibid., LXXVI (1897), p. 346
(BÉGUIN).
16 Berichte der rheinischen Missionsgesellschaft, 1880, p. 230. (MissiOMr Schróder. Reise nach
dern Ngarní-See).
17 P. Eugene MANGIN, P. B., Les Mossi, Anrhropos, X-XI, p. 325.
16 A MENTALIDADE PRIMITIVA INTRODUÇÃO 17
pensa, não retlere, não raciocina, caso possa dispensar-se disso. Ele
tem uma prodigiosa memória; tem grandes talentos de observação e
de imitação, muita facilidade de falar, e demonstra boas qualidades.
Pode ser benevolente, generoso, amável, desinteressado, devotado,
fiel, bravo, paciente e perseverante. Mas as faculdades de raciocínio
e de invenção permanecem dormentes. Ele compreende facilmente
as circunstâncias atualmente presentes, adapra-sc a elas c as atende;
contudo, elaborar um plano seriamente, ou induzir com inteligência
- isso está acima dele"."
Talvez não fosse supérfluo ilustrar essa incapacidade de refletir
por meio de um exemplo concreto. Tomo-o do próprio Bentley:
"Os indígenas da costa manifestaram repentinamente um vivo
desejo de aprender a ler e a escrever. .. Levamos um bocado de tempo
para encontrar o motivo disso.
Os indígenas, quando traziam seus produtos para a costa, para
vendê-Ios, levavam-nos à loja de compra, onde eram pesados e medi-
dos; o agente marcava então alguma coisa sobre um papel. Em seguida,
eles levavam esse papel a um outro agente, na loja que continha as
mercadorias de troca, e esse segundo agente os pagava ... Eles conclu-
íram então que, se souljessern escrever, não precisariam mais fazer o
esforço de trazer seus produtos: bastaria traçar alguns sinais sobre um
pedaço de papel (como fazia o primeiro agente) e, ao apresentar esse
papel na loja das mercadorias, iriam obter tudo aquilo que quisessem.
Daí o desejo de aprender a ler e a escrever, manifestado pelas pessoas
de San Salvador.
Não havia nisso a menoridéia de roubo. O africano não reflete
em nada até o fim, a menos que seja forçado a isso; é seu ponto fraco, é
sua característica. Eles jamais reconheceram uma semelhança entre seu
próprio comércio e uma sucursal da costa. Consideravam que, quando
um branco tem necessidade de tecidos, ele abre um pacote, e aí os en-
contra. De onde vêm esses pacotes, por que e como? Jamais sonharam
com isso. 'Como saber?' Todo o mundo diz que o tecido é feito pelos
mortos no fundo do mar. Tudo isso é tão desesperadamente confundido
com coisas ocultas e mágicas, que suas idéias vão precisamente tão
longe quanto seus olhos. A apresentação do papel com a escrita em
cima dele, sem acrescentar uma palavra sequer, basta para que o tecido
seja entregue: aprendamos, portanto, a escrever no papel". 19
Recentemente, Wollaston observou a mesma ingenuidade na
Nova Guiné: "Antes de partir, mostravam aos carregadores o facãc,
o machado, ou o objeto qualquer que eles deviam receber para seu
trabalho e, ao chegarem, voltavam correndo a Par imau com seu pe-
daço de papel... Alguns homens da aldeia, menos enérgicos, quando
viram seus amigos receberem um facão ou um machado, apresentando
simplesmente um pedaço de papel ao homem que fazia a guarda do
acampamento em Parimau, pensaram que poderiam obter sem esforço
a mesma recompensa, e ficaram muito espantados quando os pequenos
pedaços de papel que apresentaram não lhes proporcionaram nada,
ou simplesmente uma séria recusa. Mas a malícia deles era tão pueril
que não se podia ficar seriamente irritado com eles".
, Não havia nisso nenhuma sombra de malícia. Bentley, mais
experimentado que Wollaston, compreendeu bem isso e explicou
É uma manifestação entre mil, mais espantosa que muitas outras, de
um hábito mental que faz com que o primitivo "se detenha na pri-
meira apreensão que ele tem das coisas, e não raciocine, caso pOSSe'
dispensar-se dísso"."
Seria fácil citar numerosas observações do mesmo tipo, recolhi-
das em outras sociedades inferiores, na América do Sul, na Austrália
etc.. "Transportar-se na seqüência das idéias de um melanesiano, diz
Parkinson, não é coisa fácil. Ele é, intelectualmente, muito baixo. O
pensamento lógico é, para ele, em quase todos os casos, uma impos-
sibilidade. Aquilo que ele não atinge imediatamente pela percepção
de seus sentidos, é feitiçaria ou ação mágica: refletir mais nisso seria
um trabalho totalmente inútil"."
.~
IS w. H, BENTLEY, Pioneering on the Congo, I, p. 256.
19 Idem.
zo A. R, WOLLASTON, Pygmies and Papuans, p. 164. Cf. C. G. RAWLING, The land of
me New-Guinea pygmies, p. 166-167.
21 R. PARKINSON, Dreissig lolvte in der Siidsee, p. 567.
I.,
18 A MENTALIDADE PRIMITIVA
Em poucas palavras, o conjunto de hábitos mentais que exclui
o pensamento abstrato e o raciocínio propriamente dito parece de
fato se encontrar em um grande número de sociedades inferiores,
e constituir um traço característico e essencial da mentalidade dos
primitivos.
2. Isso não significa impotência nativa nem falta de capacidades
naturais. Hipótese de trabalho tirada das funções mentais.
Como explicar que a mentalidade primitiva demonstre tal in-
diferença, poderíamos dizer, tal aversão pelas operações discursivas
do pensamento, pelo raciocínio e pela reflexão, enquanto, a nosso
ver, nelas temos uma ocupação natural e quase constante do espírito
humano?
Não se trata de incapacidade ou de impotência, pois os mesmos
que nos dão a conhecer essa disposição da mentalidade primitiva
acrescentam expressamente que aí se encontram "espíritos tão capazes
das ciências quanto os dos europeus", pois vemos crianças australia-
nas, melanesianas etc. aprenderem tão facilmente quanto as crianças
francesas ou inglesas aquilo que o missionáriolhes ensina. Também
não se deve a um torpor intelectual profundo, de uma letargia ou
sono invencível, porque esses mesmos primitivos, a quem o menor
pensamento abstrato parece um esforço insuportável e que nunca
parecem se preocupar com raciocinar, mostram-se, ao contrário,
penetrantes, judiciosos, sagazes, habilidosos, até sutis, quando um
objeto lhes interessa, e principalmente desde que se trate de alcançar
um fim que eles ardentemente desejam."
O mesmo observador que falava de sua "estupidez", de repente
se extasiará com sua engenhos idade e gosto. Não devemos, portanto,
22 "Vocês podem sempre estar seguros de que um indígena da Nova-Guiné tira depressa as
c.mseqüêncías daquilo que vê, e nada daquilo que pessoalmente lhe interessa escapa mais de
S,'"S olhos ... Por vezes ficamos esrranhamente surpresos daquilo que eles sabem". H. NEWTON,
l:t [ar New-Guinea, p. 202.
INTRODUÇÃO 19
I
tomar literalmente o termo "estupidez". Ou melhor, é preciso pergun-
tar de onde vem essa aparente estupidez, e quais são suas condições
determinantes.
Uma explicação foi proposta, conforme vimos acima, pelos pró-
prios missionários que constataram a aversão dos primitivos pelas mais
simples operações lógicas. Eles a tiraram do fato de que os primitivos
por eles observados nunca pensavam nem queriam pensar, a não ser
em um número restrito de objetos, necessários para sua subsistência,
em seu rebanho, na caça, no peixe etc. Os hábitos mentais assim
contraídos pelos primitivos se teriam tornado tão fortes, que qualquer
outro objeto, principalmente abstrato, não poderia mais deter seu
espírito: "Só se crê no que se vê; suas idéias não vão mais longe que
seus sentidos; tudo aquilo que não é imediatamente percebido não
é pensado etc".
Mas o problema não se resolve por aí. Se as observações relata-
das forem exatas, como parece, o problema é mais complicado. Em
primeiro lugar, não vemos por que a busca de interesses exclusiva-
mente materiais nem por que o pequeno número dos objetos ordi-
nários das representações teria necessariamente como conseqüência
a incapacidadede refletir e a aversão pelo raciocínio. Ao contrário,
essa especialização, essa concentração das forças do espírito e da
atenção sobre um número restrito de objetos, com a exclusão de ou-
tros, deveria antes ter como efeito uma espécie de adaptação exata,
precisa, tanto intelectual quanto física, à busca desses objetos; e essa
adaptação, enquanto intelectual, implicaria certo desenvolvimento
da engenhosidade, da reflexão e da sagacidade de ajustar os meios
mais adequados para alcançar o fim procurado. Isso é, com efeito, o
que freqüentemente se produz.
Que essa adaptação seja acompanhada por uma indiferença
quase invencível em relação a objetos que não têm relação visível
com aqueles que interessam aos primitivas, os missionários muito
freqüentemente disso fizeram a penosa experiência. Mas a incapaci-
dade decompreender um ensinamento evangélico, e até a recusa de
escutar não são em si uma prova suficiente da aversão pelas operações
lógicas, principalmente quando reconhecemqs que os mesmos espíri-
1"
20 A MENTALIDADE PRIMITIVA
I
I
tos se mostram bem ativos quando os objetos os interessam, quando
se trata de seu rebanho ou de suas mulheres.
Além disso, não é temerário explicar essa aversão por uma
ligação exclusiva com os objetos dos sentidos, pois os próprios mis-
sionários nos mostram, por outro lado, que os primitivos são os mais
intrépidos crentes que possamos encontrar? Não consegu imos tirar do
espírito deles a certeza de que uma infinidade de seres e de ações invi-
síveis são, entretanto, reais. Livingstone nos diz que freqüenrernerite
ficou admirado com a fé invencívcl dos negros da África austral em
seres que j.uu.us h;1vi,)IT1visto. Em tudu lugar em que a observação
foi suficientemente paciente e prolongada, em todo lugar em que ela
terminou por ter a razão da reticência dos indígenas, que é extrema
em relação às coisas sagradas, ela revelou entre eles um campo, por
assim dizer, ilimitado de representações coletivas, que se relacionam
com objetos inacessíveis aos sentidos - forças, espíritos, almas, mana
etc. E, na maioria das vezes, não se trata de uma fé mais ou menos
intermitente, como a de muitos fiéis europeus, que têm dias e lugares
especiais para se dedicar a seus exercícios espirituais. O primitivo não
distingue entre este mundo e o outro, entre o real sensível e o além.
Ele vive de fato com os espíritos invisíveis e com as forças impalpáveis.
Essas realidades são, para ele, as mais reais. Sua fé se exprime tanto
em seus atos mais insignificantes como nos mais importantes. Toda
a sua vida, toda a sua ~onduta são impregnadas por ela.
Portanto, se a mentalidade primitiva evita e ignora as opera-
ções lógicas, se ela se abstém de raciocinar e de refletir, não é por
impotência de ultrapassar aquilo que os sem idos lhe oferecem, da
mesma forma que não é por causa de uma ligação exclusiva com um
pequeno número de objetos, todos materiais. As mesmas testemunhas
que insistem sobre esse tr8ÇO da mental idade primitiva nos autorizam
também, e até nos obrigam, a rejeitar essas explicações. É preciso pes-
quisar além. E para pesquisar com alguma oportunidade de sucesso, é
preciso em primeiro lugar colocar o problema em termos que tornem
possível sua solução metódica.
Em vez de nos substituirmos em imaginação aos primitivos que
estudamos, e de fazê-los pensar como pensaríamos, caso estivéssemos
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INTRODUÇÃO .~I
em seu lugar, o que só poderia levar a hipóteses no máximo ver. >s-
sfrne is e quase sempre falsas, esforcemo-nos, ao contrário, para nos
colocarmos de sobreaviso contra nossos próprios hábitos mentais e
tratemos de descobrir os dos primitivos por meio da análise de suas
representações coletivas e das ligações entre essas representações.
Ao admitirmos que o espírito deles é orientado como o nosso,
e que ele reage como o nosso às impressões que recebe, admitimos
também, implicitamente, que ele deveria refletir e raciocinar como
o nosso sobre os fenômenos e os seres do mundo concreto. Todavia,
verificamos que, de fato, ele não reflete nem raciocina assim. Para
explicar essa aparente anomalia, recorremos então a certo número
de hipóteses: preguiça e fraqueza de espírito dos primitivos, confusão,
ignorância infantil, estupidez etc., que não explicam suficientemente
os fatos.
Abandonemos esse postulado, e dediquemo-nos, sem idéia pr~-
concebida, ao estudo objetivo da mentalidade primitiva, tal como
ela se manifesta nas instituições das sociedades inferiores ou n.3.S
representações coletivas de onde essas instituições derivam. A partir
disso, a atividade mental dos primitivos não será mais interpretada
precipitadamente como uma forma rudimentar da nossa, como in-
fantil ou quase patológica. Ela aparecerá, ao contrário, como normal
nas condições em que se exerce, como complexa e desenvolvida a
seu modo. Deixando de relacioná-Ia com um tipo que não é o del i,
procurando determinar seu mecanismo unicamente segundo suas
próprias manifestações, podemos esperar não desnaturá-la em nossa
descrição e em nossa análise.
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