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Administração Pública Administração Pública Jackson de Toni Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora da ULBRA. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº .610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. Jackson de Toni é economista, mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1994) e doutorando em Ciência Política na Universidade de Brasília, UnB. Foi analista da Secretaria de Planejamento e Gestão do Rio Grande do Sul, onde foi diretor-geral e secretário adjunto entre 1999 e 2002. Foi assessor especial da Presidência da República (2004-2006), responsável pelo monitoramento e pela avaliação de projetos estratégicos de Política Industrial e Tecnológica. É professor de Planejamento Estratégico da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) em Brasília. É especialista em Gerenciamento de Projetos do quadro de funcionários da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (www.abdi.com.br), onde exerce o cargo de gerente de Planejamento. Contato: jackson.detoni@gmail.com. Projeto Gráfi co: Humberto G. Schwert Editoração: Roseli Menzen Capa: Juliano Dall’Agnol Coordenação de Prod. Gráfi ca: Edison Wolf Impressão: Gráfi ca da ULBRA Março/2011 ISBN: 978-85-5639-156-8 Dados técnicos do livro Fontes: Minion Pro, Offi cina Sans Papel: off set 90g (miolo) e supremo 240g (capa) Medidas: 15x22cm Conselho Editorial EAD Dóris Cristina Gedrat (coordenadora) Mara Lúcia Machado Astomiro Romais Andréa Eick André Loureiro Chaves Cátia Duizith Sumário Apresentação .............................................................. 7 1 | O surgimento do Estado e a administração pública............ 9 2 | O surgimento e a crise do modelo burocrático ............... 23 3 | A gestão pública no Brasil .......................................... 39 4 | Governabilidade e accountability na gestão pública ......... 53 5 | A excelência dos serviços públicos ............................... 63 6 | A gestão de pessoas nas organizações .......................... 71 7 | Metodologias de gestão inovadora ............................... 91 8 | Planejamento e gestão inovadora ................................129 9 | Temas emergentes na gestão pública inovadora .............199 10 | Experiências na gestão inovadora ...............................225 Apresentação Prezados alunos, é um prazer apresentar a vocês este material relativo à disciplina de Gestão Inovadora. Cabe ressaltar que os temas abordados neste livro são essenciais para uma administração pública qualificada e que atenda aos desafios contemporâneos. Desejo a vocês uma boa leitura, e que este curso contribua efetivamente para o aprendizado, o sucesso profissional de cada um de vocês e a modernização efetiva da gestão pública brasileira! 1 O surgimento do Estado e a administração pública 1.1 A origem do Estado A gestão pública é o modo como administramos as coisas públicas, particularmente como são gerenciadas as organizações públicas, sejam elas municipais, estaduais ou federais. Por isso, antes de entrar no assunto propriamente dito temos que compreender onde se realiza a gestão pública, em que contexto institucional, que regras e estruturas a condicionam. Ou seja, temos que compreender inicialmente o que é o Estado, como ele surgiu e como ele funciona, qual é seu papel na sociedade democrática contemporânea. Vamos trilhar este caminho logo a seguir. Para estudar e entender o que é a gestão pública inovadora vamos ver neste primeiro capítulo como tudo começou, isto é, o que é o Estado, qual sua origem, função e papel numa sociedade complexa e heterogênea como a nossa. A palavra Estado vem do latim status e significa “estado” ou “situação”. O seu conceito está associado ao de ordem política e social que mantém uma determinada sociedade estável. Desde a Antiguidade o conceito de Estado também está associado ao de dominação, isto é, de um grupo de indivíduos ou grupos organizados que, através do Estado, domina os demais grupos e indivíduos. Esta dominação não é necessariamente ruim porque ela pode ser, 10 O surgimento do Estado e a administração pública por exemplo, numa democracia, uma dominação legítima, isto é, desejável, porque foi votada em um processo eleitoral livre democrático. Diversos autores atribuem a Maquiavel, que viveu entre 1469 e 1527, o uso pioneiro do termo “Estado”. Ele teria usado com o sentido próximo ao uso mais moderno, Estado como sociedade política permanente. Em seu livro O Príncipe, há a famosa frase “Todos os Estados, todos os domínios que têm tido ou têm império sobre os homens são Estados, e são repúblicas ou principados”. Maquiavel transformou o fazer política, isto é, as ações e os eventos que o homem cria para que os governos funcionem, num problema essencialmente humano, desprovido dos julgamentos morais ou de influência religiosa que predominavam na Idade Média. A reflexão de Maquiavel surge exatamente num contexto de transformação da sociedade medieval italiana. Maquiavel propõe três conceitos básicos para entender como funciona o governo: • o primeiro seria a “Virtu”, ou seja, as qualidades pessoais do príncipe; • o segundo seria a “Fortuna”, que seria o contexto no qual o príncipe governa, sem controlar todas as variáveis; • o terceiro seriam as “Razões de Estado”, que seriam as premissas, as suposições, as condições para que o governante violasse as normas jurídicas, econômicas e morais por ele mesmo estabelecidas. Estas condições aconteceriam numa situação de perigo eminente, guerra ou anormalidade extrema. Autores como Dallari sintetizam os aspectos relacionados à formação do Estado em três grande posições básicas: (a) a primeira delas é de que o Estado sempre existiu na história humana, pois o homem sempre existiu integrado a uma organização social dotada de poder e alguma autoridade capaz de influenciar o comportamento do grupo, mesmo nas sociedades mais primitivas; (b) uma segunda posição é a de que o Estado foi constituído ao longo de dezenas de anos e mesmo séculos para atender às necessidades e conveniências dos diversos grupos sociais, numa relação de dominação 11O surgimento do Estado e a administração pública e poder. Mas houve época que a organização humana dispensava a presença de um ente acima dos grupos e indivíduos; (c) uma terceira posição é aquela que considera o Estado como um sociedade política com soberania, cujo poder estaria acima de qualquer outro, num dado território e nação. Nesta concepção o Estado se distingue das demais formas de organização social porque seu poder independe do poder dos seus ocupantes ou membros. O poder do Estado está sujeitado ao direito, às leis, que independem dos governantes. Há ainda muitas outras teorias que tentam explicar por que ou como o homem organizou e construiu o Estado. Alguns teóricos dizem que o Estado não passa de um prolongamento em escala das relações já estabelecidas pela estrutura familiar. A sociedade civil seria apenas um desdobramento normal e previsível da sociedade natural, o Estado apenas refletiria a ampliação dos laços de dependência familiares. Além da família, podem ser considerados neste enfoque a própria comuna, ou comunidade, corporações baseadas nas relações familiares e outros grupos como possíveis fontes para o poder do Estado. Na base deste poder estaria o poder fundante e original de um “Pai” ou de um “Rei”. A legitimidade deste poder é de origem divina: “é Deus que quis assim”, ou na ordem natural das coisas: “sempre foi assim e sempre será”.A crítica que a ciência política mais moderna fará a esta abordagem é a de que a sociedade humana não é igual ou sinônimo de sociedade política. Aliás, somente quando o homem se emancipa das organizações básicas, como a família, ele passa a intervir e atuar de uma forma não tutelada nos assuntos da civitas, da coletividade, da comunidade em que está inserido, ou seja, passa a ser um ser político, a fazer política com consciência. Além disso, a fonte e a legitimidade do poder de Estado não está na ideia da paternidade, mas de uma opção não natural feita por homens e mulheres, muito menos na inspiração divina. Cabe lembrar que uma das grandes conquistas das chamadas “revoluções burguesas” do século XVIII, em especial da Revolução Francesa, foi a separação entre o poder religioso e o poder político, criando a ideia do Estado laico e da liberdade de culto religioso. Uma outra vertente na teoria sobre o Estado nos diz que o Estado surge como que um “contrato” entre os indivíduos. Este contrato teria sido inspirado 12 O surgimento do Estado e a administração pública na necessidade que os homens têm em preservar e tutelar seus direitos uns dos outros, em troca da proteção de um soberano. Um dos autores mais famosos dos chamados “contratualistas” foi Rousseau, que viveu entre 1712 e 1778. Ele foi autor de uma obra chamada O Contrato Social, em que defende que o contrato entre os homens e o soberano deveria ser geral e unânime, baseado na igualdade entre os homens, que abririam mão de suas vontades individuais para ceder a uma “vontade geral” acima de todos. Esta nova condição poria um fim ao chamado “estado natural”, pré-Estado, em que todos estavam à mercê da própria sorte. Outro pensador importante desta escola foi Hobbes, que viveu entre 1588 e 1679. Hobbes dizia que o “homem é o lobo do próprio homem”, isto é, o homem deixado à sua própria sorte estaria condenado a uma vida torpe, violenta e breve. Outro autor, Locke, que viveu entre 1632 e 1704, era menos pessimista, dizia que o homem era pacífico, mas vivia em guerra potencial se permanecesse no estado de natureza. Todos defendiam a ideia de que um contrato deveria ser feito transferindo parte dos direitos e das liberdades individuais para o Estado. Devemos lembrar aqui que a ideia de um “contrato” é uma metáfora, isto é, uma figura de linguagem para ilustrar o processo de formação do Estado. Hobbes, Locke e Rousseau partilhavam do mesmo diagnóstico, mas tinham ideias diferentes sobre qual seria a solução ideal para o problema. Hobbes, por exemplo, acreditava que a titularidade e o exercício dos direitos naturais deveriam ser transferidos ao soberano com uma única exceção, a segurança da sua própria vida. O soberano, para Hobbes, não seria obrigado a respeitar as leis civis por ele constituídas, sua limitação seria apenas o direito natural. O poder do Estado seria absoluto. Por isso se diz que Hobbes defendia o modelo absolutista, baseado no poder de um rei. Locke, por sua vez, entendia que os indivíduos conservariam todos seus direitos naturais exceto um, o de fazer justiça por suas próprias mãos; isto caberia ao Estado. Para este pensador o principal direito a ser garantido pelo Estado seria o direito à propriedade e à liberdade individual. Para ele o poder poderia ser revogado se o governante não cumprisse as leis, e defendia o direito à rebelião contra o mau governo. Por fim, para Rousseau, que era o mais radicalmente democrático dos três, os indivíduos deveriam transferir todos seus direitos ao Estado em troca da liberdade individual. Os conflitos existentes no estado de natureza resultavam 13O surgimento do Estado e a administração pública da existência da propriedade privada. A lei que derivava da “vontade geral” estaria acima de tudo e de todos, menos do soberano. Ainda há um importante conjunto de pensadores que atribuem causas essencialmente econômicas para a origem e a formação do Estado. De todas as teorias talvez a que mereça registro e consideração seja aquela formulada por Karl Marx, que viveu entre 1818 e 1883. Marx dizia que o Estado é um instrumento de dominação de uma classe – os burgueses e proprietários das terras e fábricas em geral – sobre as outras classes sociais, sobretudo trabalhadores urbanos e camponeses. O Estado nasce quando a comunidade primitiva consegue produzir mais do que suas próprias necessidades de sobrevivência imediata. Isso começou a acontecer com a primeira revolução agrícola, na pré-história. Este excedente produtivo liberou alguns indivíduos, geralmente aqueles com alguma função religiosa ou militar, das tarefas cotidianas da produção. Estes formariam o núcleo de uma elite que vai dominar os demais e dar origem ao Estado como uma organização que perpetua e reproduz a dominação, não só econômica, mas social e política também. Independente da teoria que adotarmos, o Estado em conceito amplo é um ordenamento, uma estrutura, um conjunto de organizações e instituições, eventos, processos e indivíduos que atuam em determinado território, com soberania jurídica, para garantir a estabilidade e a reprodução da sociedade, nas suas dimensões econômicas, políticas e sociais. O Estado ainda, segundo o sociólogo Max Weber, tem o monopólio legítimo da violência, isto é, o Estado seria a única organização capaz de usar e aplicar a violência física para atingir seus objetivos. O Estado é uma forma específica, que varia ao longo do tempo e, dependendo do lugar, para organizar o poder político e administrar princípios de sua própria manutenção. O Estado é, portanto, poder organizado e soberano, povo, território e, nação. Devemos cuidar para não confundir Estado com nação ou país. Por exemplo, existe um país basco, mas não um Estado basco, existe uma nação palestina, mas não um Estado palestino. A ideia de nação exprime o conceito de uma comunidade política marcada pela tradição, cultura e história comum, mesma língua, religião ou costumes, mas a noção de Estado implica imediatamente soberania, ou seja, um poder que não é tutelado por nenhum outro poder a não ser ele mesmo. 14 O surgimento do Estado e a administração pública 1.2 A trajetória do Estado moderno Normalmente, adotamos uma visão cronológica para apresentar as diferentes formas como evoluiu o Estado da Antiguidade até os nossos dias. Vamos começar vendo rapidamente como se formaram os principais Estados na Antiguidade. O primeiro tipo de Estado a se consolidar é o chamado “Estado antigo”, em que as organizações familiares, religiosas e econômicas se combinavam de forma confusa e indistinta. A política se misturava com a moral, e esta com a religião e a filosofia. Com a evolução econômica e social da sociedade medieval uma ruptura progressiva entre o poder religioso e o civil começa a se estabelecer. O surgimento do Estado Absolutista será então caracterizado pela concentração de instrumentos de controle, administração e gestão nas mãos de um único soberano, geralmente um rei. Antes estes poderes estavam dispersos no território das cidades-estados pelos vários nobres em cada lugar. Ocorre também uma centralização do poder, eliminando-se as esferas intermediárias de estamentos, colegiados ou corporações. Por fim, começa a sedimentar a ideia da despersonalização do Estado. Ou seja, da passagem das relações de comando e obediência entre indivíduos para relações de obediência e hierarquia entre instituições. O Estado como o conhecemos hoje, ou o Estado Moderno, surgiu da evolução do Estado Absolutista e de seus corpos intermediários, seja na ideia de um exército profissional e permanente, na política, na burocracia administrativa, em especial a fiscal, no clero e na magistratura. Ainda no período absolutista, por conta da íntima relação entre o Estado e a economia mercantilista, o Estado tornou-se o ator de maior importâncianaquele ordenamento social. O Estado moderno surge sobretudo quando se afirma a ideia de soberania estatal e diferenciação do Estado e da sociedade. O chamado Estado Liberal é produto das grandes revoluções burguesas, que significaram a consolidação das elites comerciais no poder de Estado, derrubando os velhos estamentos da nobreza absolutista. Entre as mais significativas temos a chamada Revolução Gloriosa na Inglaterra, em 1688, a Revolução de Independência dos Estados Unidos, em 1786, e a Revolução Francesa, em 1789. O principal atributo deste momento de transição histórica entre dois regimes foi o pacto entre o poder do soberano, que poderia ser um imperador ou um rei, e o colegiado de representantes eleitos ou indicados. 15O surgimento do Estado e a administração pública No início dos anos 80, vários Estados capitalistas ocidentais começaram a enfrentar dificuldades econômicas, orçamentárias e fiscais, entre eles os Estados Unidos e a Inglaterra. Como reação a esta situação surgiram governos que mais tarde foram chamados de “neoliberais” porque retomavam princípios do antigo Estado Liberal. Tais governos, como o de Ronald Reagan nos Estados Unidos e o de Margaret Tatcher na Inglaterra, implementaram um programa de redução dos impostos, privatizações de empresas estatais, cortes no funcionalismo público e redução de investimentos em programas sociais. Estas ações foram altamente polêmicas e geraram inúmeras tensões sociais, ainda que tivessem contribuído para superar a crise naquele momento. Este modelo foi recomendado pelos organismos multilaterais como o FMI e o Banco Mundial para todos os países subdesenvolvidos como o Brasil, naquilo que ficou mais tarde conhecido como o “Consenso de Washington”, reunião de economistas em 1989. No Brasil este ideário de governo influenciou a gestão do então presidente Fernando Henrique Cardoso, quando boa parte do setor produtivo estatal foi vendido para empresas nacionais e multinacionais. Estas políticas fizeram surgir um novo termo, o “Estado Mínimo”, para nomear um tipo de política econômica em que as funções do Estado seriam reduzidas ao mínimo admissível, tal e qual a proposta liberal clássica. No final dos anos 90, estas práticas de governo são abandonadas em quase todos os lugares e reiniciou-se um novo ciclo de aumento da presença do Estado. Uma outra denominação importante, sobretudo para nós latino-americanos, é o chamado “Estado Desenvolvimentista”. Este nome decorre do papel que o Estado, sobretudo na América Latina no pós-guerra, teve para assumir um papel protagonista na liderança do processo de desenvolvimento econômico e social. Como nestes países as elites econômicas eram fracas, desorganizadas e com recursos insuficientes, o Estado assumiu a intervenção direta em muitos setores de base, por exemplo, aço, química, energia, telecomunicações, transportes e outros setores. Além deste modelos, tipos ou manifestações do Estado capitalista contemporâneo temos historicamente a ocorrência de Estados socialistas. Estes Estados surgiram geralmente de processos revolucionários, como foi a Revolução Russa em 1917 ou a chinesa em 1949, da expansão soviética no pós- guerra, como a Polônia ou Alemanha Oriental, ou de guerras de independência de ex-colônias, como ocorreu na África nos anos 60 ou na Coreia do Norte e 16 O surgimento do Estado e a administração pública Vietnã respectivamente nos anos 50 e 70. Há muita diversidade de modelos e regimes, de economias totalmente planificadas, como era a soviética até os anos 80, até sistemas mistos, como é atualmente o chinês. Após o fim da antiga União Soviética restaram poucos países com Estados socialistas, como Cuba, por exemplo. Nestes países predominam a centralização dos investimentos no Estado, a existência de um único partido oficial, restrições à liberdade de organização, expressão e voto. O Estado Moderno é dividido em poderes distintos: o Executivo, o Judiciário e o Legislativo. Foi Montesquieu, na sua obra O Espírito das Leis, que definiu pela primeira vez uma justificativa para a separação de poderes porque este formato traria um maior equilíbrio entre os diversos poderes. O poder do Estado é um só e do ponto de vista institucional e abstrato é indivisível e indelegável, porém é como se ele se desdobrasse em poderes diversos divididos funcionalmente. Cabe ao Executivo o domínio da função administrativa, cabe ao Legislativo a norma fiscalizadora e cabe ao Judiciário a função jurisdicional, ou seja, administrar a aplicação da justiça. Em alguns casos estas funções não são exclusivas. Pode o Executivo, por exemplo, elaborar normas através das medidas provisórias, mas isto deveria ser uma exceção. 1.3 Os princípios da administração pública Para conduzir a administração pública, para fazer a gestão pública, os agentes políticos, servidores ocupantes de cargos efetivos ou comissionados, os particulares que prestam serviços públicos através de permissões ou delegações e toda a sociedade, enfim, são guiados por princípios. Os princípios não são leis propriamente ditas, mas são diretrizes de conduta, são orientadores dos atos, eventos e processos no âmbito do Estado. Eles, portanto, servem como bússola, como norte a ser seguido. A maioria deles está na Constituição Federal de 1988, mas há outros que podem ser inferidos de leis importantes como o Decreto-Lei nº 200 de 1967, que cumpriu um papel importante na modernização do Estado brasileiro. O primeiro e talvez o mais importante princípio seja o do “planejamento”. O Estado deve executar ações planejadas, estudadas previamente, compatibilizadas com os recursos orçamentários e humanos disponíveis. Este princípio orienta, 17O surgimento do Estado e a administração pública por exemplo, a elaboração dos planos plurianuais a cada quatro anos em todos os níveis administrativos. Um princípio associado intimamente ao primeiro é o da “coordenação”. Esta orientação nos diz que as várias organizações do governo e os milhares de funcionários públicos federais, estaduais e municipais devem agir coordenadamente, com harmonia, com sincronicidade. Esta orientação implica que os processos de hierarquia, comunicação, monitoramento e avaliação das ações deva ser uma constante na gestão pública. O terceiro princípio nos fala da “descentralização”. Num país como o Brasil, com mais de oito milhões de quilômetros quadrados, com quase duzentos milhões de habitantes, perto de 6 mil municípios e 23 estados é impossível não pensar que as funções públicas devam ser descentralizadas. Ela é entendida em vários planos. Há a descentralização da administração federal para as administrações estaduais e destas para as municipais. Mas também há descentralização de funções dentro de cada nível administrativo e do setor público para o setor privado. Por exemplo, quando um município faz uma licitação para um particular operar uma linha de ônibus, ele está descentralizando, ou quando o governo federal faz um convênio com o Estado para repassar recursos para combater a fome, há também um processo de descentralização. Este princípio está associado a um outro muito próximo, é o chamado princípio da “delegação de competência”. Ele segue a máxima de que as decisões devem se situar o mais próximo possível do contexto em que elas vão ser executadas. Isso objetiva assegurar mais agilidade, eficiência e eficácia na prestação de serviços. É por este motivo que a educação superior fica na esfera federal e a educação básica e fundamental é encargo dos municípios. É importante não confundir a descentralização com a desconcentração. Esta última significa apenas uma técnica (não um princípio) que a administração, tanto a direta composta pelos Ministérios ou Secretarias, como a indireta, composta por empresas, autarquias e fundações, utiliza para distribuircompetências. Mas esta distribuição, ao contrário da descentralização, fica dentro de sua própria estrutura ou organização. Por exemplo, quando o Ministério da Agricultura cria representações nos Estados ele está desconcentrando tarefas, competências e atribuições. 18 O surgimento do Estado e a administração pública O princípio do “controle”, nosso quinto princípio, orienta para que todas as ações e atos do poder público sejam devidamente fiscalizados e controlados em todas as suas instâncias. O controle começa no âmbito da própria organização, em cada departamento, pela chefia imediata. Cada órgão público tem um setor especializado em fiscalizar as suas próprias ações. Por exemplo, em âmbito federal o controle interno é feito pela Controladoria Geral da União, a CGU, ligada diretamente à Presidência da República. Além do controle externo há o controle externo exercido pelos Tribunais de Contas dos Estados e da União, que são ligados aos poderes legislativos respectivos. A existência de controle independente, ágil e proativo é uma das condições básicas para a transparência do governo, para o combate à corrupção e portanto para a existência do próprio Estado democrático. A “legalidade” e a “impessoalidade”, o sexto e o sétimo princípios, são igualmente importantes. A legalidade nos diz basicamente o seguinte: a administração só poderá agir conforme o estabelecido em lei. Não basta que a lei não vete ou proíba determinada conduta, na área pública a lei deve orientar expressamente o que pode ser feito, executado e realizado. Tudo o que a administração pública fizer em desconformidade com a lei pode ser, por princípio, anulado, revogado e invalidado, pela via administrativa ou pela via judicial. Já o princípio da “impessoalidade” nos assegura que o gestor público e a própria administração pública pratiquem atos de forma imparcial, não promovendo seus gestores e administradores. Não é lícito, por exemplo, que um administrador use as oportunidades ou os recursos à sua disposição para sua própria autopromoção. Também veda qualquer forma de discriminação na prestação dos serviços. O princípio da “moralidade” anda junto com a impessoalidade. Sua mensagem é muito simples: os agentes do Estado não podem agir em desconformidade com padrões éticos, não basta apenas cumprir a lei, é preciso ter o bom senso para diferenciar sempre o que é honesto daquilo que não é, analisando a aplicação da lei dentro de cada contexto. O nono princípio, o da “publicidade” está na mesma linha, ou seja, todo ato administrativo, porque é feito em nome da coletividade, deve ser necessariamente publicado, tornado de conhecimento coletivo. Uma decisão administrativa, em qualquer nível ou sobre qualquer assunto, que não é devidamente publicizada pode ser anulada e sem efeitos. Além disso, a publicidade dos atos públicos é condição básica para o controle e a participação popular. Estes três princípios, a legalidade, a 19O surgimento do Estado e a administração pública impessoalidade e a publicidade, representam o pilar do Estado democrático de direito. Em seguida, um princípio mais moderno, a “eficiência”. Ele orienta para que o agente público e a administração em geral atuem gastando os recursos públicos da melhor forma possível. As estruturas administrativas devem ser racionais, uma adequação entre fins e meios é absolutamente necessária. Deve-se evitar o desperdício e o gasto sem resultados concretos e objetivos. A eficiência está relacionada ao modo como os processos de trabalho são realizados. Um departamento público cheio de funcionários ociosos, sem liderança que promova o controle e a gestão por resultados, é um exemplo notório de falta, de descumprimento do princípio da eficiência. A “supremacia do interesse público” é outro princípio que reafirma a superioridade do interesse público acima dos interesses particulares. A “autotutela” é uma outra diretriz que permite à administração controlar seus próprios atos, analisando-os quanto ao mérito e quanto à legalidade. Somente a própria administração pode revogar ou anular administrativamente (chama-se também “de ofício”) um ato que ela mesma produziu. Associada a este princípio há a ideia da “indisponibilidade do interesse e dos bens públicos”. Isso significa que os bens da administração não são da administração, muito menos dos gestores. Eles pertencem à própria coletividade, portanto são indisponíveis, não podem ser onerados, dados em garantia ou alienados sem o devido procedimento legal. Por fim, há um último princípio mencionado na literatura que é o da “continuidade do serviço público”. Como os serviços públicos são essenciais ao bem-estar coletivo e muitas vezes à própria manutenção da vida, eles não podem sofrer interrupção. Imaginem, por exemplo, se numa grande cidade o sistema de semáforos parasse de funcionar ou se os médicos de um hospital público se recusassem a atender os doentes. É por este motivo que o direito de greve, que é previsto em lei, sofre uma limitação drástica no setor público, obrigando os sindicatos a manterem um força de trabalho mínima para evitar o colapso total dos serviços. Como vimos, há muitos princípios, diretrizes e orientações sobre o serviço público. Todos eles funcionam para preservar os interesses coletivos, de todo o povo, que é em última instância a razão de ser do Estado. Os governantes, os gestores públicos, devem fazer o melhor possível para cumprir esta missão institucional e seguir estes princípios. Isso não significa, entretanto, que o gestor 20 O surgimento do Estado e a administração pública público seja apenas um cumpridor de leis, um autômato; pelo contrário, ele deve ter uma atitude inovadora, um comportamento criativo e uma postura aberta a novos desafios. Só assim ele conseguirá interpretar todos estes princípios de acordo com cada contexto ou situação. 1.4 Estado, governo e aparelho de Estado Para terminar este primeiro capítulo, devemos ainda fazer uma distinção entre estes conceitos básicos. Nós vimos que o conceito de Estado se refere em primeiro plano a um ente abstrato, gigantesco, ramificado por todas as dimensões da vida social, política e econômica. Hoje em dia, é praticamente impossível viver sem o Estado. Por exemplo, as regras que disciplinam a existência deste curso e a possibilidade que temos de organizá-lo são regras que emanam deste poder. Quando você atravessa a rua numa faixa de segurança, você está sendo beneficiado pelo poder de Estado, que lhe assegura, em tese, segurança e proteção naquele momento. O Estado é uma sociedade política, diferente da sociedade civil, que é privada. Nós dizemos que o Estado tem um “poder extroverso”, o que significa que pode executar ações e gerar efeitos para além de suas próprias fronteiras, criando obrigações para todos os cidadãos, extravasando seus limites. Já o conceito de “governo” é diferente. Governo é o conjunto de funções, papéis, atribuições e ações que concretizam, tornam real, este poder político do Estado. Ele se materializa pela rede de cargos, funções e órgãos públicos federais, estaduais e municipais, distribuídos nos três poderes. O governo é submetido periodicamente à vontade dos cidadãos, se o modelo adotado é uma república democrática representativa, baseada em eleições gerais. Ou o governo pode ser uma república religiosa em que os dirigentes são indicados pela cúpula da Igreja. Governos mudam de acordo com o tempo, o contexto, os valores políticos dominantes e o momento histórico. Podem ser autoritários, participativos, transparentes, fechados, eleitos ou indicados, eficazes ou ineficazes, enfim, estão sujeitos ao jogo de pressões e tensões normais das sociedades modernas, complexas e heterogêneas, com múltiplos interesses convivendo simultaneamente. Uma outra definição muito comum é a de “aparelho de Estado”.Normalmente, seu sentido traduz uma noção de recursos existentes para fazer o Estado 21O surgimento do Estado e a administração pública funcionar. Estes recursos não são financeiros propriamente ditos, mas sobretudo a capacidade de governo instalada, representada pelas suas instituições, processos de trabalho e burocracia. Todos eles orientados e regidos pelo direito administrativo e pelo direito constitucional. Assim, Estado, governo e aparelho de Estado são conceitos semelhantes, entrelaçados, mas diferentes. Saber fazer a distinção ajuda a compreender melhor como funciona a gestão pública. Questões 1. Tente fazer um definição sua do que é o Estado e qual sua importância para a sociedade atual. Justifique. 2. Qual a relação entre Estado e administração? 3. Na sua opinião, há diferença entre a esfera pública e o Estado? Por quê? Referências comentadas DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. Saraiva: São Paulo, 1981. Este livro traz um novo enfoque sobre os problemas do Estado, vai muito além da mera exposição de conceitos teóricos para apresentá-lo como realidade viva, concreta e dinâmica. Examina, em detalhes, a sociedade, a origem e a formação do Estado, sua personalidade jurídica, o Estado Moderno e a Democracia, a separação de Poderes, as funções do Estado e os problemas do Estado contemporâneo, bem como as relações internacionais, a intervenção estatal, o socialismo, o capitalismo e o Estado democrático. CHIAVENATO, Idalberto. Administração geral e pública. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. Este livro foi elaborado originalmente para auxiliar os estudantes de nível superior nos concursos públicos relacionados às carreiras federais que são muito exigentes na área da gestão pública. Na verdade, o livro adquiriu uma densidade 22 O surgimento do Estado e a administração pública e uma abrangência ímpares na literatura disponível. Inicia comentando as escolas clássicas da administração para em seguida entrar nos assuntos típicos da gestão pública: processo administrativo, gestão de pessoas, comportamento organizacional até as novas abordagens da recente reforma gerencial. É indispensável para quem quiser se aprofundar no assunto. BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a fi losofi a política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000. Esta obra já clássica reúne 40 ensaios sobre política e Estado. O grande pensador italiano Norberto Bobbio (Turim, 1909) ensinou Filosofia do Direito nas universidades italianas por mais de 30 anos. Com 720 páginas ela versa sobre todos os assuntos importantes para entendimento do Estado e da administração pública, entre os quais a política, a moral o direito, o problema dos valores e da ideologia, entre outros. Todos temas que repercutem diretamente na gestão pública e proporcionam uma sólida base teórica. 2 O surgimento e a crise do modelo burocrático Neste capítulo vamos estudar e compreender como se formou e se transformou a atual administração pública conhecida como “administração burocrática” ou “modelo burocrático de administração”. Este modelo é atualmente muito questionado, particularmente com os movimentos que aconteceram no mundo todo nos anos 80 e 90. Uma das principais razões é a de que o estilo de administrar da burocracia não tem a flexibilidade e a versatilidade para se adaptar às inovações do mundo moderno. Por outro lado o modelo burocrático, também conhecido como “modelo weberiano” de administração, representou no passado um salto enorme de qualidade para a gestão pública na medida em que profissionalizou seus funcionários e garantiu um padrão de impessoalidade e universalidade no funcionamento do aparelho de Estado. Vamos analisar este processo a seguir. 2.1 Entendendo o aparelho de Estado A organização estatal funciona de diversas maneiras, normalmente hierárquica e verticalizada, ainda que haja uma tendência para alguns serviços se organizarem na forma de redes. incluindo o setor privado, como, por exemplo, a área de proteção social e assistência. 24 O surgimento e a crise do modelo burocrático Normalmente, as várias funções do aparelho de Estado são agrupadas em quatro grandes áreas: o setor do núcleo estratégico, as atividades exclusivas, os serviços não exclusivos e o setor público não estatal. Vamos ver com um pouco mais de detalhe cada um deles. O primeiro setor, chamado de “Núcleo Estratégico”, representa o governo em sentido lato, são os setores centrais no funcionamento do Estado. Eles definem as leis e as políticas públicas, executam os projetos e garantem os resultados esperados pelos serviços públicos. No núcleo estratégico as decisões mais importantes são tomadas. Ele corresponde ao presidente da República, suas organizações de apoio, aos Ministérios, ao Legislativo, ao Poder Judiciário e suas organizações e ao Ministério Público. O padrão de propriedade que estrutura e embase este setor é o da propriedade do tipo estatal. Este setor é responsável pelo planejamento do governo e pelo desenho das políticas públicas. O que pesa aqui são os critérios de eficiência e eficácia na gestão pública. É o lugar por excelência onde métodos, instrumentos, habilidades e conhecimentos de modernização das práticas gerenciais serão aplicados e utilizados. A importância da efetividade dos projetos impacta diretamente nesta área do aparelho de Estado. Um segundo setor seria aquele de “atividades exclusivas” do Estado, em que os serviços públicos são prestados, mas somente os serviços que o Estado pode prestar, que são exclusivos de suas competências e atribuições. Nesta área o Estado exerce o “poder extroverso”, porque ele fixa, define, fomenta, executa, controla e fiscaliza a execução do serviço. Por exemplo, a previdência social, a polícia, a defesa nacional, as políticas de combate ao desemprego, os serviços judiciários, a vigilância sanitária, o controle do tráfego aéreo, etc., são todos serviços exclusivos do Estado, não podem ser delegados. A forma de propriedade deste setor também é estatal, já que os bens e serviços relacionados são atividade estatal exclusiva. Os “serviços não exclusivos”, como o nome já indica, pertencem a um conjunto de bens públicos que podem ser prestados por organizações públicas, porém não estatais ou privadas. Apesar destas organizações não possuírem o poder de Estado, ele se faz presente. Estes serviços atendem direitos sociais básicos (como a educação 25O surgimento e a crise do modelo burocrático ou a saúde) ou produzem efeitos benéficos para o conjunto da economia (com o fornecimento de iluminação pública numa cidade ou as estradas). A rigor, muitos destes serviços não podem ser produzidos senão em condição de monopólio, daí a importância das Agências Reguladoras e dos mecanismos de controle. Os serviços de telecomunicações e de abastecimento de energia, as universidades federais, etc., são alguns dos melhores exemplos. A propriedade neste setor também é pública não estatal. As instituições neste setor têm mais autonomia gerencial e trabalham mais com a lógica de resultados. A eficiência é um critério fundamental para o processo decisório. Finalmente, temos a “produção de bens e serviços para o mercado”, que é o setor em que atuam as empresas estatais controladas total ou parcialmente pelo Estado. É onde o Estado investe diretamente ou porque o setor privado não tem forças para arcar com os custos dos investimentos ou porque são monopólios naturais. O caso da Petrobras é um bom exemplo: além da importância vital do fornecimento de petróleo e da nossa dependência energética desta fonte fóssil, altíssimos recursos são necessários para a pesquisa, prospecção e extração de petróleo em águas profundas. O tipo de administração neste caso é puramente gerencial e o tipo predominante de propriedade é a privada.O quadro a seguir sintetiza estas relações e funções do aparelho de Estado. Quadro 1 – Formas de propriedade do Estado Setor Forma de propriedade Princípio fundamental Tipo de administração Núcleo estratégico ESTATAL EFETIVIDADE BUROCRÁTICA E GERENCIAL Atividades exclusivas ESTATAL EFICIÊNCIA GERENCIAL Serviços não exclusivos PÚBLICA NÃO ESTATAL EFICIÊNCIA GERENCIAL Produção de bens e serviços para o mercado PRIVADA EFICIÊNCIA GERENCIAL 26 O surgimento e a crise do modelo burocrático 2.2 A administração pública como organização A administração pública é uma organização como qualquer outra, embora tenha características especiais que só ela possui, como, por exemplo, o dever da publicidade e impessoalidade dos seus atos. Como organização ela possui “recursos” definidos. Os recursos são valores reais ou virtuais, intangíveis, que são empregados para realizar tarefas concretas. Os recursos mais utilizados por uma organização são os bens, equipamentos e edificações, as instalações em geral, os funcionários, os conhecimentos existentes, etc. Eles são utilizados para atingir determinados “objetivos” organizacionais, que são os resultados esperados. No caso das organizações públicas estes objetivos estão definidos em dispositivos normativos, que são as leis, decretos, portarias, instruções, etc. Assim, uma organização é um sistema estruturado de recursos que tem como finalidade atingir determinados objetivos. Na vida contemporânea praticamente todas as dimensões do cotidiano estão afetadas por diversas formas de organização, até a família, a escola, o clube, podem ser vistos como organizações. As organizações são como que as “regras do jogo” que definem espaços de poder, autoridade e hierarquia entre os vários agentes e atores públicos e privados. A administração pública seria assim uma organização especial, pois sua função é manter o Estado funcionando da melhor forma possível, atendendo às demandas da sociedade. A administração em si mesma não é uma ciência tão moderna – se entendermos ela como uma forma de manter e expandir as organizações, podemos considerar que desde a Antiguidade ela existia. Imaginem, por exemplo, o grau de organização e, portanto, de administração necessário para construir as pirâmides do Egito ou um aqueduto romano. Entretanto, foi com a sociedade industrial a partir do século XIX e com todas as novas demandas de organização do setor produtivo que começaram a surgir os primeiros conceitos e técnicas administrativas. Este processo acabou consolidando a administração como uma disciplina independente da economia e de outras áreas do saber. A primeira escola administrativa, por exemplo, surgiu nos Estados Unidos, em 1881. A partir daí assistimos a uma dezena de escolas administrativas, como a científica, a das relações humanas, a estruturalista, a comportamental, etc., cada uma delas enfatizando um aspecto peculiar da vida organizacional. 27O surgimento e a crise do modelo burocrático As organizações podem ter desempenhos diferenciados. Normalmente, o desempenho organizacional é avaliado de acordo com três princípios: a eficácia, a eficiência e a efetividade. Vamos ver cada um deles com um pouco mais de detalhe. A eficácia consiste no grau de atingimento ou alcance das metas que são programadas em um determinado período de tempo, não se considerando, por enquanto, os custos implicados nesta ação. Quanto maior o grau de realização de uma meta ou objetivo, maior será a eficácia da organização. A eficiência é sempre a relação entre os recursos necessários para executar uma ação e seu produto imediato. Uma organização é eficiente se utiliza os recursos de uma forma mais produtiva e econômica possível. A eficiência significa sempre uma forma mais racional de uso dos recursos, uma relação mais adequada entre meios disponíveis e fins desejáveis. A eficiência se distingue da eficácia, mas lhe completa o sentido. Imaginemos, por exemplo, que o governo tenha como objetivo a promoção do desenvolvimento econômico de uma região pouco dinâmica do país, através da construção de um grande sistema intermodal de transporte de cargas, interligando sistemas rodoviários, aeroportuários, hidroviários e marítimos, num grande porto. Para isso o governo projeta gastar R$ 500 milhões em três anos. As perguntas sobre a eficácia seriam: “O porto foi construído?, A integração com as rodovias e hidrovias foi concluída?, O aeroporto foi duplicado?”, etc. Já as perguntas sobre a eficácia seriam: “O recurso orçamentário gasto foi bem gasto?; Houve um gasto proporcional, razoável e adequado em relação aos equipamentos modernizados ou implantados?”. Fica evidente que um projeto ideal é aquele que tem alta eficácia e alta eficiência, o que nem sempre encontramos nas obras da administração pública. O conceito de eficiência é muito próximo à ideia de economicidade. A economicidade implica a minimização dos custos dos recursos utilizados para executar uma atividade sem que os padrões de controle estejam ou fiquem comprometidos. Não é simplesmente pagar ou comprar mais barato. É fazer mais barato e manter a qualidade demandada pela sociedade. Este princípio vem sendo cobrado muito pelas auditorias dos órgãos de controle externo. Mas está faltando um conceito fundamental para avaliar o desempenho da administração. O conceito de efetividade. Este conceito está focado nos efeitos, nos impactos esperados e observados na população-alvo do programa, do projeto ou do planejamento. A efetividade pode ser entendida também 28 O surgimento e a crise do modelo burocrático como a união entre a eficácia e a eficiência. No exemplo anterior qual seria a efetividade desejada? Seria o gasto do recurso orçamentário? Uma terceira pista para o aeroporto? Será? De modo algum. A efetividade seria medida pelo efetivo desenvolvimento da região estagnada economicamente. Teríamos, então, que ter instrumentos e técnicas de monitoramento, avaliação e controle para aferirmos de fato se o gasto público que gerou um produto específico, produziu o resultado esperado, que seria o maior dinamismo da região. Mas estes indicadores são sempre difíceis de mensurar, porque a realidade dos projetos públicos é de uma tal complexidade que sempre uma dezena de outras variáveis estará sempre interferindo nos resultados esperados ou desejados. Junto com estes princípios de avaliação do desempenho costumamos agregar um quarto elemento, a equidade. A equidade nos orienta a considerarmos sempre qual foi o balanço final gerado de justiça social, de compensação entre setores da população de maior e menor renda, objetivando um maior equilíbrio econômico e social. Quadro 2 – Efi cácia, efi ciência, efetividade e economicidade EFETIVIDADE ECONOMICIDADE OBJETIVOS INSUMOS/ RECURSOS AÇÃO PRODUTO IMPACTOS/ RESULTADOS EFICIÊNCIA EFICÁCIA 2.3 Os diversos modelos de administração pública Na história da administração pública o primeiro modelo conhecido é chamado de patrimonialista. Neste modelo o aparelho do Estado funciona como uma extensão do soberano. É o modelo típico dos antigos Estados estamentais e oligárquicos, dos governos absolutistas e centralizadores. A elite dirigente utiliza os bens públicos para proveito próprio. Surgem e se consolidam relações de clientelismo, o poder de Estado é utilizado de forma discricionária, 29O surgimento e a crise do modelo burocrático distribuindo favores em troca de apoio político e lealdade. Os servidores deste tipo de governo possuem status de nobreza e estão submetidos a uma relação de vassalagem com o soberano. No Estado patrimonialista os espaços públicos e privados se confundem, não há noção clara de direitos e deveres, os governantes estão acima da lei e do próprio Estado. Os cargos públicos são considerados prebendas ou presentesdados em troca de apoio. A res publica ou a coisa pública é confundida com a res principis ou o patrimônio do príncipe. Numa situação como esta o nepotismo, a corrupção e o tráfico de influências são comuns e até aceitos como processos naturais. No patrimonialismo os patrimônios se confundem, são interdependentes. Este Estado era típico no período pré-capitalista, em especial no Estado medieval e no Estado absolutista clássico. O comércio enfrentava grandes dificuldades de desenvolvimento, dada a proliferação de regras e normas diferentes em cada cidade ou mercado, sem contar os entraves legais, das corporações, a carga de impostos e pedágios. O capitalismo comercial só começou a florescer quando as revoluções burguesas, também conhecidas como revoluções liberais, derrubaram a velha ordem e implantaram uma sociedade de homens livres, ou seja, livres para comprar e vender, baseada na propriedade privada. O fato interessante sobre o modelo patrimonialista de Estado é que ele não é só um modelo histórico, localizado num tempo muito distante. Os países como o Brasil, por exemplo, viveram práticas muito fortes de um Estado patrimonialista até a chamada Revolução de 30, que iniciou um forte processo de modernização do Estado brasileiro. Ainda assim, quando assistimos a práticas de nepotismo no Congresso Nacional, por exemplo, estamos presenciando resquícios do patrimonialismo que ainda persistem na nossa cultura política moderna. A superação do modelo patrimonialista ocorre quando o modelo burocrático se torna dominante. Os princípios que organizam este modelo de administração são muito parecidos com os princípios da racionalidade produtiva que eram praticados nas grandes plantas industriais no final do século XIX e início do século XX. Ele representou também uma reação ao modelo patrimonial que era marcado pela injustiça e pela discriminação. A melhor definição teórica do modelo burocrático foi deduzida a partir das contribuições do sociólogo alemão Max Weber, que viveu entre 1864 e 1920, tanto que este modelo também é conhecido como “modelo weberiano” 30 O surgimento e a crise do modelo burocrático de administração. Weber estudou muito as organizações que se consolidaram numa fase de rápida prosperidade do capitalismo industrial nascente. Estas organizações, segundo Weber, baseavam-se em leis escritas, em normas documentadas e formais. A autoridade nestas organizações não derivava de um título de nobreza, do sangue ou da vontade divina, mas do cargo que a pessoa ocupava na organização. A obediência devida é para leis e normas, regulamentos que são impessoais, valem para todos, inclusive para os governantes. Para Weber toda organização que se baseia em leis, normas e códigos formalizados é uma burocracia. Esta burocracia representava para Weber um “tipo ideal”, ou seja, um conceito abstrato que serviria como uma ferramenta analítica para compreender a realidade existente. As características deste “tipo ideal” seriam bem marcadas. Vamos ver com mais detalhe a seguir. O primeiro traço de personalidade é a “formalidade”. As organizações são baseadas em estatutos, normas e regulamentos explícitos, que estipulam direitos e deveres aos ocupantes em cada cargo e que orientam a conduta e as atividades de todos. Estas normas devem ser executadas de acordo com as rotinas e os procedimentos fixados por regras e normas técnicas. O problema das comunicações é resolvido através da mensagem escrita, passível de comprovação adequada. A formalidade iguala todos perante a lei, é a igualdade formal, típica dos regimes de democracia liberal. Os governos são impessoais, a impessoalidade orienta as relações hierárquicas. O relacionamento entre funcionários não é subjetivo, não depende dos caprichos ou do bom humor entre eles, nem do carisma. A autoridade é baseada na racionalidade. Isso ocorre porque o relacionamento existe entre cargos e funções, antes que pessoas. As normas se aplicam universalmente, a todos. A impessoalidade garante que a conduta do funcionário público será isenta de ódios e paixões. A seleção de funcionários é feita pelo mérito, não pela troca de favores ou pelo clientelismo. O treinamento constante assegura que o mérito seja mantido como atributo necessário para o exercício de uma função e ocupação de um cargo público. Por isso este modelo também é conhecido como “modelo meritocrático”, a organização do trabalho é baseada nas qualidades intrínsecas da pessoa, não na sua lealdade política ou ideológica. Este modelo separa a técnica da política. Os funcionários são profissionalizados e seguem uma carreira publicamente 31O surgimento e a crise do modelo burocrático definida, têm acesso aos cargos públicos não por indicações políticas, mas por processos seletivos impessoais e igualitários. Outra característica forte do modelo weberiano é sua ênfase clara na disciplina e na hierarquia. Weber teria adaptado estes elementos a partir de sua observação de como se organizava o exército prussiano e as razões de seu sucesso militar. As relações de trabalho são piramidais, verticalizadas. No modelo meritocrático há uma separação total entre propriedade pública e propriedade privada ou particular. O estado não tem donos, os cargos não tem donos, pelo contrário, estão acima de todos seus ocupantes. Este tipo de estrutura supõe que tudo seja planejado nos mínimos detalhes, e que tudo seja previsível, antecipadamente conhecido. Como podemos deduzir, o mundo weberiano da administração pública é um mundo muito árido de relações humanas, é quase uma condenação à perfeição. O modelo burocrático de administração garantiu a estabilidade e a previsibilidade tão importantes para a expansão do comércio e da indústria. Um Estado eficiente e funcionando como uma máquina poderia ser muito útil para o liberalismo econômico. Devemos ressaltar, como já foi assinalado antes, que o modelo burocrático não eliminou o modelo patrimonialista. Há casos, inclusive, como é o do próprio Brasil, em que elementos dos dois modelos convivem numa contradição aparente, mas reveladora da forma imperfeita como evolui nossa gestão pública. Um exemplo é a própria gestão de pessoas na administração pública federal. Ao mesmo tempo em que a estruturação de carreiras burocráticas típicas no núcleo estratégico avançou, há ainda milhares de cargos ocupados por indicações políticas com pouca preocupação sobre o mérito ou a conveniência destas indicações para a qualidade do serviço público. 2.4 A crise do modelo burocrático tradicional Antes de mais nada é preciso reforçar algo que nem sempre é enfatizado na literatura mais recente sobre a gestão pública: o modelo weberiano representou um tremendo avanço em relação aos modelos anteriores. Apesar dos vários limites e fragilidades que vamos examinar com mais detalhe a seguir, o modelo burocrático superou as mazelas do patrimonialismo e tem méritos próprios inquestionáveis. 32 O surgimento e a crise do modelo burocrático Weber, entretanto, desenhou um modelo ideal de organização para um contexto histórico em que a rotina e as mudanças eram pouco significativas. O mundo real é muito mais dinâmico e as mudanças são muito mais frequentes e inesperadas que as suposições do modelo burocrático. A visão weberiana é muito simplificadora ao isolar elementos da política dos elementos da técnica, é muito mecanicista ao supor que as rotinas possam ser previsíveis. A hierarquia excessiva acabaria por gerar uma perda de autonomia e iniciativa dos escalões subordinados. Isso conduziria a uma perda de eficiência e eficácia da máquina pública. Em todo os casos, parece que o modelo esquece o peso do fator humano, do comportamento humano. A valorização exagerada de normas e manuais poderá gerar uma conformidade muito grande, uma passividade muito grande. O burocrata weberiano trabalhaem função do regulamento e não dos resultados. Ligado à conformidade está a grande resistência às mudanças que pode se criar na cultura política interna. Esta resistência cria uma espécie de blindagem contra a exploração de novas oportunidades, de melhoria de processos e qualidade. A rigor, a hierarquia não é um problema ou uma disfunção, o problema acontece quando ela é exagerada e gera distorções. Uma delas é inibir a iniciativa e proatividade dos subordinados. Uma decorrência quase patológica do excesso de hierarquia e impessoalidade são os sinais visíveis que demonstram a posição das pessoas na organização. Por exemplo, o uso de broches, crachás diferenciados, o tamanho das mesas ou outros privilégios podem gerar um clima organizacional desmotivador para os demais funcionários. Os relacionamentos despersonalizados acabam desumanizando as relações de trabalho e a própria relação com os cidadãos. Esta postura acaba criando uma série de patologias de grupo e sofrimento mental variado que no limite diminui a qualidade do serviço público e debilita sua própria força de trabalho. O modelo burocrático começa a entrar em colapso com a fragilização do chamado “Estado do Bem-Estar Social”, quando entra em crise – quase no mesmo período histórico – o modelo de “substituições de exportações”. Vamos ver rapidamente estes dois conceitos. O “Estado do Bem-Estar Social” foi assim denominado por se referir a um sistema em que os governos garantiam políticas públicas sociais como a educação, a saúde, a previdência social, a habitação para toda a população ou quase toda. Um traço fundamental deste tipo de sociedade 33O surgimento e a crise do modelo burocrático foi a garantia do pleno emprego com políticas ditas keynesianas e a intervenção do Estado em setores estratégicos da economia. Este Estado foi característico nos Estados Unidos e nos países europeus e no Japão do pós-guerra. Já o modelo de “substituições de importações” foi um modelo econômico e político adotado por diversos países da América Latina, entre eles o Brasil, para acelerar o processo de industrialização nos anos 50 e 60. Mas o que isso tudo tem a ver com gestão pública? Tem muito a ver. Esta falência de um modelo de Estado nos países ricos e do outro modelo nos países mais pobres atingiu em cheio o modelo burocrático de administração. Tanto que nos anos 80 surgiu uma vasta literatura sobre a “crise do Estado” e todo o debate sobre qual o tamanho do Estado, que tipo de governo seria melhor para enfrentar estes problemas e outros temas relacionados. Um primeiro impacto da crise foi a crise fiscal. O grande endividamento do Estado abalou sua forma de financiamento, seu crédito. As políticas públicas se deterioraram, as carreiras públicas foram sendo desmanteladas. Pesados cortes de gastos atingiram em cheio o custeio da máquina pública e seu funcionamento normal. Muitos países neste período – anos 80 – tiveram crises de pagamento da dívida externa e foram obrigados a pedir empréstimos no FMI, pagando altas taxas de juro e comprometendo seu futuro. O Estado do Bem-Estar não pôde ser mais sustentado, havia uma rejeição crescente à alta carga de impostos nos países centrais. Fator que contribui para que no início dos anos 80 ressurgissem com força as velhas teorias liberais do Estado “mínimo”. Nos países periféricos a dívida pública gigantesca, o retorno de surtos inflacionários e a frágil democracia puseram um fim ao modelo antigo de crescimento. Houve nesta época sérias crises de governabilidade: os governos eram incapazes de agir e resolver os grandes problemas de seus países. Além disso, as transformações atingiram o antigo sistema soviético de economias planificadas. Um resumo da crise do modelo burocrático de administração: • disseminação das tecnologias da informação; • demandas crescentes por melhores serviços públicos; • maior democratização do Estado e da sociedade; • atacado pela “onda” ultraliberal: Estado Mínimo; 34 O surgimento e a crise do modelo burocrático • pouco eficaz para universalizar serviços públicos com qualidade: enfraquecido pelo processo privatizante; • em crise fiscal profunda, reduzida capacidade de investimentos e manutenção; • crise de legitimidade e representatividade; • ineficiências gerenciais generalizadas; • culturas organizacionais excludentes e não democráticas; • embrutecimento e degeneração dos servidores públicos. 2.5 O modelo gerencial na administração pública À medida que o estilo anterior de administração ia se esgotando, novas experiências foram surgindo no campo administrativo. Em países como os Estados Unidos, a Inglaterra, a Austrália e a Nova Zelândia e logo após a Europa inteira e Canadá, surgiram experiências inovadoras. Todas elas tinham algo em comum e ficaram conhecidas na literatura como “gerencialismo”, ou em inglês, managerialism. O estilo gerencialista foi ganhando variedades e ramificações, dependendo do contexto em que era aplicado, mas podemos identificar com segurança elementos essenciais que estavam na sua base. Ele foi associado, pelo menos no seu início, a um forte corte de pessoal, de gastos com recursos humanos. Havia a ideia de que aparelhos do Estado estavam “inchados” de pessoal com muita ociosidade. Foi retomada uma ideia muito persistente em torno da melhoria da eficiência do gasto público. O debate sobre a produtividade do setor público ganhou primeiro plano. Os processos de trabalho foram revistos, o que importava agora não eram os meios, mas os resultados. A estrutura do governo, em alguns países, foi reorganizada no formato de “agências”, em vez de ministérios, com mais autonomia operacional e maior cobrança de metas e resultados. Uma série de técnicas e ferramentas conceituais foram criadas e difundidas para melhorar o controle sobre procedimentos e funcionários, monitorar projetos, avaliar políticas e medir os resultados obtidos. Neste período, foram adaptados programas de “qualidade total” que já eram usados no setor privado, para dentro da esfera pública, da administração pública. Outras variações do gerencialismo 35O surgimento e a crise do modelo burocrático enfatizaram aspectos singulares. O chamado “consumismo” ou consumerism, em inglês, por exemplo, focalizava a satisfação dos cidadãos renomeados de “clientes” na perspectiva do consumo maior e melhor de bens e serviços. Outra perspectiva gerencial, a “orientação ao serviço público” ou public service orientation, em inglês, já enquadrava o cidadão não mais como simples consumidor de produtos e serviços, mas como sujeito de direitos, e a equidade passou a importar. Quadro 3 – Variações da visão gerencialista Fase do gerencialismo Ênfase em Benefi ciários encarados como Managerialism Economia/eficiência Contribuintes Consumerism Efetividade/qualidade Consumidores/clientes Public service orientation Accountability/ equidade Cidadãos O modelo de orientação ao serviço público (o public service orientation) não propõe a volta ao estado pré-gerencial, ao modelo weberiano. Ele surgiu na Inglaterra como um debate sobre os impactos da descentralização no setor público. Alguns teóricos ingleses na época diziam, por exemplo, que os governos locais não são bons para os serviços públicos porque são pequenos, mas porque estão mais próximos dos cidadão. Isso deveria permitir maior participação e a decisão próxima da comunidade. Nesta escola o conceito de cidadão é radicalmente diferente das concepções anteriores, porque há o conceito de cidadão, que é sempre um conceito coletivo. O termo “cliente” ou “consumidor” tem uma conotação individualizada, vinculada à tradição liberal. Isso permite pensar os valores de equidade, justiça e accountabilty, que não são exatamente iguais aos valores do mercado, do mundo empresarial. O planejamento estratégico, porexemplo, não pode estar confinado à burocracia, o debate público é valorizado. Outro conceito estratégico para esta corrente é a cooperação entre agências públicas, tanto quanto o valor da “competição” como é colocado pelo modo gerencial puro. Segundo a escola orientada para o serviço público, as diferenças fundamentais entre a gestão pública e a privada são muitas e diversificadas. 36 O surgimento e a crise do modelo burocrático As principais diferenças entre o público e o privado na gestão: Quadro 4 – Diferenças entre o setor público e privado Modelo do Setor Privado Modelo do Setor Público Escolha individual no mercado Escolha coletiva na política Demanda e preço Necessidade de recursos públicos Caráter privado da decisão empresarial Transparência da ação pública A equidade do mercado A equidade dos recursos públicos A busca de satisfação do mercado A busca da justiça Soberania do consumidor Cidadania Competição como instrumento de mercado Ação coletiva como meio político Estímulo: possibilidade de o consumidor escolher Condição: consumidor pode modificar os serviços públicos Fonte: Abrúcio, 1997 O modelo gerencial representou um rompimento com a administração burocrática anterior. Seria um erro, entretanto, achar que todos os princípios do estilo weberiano foram negados. A ideia mais adequada seria a de que eles foram absorvidos e reorganizados na sua maior parte. Por exemplo, manteve-se e valorizou-se a ideia de que os processos de seleção e recrutamento no setor público estejam baseados estritamente no mérito das pessoas, a existência de um sistema racional de remuneração, baseado na avaliação sistemática do desempenho e assim por diante. A administração pública gerencial valoriza uma estratégia que define claramente os objetivos, que confere mais autonomia na gestão de recursos, mas também cobra metas pactuadas previamente. A organização deve ser mais “enxuta”, com menos níveis hierárquicos e menos chefes. Mais voltada para os fins do que para os meios. No novo estilo o interesse público não é necessariamente o “interesse do Estado” e de seus burocratas. Rompe-se com uma tendência dos burocratas públicos se identificarem a tal ponto com o Estado confundindo 37O surgimento e a crise do modelo burocrático interesses. O interesse público é o da coletividade, que deve ter meios e condições de livre manifestação e controle sobre os aparelhos do Estado. O novo paradigma descentraliza as funções, estimula processos mais colegiados e horizontais dentro da gestão pública. O cidadão também é visto como cliente dos serviços. Questões 1. O chamado modelo de gestão racional-legal ou burocrática não atende às demandas da sociedade moderna, mas cumpriu um papel na história da administração importante. Você sabe por quê? 2. No modelo gerencialista o cidadão é tratado também como cliente. Explique. 3. Quais são as tendências de evolução da escola chamada “nova gestão pública”? Referências comentadas ABRUCIO, F. L. O impacto do modelo gerencial na administração pública: um breve estudo sobre a experiência internacional recente. Caderno ENAP, n. 10, Brasília, 1997. Nesta publicação o professor Abrucio da FGV faz um rápido apanhado das experiências internacionais tendo como referência a expansão do modelo gerencial puro. Ele destaca a flexibilidade de gestão, a qualidade dos serviços e as prioridades ao consumidor como aspectos centrais na tendência dominante nos anos 80. Em seguida analisa a abordagem do public service oriented e as transformações da administração norte-americana. É uma excelente leitura para quem quiser se situar no debate sobre a gestão pública inovadora. CÂMARA DA REFORMA DO ESTADO – PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília, 1995. O Plano Diretor da Reforma do Estado foi elaborado pelo Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado e, depois de ampla discussão, 38 O surgimento e a crise do modelo burocrático aprovado pela Câmara da Reforma do Estado em sua reunião de 21 de setembro de 1995. Em seguida, foi submetido ao presidente da República, que o aprovou. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado definiu objetivos e estabeleceu diretrizes para a reforma da administração pública brasileira, instrumento indispensável para consolidar a estabilização e assegurar o crescimento sustentado da economia. A leitura deste trabalho é fundamental para entender a guinada na gestão pública brasileira após Bresser Pereira e as reformas postas em prática a partir do primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. CHIAVENATO, Idalberto. Administração geral e pública. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. Este livro foi elaborado originalmente para auxiliar os estudantes de nível superior nos concursos públicos relacionados às carreiras federais que são muito exigentes na área da gestão pública. Na verdade, o livro adquiriu uma densidade e uma abrangência ímpares na literatura disponível. Inicia comentando as escolas clássicas da administração para em seguida entrar nos assuntos típicos da gestão pública: processo administrativo, gestão de pessoas, comportamento organizacional até as novas abordagens da recente reforma gerencial. É indispensável para quem quiser se aprofundar no assunto. 3 A gestão pública no Brasil O modelo patrimonialista de gestão pública vigorou com domínio quase absoluto no Brasil até a chamada Revolução de 30. O Estado era administrado de forma autoritária, clientelista e verticalizada pelas elites agrário-exportadoras. O aparelho do Estado era objeto das disputas políticas entre as oligarquias regionais. A República Velha foi palco constante de escândalos e corrupção, as eleições inclusive não eram legitimadas por todas as elites. A administração pública refletia este contexto, não era profissionalizada, nem havia mecanismos de seleção pública, impessoal e transparente. Na Revolução de 30 novas elites assumem o país. Mais ligadas aos setores médios urbanos e industriais, estas elites estabelecem, através do governo Vargas, um programa de reformas e modernização do Estado brasileiro. O modelo patrimonialista vigente não se ajustava mais aos interesses econômicos que demandavam investimentos públicos em infraestrutura, uma burocracia ágil para apoiar o setor privado, um ordenamento legal mais racionalizado e funcional. Nesta época foram criados os ministérios da Educação, Saúde Pública, Trabalho e Indústria e Comércio. A Constituição de 1934 foi a primeira a trazer um título específico sobre os funcionários públicos. O primeiro governo Vargas é considerado pioneiro na modernização da gestão pública brasileira. Este primeiro movimento modernizante foi inspirado nas ideias de dois fundadores da administração moderna como disciplina: Taylor e Fayol. Ambos desenvolveram esforços para racionalizar os processos de trabalho. Eles concebiam a organização como um sistema fechado, sem considerar o ambiente 40 A gestão pública no Brasil institucional que o cerca. Já em 1936 o governo Vargas introduziu no país o sistema de mérito, delegando ao diplomata Mauricio Nabuco, no ano de 1936, o texto da proposta ao Congresso Nacional de uma lei que regulamentasse a gestão do Estado. Esta lei ficou conhecida como a “Lei de Reajustamento”. Foi inspirada no modelo meritocrático das carreiras do “Civil Service” da Inglaterra, do serviço público francês e da “Civil Service Commission” dos Estados Unidos. A primeira lei a organizar o serviço público brasileiro, a Lei nº 284, data desta época. Ela criou um colegiado para coordenar o esforço de modernização pública. Ele se chamava “Conselho Federal do Serviço Público Civil”, criado em 1936. Entretanto, como fruto da negociação no Congresso com as bancadas ligadas aos setores mais conservadores,manteve-se uma série de resquícios do Estado patrimonialista. Um deles foi a adoção de quadros de cargos comissionados, de livre nomeação e demissão pelos governantes. Neste momento, iniciou o processo de organização e separação de cargos comissionados dos efetivos e a elaboração da grade de remuneração dos servidores públicos. Em 1937, o Conselho Federal do Serviço Público é extinto e no seu lugar surge o DASP, Departamento Administrativo do Serviço Público. O DASP implementou um conjunto de reformas muito importantes. É desta época que surgem os primeiros concursos públicos e o combate ao nepotismo, que era uma prática corriqueira até então. A promoção por mérito e tempo de serviço, o incentivo à profissionalização dos funcionários e normas mais rigorosos de organização dos serviços, forma algumas características notáveis deste início do DASP. Neste período passamos a ter no Brasil um conjunto de critérios mais próximos ao modelo racional-legal para funcionamento da máquina pública. Os princípios da chamada “organização científica do trabalho” de inspiração taylorista foram levados ao extremo. Um resumo destes primeiros 30 anos da gestão pública brasileira: Quadro 5 – Gestão na República Velha Contexto econômico e social Brasil rural – sociedade oligárquica – Estado fragmentado Ideias Reforma orçamentária e do serviço público Problema a enfrentar Erosão das bases oligárquicas do poder Interesses Classes médias – setores industriais – militares Empreendedores Maurício Nabuco e Luís Simões Lopes 41A gestão pública no Brasil O processo de redemocratização, após a queda do Estado Novo, em 1945, resultou num debilitamento do ímpeto original do DASP. Por pressões do funcionalismo, a Constituição de 1946 efetivou funcionários interinos e que não haviam sido admitidos por concurso público. Foi o início dos tristemente conhecidos “trens da alegria” do serviço público. Acordos sem ética para manutenção de privilégios e mordomias a segmentos da burocracia e governantes, que são pagos no final por toda a sociedade. Na verdade era o velho estilo patrimonialista ainda sobrevivendo nas entranhas da cultura política. A gestão pública ainda era usada como moeda política no jogo nem sempre lícito da jovem democracia brasileira. Em 1952, houve uma retomada dos princípios originais com promulgação por lei do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União. Esta normativa reforçava mais uma vez a exigência de concurso público como regra geral para admissão. No segundo governo Vargas outras medidas afetam a gestão pública brasileira. Houve uma maior descentralização, incentivo ao planejamento administrativo, coordenação das ações e criação de assessorias mais qualificadas para a Presidência da República e os ministérios. Na sequência temos as importantes transformações provocadas pelo governo Juscelino Kubitschek que ao assumir o poder identificou a incapacidade da máquina pública brasileira em atender a seu ambicioso programa de governo. O “Plano de Metas” exigia muita eficiência e eficácia da administração pública. Naquela época, o funcionalismo público era muito influenciado pelo jogo dos partidos, e isso se refletia na dificuldade de negociação dos projetos do governo no Congresso. Foi por isso que JK criou uma estrutura executiva quase que paralela ao governo, os chamados “Grupos Executivos”. Estes grupos executam os principais projetos do Plano de Metas, inclusive a criação de Brasília. Mas em relação à reforma administrativa houve poucos avanços, o DASP estava fragilizado desde 1945 e o governo limitou-se a produzir estudos e criar comissões. Em 1962, uma lei federal dá estabilidade a todos os servidores com no mínimo cinco anos de serviço, independente da forma de contratação. Com isso alguns milhares de servidores sem concurso entraram na administração pública. Como podemos ver, de tempos em tempos há uma sobrevida das práticas da República Velha, demonstrando uma espécie de ciclo político em que se revezam com diferentes ritmos o modelo racional-legal em luta contra o estilo patrimonialista. 42 A gestão pública no Brasil 3.1 A gestão pública nos governos militares Os governos militares foram caracterizados pelo autoritarismo no plano político, mas pela modernização gerencial em diversas áreas, inclusive na administração pública. A reforma administrativa de 1967 foi precursora de várias iniciativas que foram tomadas somente 20 anos depois no movimento gerencialista que culminou na proposta da Reforma de 1995. Tudo teve início com os estudos e propostas da chamada “Comissão Amaral Peixoto” que continha um detalhado diagnóstico da administração pública brasileira, porém avançava pouco em termos de propostas concretas. Entre os principais problemas apontados pela Comissão estavam a falta de coordenação das ações governamentais, a excessiva centralização da administração na Presidência da República, o excesso de burocracia e o engessamento das carreiras públicas provocado pelo antigo estatuto do servidor público que vinha de 1952. O próprio presidente Castelo Branco já havia participado na coordenação da comissão pelas Forças Armadas. Apesar da importância na agenda política do governo militar, a proposta em debate no Congresso era muito tímida. No final de 1965, a Comissão começou a trabalhar no que seria mais tarde conhecido como o “Decreto-Lei nº 200/67” da Administração Pública federal. Neste ordenamento legal, muitas ideias avançadas para a época já estavam formalizadas. A articulação entre planejamento, orçamento e execução financeira, a criação de mecanismos de controle interno e transformação do controle externo em ex post em vez de ex ante, estavam entre elas. Uma das principais definições era a profissionalização do serviço público, com a definição do sistema de carreiras e a criação de um órgão central para administrar a reforma administrativa. As fundações foram definidas como entidades de direito privado e, portanto, não sujeitas ao controle burocrático da administração direta e autárquica. Elas foram muito utilizadas por JK no Plano de Metas. No período militar houve também uma grande expansão do Estado brasileiro. Dezenas de fundações, autarquias, empresas e sociedades de economia mista foram criadas. A administração federal já podia contratar servidores utilizando a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT. Porém, mantendo a tradição nefasta da gestão pública brasileira, a Constituição de 1967, apesar de valorizar o concurso público, também deu estabilidade para todos aqueles que tivessem pelo menos cinco anos de serviço público em todos os níveis da federação. Ao longo dos anos 70, houve pequenos avanços na estruturação da administração federal, 43A gestão pública no Brasil especialmente. De fato, a qualidade e a eficiência da gestão pública deixaram muito a desejar. Apenas em alguns setores ou instituições se conformaram verdadeiras “ilhas de excelência” com processos organizados e pessoal mais qualificado. Geralmente, estas “ilhas” se construíram em volta de burocracias que eram autênticas tecnocracias dentro do governo. As áreas mais sólidas eram a fazendária, a jurídica, a legislativa, a diplomática e a militar. Em 1970, foi criada a Secretaria de Modernização – SEMOR, que, funcionando em paralelo ao DASP, tinha a função de avançar nas propostas do Decreto-Lei nº 200, mas não surtiu resultado. No início dos anos 80, surge uma nova tentativa de modernizar o setor público. Foi criado o “Ministério da Desburocratização” e o “Programa Nacional de desburocratização”. Helio Beltrão comandava. Houve nesta época centenas de pequenas medidas reduzindo o peso da burocracia no serviço público, por exemplo, o estatuto da microempresa e o juizado de pequenas causas foram criações deste programa. Nos anos em que o Ministério funcionou, até o inicio
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