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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE DIREITO CURSO DE DIREITO GABRIELA REVOREDO PEREIRA DA COSTA COMPLIANCE, LEI DA EMPRESA LIMPA E LEI SAPIN II - UMA ANÁLISE DA APLICAÇÃO DO REGIME DE OBRIGATORIEDADE DE ADOÇÃO DE PROGRAMAS DE INTEGRIDADE CORPORATIVA NO BRASIL Orientador: Prof. Dr. Marco Bruno Miranda Clementino NATAL/RN 2017 GABRIELA REVOREDO PEREIRA DA COSTA COMPLIANCE, LEI DA EMPRESA LIMPA E LEI SAPIN II - UMA ANÁLISE DA APLICAÇÃO DO REGIME DE OBRIGATORIEDADE DE ADOÇÃO DE PROGRAMAS DE INTEGRIDADE CORPORATIVA NO BRASIL Monografia apresentada ao Curso de Direito como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito, do Centro de Ciências Sociais Aplicadas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientador: Prof. Dr. Marco Bruno Miranda Clementino NATAL/RN 2017 Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA Costa, Gabriela Revoredo Pereira da. Compliance, lei da empresa limpa e lei sapin II: uma análise da aplicação do regime de obrigatoriedade de adoção de programas de integridade corporativa no Brasil / Gabriela Revoredo Pereira da Costa. - Natal, RN, 2017. 111f. Orientador: Prof. Dr. Marco Bruno Miranda Clementino. Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Departamento de Direito. 1. Corrupção – Monografia. 2. Programas de Integridade - Monografia. 3. Lei da Empresa Limpa - Monografia. 4. Lei Sapin II - Monografia. 5. Obrigatoriedade de Compliance - Monografia. I. Clementino, Marco Bruno Miranda. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BS/CCSA CDU 328.185 Dedico este trabalho ao meu avô Bá, que de outro plano, o escreveu junto comigo. AGRADECIMENTOS Estudando o Compliance, percebi que o individualismo e a centralização não são tão eficazes quanto a comunhão de esforços e, com o fim deste trabalho, uma das certezas que ficam é a de que não se chega a nenhum lugar sozinho. Por esta razão, tenho muito a agradecer. Agradeço aos meus pais, Italo e Mylene, pela dedicação incondicional, pela confiança inabalável, pelo exemplo de trabalho e honestidade, por abrirem meus olhos e, ao mesmo tempo em que são lar, por me provocarem a pensar sempre mais além. Agradeço aos meus irmãos e parceiros de jornada, Mariana e João Pedro, que do jeitinho deles, também contribuíram para que eu chegasse até aqui. Além deles, meu muito obrigada também vai para o meu amor e melhor amigo, Matheus, com quem compartilho ideias, sonhos e planos e em quem sempre encontro uma palavra de ternura, incentivo e confiança. Por fim, aos meus amigos - da escola, da Universidade, do trabalho e da vida - também agradeço enormemente. Cada um deles deixou um pedacinho de si em mim e contribuiu com a feitura deste trabalho. “Tudo o que não puder contar como fez, não faça” Immanuel Kant “Eu posso sempre escolher, mas devo estar ciente de que, se não escolher, ainda assim estarei escolhendo” Jean-Paul Sartre RESUMO A corrupção é problema sistêmico que atinge o mundo todo e, no combate a esse ilícito, o compliance é ferramenta que ganha destaque ao convocar os particulares, em especial as empresas, a repelir as práticas dessa natureza. O presente trabalho tem por escopo analisar a aplicação de uma disciplina jurídica de obrigatoriedade na adoção de programas de compliance anticorrupção no Brasil, semelhante ao que ocorre na França a partir do disposto na Lei Sapin II. Essa análise se dá especificamente pela identificação das características do cenário de combate à corrupção no Brasil e no mundo, da importância dos programas de integridade no cumprimento desta tarefa, bem como do tratamento atualmente dado pelo ordenamento jurídico brasileiro ao compliance pela Lei da Empresa Limpa (lei n. 12.846/2013) - que definitivamente inseriu esses mecanismos anticorrupção no sistema jurídico nacional. Também analisa as disposições de obrigatoriedade da Lei Sapin II e reflete se o tratamento de facultatividade na adoção dos programas de compliance é suficiente para o efetivo fomento da cultura de integridade entre os particulares, que se faz necessária. Demais disso, sob a perspectiva do método da proporcionalidade, avalia se a disciplina de obrigatoriedade é compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, considerando-se o conflito entre a autonomia privada e os valores que são resguardados com o combate à corrupção. Palavras-chave: Corrupção. Programas de Integridade. Lei da Empresa Limpa. Lei Sapin II. Obrigatoriedade de Compliance. ABSTRACT Corruption is a systemic problem that affects the whole world. As a tool to fight against the issue, compliance programs are particularly interesting because they invite the individuals - as well as the companies – to prevent and repel these practices. The purpose of this monograph is to analyze if a discipline of compulsory implementation of compliance programs, similar to the one that occurs now in France (due to the Sapin II Law) would apply in Brazil. To do so, the analysis aims to identify the characteristics of the current global anti-corruption scenario, including Brazil, as well as the juridical treatment currently given to the compliance programs by the Brazilian Clean Company Act, which has definitely put the institute into Brazil’s legal order. For that reason, it analyses the obligation of compliance programs brought in by the Sapin II law and if the juridical treatment of optional adoption of compliance programs is enough to effectively promote a much-needed culture of integrity among individuals and companies in Brazil. Furthermore, using the proportionality method, it assesses whether the discipline of compulsory implementation of compliance programs is compatible with Brazil’s legal system, considering in this evaluation the conflict between the individual autonomy and the constitutional values that are protected by the fight against corruption. Keywords: Corruption. Compliance programs. Brazilian Clean Company Act. Sapin II Law. Obligation of Compliance. ÍNDICE DE SIGLAS E ABREVIATURAS CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica CGU - Controladora Geral da União CVM – Comissão de Valores Mobiliários DOJ - Department of Justice FCPA – Foreign Corrupt Practices Act IBDEE - Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa LAC – Lei Anticorrupção Empresarial ou Lei da Empresa Limpa OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico OEA – Organização dos Estados Americanos ONU – Organização das Nações Unidas SEC – Securities and Exchange Comission SOX – Sarbanes-Oxley Act UKBA– United Kingdom Anti-Bribery Act USSC – United States Sentencing Comission SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 1 2. O COMPLIANCE ANTICORRUPÇÃO ............................................................................. 4 2.1 CONCEITO, FUNÇÃO E IMPORTÂNCIA PARA A ATIVIDADE EMPRESARIAL .... 6 2.2 HISTÓRICO E PRINCIPAIS DIPLOMAS ESTRANGEIROS SOBRE O TEMA .......... 14 2.3 ELEMENTOS CONSTITUINTES DE UM PROGRAMA DE COMPLIANCE E A APURAÇÃO DE SUA EFETIVIDADE NO BRASIL ............................................................ 20 3. A DISCIPLINA DADA PELOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS BRASILEIRO E FRANCÊS AOS PROGRAMAS DE INTEGRIDADE CORPORATIVA ....................... 28 3.1 A LEI ANTICORRUPÇÃO EMPRESARIAL DO BRASIL - LEI N.o 12.846/2013 ....... 28 3.1.1 Antecedentes ................................................................................................................... 29 3.1.2 Natureza Jurídica e Fundamento Constitucional ....................................................... 34 3.1.3 Aspectos Gerais .............................................................................................................. 42 3.1.3.1 Responsabilização objetiva, judicial e administrativa de pessoas jurídicas..................42 3.1.3.2 Atos Ilícitos e sanções previstas...................................................................................45 3.1.4 Disciplina dada aos programas de integridade empresarial no Brasil e seu estágio atual de maturidade no país .................................................................................................. 50 3.2 A LEI “SAPIN II” E A NOVA DISCIPLINA FRANCESA DE OBRIGATORIEDADE DA ADOÇÃO DE PROGRAMAS DE INTEGRIDADE NA FRANÇA ................................ 54 3.2.1 O contexto de criação da Lei “Sapin II” em matéria de combate à corrupção ....... 55 3.2.2 A obrigatoriedade de adoção de práticas de Compliance nas empresas e seus parâmetros de aplicação ........................................................................................................ 58 3.2.3 A Agência Francesa Anticorrupção (AFA) e as sanções pela não conformidade .... 63 4. DA APLICAÇÃO DE REGIME DE OBRIGATORIEDADE DA ADOÇÃO DE PROGRAMAS DE COMPLIANCE NO BRASIL ............................................................... 68 4.1 DA NECESSIDADE DE MUDANÇA NA DISCIPLINA DADA AO COMPLIANCE NO BRASIL E A OBRIGATORIEDADE DOS PROGRAMAS DE INTEGRIDADE ................ 68 4.2 DA COMPATIBILIDADE DE UM REGIME DE OBRIGATORIEDADE DE PROGRAMAS DE COMPLIANCE ANTICORRUPÇÃO COM O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO – ANÁLISE DA PROPORCIONALIDADE DA MEDIDA E DISCIPLINAS SEMELHANTES NO BRASIL ...................................................................... 74 4.3 UMA PROPOSTA DE CONCRETIZAÇÃO DA OBRIGATORIEDADE DE COMPLIANCE ANTICORRUPÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO ............. 82 4.3.1 Parâmetros da obrigatoriedade – os destinatários e a sanção em caso de descumprimento ...................................................................................................................... 83 4.3.2 A problemática da fiscalização ..................................................................................... 87 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 89 REFERÊNCIAS .....................................................................................................................92 1 1. INTRODUÇÃO O presente trabalho volta seu olhar ao amplo e bastante comentado tema do combate à corrupção, problema sistêmico que atinge o mundo inteiro, direcionando a apreciação especialmente aos mecanismos de Compliance, como ferramentas de extrema valia nessa empreitada. Esses instrumentos, também chamados de programas de integridade, apenas recentemente passaram a ser reconhecidos pelos diplomas normativos brasileiros, por meio da Lei n.o 12.846/2013 (“Lei da Empresa Limpa” ou Lei Anticorrupção Empresarial), sendo o objeto desta pesquisa a disciplina a eles conferida pelo ordenamento jurídico nacional e estrangeiro. Ressalte-se que tal tema se mostra relevante ante as recentes revelações de escândalos de corrupção no Brasil, o enrijecimento no cenário pátrio e internacional das sanções às práticas de suborno, assim como a novidade da lei nacional que estabelece a responsabilização objetiva, civil e administrativa, das pessoas jurídicas por ilícitos desta natureza. Mais ainda, as recentes previsões de obrigatoriedade de adoção de programas de compliance anticorrupção que emergem a todo momento invocam com bastante ênfase o estudo desta matéria. Utilizando-se do método de pesquisa bibliográfico e documental, de caráter descritivo e exploratório, direcionou-se a investigação ao tema do compliance e das legislações anticorrupção, debruçando-se sobre livros, artigos acadêmicos, monografias e teses, os diplomas normativos em si, bem como relatórios elaborados por organizações não- governamentais, empresas privadas de auditoria e órgãos oficiais da França, Reino Unido, Estados Unidos e, evidentemente, do Brasil. Com isso, o trabalho busca solucionar o seguinte problema de pesquisa: uma previsão normativa que exija a adoção de programas de integridade pelas empresas privadas seria aplicável no Brasil? O questionamento se faz pertinente quando se considera que não há disciplina geral de obrigatoriedade no país, mas mero estímulo à adoção do compliance via sanções premiais. Para responder essa pergunta, faz-se necessário de início abordar o tema do compliance, ainda relativamente novo e desconhecido. Deste modo, no primeiro capítulo serão esclarecidos os conceitos de corrupção corporativa e de compliance, com enfoque em sua campanha antissuborno, para melhor delimitar o objeto. Também se apresentará um breve 2 histórico do instituto do compliance, enfatizados os normativos estrangeiros que o moldaram e moldam, para fins de recolher pistas acerca de seu direcionamento evolutivo. Ainda no primeiro capítulo, serão apontados alguns benefícios trazidos pelas práticas de integridade corporativa, sobretudo às empresas, quando estão adequadas às necessidades da entidade. Isso para que, na sequência, seja possível visualizar com mais clareza as diretrizes principais que norteiam um programa de compliance de sucesso, as quais serão analisadas, pari passu, aos parâmetros por meio dos quais a administração pública brasileira apura sua efetividade. No capítulo seguinte, serão estudados os tratamentos atualmente dados aos programas de compliance no Brasil e na França, respectivamente pela Lei da Empresa Limpa e Lei Sapin II. Quanto ao normativo brasileiro, serão elaboradas considerações a respeito dos antecedentes da norma, que interessarão também como expositores do contexto de combate à corrupção que vem ascendendo nos últimos anos no país. Em seguida, serão identificados os fundamentos constitucionais e a natureza jurídica que lastreiam e se expressam na Lei n.o 12.846/2013, investigação de grande valia para que se vislumbrem os valores jurídicos resguardados pelo combate à corrupção à luz do ordenamento brasileiro. Somente após essas contextualizações a respeito da Lei Anticorrupção Empresarial é que serão elencados seus dispositivos mais relevantes para este estudo, principalmente a disciplina dada aos programas de integridade corporativa no Brasil. Na sequência, serão expostos dados colhidos de relatório elaborado pela empresa de auditoria KPMG para quese possa verificar, com base no critério do setor econômico, qual o atual estágio de maturidade do compliance das empresas no país. Na segunda parte deste capítulo, será analisada a lei francesa Sapin II, evidenciando- se, simetricamente, seu contexto de criação, algumas de suas previsões normativas e, mormente, a disciplina de obrigatoriedade expressa de adoção de programas de compliance anticorrupção que ela introduz. Na sequência, também serão trazidas algumas disposições dessa lei de interesse à análise feita do presente trabalho, porquanto sugerem de maneira bastante visível o modo por meio do qual a obrigatoriedade se concretizará em solo francês diante do dever de compliance. Oferecidos tais pontos, importantes para que se tenha substrato teórico necessário ao momento de reflexão que se seguirá, o último capítulo deste estudo se voltará ao 3 enfrentamento direto da problemática da aplicação de um regime de obrigatoriedade de adoção de programas de integridade no Brasil, a exemplo da vanguardista lei francesa. Para tanto, o raciocínio avançará primeiro pela apreciação da necessidade de alteração na disciplina atualmente dada ao compliance no Brasil, para que se possa, no tópico seguinte, adentrar na verificação da compatibilidade propriamente dita. Esse estudo da compatibilidade utilizará versão simplificada do método da proporcionalidade, proposto por Leonardo Martins e Dimitri Dimoulis. Ao final, considerando-se a matéria analisada e as informações obtidas, será esboçado cenário de concretização da obrigatoriedade de adoção de programas de integridade no Brasil, indicando possíveis destinatários da norma, sanções e a problemática que cerca a figura do eventual órgão fiscalizador. 4 2. O COMPLIANCE ANTICORRUPÇÃO O combate à corrupção é, certamente, um dos temas de maior relevância da atualidade, o que se observa pela amplitude de tratados internacionais assinados nos últimos anos1, bem como a edição de legislações internas em diversos países do mundo sobre o tema, diga-se, com disciplina cada vez mais severa para os infratores. Se antes algumas práticas de corrupção eram consideradas parte das técnicas normais, e até mesmo necessárias ao negócio2, hoje em dia elas não são mais toleradas de modo transnacional, mediante crescente cooperação entre os países. Seja pelo desvelar de escândalos que revelam o agravado estágio de disseminação deste tipo de ilícitos no país e a crescente insatisfação popular que dela decorre3 (manifesta notadamente nos protestos iniciados em junho de 2013, que culminaram com a edição da inovadora Lei n.o 12.846/2013); seja pela austeridade das sanções que passaram a ser aplicadas aos envolvidos com maior efetividade4, o Brasil se inclui no rol de países que têm se posicionado energicamente nessa empreitada, podendo-se falar, inclusive, em verdadeira revolução moral em terras tupiniquins. E não sem motivo. A corrupção, entendida como gênero de condutas reprováveis no qual se inserem diversas espécies de práticas de abuso de poder delegado em benefício particular5, é endêmica no país. 1 A exemplo da Convenção Interamericana Contra a Corrupção, de 1996; a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da OCDE, de 1997; a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, de 2003 (retomadas mais adiante neste trabalho); e a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional – Convenção de Palermo de 2000. 2 SANTOS, Renato Almeida dos; GUEVARA, Arnoldo José de Hoyos; AMORIM, Maria Cristina Sanches. Corrupção nas organizações privadas: análise da percepção moral segundo gênero, idade e grau de instrução. In: R. Adm., v.48, n.1, p.53-66, jan./fev./mar. 2013. 3 Rogério Sanches Cunha e Renee Souza fazem apanhado com pesquisas de opinião de 2014, 2015 e 2016 que demonstram “o crescente repúdio e preocupação do povo brasileiro com atos de corrupção” (CUNHA, Rogério Sanches; SOUZA, Renee. Lei Anticorrupção Empresarial. Salvador: Editora Juspodivm, 2017. P. 20). 4 Tomem-se como exemplo os dados do Ministério Público Federal, a respeito da Operação Lava-Jato, que até 31 de janeiro de 2017, ensejou 120 condenações criminais com penas que, somadas, ultrapassam 1257 anos de prisão (MENDES, Francisco Schertel; CARVALHO, Vinicius Marques de. Compliance: concorrência e combate à corrupção. São Paulo: Editora Trevisan, 2017. p. 25). 5 Inseriu-se no gênero corrupção as espécies “Grande Corrupção”, dos altos escalões, e a “Pequena Corrupção”, a corrupção administrativa, no contato direto do cidadão com agentes públicos nas questões predominantemente burocráticas. É interessante apresentar também a definição da CGU, adotada em SANTOS; GUEVARA; AMORIM (2013), que trata corrupção como “relação social (de caráter pessoal, extra mercado e ilegal) que se estabelece entre dois agentes ou dois grupos de agentes (corruptos e corruptores), cujo objetivo é a transferência de renda dentro da sociedade ou do fundo público para a realização de fins estritamente privados. Tal relação envolve a troca de favores entre os grupos de agentes e geralmente a remuneração dos corruptos ocorre com o uso de propina ou de qualquer tipo de pay-off, prêmio ou recompensa”. 5 Da famosa mentalidade do “jeitinho brasileiro”, aos tipos elencados no Código Penal6, os atos caracterizados como ilícitos de corrupção em sentido amplo são figuras sistematicamente presentes no cotidiano nacional – tanto que, para o ano de 2016, a organização não-governamental “Transparência Internacional”, famosa por seu ranking de percepção de corrupção no mundo, inseriu o Brasil no 79o lugar da lista de 176 países, organizados em ordem crescente, do menos ao mais corrupto7. Segundo o preâmbulo da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção8, tais práticas, ao concederem ilegítimas benesses a poucos em detrimento dos demais, violam a premissa básica da igualdade entre os indivíduos, enfraquecem as instituições democráticas e os valores da democracia, ética e da justiça, comprometendo ainda o desenvolvimento sustentável das nações, a segurança e o Estado de direito. Não fosse só isso, o mesmo preâmbulo acrescenta que o enriquecimento pessoal ilícito pode ser particularmente nocivo para as economias nacionais e internacionais, ante a interligação que existe entre os mercados. Neste contexto, ainda que a mentalidade de obtenção de vantagens pessoais indevidas seja, por si só, temerária para a coletividade, porquanto rompe a confiança e lealdade que devem permear a vida em sociedade, o presente estudo se volta especialmente a uma das suas perniciosas manifestações: a corrupção corporativa ou organizacional. Considerando-se que é fenômeno estudado em caráter interdisciplinar - a exemplo do direito, economia, ciências políticas e sociologia - a corrupção corporativa tem de conceito de difícil delimitação. Para os fins deste estudo, no entanto, ela pode ser caracterizada em todos os atos, sistematicamente praticados no setor privado, notadamente por diretores e colaboradores de empresas ou terceiros que atuem em seu nome, no sentido de prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagens indevidas a agente público ou terceiro que a ele se vincule com o escopo de obter vantagem indevida para si ou para outrem. Além dessa hipótese, também se configuram como práticas inseridas no grupo ‘corrupção corporativa ou organizacional’ para os fins deste trabalho, toda manifestação de suborno, tráfico de influência, pagamento de propina, obstruçãode justiça, fraudes em licitações e na execução de contratos com o setor público, quando praticados por agente 6 A exemplo dos crimes de Concussão (art. 316, caput), Corrupção passiva (art. 317, caput), Tráfico de Influência (art. 332), Corrupção ativa (art. 333) e dos tipos previstos no Capítulo II-A, todos do Código Penal. 7 A título de curiosidade, numa análise regional, o Brasil ficou muito atrás de vizinhos como Uruguai (21o lugar) e Chile (24o lugar). Disponível em: <https://www.transparency.org/news/feature/corruption_perceptions_index_2016#regional>. Acesso em 02 set. 2017. 8 Trata-se da Convenção de Mérida, de 2003, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto n.o 5.687, de 2006, a qual será abordada com maiores detalhes adiante. 6 privado em nome de empresa no seio de transações comerciais nacionais ou internacionais, em prejuízo à administração pública e, em última análise, ao interesse público. Não se olvida que existem também manifestações de oportunismo e abuso de poder corporativo nas relações exclusivas entre particulares, que poderiam se encaixar no grupo acima descrito. No entanto, elas não se inserem diretamente no foco do objeto do presente estudo, que se volta às práticas nocivas à administração pública em razão da disciplina dada pelo ordenamento jurídico pátrio, a ser analisada adiante. Perceba-se que, em comum, além de serem práticas sistêmicas, as condutas inseridas na corrupção corporativa deste trabalho envolvem agentes econômicos e autoridades da administração pública, e interferem na tomada das decisões, muitas vezes do alto escalão do poder, manipulando políticas, instituições e alocação de recursos, principalmente públicos, não em benefício da coletividade, mas no interesse dos envolvidos, sobretudo na direção do enriquecimento ilícito e da obtenção de vantagens competitivas nos negócios. Essas práticas corporativas, como hipóteses de corrupção lato sensu que são, por serem sistematicamente praticadas, representam cultura empresarial temerária para a sociedade como um todo, devendo ser repelidas sem exceção. Nessa trilha, e considerando a já mencionada mudança de mentalidade e aumento da aspereza no tratamento de práticas de corrupção, tornam-se relevantes e devem receber disciplina jurídica diferenciada todos os instrumentos que auxiliem as pessoas, naturais ou morais, a antecipar e evitar a ocorrência de tais práticas ou, se for o caso, identificar sua ocorrência para a devida correção. É nesse cenário que ganham destaque os programas de integridade, ou programas de compliance, objeto do presente estudo. Nos tópicos a seguir, serão apresentados alguns aspectos do instituto, sendo o presente capítulo responsável por sua introdução, apontando o conceito, histórico, seus principais elementos caracterizadores e como se avalia sua efetividade. 2.1 CONCEITO, FUNÇÃO E IMPORTÂNCIA PARA A ATIVIDADE EMPRESARIAL Em uma análise superficial, o conceito de compliance é imediatamente associado à ideia de conformidade e de manutenção de um estado de adequação às determinações legais por parte das pessoas, sejam elas naturais ou jurídicas. 7 No entanto, um programa de compliance, ou programa de integridade como este trabalho prefere chamar a medida, envolve muito mais do que a mera existência de código de conduta ou a pura observância das normas positivadas por determinado sujeito. De fato, ainda que a literalidade da tradução de compliance 9 se refira ao cumprimento de determinações e, portanto, de conformidade a algo que foi estabelecido, o presente trabalho entende que o termo carrega em si também as noções de integridade10, ética empresarial11, transparência12, governança corporativa13 e, em última análise, os próprios valores morais de quem “está em compliance”. Neste estudo, a pessoa jurídica – especialmente a empresa - é o sujeito que adota as estruturas de integridade, de modo que as definições serão em maior ou menor medida limitadas a sua perspectiva. Assim sendo, o conceito de compliance que se quer apresentar é amplo, interdisciplinar e apresenta duas dimensões: abarca não só os mecanismos utilizados pelas empresas para garantir o cumprimento das leis e observância dos regulamentos internos (a dimensão da conformidade), mas todo o sistema de práticas de uma entidade para se induzir seus componentes, e os demais agentes da área em que atua, a fazer o certo e não apenas buscar inconsequentemente o lucro (a dimensão da integridade)14. Essa definição aparentemente levanta certa problemática quando se considera o conceito de “fazer o certo” e sua possível relativização15. Não obstante isso, o estudo não pretende exaurir as hipóteses de caracterização do estado de integridade corporativa, o que 9 Do inglês “to comply”, que deriva do latim “compleō” ou “complere”. Significa, em sua origem, completar, preencher completamente. Na língua inglesa a expressão indica o estado de conformidade, de cumprimento de algo que foi estabelecido. 10 Integridade deve ser lida como o conjunto de ações e comportamentos consistentemente pautados por uma série de princípios e parâmetros éticos e morais, de modo a criar uma barreira às eventuais tentativas de desvios. 11 Em simplificada explanação, Ética Empresarial é definida como “tradução da filosofia e os objetivos fundamentais de um negócio” (ANTONIK, Luis Roberto. Compliance, Ética, Responsabilidade Social e Empresarial: uma visão prática. Rio de Janeiro: Alta Books, 2016). 12 Na ótica do Compliance, a Transparência se refere à característica de governos, empresas e indivíduos que se mantém abertos a esclarecer e disponibilizar informações, planos, processos e ações por eles adotados para que se facilite a percepção, por terceiros, da postura praticada. 13 Segundo o IBGC, Governança Corporativa “é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas”. 14 GIOVANINI, Wagner. Programas de Compliance e Anticorrupção: Importância e Elementos Essenciais. In: SOUZA, QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de (Coord.). Lei Anticorrupção e Temas de Compliance. Salvador: Editora Juspodivm, 2017. p. 457-473. 15 Numa visão antropológica, Rita Segato afirma inclusive que são tantas as evidências da diversidade de visões de mundo e sistemas de valores, que a moral e o direito estão hoje claramente diferenciados (SEGATO, Rita Laura. Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais. Mana, [s.l.], v. 12, n. 1, p.207-236, abr. 2006. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/s0104-93132006000100008>. Acesso em: 30 out. 2017). 8 demandaria profunda reflexão sobre os conceitos de ética e moral já que há inclusive quem defenda que “compliance é estado de espírito”16. Deste modo, apontada a concepção de compliance como um conceito jurídico indeterminado17, ele será, para fins práticos do presente estudo, tratado como um conjunto de mecanismos adotados por uma empresa privada para estímulo da boa-fé e lealdade nas relações, bem como o controle e mapeamento de riscos e estabelecimento de parâmetros éticos internos, de modo a prevenir, identificar e remediar ilícitos, principalmente as manifestações da já mencionada corrupção corporativa. Perceba-se que a face do programa de integridade objeto do estudo é o compliance anticorrupção, isto é, a parte do sistema que uma empresa adota internamente para prevenir fraudes, desvios e demais atos reprováveisdessa natureza, ofensivos ao direito fundamental à probidade administrativa, à função social da empresa e, como se verá, à própria ordem econômica. Essa delimitação é importante porque, pela perspectiva ampla da Integridade que foi apresentada, os programas de compliance envolvem toda a filosofia da empresa e podem ser utilizados para garantir o cumprimento das regras de ordem moral e, ainda, de diversos ramos de um ordenamento jurídico, a exemplo das leis ambientais, trabalhistas, tributárias e de defesa da concorrência. Ao delimitar a análise ao compliance anticorrupção, objetiva-se direcionar o raciocínio ao tratamento dado ao instituto pela Lei Anticorrupção Empresarial, a Lei n.o 12.846 de 2013, que definitivamente inseriu os programas de integridade no sistema normativo brasileiro e cuja análise será feita em tópico posterior. Por essa razão, pertinente colocar, desde já, o conceito de programa de integridade adotado pelo Decreto n.o 8.420/2015, que regulamenta a referida lei e estabelece em seu artigo 41 que, no âmbito de uma pessoa jurídica, programas de integridade são o conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades, bem como a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes que tenham por objetivo detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública nacional ou estrangeira. Note-se que a definição contida no dispositivo faz referência expressa a um sistema que efetivamente previne, detecta e remedia práticas de ilícitos “contra a Administração 16 CANDELORO; RIZZO apud RIBEIRO, Márcia Carla Pereira; DINIZ, Patrícia Dittrich Ferreira. Compliance e a lei anticorrupção nas empresas. In: Revista de Informação Legislativa, v. 52, n. 205, p. 87-105, jan./mar. 2015. 17 CUNHA; SOUZA, 2017. p.77. 9 Pública nacional ou estrangeira”, o que suscita algumas considerações interessantes sobre o tema. A primeira delas está na apuração da efetividade de um programa de integridade, a qual será abordada novamente e com maior profundidade adiante. Por ora importa assinalar que, segundo previsão inserida no parágrafo único18 do mesmo artigo 41 do decreto sob análise, a efetividade de um sistema de compliance pressupõe sua estruturação individualizada, considerando as idiossincrasias da área de atuação da pessoa jurídica, seu porte, histórico e demais características que interfiram na criação de ambiente de maior ou menor risco ao cometimento de ilícitos. Para que tenha efetividade, também se exige que, uma vez instalado, o programa de integridade passe por contínua e periódica revisão, com vistas a assegurar o aprimoramento e adaptação às mudanças nas circunstâncias que balizaram sua individualização. Além dessas questões, o conceito de programa de integridade efetivo envolve também a construção de um hábito, uma cultura de observância natural das normas morais e jurídicas dentro da empresa e postura proba nas relações comerciais. Pela perspectiva jurídica, essa construção, como melhor demonstrada em tópico posterior, pode se dar por meio da função promocional ou repressiva do direito, sendo certo que, uma vez edificada, dá-se início à continuidade cíclica de boas práticas. Essas características permitem entender um programa de integridade, portanto, como espécie de armadura interna da pessoa jurídica, feita sob medida, com demanda por constante polimento e renovação, e que, ao mesmo tempo em que a protege dos riscos das práticas de ilícitos, possui apetrechos que identificam as falhas na estrutura e as reparam naturalmente, uma vez instaladas. Isso demonstra que não se pode falar em modelo único ou conceito engessado quando se busca a efetividade de compliance anticorrupção: cada programa é absolutamente único e permanentemente inacabado. Num segundo comentário que se faz do conceito inserido no dispositivo legal, percebe-se que o programa de integridade empresarial ali disposto se volta à vertente externa do compliance. Isso porque, em um mesmo sistema de integridade corporativa, é possível 18 Decreto n. 8.420/2015 - Artigo 41, Parágrafo Único. “O programa de integridade deve ser estruturado, aplicado e atualizado de acordo com as características e riscos atuais das atividades de cada pessoa jurídica, a qual por sua vez deve garantir o constante aprimoramento e adaptação do referido programa, visando garantir sua efetividade.” 10 identificar duas faces distintas da busca pela probidade nas atividades da pessoa jurídica19 – uma de caráter interno e outra de caráter externo. O caráter interno de um programa de integridade corporativa diz respeito aos protocolos, filosofias e demais mecanismos adotados pela empresa com o intuito de prevenir, identificar e sancionar práticas de funcionários e colaboradores que sejam lesivas aos interesses e patrimônio da pessoa jurídica, e em geral previstos naturalmente pelo regulamento interno. Dentre as condutas que se busca repelir com essa frente de ação do compliance estão as já mencionadas práticas de oportunismo e abuso de poder nas relações exclusivas entre particulares e prejudiciais apenas à empresa, que não são o foco deste estudo. De toda forma, neste ponto, faz-se um breve paralelo entre o caráter interno do compliance e as hipóteses de demissão por justa causa do empregado, elencadas nos itens do artigo 482, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)20. Por se voltar para a prevenção, identificação e remediação de práticas lesivas à empresa, pode-se afirmar com segurança que essa vertente busca reprimir os atos de improbidade de colaborador (item “a”), negociação habitual do empregado, que constitua ato de concorrência à empresa e prejudique o serviço (item “c”), violação de segredo da empresa (item “g”) e atos de indisciplina (item “h”), por exemplo. A seu turno, a face externa dos programas de integridade os direcionam a evitar e inibir práticas ofensivas a interesses sociais e de terceiros, incluindo-se a administração pública, tal qual previsto no Decreto n.o 8.420/2015. Na já mencionada visão ampla do compliance, a vertente externa se preocupa com a observância das leis (ambientais, tributárias, concorrenciais, anticorrupção, etc.) tanto em atenção aos interesses da coletividade – manifestando a dimensão da Integridade - quanto para evitar as sanções decorrentes da não observância dessas normas, que é o que se busca com a conformidade. 19 CABETTE; NAHUR apud ZANETTI, Adriana Freisleben de. Lei Anticorrupção e Compliance. In: Revista Brasileira de Estudos da Função Pública – RBEFP, Belo Horizonte, ano 5, n. 15, p. 35-60, set./dez. 2016. p. 51. 20 Art. 482, da CLT – “Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: a) ato de improbidade; b) incontinência de conduta ou mau procedimento; c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço; d) condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena; e) desídia no desempenho das respectivas funções; f) embriaguez habitual ou em serviço; g) violação de segredo da empresa; h) ato de indisciplina ou de insubordinação; i) abandono de emprego; j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem; l) prática constante de jogos de azar.” 11 É evidente que existem pontos de interseção entre as duas vertentes (interna e externa) do compliance, até porque são faces da mesma moeda e não raro uma mesma conduta enseja, simultaneamente, prejuízos à empresa e à sociedade. Dessa maneira, um mesmo sistema de integridade corporativa não só pode como deve possuir medidas que atendam tanto aos interesses internos quanto aos alheios à pessoa jurídica. De toda sorte, considerando-se a previsão acima, para os fins da Lei n.o 12.846 de 2013, o Decreto n.o 8.420/2015 deixa claro o interesse na vertente externa do programa de integridade, porquanto assinala que o objetivo do programa de compliance deve ser “detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira”, pouco importando a existência de mecanismos que inibam ilícitos prejudiciais unicamente à própria empresa. E não poderia ser diferente. As empresas privadas, como principais destinatárias do diploma normativo regulamentado pelo decreto em análise, são regidas pelos princípios do direito privado, dentre os quais a autonomia privada, que estabelece o poder que têm os particulares de, nas relações privadas, praticarem ou se absterem dos atos de acordo com seus interesses e conveniências, desde que respeitada a boa-fé e a lealdade, e que não prejudiquem outrem21. Nessa perspectiva, o legislador não deve interferir na maneira como uma empresa lida com as irregularidades que lhe prejudicam unicamente, devendo, por outro lado, inibir práticas que sejam temerárias à administração pública, nacional ou estrangeira, e à coletividade, o que será retomado em tópico posterior. Desta feita, estabelecida uma definição inicial do compliance e delimitado o presente estudo ao compliance anticorrupção, que é tratado pela Lei n.o 12.846/2013, fica mais fácil identificar a função dos programas de integridade corporativa e a importância que carregam dentro da estrutura de uma empresa. Como dito anteriormente, a corrupção corporativa é geradora de diversos males à sociedade, sobretudo às instituições democráticas, aos valores da justiça e da probidade e à ordem econômica, de modo que todos os instrumentos disponíveis para inibi-la e eventualmente erradicá-la são de extrema valia. Nesse sentido, o compliance anticorrupção é instrumento que cumpre função crucial nessa missão, ao encorajar práticas probas nas transações e municiar as empresas de ferramentas que prevejam esses ilícitos antes de acontecerem, e os identifiquem e remedeiem caso se concretizem. Todavia, deve-se ter em mente que um programa de integridade 21 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB. Salvador: Editora Juspodivm, 2013. p. 93. 12 corporativa, ainda que extremamente bem sucedido, não elimina por completo os riscos das empresas. Isso porque, a sociedade contemporânea é, sabidamente, uma sociedade de riscos22, o que significa, em linhas gerais, que as evoluções trazidas pelo desenvolvimento das ciências e das tecnologias são tamanhas que é mais possível prever, com absoluta certeza, todos os aspectos futuros que as mesmas ciências e técnicas podem gerar, o que vale também para o setor corporativo. Aliás, para além da imprevisibilidade decorrente das evoluções científicas e tecnológicas, há também de se considerar que a atividade empresária é exercida essencialmente por pessoas, e que as relações empresariais são “em última instância, [...] relações interpessoais, não raro embasadas em emoções, anseios e fraquezas inerentes ao ser humano”23 o que, quando não estimula, invariavelmente oportuniza a ocorrência de desvios dos mais variados tipos, incluídas aí as práticas de corrupção. Alguns aspectos, no entanto, ainda poderiam ser estimados e antecipados24 e nessa brecha de previsibilidade estaria a função dos programas de integridade, como artifício útil na gestão, mapeamento e minimização dos riscos, mas sem os eliminar por completo, já que permanecerá sempre alguma influência do imponderável. Essa, inclusive, é uma das razões pelas quais o “estado de compliance” deve ser lido como ideal a ser perseguido: algo que se busca e sempre deve ser buscado, mas que não se conclui nem se estagna, estando em constante estado de perfectibilização e aprimoramento. Sabendo da crescente aspereza no tratamento dado pelos Estados às práticas de corrupção e das melhorias no gerenciamento dos riscos que os programas de integridade oferecem, é evidente que as empresas são grandes interessadas na sua adoção. Mas não é essa a única vantagem advinda da adoção deste tipo de postura corporativa. Se num primeiro momento os programas de integridade na sua dimensão de Conformidade reduzem os riscos de a pessoa jurídica sofrer sanções (e despesas dela decorrentes25) por atos de corrupção corporativa de seus diretores, colaboradores ou terceiros 22 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. 384 p. Tradução de: Sebastião Nascimento. 23 TRAPP, Hugo Leonardo do Amaral Ferreira. Compliance na Lei Anticorrupção: uma análise da aplicação prática do art. 7o, VIII, da lei 12.846/2013. Boletim Jurídico. Uberaba/MG, a. 13, no 1237. Disponível em: <http://www.boletimjurídico.com.br/doutrina/texto.asp?id=3969>. Acesso em: 24 jul. 2017. 24 Adriana Freisleben de Zanetti fala que o conceito contemporâneo de risco seria formado por componentes previsíveis e imprevisíveis, sendo uma das partes “perceptível, mensurável e controlável” e a outra “caótica, aleatória e complexa” (ZANETTI, op. cit., p. 50). 25 Marcia Carla Pereira Ribeiro e Patrícia Dittrich Ferreira Diniz assinalam que a implantação de uma política de Compliance anticorrupção implica em custos de transação para a organização empresarial, mas destacam que os prejuízos causados pela corrupção, na falta deles, são bem superiores. A título ilustrativo, as autoras apontam 13 que atuem em seu nome, a adoção de tais ferramentas se mostra vantajosa às empresas por uma série de outros fatores. O primeiro deles é a visão panorâmica que ele concede do negócio. A individualização que se exige em um programa de integridade efetivo permite à empresa entender quais são as áreas de maior e menor risco, seus pontos de maior ou menor produtividade, bem como as razões que levam a essas particularidades. Ainda quando se volta para a redução dos ilícitos unicamente prejudiciais aos interesses da empresa, é certo que o mapeamento em questão favorece a que as falhas internas sejam sanadas e amplia a efetividade da entidade, melhorando a qualidade dos produtos ou serviços que oferece ao mercado e reduzindo os próprios custos de produção26. Perceba-se que neste ponto, o conceito de programa de compliance se aproxima bastante da ideia de boa governança corporativa que, como dito, diz respeito à maneira como uma empresa é dirigida, administrada ou controlada. Não fosse só isso, há incontestável melhora na reputação e credibilidade da empresa, o que é considerado seu mais precioso bem imaterial27, tanto perante clientes, cada vez mais conscientes da importância da probidade28, quanto perante investidores, ávidos pelo ambiente de segurança e estabilidade que a existência concreta e efetiva um programa de integridade proporciona. Além deles, há melhora da reputação da entidade perantea própria administração pública, ante a demonstração de boa-fé da empresa, o que facilita a celebração de acordos com autoridades regulatórias e mitiga as sanções a serem aplicadas29. Este último efeito, a propósito, será abordado com bastante profundidade mais adiante. Deve-se assinalar, ainda, que, no caso específico de empresas que interagem com mercados externos mais maduros, para os quais as autoridades exigem maior rigor nas transações econômicas e a probidade é elemento obrigatório, a existência de programas de integridade facilita a adaptação da entidade aos padrões externos. Guardadas as proporções30, esse tipo de exigência de idoneidade já se observa no Brasil, nos casos de empresas que interagem diretamente com o poder público por meio de licitações. estudos que mostram que a cada um dólar gasto com programa de compliance, economiza-se cinco dólares que seriam gastos com os custos de transação da corrupção corporativa, aí inclusos “processos legais, danos à reputação e perda da produtividade”. (RIBEIRO; DINIZ, 2015, p. 94). 26 MENDES; CARVALHO, 2017, p. 35. 27 ANTONIK, 2016. p.103. 28 RIBEIRO; DINIZ, op. cit., p. 94. 29 MENDES; CARVALHO, op. cit., p. 42. 30 Como se verá, alguns mercados de países estrangeiros já exigem a adoção de programas de Compliance pelas empresas. 14 Não obstante isso, quanto ao objeto do presente estudo, e considerando os custos sociais da corrupção corporativa31, a grande contribuição dos programas de integridade repousa na concretização da Função Social da Empresa, assim entendida como baliza que deve pautar a atividade empresarial no sentido de promover a geração de empregos, tributos e riquezas e contribuir com o desenvolvimento econômico da comunidade em que atua, sem descuidar da resistência às práticas de abuso do poder econômico e de concorrência desleal. Note-se que a Função Social da Empresa é um pilar do ordenamento jurídico pátrio que flexibiliza as atividades dos particulares para condicionar sua legitimidade ao atendimento de interesses que ultrapassam os individuais, tal qual ocorre com a Função Social da Propriedade32. Dá-se especial ênfase neste ponto também porque uma adoção sistemática dos programas de integridade implica na mudança da cultura negocial e do padrão de comportamento das empresas de toda uma nação, sendo a rejeição coletiva de atos de corrupção organizacional vantajosa para todos, ante a melhora reputacional do ambiente econômico do país e o fortalecimento das instituições democráticas e valores constitucionais. 2.2 HISTÓRICO E PRINCIPAIS DIPLOMAS ESTRANGEIROS SOBRE O TEMA Apresentadas as noções introdutórias do conceito de compliance, sua função e importância para a atividade empresarial, faz-se mister tecer alguns comentários a respeito do histórico do instituto, os principais diplomas estrangeiros sobre o tema e como eles influenciaram no tratamento dado aos programas de integridade corporativa no Brasil. Em se tratando de histórico, o primeiro setor da economia que realmente atentou para o compliance, ainda que inicialmente apenas para as questões de conformidade, foram as instituições financeiras. 31 Já foi dito que as práticas de corrupção desviam recursos que seriam aplicados em setores como saúde, educação e segurança. Essa afirmação se torna palpável em interessante ferramenta criada pelo portal virtual do jornal Estado de S. Paulo (‘Estadão’), por meio da qual é possível converter os valores indicados em denúncias e notícias de corrupção em quantidades de bens e serviços públicos, caso tivessem sido destinados ao interesse da coletividade. Disponível em: <http://derealpararealidade.com.br/>. Acesso em 26 set. 2017. 32 Facchini Neto informa que este é preceito constitucional consagrado no art. 170, III, que condiciona “a fruição individual do proprietário ao atendimento dos múltiplos interesses não proprietários” (FACCHINI NETO, Eugênio. Comentário ao artigo 170, inciso III. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (coords). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 1798-1801). 15 Nessa primeira fase, que há quem defenda ter iniciado já em 1913 com a criação do Banco Central norte-americano (Federal Reserve)33, as entidades financeiras perceberam a necessidade de se criar um sistema mais seguro e padronizado, que permitisse maior controle das instituições bancárias. Por essa razão inseriram gradativamente nos padrões financeiros internacionais um conjunto de regras mestras e mecanismos de estímulo às boas práticas e à cooperação. Isso se viu, por exemplo, com a criação, em 1975, do Comitê de Regulamentação Bancária e Práticas de Supervisão, também chamado de Comitê da Basileia, como um esforço dos bancos centrais de países do G-10 de proteger o sistema financeiro internacional mediante o aprimoramento das práticas de supervisão das instituições financeiras e seu consequente fortalecimento.34 No entanto, ainda que os primeiros passos do compliance tenham sido com a valorização dos mecanismos de controle e boas práticas no âmbito das instituições financeiras, é de se notar que os grandes avanços no instituto se deram com o surgimento de marcos regulatórios internacionais de viés anticorrupção. Como visto, a percepção da corrupção como temerária para a ordem econômica não foi automática, sendo tais práticas, no início, inclusive, compreendidas como elemento incontornável nas transações econômicas, o que, por conseguinte, deixou os programas de compliance por muito tempo fora do radar das empresas e das políticas dos Estados. Sem embargo, em decorrência principalmente dos escândalos Watergate 35 e Lockheed36, os Estados Unidos se tornaram a primeira nação a efetivamente se preocupar com os efeitos negativos advindos da improbidade corporativa, editando o chamado Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), ou Lei de Práticas de Corrupção no Exterior, normativo federal americano de 1977, que trata especificamente de sanções às práticas de corrupção estrangeira. 33 TRAPP, 2015. 34 Ibidem. 35O escândalo Watergate não só levou à renúncia do presidente Richard Nixon, mas também revelou que mais de quatrocentas companhias americanas haviam pagado centenas de milhões de dólares em propinas a oficiais de governos estrangeiros para assegurar, via expedientes escusos, a obtenção e manutenção de negócios no exterior. (DEPARTMENT OF JUSTICE; SECURITIES AND EXCHANGE COMMISSION (United States). FCPA: A resource guide to the U.S. Foreign Corrupt Practices Act. 2012. 130p. Disponível em: <https://www.justice.gov/sites/default/files/criminal-fraud/legacy/2015/01/16/guide.pdf>. Acesso em: 13 set. 2017) 36O escândalo Lockheed acompanhou a descoberta do pagamento de uma série de propinas milionárias pela empresa de construção de aeronaves de mesmo nome a autoridades de diversos países em troca da compra das máquinas. 16 As descobertas do período expuseram a fragilidade do tratamento dado até então aos atos dessa natureza nos EUA e ensejaram o reconhecimento de que as práticas de corrupção corporativa desequilibram o livre mercado, porquanto destroem a premissa básica de que a livre concorrência se funda na busca de qualidade, eficiência e produtividade pelas empresas. De fato, as práticas de corrupção corporativa, ao concederem vantagens indevidas que garantem o lucro de determinado agente sem lastro na excelência, mas em favorecimento,criam ambiente propício a que os envolvidos se despreocupem com o que oferecem e, consequentemente, negligenciem a melhoria de seus produtos e serviços. Isso prejudica a competitividade e o próprio atendimento dos consumidores, ao mesmo tempo em que leva à ineficiência e instabilidade tanto nos mercados internos, quanto estrangeiros – já que se estruturam sobre uma premissa de falsa concorrência. Nessa ótica, buscando recuperar a confiança nos negócios dos Estados Unidos e a própria integridade financeira das companhias norte-americanas, o FCPA foi aprovado. Tal normativo foi paradigmático para o compliance anticorrupção, pois além de proibir práticas de corrupção de autoridades estrangeiras nas negociações comerciais, exigia que toda empresa sob sua jurisdição mantivesse registros e apresentasse relatórios contábeis periódicos de seus negócios às autoridades, bem como criasse e mantivesse um sistema interno de auditoria e controle de suas atividades. Todavia, destaque-se que a consciência dos males da corrupção, florescida primeiro nos EUA, não se estendeu automaticamente para os demais países do mundo. A bem da verdade, imediatamente após a edição do FCPA, as empresas norte- americanas perderam competitividade nos mercados internacionais, já que estavam limitadas pelas amarras anticorrupção do normativo, inexistente até então para empresas de outras nações. É substancial notar, nessa trilha, a importância da harmonia entre os ordenamentos jurídicos em matéria anticorrupção e a necessidade de tornar a integridade corporativa exigência sistemicamente adotada por todos os Estados. Se na década de 1970 a previsão isolada de normativo anticorrupção já impactou nas transações econômicas das empresas, com muito mais força isso se observa nos tempos atuais, em que os mercados estão fortemente interligados e interdependentes em decorrência da globalização. Nesse sentido, foi justamente na busca por se harmonizar com as diretrizes mais modernas anticorrupção 37 que, em 2010, o Reino Unido atendeu às recomendações 37 Em março de 2011, pouco antes da entrada em vigor da lei, o Ministério da Justiça britânico publicou guia para melhor compreensão do diploma. Em mensagem introdutória, o então Secretário de Estado para a Justiça 17 internacionais, que desde o FCPA vinham sendo elaboradas, e aprovou o United Kingdom Anti-Bribery Act (UKBA), outro diploma normativo internacional de grande expressividade para os programas de integridade corporativa. Sem embargo do relativo atraso de sua criação, trata-se de lei que, além de repreender severamente as práticas de corrupção corporativa, vai além da legislação americana. Dentre suas principais disposições destacam-se a responsabilização objetiva (strict liability) dos infratores e, noutro giro, a possibilidade de empresa acusada alegar a existência de programa de compliance como único argumento de defesa, excluindo a dita responsabilidade. Conforme se verá, essa disciplina é semelhante à que ocorre atualmente no Brasil, ante as disposições da Lei n.o 12.846/2013 pátria, que muito se espelhou na lei britânica. Todavia, uma das questões mais importantes trazidas pelo UKBA - e que não foi reproduzida no Brasil - é a caracterização do fracasso das organizações comerciais na prevenção de práticas de suborno38 (Section 7 - Failure of commercial organisations to prevent bribery) como uma infração pertencente ao espectro dos ilícitos vergastados no combate a corrupção. Trata-se, em outras palavras, de verdadeiro reconhecimento da responsabilidade das empresas, como agentes econômicos e partícipes da sociedade, na prevenção real dos ilícitos de corrupção organizacional. Não cumprido esse dever de cautela, a pessoa jurídica será responsabilizada, salvo se, como visto, alegar que possui um programa de integridade corporativa, ou o que o diploma britânico chama de “procedimentos adequados” (adequate procedures), escolha vocabular que provoca algumas reflexões. A partir da definição trazida pelo dicionário Oxford39, é possível entender que a noção de “adequateness” ou “adequacy”, (estado ou característica do que é “adequate”), carregam em si, na língua inglesa, dois sentidos. O primeiro deles é o da adequação como amoldamento, ajuste ou individualização ao sujeito ou objeto, na concepção de que os (Secretary of State for Justice) Kenneth Clark revela a importância do diploma na atualização do ordenamento jurídico do país e na sinalização para os parceiros internacionais do Reino Unido de que ele está na vanguarda do combate à corrupção mundial. Disponível em: <http://www.justice.gov.uk/downloads/legislation/bribery-act- 2010-guidance.pdf>. Acesso em: 02 set. 2017. 38 Em tradução livre: “Seção 7 – Fracasso de Organização Comercial em Prevenir Suborno - 1) Uma organização comercial relevante (“C”) é culpada do ilícito desta seção se uma pessoa (“A”) associada a “C” suborna outra pessoa com o intuito de: a) obter ou reter negócios para “C”, ou b) obter ou reter vantagem na condução dos negócios para “C”. 2) Mas em sua defesa, “C” pode alegar que adotava procedimentos adequados projetados para prevenir pessoas associadas a “C” de realizar tais condutas”. 39 Disponível em: <https://en.oxforddictionaries.com/definition/adequateness>. Acesso em 28 set. 2017. 18 procedimentos adequados necessariamente serão aqueles pensados para atenderem as particularidades de cada empresa. O segundo sentido se reporta à visão teleológica da adequação, que a percebe como qualidade ou estado daquilo que é apropriado, aceitável ou satisfatório para o alcance do fim a que se propôs. Esse segundo sentido, associado ao primeiro, leva à conclusão de que um “adequate procedure” está intimamente vinculado à efetividade no programa de compliance para que sua existência seja argumento hábil a excluir a responsabilização da empresa, já que a efetividade, como visto, está atrelada à individualização e constante atualização dos mecanismos para que seus objetivos sejam satisfatoriamente alcançados. Perceba-se que, com isso, a lei britânica cria, indiretamente, a obrigação de combate a corrupção no seio das empresas mediante a adoção de programas de integridade efetivos, sob pena de, uma vez configurada irregularidade, não havendo a adoção de compliance, a entidade responder objetivamente pelo ilícito. Isso porque a aparente facultatividade na adoção dos programas de integridade pelas empresas sob sua jurisdição, quando combinada com a responsabilização objetiva da empresa em caso de fracasso na prevenção de práticas de corrupção corporativa e único argumento de defesa na existência de compliance, indubitavelmente conduz à adoção deste tipo de programa. De fato, considerando os quatro cenários possíveis – i) sucesso na prevenção de suborno com programa de compliance efetivo; ii) sucesso na prevenção de suborno sem programa de compliance efetivo (inclusa a completa ausência de programa); iii) fracasso na prevenção de suborno com programa de compliance efetivo; e iv) fracasso na prevenção de suborno sem programa de compliance efetivo (inclusa a sua completa ausência) -, apenas dois interessam ao UKBA, que são a ocorrência de ilícito com (iii) e sem (iv) programa de integridade adequado. Não é excessivo acrescentar que a hipótese (i) é o cenário de comportamento das empresas que se pretende induzir com essa norma, e a hipótese (ii) é situação que se aproxima do utópico, já que, como visto, as relações empresariais são feitaspor pessoas que, em seus subjetivismos, estão suscetíveis aos desvios de conduta. Nessa perspectiva, considerando que é excludente de responsabilidade apenas a existência de “adequate procedures”, somente é punida a ocorrência de ilícito sem programa de compliance (iv), seja por sua inexistência, seja por sua ineficiência. 19 O que se extrai desse raciocínio é a intenção do diploma normativo britânico em induzir a adoção dos mecanismo de integridade corporativa pelas empresas. Sabendo que o cenário (ii) é virtualmente inalcançável e com vistas a evitar a responsabilização por eventual prática de corrupção organizacional de seus colaboradores, é evidente que as companhias seguirão na direção da hipótese (i), ou pelo menos, da (iii), caso em que será responsabilizado apenas o agente da empresa, e não a entidade. Essa questão será retomada mais à frente, quando analisado o tratamento incompleto que a Lei n.o 12.846/2013 deu aos programas de integridade corporativa. Por enquanto, importa deixar sublinhado que a indução britânica é composta por três elementos e isso não se viu na Lei Anticorrupção Empresarial brasileira. Evoluindo no sentido da obrigatoriedade da adoção de programas de integridade pelas empresas privadas, outro normativo que merece destaque é o Sarbanes-Oxley Act (SOX), lei dos Estados Unidos de 2002 que disciplinou especificamente o mercado de capitais do país. O SOX, em suma, impôs a todas as empresas com valores mobiliários registrados junto à SEC (Securities and Exchange Comission, versão norte americana da CVM40), a obrigatoriedade na adoção de mecanismos e protocolos de controle, gestão e transparência, de modo a promover a ampliação da credibilidade das escriturações contábeis das empresas, prevenir fraudes e fortalecer a confiança no mercado de capitais americano. Perceba-se que esse tratamento de obrigatoriedade é voltado com mais atenção às questões contábeis e de escrituração, não diretamente sobre a temática da corrupção que é o foco deste trabalho. Não obstante isso, ainda que tenha sido criada especificamente para esse setor41, também em decorrência de fraudes financeiras envolvendo grandes corporações42 o SOX é sinal significativo de que, em determinados campos da economia considerados estratégicos, os programas de compliance devem se estabelecidos como um padrão mínimo para todos. Mais recentemente, em dezembro de 2016, uma nova lei francesa que entrou em vigor em junho de 2017 ampliou essa perspectiva ao estabelecer expressamente a obrigatoriedade da adoção específica de programas de compliance anticorrupção para determinadas empresas. Trata-se da loi Sapin II, ou Lei Sapin II, que também será abordada com maior profundida em tópico próprio. 40 Comissão de Valores Mobiliários, autarquia que disciplina e fiscaliza o mercado de capitais brasileiro. 41 Razão pela qual foi mencionada fora da ordem cronológica no presente histórico. 42 A exemplo da Enron, empresa do setor de energia, e da Arthur Andersen, empresa de consultoria, que inclusive foi à falência. 20 Além desses diplomas estrangeiros, os quais revelam a evolução do compliance no mundo – da busca por padronização e segurança nas instituições financeiras até a imposição do dever de prevenir práticas de corrupção - destacam-se, por derradeiro, três convenções internacionais que, por versarem sobre a temática do combate à corrupção, sugerindo a atuação dos particulares (inclusive empresas) nesse desiderato, fortaleceram a importância dos programas de integridade corporativa. As três serão abordadas no capítulo referente à Lei Anticorrupção Empresarial brasileira, por isso a opção por simplesmente mencioná-las no presente tópico: a Convenção Interamericana Contra a Corrupção, de 1996; a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da OCDE, de 1997; e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, de 2003. No plano nacional, como se verá mais adiante, a temática do compliance foi definitivamente positivada e estimulada com a edição da Lei n.o 12.846/2013, a chamada “Lei da Empresa Limpa” ou Lei Anticorrupção Empresarial (LAC). Bruno Soares Santos Araújo fala em algumas manifestações incipientes anteriores a esse normativo, a exemplo do artigo 10o, III, da Lei n.o 9.613/199843, antiga Lei da Lavagem de Dinheiro, que previu a necessidade de adoção de políticas, procedimentos e controles internos, compatíveis com seu porte e volume de operações para algumas empresas. No entanto, como se verá, nenhuma delas se compara ao impacto trazido pelo diploma de 2013 no que toca o compliance. 2.3 ELEMENTOS CONSTITUINTES DE UM PROGRAMA DE COMPLIANCE E A APURAÇÃO DE SUA EFETIVIDADE NO BRASIL Pelo que foi dito até agora, é inquestionável a importância, nos dias de hoje, da estruturação apropriada de um programa de integridade corporativa para que seja ferramenta capaz de evitar as práticas de corrupção organizacional. Ainda que já tenha sido falado que cada programa de integridade é absolutamente único, voltado às características de cada empresa e independente de modelos engessados, é certo que existem linhas mestras, diretrizes ou que se convencionou agora chamar de 43 ARAÚJO, Bruno Soares Santos. A Lei 12.846/13 e os incentivos aos mecanismos de Compliance: uma análise da Lei Federal e seus regulamentos. 2016. 67 f. TCC (Graduação) - Curso de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2016. Disponível em: <http://bdm.unb.br/bitstream/10483/16263/1/2016_BrunoSoaresSantosAraujo_tcc.pdf>. Acesso em: 27 set. 2017. 21 elementos constituintes, de um programa de compliance, que norteiam sua elaboração. Portanto, eles e os meios adotados pelo ordenamento jurídico brasileiro para apurar a efetividade de um programa deste tipo serão apresentados. Inicialmente, deve-se reiterar que um programa de compliance típico se volta para a prevenção dos ilícitos44 – mediante medidas de controle, mapeamento, gestão e sensibilização dos componentes da empresa a respeito do dever de fazer o certo, seja ele o que a lei determina ou o que a moral orienta. No entanto, uma vez praticados atos ilícitos, inclusive os de corrupção corporativa, também é da competência de um programa de integridade efetivo identificá-los e remediá-los. Isso se consegue por meio de uma infinidade de métodos e técnicas, sendo vários os guias criados e publicados pelos países e instituições no sentido de orientar a adoção do programa45, com a indicação de elementos que, em regra, funcionam para a maioria das empresas. Por pertinência ao direcionamento que se dá ao presente trabalho, serão mencionados aqueles elementos elencados nos dezesseis incisos do artigo 42 do Decreto n.o 8.420/201546, em análise combinada ao guia “Programa de Integridade: Diretrizes para Empresas Privadas” 44 GIOVANINI, 2017, p. 460. 45 Cite-se, por exemplo, o “Principles of Federal Prosecution of business Organizations” elaborado pelo D.O.J.; o “U.S. Sentencing Guidelines”, compilado pela USSC; “Guia de Boas Práticas em Controles internos, Ética e Compliance” da OCDE; Guia para o UKBA feito pelo Ministério da Justiça britânico; os “Nove Princípios Empresariais para Combater Corrupção” da Transparência Internacional; e o “Código de Compliance Corporativo: Guia de Melhores Práticas de Compliance no Âmbito Empresarial”, elaborado pelo IBDEE. 46 Decreto n. 8.420/2015 - Art. 42. Para fins do disposto no §4o do art. 5o, o programa de integridade será avaliado, quanto a sua existênciae aplicação, de acordo com os seguintes parâmetros: I - comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, incluídos os conselhos, evidenciado pelo apoio visível e inequívoco ao programa; II - padrões de conduta, código de ética, políticas e procedimentos de integridade, aplicáveis a todos os empregados e administradores, independentemente de cargo ou função exercidos; III - padrões de conduta, código de ética e políticas de integridade estendidas, quando necessário, a terceiros, tais como, fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados; IV - treinamentos periódicos sobre o programa de integridade; V - análise periódica de riscos para realizar adaptações necessárias ao programa de integridade; VI - registros contábeis que reflitam de forma completa e precisa as transações da pessoa jurídica; VII - controles internos que assegurem a pronta elaboração e confiabilidade de relatórios e demonstrações financeiros da pessoa jurídica; VIII - procedimentos específicos para prevenir fraudes e ilícitos no âmbito de processos licitatórios, na execução de contratos administrativos ou em qualquer interação com o setor público, ainda que intermediada por terceiros, tal como pagamento de tributos, sujeição a fiscalizações, ou obtenção de autorizações, licenças, permissões e certidões; IX - independência, estrutura e autoridade da instância interna responsável pela aplicação do programa de integridade e fiscalização de seu cumprimento; X - canais de denúncia de irregularidades, abertos e amplamente divulgados a funcionários e terceiros, e de mecanismos destinados à proteção de denunciantes de boa-fé; XI - medidas disciplinares em caso de violação do programa de integridade; XII - procedimentos que assegurem a pronta interrupção de irregularidades ou infrações detectadas e a tempestiva remediação dos danos gerados; XIII - diligências apropriadas para contratação e, conforme o caso, supervisão, de terceiros, tais como, fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados; XIV - verificação, durante os processos de fusões, aquisições e reestruturações societárias, do cometimento de irregularidades ou ilícitos ou da existência de vulnerabilidades nas pessoas jurídicas envolvidas; XV - monitoramento contínuo do programa de integridade visando seu aperfeiçoamento na prevenção, detecção e combate à ocorrência dos atos lesivos previstos no art. 5o da Lei no 12.846, de 2013; e XVI - transparência da pessoa jurídica quanto a doações para candidatos e partidos políticos. 22 expedido pela CGU47 em setembro de 2015. Essa escolha se justifica porque, além de bastante completos, os dois documentos contêm os parâmetros considerados pelas autoridades brasileiras na avaliação da existência e efetividade de compliance. Nessa senda, da análise combinada dessas duas fontes, é possível identificar cinco grandes diretrizes para a estruturação de um programa de integridade corporativa, quais sejam: (i) o comprometimento da alta direção da empresa; (ii) a criação de “setor” específico de compliance; (iii) o mapeamento do perfil da pessoa jurídica e das zonas de riscos às quais ela está exposta; (iv) a estruturação de um sistema normativo interno, com a criação de regulamentos, códigos, treinamento de funcionários, bem como a adoção de instrumentos de ouvidoria e medidas disciplinares; e (v) o perene aperfeiçoamento das estruturas. Já no inciso I do art. 42, do Decreto n.o 8.420/2015 está expressa a importância do comprometimento da alta administração da empresa com o programa de integridade para que ele tenha sucesso. Isso evidencia, desde logo, que o suporte da liderança da empresa repercute sobremaneira na criação da cultura da entidade, principalmente porque a alta administração é naturalmente seguida – seja por medo, seja por admiração48 - e porque suas ações são vistas como expressões dos legítimos valores da empresa. Quando a alta direção e aqueles que têm poder de mando na entidade decidem implementar um programa de integridade, é dado exemplo do comprometimento com o que ele significa – os valores da empresa, seus objetivos e o compromisso com a ética e a honestidade nas práticas e relações. Esse é o primeiro passo para um programa de integridade efetivo. Destaque-se, no entanto, que o suporte dos ocupantes dos cargos mais altos na hierarquia da companhia precisa ser contínuo e concreto – não pode ser pontual e nem mero discurso. Esse comprometimento se materializa tanto com a submissão da alta direção a todas as regras previstas no código de conduta e regulamentos da empresa, quanto pela opção por destinar os recursos necessários à consolidação do programa. Isso porque, no segundo pilar apresentado pela diretriz da Controladoria Geral da União, está a previsão de criação de um “setor” especificamente responsável pelo programa de compliance (ii) e, conforme estabelecido no inciso IX do dispositivo regulamentar, dotado de independência, estrutura e autoridade para aplicá-lo e fiscalizar sua observância pelos demais – inclusive membros da alta direção. 47 Disponível em: <http://www.cgu.gov.br/Publicacoes/etica-e-integridade/arquivos/programa-de-integridade- diretrizes-para-empresas-privadas.pdf>. Acesso em: 10 set. 2017. 48 GIOVANINI, 2017, p. 460. 23 Esse “setor”, no entanto, não precisa ser inchado e nem custoso: a depender do porte da empresa basta um agente de compliance, desde que dotado de independência, para que o elemento esteja satisfeito. Na verdade, para este pilar do programa de integridade, o fundamental é que a estrutura de compliance tenha um responsável – seja setor próprio, seja um único funcionário - com competência e recursos para concretizar o programa e autoridade para aplicar sanções quando cabível. Quanto a esse pilar da estruturação de um programa de integridade, é interessante perceber também o quanto seu papel é estratégico, e não só porque é diretamente responsável pela implementação e manutenção do programa. De fato, seu valor reside – talvez principalmente – no fato de que é essa instância interna a incumbida de garantir a sustentabilidade do compliance49, considerando-se que o programa não pode ser tão custoso a ponto de tolher sua adoção pela empresa, devendo seu responsável torná-lo efetivo utilizando-se apenas dos recursos necessários. Como se verá mais à frente, a efetividade do programa também está atrelada a que sua adoção seja vista como interessante para a empresa. Na terceira coluna de sustentação de um programa de integridade estão o mapeamento das características da empresa e a identificação dos domínios mais vulneráveis e suscetíveis aos riscos de corrupção e fraudes (iii). Essa análise é de extrema valia porque oferece ao responsável de compliance uma visão panorâmica do negócio, expondo as peculiaridades da empresa como a quantidade de funcionários em cada área, setores de maior ou menor contato com o Poder Público nacional ou estrangeiro e o perfil das instituições com as quais realiza operações societárias, por exemplo. Tal conhecimento permite a tomada de decisões mais conscientes por parte do responsável pelo compliance, com a gestão eficiente dos riscos, priorização da atuação nos setores mais vulneráveis, elaboração de sugestões para aumento de produtividade e ainda a facilitação da elaboração dos mecanismos de prevenção e reparação de ilícitos que eventualmente ocorram. Essa etapa é, portanto, crucial na individualização do programa de integridade corporativa e deve ser refeita periodicamente. Dos incisos do art. 42 do Decreto n.o 8.420/2015, o item XIV exemplifica perfeitamente as medidas deste terceiro pilar, já que se refere à verificação prévia do cometimento