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p.298 • R Enferm UERJ, Rio de Janeiro, 2007 abr/jun; 15(2):298-304. Depressão, o mal do século DEPRESSÃO, O MAL DO SÉCULO: DE QUE SÉCULO? DEPRESSION, THE ILLNESS OF THE CENTURY: WHAT CENTURY? Cintia Adriana Vieira Gonçales* Ana Lúcia Machado** RESUMO:RESUMO:RESUMO:RESUMO:RESUMO: Conhecer a história da depressão nos leva a entender o ser humano como hoje o conhecemos e incorporamos. Este artigo tem por objetivo resgatar a história da depressão no mundo ocidental. Não se trata de reescrever a história, mas sim de realizar uma análise historico-social, revisitando o tema sob as perspectivas filosófica, poética e científica desde a antigüidade até os dias atuais. Acreditamos ser de vital importância o profissional da área de saúde conhecer quais os paradigmas em que ele se baseia no atendimento às pessoas com depressão, suas idéias e seus conceitos. Muitas vezes pode não estar consciente, mas são demonstrados em seus atos. Conhecendo a história da depressão, o profissional pode tornar esses conceitos explícitos, analisá-los e decidir-se por mantê-los no atendimento às pessoas com depressão ou transformá-los, posicionando-se com consciência. Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave: Depressão; história da psiquiatria; história de doença; filosofia. ABSTRACTABSTRACTABSTRACTABSTRACTABSTRACT: : : : : Acquaintance with the history of depression leads us to the understanding of the human being as we know and incorporate him today. This article aims at rescuing the history of depression in the West. It is not meant at rewriting that history, but at making a socio historical analysis, revisiting the theme under philosophic, poetic and scientific perspectives from early ancient days to date. It proves to be vital for the health care professional to know the paradigms – ideas and concepts – he/she addresses when caring for individuals with depression. Although he/she might not be aware of them at times, his/ her actions are always revealing. Familiar with the history of depression, the professional may resort to these concepts more consciously, may analyze them and decide whether to abide by them or transform them while caring for individuals with depression. Keywords: Keywords: Keywords: Keywords: Keywords: Depression; history of psychiatry; history of disease; philosophy. INTRODUÇÃO A depressão é uma doença pós-moderna? Alguns podem pensar que sim, pois está sendo muito comentada atualmente. O olhar da mídia direcionado para a depressão nos últimos anos, não é à toa. No ultimo relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS), a depressão se situa em quarto lugar entre as principais causas de ônus entre todas as doenças, e as perspectivas são ainda mais sombrias. Se persistir a incidência da depressão, até 2020 ela estará em segundo lugar. Em todo o mundo, somente a doença isquêmica cardíaca a suplantará1. No entanto, apesar dessas estatísticas, a depressão não é uma doença do século XXI. Perturbações há muito chamadas de melancolia são agora definidas como depressão. Primeiramente, vale a pena conhecermos a definição de melancolia. Etimologicamente, a palavra vem do grego melano chole, significando bílis negra. O termo depressão foi inicialmente usado em inglês para descrever o desânimo em 1660, e entrou para o uso comum em meados do século XIX2. Conhecer a história da depressão nos leva a entender a invenção do ser humano como hoje o conhecemos e incorporamos. Este artigo*** teve como objetivo resgatar a história da depressão no Ocidente. Não se trata de reescrever a história, mas sim de realizar uma análise historico-social, revisitando o tema sob as perspectivas científica, filosófica e poética. Afinal, antigamente os grandes pensadores eram filósofos, teólogos, matemáticos, médicos... Partimos do pressuposto que o conhecimento norteia a conduta do profissional. A depressão é R Enferm UERJ, Rio de Janeiro, 2007 abr/jun; 15(2):298-304. • p.299 Gonçalves CAV, Machado AL assunto atual e torna-se importante conhecer sua história para que os paradigmas nos quais a prática do profissional está baseada se tornem explícitos. MÉTODO Foi realizado um levantamento bibliográfico em artigos e livros, que versavam sobre o tema dentro das abordagens científica, filosófica e poética. Os textos abrangeram o período de 1993 a 2006. Para uma melhor organização dos dados, estes foram divididos, didaticamente, em quatro fases da história do mundo ocidental. RESULTADOS E DISCUSSÃO Trata do tema na Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea. Antigüidade (500 a. C. – 100 d. C.) Mente sã em corpo são. Os gregos já partilhavam a idéia moderna de que as doenças da mente estão conectadas de algum modo à disfunção corporal. A prática médica grega era baseada na teoria dos quatro humores, que considerava o temperamento como conseqüência dos quatro fluidos corporais: fleuma, bile amarela, sangue e bile negra. A depressão foi por muito tempo ligada a um excesso de bile negra, que é fria e seca. Entretanto, essa substância não foi encontrada até hoje no ser humano. A teoria dos humores foi um marco na história, pois consistiu na substituição da mitologia pela biologia e na adoção de um modelo de observação clínica. Hipócrates, no século V antes de Cristo, já conhecia e definia a depressão com a denominação de melancolia: “uma afecção sem febre, na qual o espírito triste permanece sem razão fixado em uma mesma idéia, constantemente abatido [...]”3:14. Podemos perceber, pela definição, que a depressão era considerada uma doença muito similar como a vimos atualmente, inclusive os sintomas que Hipócrates apud Cuche e Gerard3:14 citava [...] perda de sono, falta de apetite, desejo de morte [...]”. Já se procurava a origem biológica da patologia: “essa bílis negra que ao nos invadir, age sobre o corpo e sobre a alma para criar tristeza e cansaço.3:14. O tratamento proposto consistia em mudanças na dieta, ginástica, hidroterapia e medicamentos orais, ervas catárticas, eméticas e purgantes destinadas a eliminar o excesso da bile negra2. Ele acreditava também na importância do diálogo e na necessidade de não deixar o doente sozinho. Diante de observa- ções de que mulheres melhoravam após a menstrua- ção, foram sugeridas sangrias e evacuações, que per- duraram pelos próximos 1500 anos4. Os filósofos gregos Platão e Aristóteles e o político e filósofo romano Cícero trouxeram, em suas obras, significativas contribuições para se compreender tanto a psicologia humana quanto as doenças mentais. Aristóteles afirmou que os melancólicos têm mais espírito que os outros5. Por cerca de oito séculos, o racionalismo grego influenciou as formas de lidar com as doenças na Europa. Entretanto, com a queda do Império Romano, chegamos a uma outra época histórica, conhecida por muitos como a Idade das Trevas. Idade Média (450 a 1400) O advento da Idade Média e a ascensão do Cristianismo como força política e religiosa do Estado alterou completamente a forma como as doenças mentais eram vistas. O sobrenatural, a superstição e o misticismo ocuparam o lugar da medicina racional. Os tratamentos psicofarmacológicos entraram em conflito com o paradigma da Igreja e foram sendo usados cada vez menos. Santo Agostinho declarou que o que separava os homens dos animais era o dom da razão. Portanto, a perda da razão era um desfavor de Deus, a punição para uma alma pecadora2. A depressão, ainda denominada melancolia, era uma doença especialmente nociva, uma vez que o desespero do melancólico sugeria não estar ele embebido de alegria ante o conhecimento certo do amor e da misericórdia divinos. A melancolia era considerada um afastamento de tudo o que era sagrado. Foi nessa época, século V, que a depressão foi denominada por Cassiano apud Solomon2 como O demônio do meio-dia. Segundo Cassiano, outros pecados podemassolar a noite, mas esse, audacioso, consome dia e noite2. O tratamento para esses casos sem esperança era colocar o melancólico para fazer trabalhos manuais e abandoná-lo, longe de todos. Na época da Inquisição, no século XIII, a melancolia foi considerada um pecado e algumas pessoas eram multadas ou aprisionadas por carregarem esse mal da alma, que não tinha cura. Idade Moderna (séculos XV a XIX) Nesse período, vamos nos referir a grandes épocas culturais que ocorreram na Europa, como o Renascimento, o Iluminismo e o Romantismo. p.300 • R Enferm UERJ, Rio de Janeiro, 2007 abr/jun; 15(2):298-304. Depressão, o mal do século Como o próprio nome nos leva a pensar, o Renascimento retoma o racionalismo científico, representado por uma releitura dos filósofos gregos, como Sócrates, Platão e Aristóteles. É uma época marcada pelo antropocentrismo, naturalismo e racionalismo. No século XVI, a noção de melancolia foi definida, parcialmente, pelos sintomas apresentados, entre eles, as idéias delirantes. Há relatos de pessoas que acreditavam ser animais, outros pensavam ser feitos de vidro ou de palha e outros imaginavam ser culpados por crimes6. Nesse mesmo século, notamos significativos contrastes entre os pensadores europeus. No sul, a melancolia foi glamourizada. Considerada como uma doença e uma qualidade inerente a um tipo de personalidade, indicava profundidade2. Marsilio Ficino, na Itália, foi o filósofo que mais discutiu a depressão, supondo que a melancolia, presente em todos os homens, era a manifestação do anseio humano pelo grande e o eterno. Dizia que todo gênio é um melancólico. Já os pensadores ingleses continuaram, por um tempo, a acreditar que a melancolia vinha das relações com anjos maus ou das suas intromissões, porém as pessoas afligidas pelo mal não eram responsáveis por essas intromissões2. No final do século XVI e ao longo do século XVII, a melancolia tornara-se uma aflição comum que podia ser prazerosa ou desprazerosa. Os argumentos de Ficino ecoaram por toda a Europa, a melancolia entrou na moda, sendo desejada. Muito foi escrito sobre como a melancolia torna um homem melhor e mais inspirado. Shakespeare, com o personagem Hamlet, mostra a melancolia como essencial para a sabedoria e básica para a loucura2. Burton, citado por Solomon2, estuda a anatomia da melancolia e discorre sobre o tema de forma bastante complexa, unindo as idéias de Aristóteles, Ficino, Hipócrates, os personagens de Shakespeare e experiências pessoais de melancolia e introspecção2. Até o começo do século XVII, o debate sobre a melancolia permaneceu preso à tradição dos quatro humores e suas qualidades essenciais que pertencem a uma substância “de consistência espessa, fria e seca de temperamento”6:263. No final do século XVII e início do século XVIII, com o desenvolvimento científico, esse quadro muda totalmente. O filósofo e matemático francês, René Descartes, no final do século XVII, inaugura o racionalismo moderno ao fazer do sujeito do conhe- cimento o fundamento de toda a verdade. Usando a razão e a dúvida, chegou na frase Penso, logo existo, desvelando perfeitamente o pensamento dos filóso- fos dessa época, conhecido como o Grande Racionalismo Clássico. Predominou a idéia de conquista científica e técnica de toda a realidade, a partir da explicação mecânica e matemática do universo. É desse período a convicção de que a razão humana é capaz de conhecer a origem, as causas e os efeitos das paixões e das emoções e, pela vontade orientada pelo intelecto, é capaz de governá-las e dominá-las5. O reconhecimento da dicotomia entre corpo e mente (dualismo cartesiano) vai causar uma enorme mudança no arcabouço da depressão. A mente, distinta do cérebro, apresenta dúvidas, interpretações duvidosas e inconsistências, mas não doença. A doença é um aspecto físico7. É nessa época que começam os questionamentos que muitos ainda fazem. A mente influencia o corpo ou é o corpo que influencia a mente? A depressão é um desequilíbrio químico ou uma fraqueza humana2? O delírio vai deixando de ser o sintoma maior dos melancólicos em virtude dos dados qualitativos, como a tristeza, o amargor, o gosto pela solidão, a imobilidade. Ao final do século XVIII serão classificadas como melancolia as loucuras sem delírio, porém caracterizadas pela inércia, pelo desespero, por uma espécie de estupor morno6. O século XVIII foi marcado pelo Iluminismo, termo usado para descrever as tendências do pensamento e da literatura na Europa e em toda a América antecedendo a Revolução Francesa. As novas descobertas da ciência, a teoria da gravitação universal de Isaac Newton e o espírito de relativismo cultural fomentado pela exploração do mundo ainda não conhecido foram também uma base importante. É igualmente marcante a permanente fé no poder da razão humana. Chegou-se a declarar que, mediante o uso judicioso da razão, seria possível um progresso sem limites. Com o acelerado desenvolvimento científico nesse século, surgem as primeiras teorias que vão dar origem aos pensamentos atuais. Friedrich Hoffman foi o primeiro a sugerir que a loucura seria uma doença hereditária2. William Cullen, médico escocês, afirmou que na melancolia ocorreria uma alteração da função nervosa e não dos humores que levaria à incapacidade de associar as idéias e executar o julgamento como descrito4. R Enferm UERJ, Rio de Janeiro, 2007 abr/jun; 15(2):298-304. • p.301 Gonçalves CAV, Machado AL A ciência avança, mas a posição social dos de- primidos retrocede. Numa Idade da Razão, os sem razão estavam em desvantagem. Já existiam hospitais para abrigar os doentes mentais desde a Idade Média, porém, na metade do século XVII, resultante de uma reorganização social, a loucura é associada à ociosidade e começa a ser vista como um elemento perturbador da ordem moral e social que precisa ser corrigida. Entre os doentes mentais, os deprimidos sofriam menos abusos que os demais por serem relativamente dóceis. No entanto, a melancolia era considerada, por muitos, intratável. Dessa forma, as pessoas que sofriam das formas mais graves eram submetidas a tratamentos aterrorizantes, como causar dor física, para distrair da dor da mente, afogamentos e dispositivos para fazerem os melancólicos vomitarem e desmaiarem2. O trabalho duro foi considerado, no século XVIII, como o melhor remédio para a depressão, visto que a melancolia, o desalento, o desespero e freqüentemente o suicídio são a conseqüência da visão sombria das coisas no estado relaxado do corpo2. Interessante observarmos que muitas concepções atuais da depressão estão firmemente arraigadas nos pensamentos da Idade da Razão. As questões do ócio, preguiça, falta de vontade e a necessidade do trabalho braçal ainda podem ser percebidas em alguns meios, quando ouvimos frases como: depressão é doença de quem não tem o que fazer e o remédio é um tanque cheio de roupa suja para lavar. Talvez em decorrência das idéias iluministas de liberdade e do pensamento naturalista nas ciências, surge a preocupação com a saúde mental dos indivíduos e com a assistência prestada dentro das casas de internamento ou asilos. Philippe Pinel e o tratamento moral são dessa época. Em 1801, publicou o Tratado médico-filosófico da alienação mental ou mania, no qual classifica quatro espécies do gênero de loucura: mania, melancolia, demência e idiotismo8. Esquirol, discípulo de Pinel, volta seu interesse para a clínica. Proclama que a psiquiatria deve ser entendida como uma medicina mental e deve buscar seu entendimento na anatomia cerebral e não nos metafísicos (filósofos) ou nos moralistas (a Igreja). Ele inicia uma classificação de dois tipos de melancolia, a lipemania e a monomania4. Percebemos uma grande preocupação dos estudiosos em classificar as doenças. Eles começam a separar em grupos os transtornos do juízo e os quadrosestritamente melancólicos. No Período Romântico, a depressão vai ser novamente amada e desejada. Poetas e filósofos discorrem sobre o assunto de forma magistral. O Romantismo surge como uma reação à parcialidade do culto à razão apregoado pelo Iluminismo. As novas palavras de ordem eram sentimento, imaginação, experiência e anseio. Os românticos professavam uma glorificação quase irrestrita do eu. A essência da personalidade romântica é, por isso mesmo, o gênio do artista. As mentes se voltam para o sublime, ao mesmo tempo magnífico e comovedor. Immanuel Kant sustentava que o sublime sempre fora acompanhado por algum terror ou melancolia. Leopardi apud Solomon2:292 escreve “o destino não legou à nossa raça nenhum dom exceto o de morrer”. O depressivo, na visão do filósofo Arthur Schopenhauer, vive simplesmente porque tem um instinto básico e, assim como Voltaire, acreditava no trabalho. Não porque o trabalho gere alegria, mas porque distrai os homens de sua depressão essencial2. Soren Kierkegaard, precursor do existencialismo, fala do desespero, não como uma questão filosófica apenas, mas também como um problema concreto do dia-a-dia. Anteriormente, poetas e filósofos referiam- se a indivíduos melancólicos, mas Kierkegaard, diferentemente, vê a humanidade como melancólica2. O século XIX trouxe descobertas na biologia, na física, na química, na anatomia, na neurologia, na bioquímica, o que permitiu relacionar as doenças mentais com a patologia orgânica do cérebro. Foi um período de classificações. Grandes teóricos debateram a natureza da doença e seus parâmetros, redefinindo, o que antes fora simplesmente identificado como melancolia, em categorias e subcategorias. Wilhelm Griesinger introduz a tradição clínica na Alemanha. Ele volta a sua atenção para Hipócrates e declara que doenças mentais são doenças do cérebro. As autópsias cerebrais tornaram- se comuns. Com Griesinger, a depressão veio a ser completamente medicalizada2. O século XIX também foi chamado por Pessotti9 de O século dos manicômios, devido ao enorme número de manicômios construídos e ao grande número de internações realizadas nessa época. O manicômio foi o núcleo gerador da psiquiatria como especialidade médica. Michel Foucault sugeriu que essa medicalização fazia parte de um plano de controle social2. O capitalismo imperialista e monopolista estava consolidado. p.302 • R Enferm UERJ, Rio de Janeiro, 2007 abr/jun; 15(2):298-304. Depressão, o mal do século Friedrich Nietzsche declarou que Deus estava morto e que fomos nós que o matamos. O filósofo William James identificou uma alienação modernista em decorrência da decadência na fé inquestionável de um Deus supremo. Esse abandono da noção de Deus e de significado abriu caminho para agonias que suportamos até hoje2. Idade Contemporânea (século XX até os dias atuais) No século XX houve a consolidação da psiquiatria, além disso, surgiram os movimentos sociais e comunitários que visavam modificar as formas de atendimento e assistência ao paciente psiquiátrico. Os avanços e descobertas em psicopatologia, farmacologia, anatomia patológica, neurologia e genética possibilitaram que a psiquiatria adquirisse fundamentação científica para os conhecimentos oriundos da prática clínica, da observação e da experiência8. Em 1917, Sigmund Freud escreveu Luto e melancolia, texto no qual afirma que a melancolia é uma forma de luto e que surge de uma sensação de perda da libido. Considera que, na melancolia, o ego se torna pobre e vazio2. Emil Kraepelin, em seu Compêndio de Psiquiatria, publicado em 1883, representou a grande força que impulsionou o aperfeiçoamento da nosologia psiquiátrica no início do século XX. Supunha que toda doença mental se erigia sobre uma base bioquímica interna. Separou a depressão em três categorias, da mais suave à mais grave, permitindo uma relação entre elas. Quanto à sua etiologia, a hereditariedade se destacava, em 1970, com 80% dos casos2. Adolf Meyer adotou uma abordagem pragmática, considerando o homem como um ser psicobiológico, sujeito a experiências e ações sociais e biológicas que interferiam no seu desenvolvimento mental. É o começo da psiquiatria como uma terapia dinâmica2. O conhecimento da psicanálise e da bioquímica da depressão, mescladas com a Teoria da Evolução, a Teoria da Relatividade e a Teoria Quântica, deixaram novamente a humanidade isolada e alienada. Ao nos confrontarmos com essa perda do Absoluto (Deus e as certezas físicas e matemáticas), deparamo-nos com lacunas de conhecimento ainda maiores nas esferas biológica, psicológica e social. Na década de 1950, os antidepressivos foram descobertos, ocasionando um avanço para o tratamento da depressão. Os mecanismos de ação mantêm relação com os neurotransmissores. Vários estudos foram realizados para se descobrir quais são os neurotransmissores que regulam as emoções, porém ainda não há pesquisas conclusivas. Os anos 90 foram denominados a década do cé- rebro, em virtude dos progressos científicos ocorri- dos em torno da compreensão e tratamento das en- fermidades mentais. Amen10 relata estudos com eletroencefalograma (EEG), tomografia computado- rizada de emissão de fóton único (SPECT) e tomografia com emissão de pósitron (PET), os quais mostraram resultados interessantes. Os padrões do cérebro se correlacionam com o comportamento, como as tendências em relação à depressão, à ansiedade, à distração, à obsessão e à violência10:10. Com relação à depressão, o autor cita algumas pesquisas que indicaram alterações em algumas regiões cerebrais, como a amígdala e o hipocampo, entre outras, mas ainda não conclusivos10. A psiconeuroimunologia aponta a existência de uma comunicação bidirecional entre os sistemas imunológico e neuroendócrino. Existem consideráveis evidências de que a depressão maior esteja associada a alterações do sistema imunológico11. O advento dos psicofármacos e a criação da Organização Mundial de Saúde, em 1948, impul- sionaram a tentativa de construir uma classificação internacional de doenças2. A depressão, no início do século XXI, é, com algumas exceções, considerada uma doença mental, catalogada na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) e no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM), recebendo abordagens científicas, como a médica, a psicanalítica e a cognitivista. No senso comum, não menos importante, observamos ainda as visões filosófica, religiosa e poética. A preocupação atual com o diagnóstico é muito grande, porém pesquisas demonstram que, em média, 50% das pessoas que chegam à rede básica de saúde com sintomas de depressão não recebem diagnóstico e tratamento corretos12. Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) surgiram como alternativa para o tratamento, substituindo o modelo do hospital psiquiátrico tradicional. No cotidiano do trabalho nos CAPS são realizadas atividades que visam à socialização da pessoa portadora de transtorno psíquico, entre elas: educação física, oficinas culturais, oficinas de música, de expressão corporal, de dança, caminhadas no bairro, entre outras13. R Enferm UERJ, Rio de Janeiro, 2007 abr/jun; 15(2):298-304. • p.303 Gonçalves CAV, Machado AL A depressão é um tema muito estudado e com forte relevância. Autores contemporâneos vêm realizando estudos que trazem novidades unidas a tratamentos antigos como exercícios físicos. Um desses autores é o neuropsiquiatra Servan-Shreiber14 que descreve sete abordagens de tratamento natural, centradas na mente e nos mecanismos de cura do próprio cérebro para se recuperar de depressão, ansiedade e estresse. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para o tema depressão, tão antigo e atual, não há ainda uma conclusão, portanto apresentamos al- gumas considerações finais deste artigo. Interessante observarque, após 25 séculos, nos voltamos para Hipócrates, colocando a depressão como uma doença que envolve alterações cerebrais. Obviamente, hoje temos uma tecnologia que não existia, o que nos possibilita demonstrar isso. Tecnologia que ainda não nos ajudou a saber a etiologia completa, os achados cerebrais não estão presentes em todos os pacientes, há vários tipos de depressão diagnosticadas. Ainda não entendemos por que um paciente sofre de apenas um episódio depressivo, outros têm várias recaídas, tomando antidepressivos para o resto da vida e outros ainda cometem o suicídio. O estigma ainda é muito grande, ouvimos frases que nos lembram a Idade Média, outras nos lembram a Idade da Razão. O dualismo e o reducionismo cartesiano estão muito presentes. As idéias positivistas de que, com a tecnologia adequada, possuiremos todo o conhecimento sobre tudo ainda são observadas. A fé cega na ciência positivista, em detrimento do ser humano, infelizmente, permanece presente. Acreditamos ser de vital importância o profissional da área de saúde conhecer quais os paradigmas em que ele se baseia no atendimento às pessoas com depressão, suas idéias e seus conceitos. Muitas vezes pode não estar consciente, mas são demonstrados em seus atos. Conhecendo a história da depressão, o profissional pode tornar esses conceitos explícitos, analisá-los e decidir-se por mantê-los no atendimento às pessoas com depressão ou transformá-los, posicionando-se com consciência. REFERÊNCIAS 1. Organização Mundial de Saúde. Relatório sobre a saúde no mundo 2001: saúde mental: nova concepção, nova esperança: Geneva (CH): MS;2001. 2. Solomon A. O demônio do meio-dia. Rio de Janeiro: Objetiva;2002. 3. Cuche H, Gerard A. Não agüento mais: um guia para compreender e combater a depressão. 2aed. Cam- pinas (SP): Papirus;1994. 4. Cordás TA. Depressão, da bile negra aos neurotransmissores: uma introdução histórica. São Paulo: Lemos Editorial;2002. 5. Chaui M. Convite à filosofia. 11aed. São Paulo: Ática; 1999. 6. Foucault M. História da loucura. 7aed. São Paulo: Perspectiva;2004. 7. Marinoff L. Mais Platão, menos Prozac. 2aed. Rio de Janeiro: Record;2001. 8. Ribeiro PRM. Da psiquiatria à saúde mental: esboço histórico. J Bras Psiq. 1999; 48:53-60. 9. Pessotti I. O século dos manicômios. Rio de Janeiro: Editora 34; 1996. 10. Amen DG. Transforme seu cérebro, transforme sua vida. São Paulo: Mercuryo;2000. 11. Bauer MO, Gauer GJ, Nardi NB. Depressão maior e atividade do sistema imunológico. Rev ABP-APAL. 1993;15:87-94. 12. Valentini W, Kohn R, Miranda CT, Mello AAF, Mello MF, Ramos CP et al. Treinamento de clínicos para o diagnóstico e tratamento da depressão. Rev Saúde Pública. 2004;38:522-8. 13. Kantorski LP, Souza J, Willrich JQ, Mielke FB. O cuidado em saúde mental: um olhar a partir de documentos e da observação participante. R Enferm UERJ. 2006;14:366-71. 14. Servan-Schreiber D. Curar o stress, a ansiedade e a depressão sem medicamento nem psicanálise. São Paulo: Sá Editora;2004. p.304 • R Enferm UERJ, Rio de Janeiro, 2007 abr/jun; 15(2):298-304. Depressão, o mal do século DEPRESIÓN, LA ENFERMEDAD DEL SIGLO: ¿DE QUÉ SIGLO? RESUMEN:RESUMEN:RESUMEN:RESUMEN:RESUMEN: El conocimiento de la historia de la depresión nos conduce a comprender el ser humano tal como hoy lo conocimos e incorporamos. Este artículo se propone rescatar la historia de la depresión en Occidente. No se trata de volver a escribir la historia sino realizar un análisis sociohistórico, hacer una relectura del tema bajo perspectivas filosófica, poética y científica desde tiempos remotos hasta la actualidad. Creemos que es fundamental que el profesional del área de la salud conozca cuales son los paradigmas en que él se basa para la atención a personas con depresión, sus ideas y sus conceptos. Muchas veces puede no estar consciente pero los expone en sus actos. Conociendo la historia de la depresión, el profesional puede hacer esos conceptos explícitos, analizarlos y decidirse por mantenerlos cuando atiende a las personas con depresión o transformarlos, posicionándose con consciencia. Palabras Clave: Palabras Clave: Palabras Clave: Palabras Clave: Palabras Clave: Depresión; historia de la psiquiatría; historia de dolencia; filosofía. Recebido em: 17.02.2006 Aprovado em: 04.11.2006 NotasNotasNotasNotasNotas *Enfermeira, Doutoranda em Enfermagem pela EEUSP, Mestre em Enfermagem Psiquiátrica, Docente do Centro Universitário Nove de Julho - UNINOVE. E-mail cintiavieira@usp.br R.: Profº Roberval Fróes, 44, Jd. Esplanada II, São José dos Campos–SP. CEP 12242-460. **Enfermeira, Professora Associada do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrico da EEUSP. E-mail almachad@usp.br. ***Trabalho extraído da Dissertação de Mestrado intitulada “Depressão: experiência de pessoas que a vivenciam na pós-modernidade”. Escola de Enfermagem da USP, 2005.
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