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RESUMO – AP1 FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO I ALUNA: MARIA ALÍNIZA DA SILVA TEXTO 1 - POR UMA DEFINIÇÃO FILOSÓFICA DA EDUCAÇÃO Haveria, ainda hoje, sentido em se buscar a filosofia para definir a educação? O que teria, atualmente, a filosofia a contribuir para a teoria sobre a educação? Para aqueles que a ela não foram introduzidos, a filosofia passa frequentemente por ser um conhecimento abstrato e distante de tudo o que se vive, e o seu ensino uma longa enumeração de respostas que autores do passado remoto forneceram a questões que não são mais as nossas, que jamais nos ocorreria interrogar. Em uma palavra, um conhecimento… inútil e enfadonho, e ainda por cima muito difícil de ser apreendido. Ela se constituiu numa reação contra o poder dogmático que em filosofia da educação. Nome da filosofia foi exercido pelo Estado, pela tradição ou pelos religiosos. Assim, resume Franco Cambi, no século XX o saber pedagógico se emancipou do modelo metafísico que, desde a antiguidade até pelo menos o século XVII, dominou a educação, fornecendo definições acabadas sobre sua natureza e seus fins. A concepção histórica que Cambi defende para a pedagogia – a concepção científica – manteve-se largamente dominante na educação a partir da modernidade, sobretudo no que se refere à definição da prática educacional, que teria sido libertada da dependência das verdades definidas de uma vez por todas pela metafísica. Na definição cientificista da educação, o fazer educativo é campo de permanente exploração das ciências humanas – feitas, agora, «ciências da educação». Assim, a influência da filosofia foi sendo substituída pela autoridade do conhecimento científico, que, à medida que vai se especializando e complexificando, passa a fornecer tantas definições para a educação quantos são os ramos da ciência e, em seu interior, as correntes assumidas pelos cientistas. Assim, no início do século, Antonio Gramsci proclamava: «todos são filósofos»! No campo da educação, a concepção gramsciana de filosofia exerceu uma enorme influência, sobretudo a partir dos anos 1980, vindo somar-se a uma tendência mais antiga, de designar como filosofia não mais uma atividade conscientemente realizada, mas, genericamente, um «modo de ser» de um indivíduo ou de um grupo: Na medida de nossas forças, construímos, então, uma filosofia e a ela nos acomodamos, tão bem como tão mal, em nossa ânsia e inquietação de compreender e de pacificar o espírito. Ou, como resumiu o autor dessas palavras, o educador Anísio Teixeira: «conforme o tipo de experiência de cada um, será a filosofia de cada um». Face à decadência dos grandes sistemas teóricos e das verdades que produziam, a filosofia já pode ser confundida com a própria «a atividade de pensar». Definida como atividade plenamente inserida na vida cotidiana de cada um – pesquisador ou homem comum, a filosofia torna-se o campo das escolhas, dos valores. Mas – questão que os filósofos nunca deixaram de fazer – em que então a filosofia, a reflexão, se apoiaria, para fundamentar essa decisão? Como, para a modernidade, a filosofia só é atividade especializada se ela se fizer «científica», a resposta mais evidente é: ela deveria se amparar na crítica racional, na razão científica que se emancipou do dogmatismo metafísico. É preciso convir que é impossível fazer caber a realidade humana nos estreitos limites da racionalidade científica. Assim, deduz Anísio Teixeira, tudo que não decorre das certezas rigorosas da razão, deve ser comparado à arte, à profecia… à crença: A filosofia não busca verdade no sentido estritamente científico do termo, mas valores, sentido, interpretações mais ou menos ricas de vida. Vai às «causas últimas» para usar a velha expressão, porquanto nos deve levar à compreensão mais larga, mais profunda e mais cheia de sentido que for possível obter, do universo, à vista de tudo que o homem fez e conhece na terra. A filosofia tem, assim, tanto de literário quanto de científico. Científicas devem ser as suas bases, os seus postulados, as suas premissas; literárias ou artísticas as suas conclusões, a sua projeção, as suas profecias, a sua visão. E, nesse sentido, a filosofia se confunde com a atividade de pensar, no que ela encerra de perplexidade, de dúvida, de imaginação e de hipotético. Quando o conhecimento é suscetível de verificação, transforma-se em ciência, e enquanto permanece como visão, como simples hipótese de valor, sujeito aos vaivéns da apreciação atual dos homens e do estado presente de suas instituições, diremos, é filosofia. A democracia é o projeto de romper o fechamento em nível coletivo. A filosofia, que cria a subjetividade com capacidade de refletir, é o projeto de romper com o fechamento do pensamento… O nascimento da filosofia e o nascimento da democracia não coincidem, eles co-significam. Ambos são expressões e encarnações centrais do projeto de autonomia. Portanto, sob a perspectiva democrática, isso é, à luz do projeto de autonomia individual e coletiva, a filosofia não é a atividade espontânea pela qual as sociedades criam seus costumes, valores, representações e finalidades, mas a forma sistemática e deliberada de interrogar esta criação. Ela é a busca de definição, em primeiro lugar, do espaço que cabe à deliberação e à iniciativa humana: individualmente, como decisão que constitui a conduta ética. Nesse momento, e após muitos séculos, a definição filosófica da educação voltou a buscar, na radicalidade de sua tradição de questionamento, seu caráter eminentemente instituinte. Essa dimensão instituinte do fazer educativo foi proclamada com insistência durante o período da Revolução Francesa, que redescobriu a direta relação entre este fazer e a instituição política da sociedade. Decorre daí uma nova definição filosófica da educação, uma definição política. Aos poucos, porém, em face das exigências de construção de uma sociedade nova e unificada, a autoridade científica foi retomando o poder que havia sido subtraído ao dogma: a prática do controle se reinstituiu, pela ambição ampliada de uma definição científica da educação, que promove as «ciências da educação» em referências absolutas para os métodos e procedimentos de administração e de realização do fazer educativo. Nossos tempos já não desconhecem os efeitos nefastos do mito do «progresso» técnico-científico, que Jean-Jacques Rousseau começara a denunciar, e os riscos da descontrolada ambição de domínio racional da realidade. Por isso, na área da educação, as diferentes disciplinas dificilmente convergirão para uma compreensão organizada e harmônica da realidade humana e social – e não é essa a função da filosofia. Um dos maiores expoentes da filosofia moderna, Immanuel Kant havia começado a demonstrar os limites do conhecimento científico, no que se refere ao homem e à sociedade: sob esse aspecto, sua contribuição para a definição filosófica da educação é inegável, ainda que pouco explorada. Todavia, qualquer «definição» que parta apenas das determinações que pesam sobre a natureza humana e social, e não, igualmente, do questionamento dos limites dessas determinações é nefasta para a educação. Volta-se, assim, repetidamente, à tradição platônica, e à herança metafísica: Com Platão começa a torção, e a distorção, platônica que dominou a história da filosofia ou, pelo menos, a sua principal corrente. O filósofo deixa de ser um cidadão. Sai da pólis, ou coloca-se acima dela, e diz às pessoas o que devem fazer, deduzindo isso de [seu próprio conhecimento]. Começa com Platão, diz Cornelius Castoriadis, a crença de que se possa encontrar uma teoriaúnica e válida para todas as questões sobre o humano, uma ontologia unitária, da qual, em seguida, se tenta derivar o regime político ideal. É essa a «torção e a distorção» que sofrem, primeiramente, a filosofia e, em seguida, a ciência moderna: a de acreditar que o conhecimento pode e deve substituir a liberdade humana. Em fins do século XIX, Friedrich Nietzsche afirmava que só seríamos de fato «modernos» quando, enterrando de uma vez por todas a tradição platônica, abraçássemos definitivamente o nihilismo. Dessa forma, alguns críticos pós-modernos renunciam à filosofia como práxis e à educação como ação deliberada e racional. Mas, feita compromisso racional e deliberado com o projeto de autonomia, a filosofia pode definir a educação como prática de formação coletiva de subjetividades reflexivas e deliberantes de que a democracia carece. ANÍSIO TEIXEIRA Na medida de nossas forças, construímos, então, uma filosofia e a ela nos acomodamos, tão bem como tão mal, em nossa ânsia e inquietação de compreender e de pacificar o espírito. Tais filosofias individuais não se articulam, porém, em sistemas filosóficos. Esses, quando não são criações pedantes de gabinete, mas expressões reais de filosofia, representam e caracterizam uma época, um povo ou uma classe de pessoas. Porque, no sentido realístico de que falamos de filosofia, tal seja a vida, tal seja a civilização, tal será a filosofia. A filosofia de um grupo que luta corajosamente para viver, não é a mesma de outro cujas facilidades transcorrem em uma tranquila e rica abundância. Conforme o tipo de experiência de cada um, será a filosofia de cada um… A filosofia se traduz, assim, «em educação, e educação só é digna desse nome quando está percorrida de uma larga visão filosófica. Filosofia da educação não é, pois, senão o estudo dos problemas que se referem à formação dos melhores hábitos mentais e morais em relação às dificuldades da vida social contemporânea.»[Dewey]. Considerada assim, a filosofia, como a investigadora dos valores mentais e morais mais compreensivos, mais harmoniosos e mais ricos que possam existir na vida social contemporânea, está claro que a filosofia dependerá, como a educação, do tipo de sociedade que se tiver em vista. CORNELIUS CASTORIADIS Atravessamos um período de crise prolongada da cultura ocidental. À crise pertencem também a proclamação – em particular por Heidegger, mas não só por ele – do “fim da filosofia” e toda a gama de retóricas desconstrucionistas e pós-modernistas. Pois a filosofia é um elemento central do projeto grecoocidental de autonomia individual e social; o fim da filosofia significaria nem mais nem menos do que o fim da liberdade. A liberdade não está apenas ameaçada pelos regimes totalitários ou autoritários. E sim, de maneira mais escondida, porém não menos forte, pela atrofia do conflito e da crítica, pela expansão da amnésia e da irrelevância, pela incapacidade crescente de questionar o presente e as instituições existentes, quer sejam propriamente políticas ou contenham concepções do mundo. Nessa crítica, a filosofia sempre teve uma parte central, ainda que, na maior parte do tempo, sua ação tenha sido indireta. Um filósofo escreve e publica porque crê que tem coisas verdadeiras e importantes a dizer, mas, também, porque quer ser discutido. Ser discutido implica a possibilidade de ser criticado e, eventualmente, refutado. E todos os grandes filósofos do passado – inclusive Kant, Fichte e Schelling – explicitamente discutiram, criticaram e refutaram – ou pensaram que refutaram – seus predecessores. Pensavam, com razão, que pertenciam a um espaço social- histórico público e transtemporal, na ágora trans-histórica da reflexão, e que sua crítica pública dos outros filósofos era um fator essencial da manutenção e do alargamento desse espaço como sendo de liberdade (…). (…) É por isso que, para um filósofo, não pode haver história da filosofia a não ser crítica. A crítica pressupõe evidentemente o esforço mais laborioso e mais desinteressado para compreender a obra crítica. Mas ela exige também uma vigilância constante quanto às limitações possíveis desta obra, limitações que resultam do fechamento quase inevitável de toda obra de pensamento que acompanha a sua ruptura com o fechamento precedente. IMMANUEL KANT O homem é a única criatura que precisa ser educada. Por educação entendesse o cuidado de sua infância (a conservação, o trato), a disciplina e a instrução com a formação. Consequentemente, o homem é infante, educando e discípulo. (…) A disciplina transforma a animalidade em humanidade. Um animal é por seu próprio instinto tudo aquilo que pode ser; uma razão exterior a ele tomou por ele antecipadamente todos os cuidados necessários. Mas, o homem tem necessidade de sua própria razão. Não tem instinto, e precisa formar por si mesmo o projeto de sua conduta. Entretanto, porque ele não tem a capacidade imediata de o realizar, mas vem ao mundo em estado bruto, outros devem fazê-lo por ele. HANNAH ARENDT A filosofia tem duas boas razões para não se limitar a apenas encontrar o lugar onde surge a política. A primeira é: a) Zoon politikon: como se no homem houvesse algo político que pertencesse à sua essência – conceito que não procede; o homem é a-político. A política surge no entre-os-homens; portanto, totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma substância política original. A política surge no intra-espaço e se estabelece como relação. Hobbes compreendeu isso. b) A concepção monoteísta de Deus, em cuja imagem o homem deve ter sido criado. Daí só pode haver o homem, e os homens tornam-se sua repetição mais ou menos bem-sucedida. O homem, criado à imagem da solidão de Deus. É a rebelião de cada um contra todos os outros, odiados porque existem sem sentido – sem sentido exclusivamente para o homem criado à imagem da solidão de Deus. TEXTO 2 A CONCEPÇÃO FILOSÓFICA DA EDUCAÇÃO Muitas vezes, no passado, o ensino da filosofia da educação tomou a forma de uma apresentação mais ou menos cronológica das «teorias» ou das «concepções filosóficas» produzidas para a prática educativa. Esse procedimento inspirava-se em uma tradição didática fortemente arraigada na própria área de filosofia e tinha o mérito de fornecer um painel bastante abrangente dos grandes filósofos do passado. Se, todavia, a filosofia tem um papel central na formação dos educadores e dos pesquisadores em educação é porque a natureza do fazer educativo impõe à teoria ser muito mais do que uma série de belos desenvolvimentos, e mais também do que um corpo coerente de explicações previamente organizado. Diante dos enigmas que a existência humana e social colocam para a educação, qualquer teoria fracassará, se não for acompanhada de um contínuo questionamento, se não for vivificada pela constante reflexão. E, para isso, a filosofia pode certamente ajudar: pois de seu passado ela pode nos oferecer não somente conceitos e teorias, mas igualmente as interrogações de que se originaram. E, de fato, a filosofia dizia Cornelius Castoriadis, é compromisso com a totalidade do pensável. Não apenas, portanto, com a totalidade daquilo que já foi pensado mas, sobretudo, com tudo que ainda há para pensar. E se isso é assim, é porque a educação é, ao mesmo tempo, um enigma e uma atividade prático-poiética. Kant decretou que ela era, juntamente com a política, «a mais difícil das artes». Freud a chamou, simplesmente, de «impossibilidade». A educação e a política – e, acrescentaria Freud, a psicanálise – são atividades impossíveis. Essaé uma afirmação muito profunda, mas só a entenderá quem se colocar na mesma perspectiva que era a de Freud, ao dizê-lo: a da autonomia humana. A natureza, os objetos criados pelo homem podem ser inteiramente desvendados naquilo que são e na forma como se comportam por uma ciência, no sentido mais estrito do termo: eles podem ser inteiramente explicados pela teoria. Porém, no caso do humano, nunca é possível dizer inteiramente o que é, nunca se poderá prever totalmente seu comportamento, pela simples razão que o modo de ser do homem, sua existência, toma a forma de autocriação incessante. A criação é também a origem e o fundamento da autonomia humana. A educação tem por finalidade construir a autonomia do indivíduo, como o próprio termo (autonomia) já anuncia, essa construção é sempre, necessariamente, uma autocriação. Em suma, para educar o humano, para torná-lo um ser autônomo, deve-se partir e deve-se tomar como base algo que ainda não está lá – essa própria autonomia. Por isso, diz Castoriadis, a educação é uma atividade prático-poiética. A expressão prático-poiética tenta resolver um falso impasse entre duas possibilidades que Aristóteles elencou, para definir a natureza das atividades humanas: há, dizia o filósofo, algumas atividades que têm uma finalidade determinada, que visam a produção de alguma coisa objetivável, uma coisa ou um efeito sobre algo. A essas atividades que não têm, portanto, fim em si mesmas, mas cujo fim é sempre exterior, Aristóteles chamou de poiesis (que se poderia traduzir aqui como fabricação). E há, também, atividades que não visam a produção de nada: sua finalidade está em seu próprio exercício. Aristóteles denomina essas atividades, que têm fim em si mesmas, de práxis. Ora, essa distinção parece que não se aplica à educação. Em outras palavras, na educação, o processo e o produto, meio (poiesis) e fim (práxis) se confundem, não há como distingui-los inteiramente: ela é uma atividade prático-poiética. Na educação, a autonomia é, concomitantemente, o meio para se chegar ao fim e o próprio fim buscado. Para o educador comprometido com o projeto de autonomia, esse conceito abstrato sobre o qual tantos filósofos, tantos políticos, tantos sociólogos tentaram teorizar – a liberdade humana – se apresenta como realidade quotidiana. Não é, pois, à ideia de Deus, ou à noção de um «direito natural» que ele recorre, como a teoria tantas vezes fez, para afirmar uma noção abstrata que a prática social não cessa de negar. A liberdade que conhece esse educador se apresenta a ele sob seu verdadeiro nome: criação humana. O humano cria, e sua primeira criação é a si próprio. A isso Castoriadis chama de heteronomia: a alienação individual e coletiva. Uma sociedade heterônoma tende a produzir indivíduos que desconhecem e alienam esse poder criador em si mesmos. Isso se reflete, paradoxalmente na tentativa de controle; E, dessa forma, na ausência da autonomia social e individual, a educação fica reduzida ao que não é: ao espaço de mera aplicação de teorias e de procedimentos pensados a priori. A função emancipadora da educação não deve, portanto, ser entendida tão- somente como atualização das faculdades do indivíduo, como ativação de uma potência que preexistiria, como atualização de algo que podemos definir a priori, como um poder ser alguma coisa que já sei de antemão que ele é, tal como a filosofia tradicionalmente concebeu. Na educação, o projeto de autonomia depende da atualização de um poder poder ser. Explique-se: este «poder poder» ser significa que não há um conteúdo objetivo para definir como o humano é determinado desde o nascimento, não há uma virtude específica, uma predisposição particular que definam o que o humano é ao nascer. O fenômeno pelo qual o homem é como ele é – diferente, a cada vez, dos outros homens. E o fenômeno pelo qual ele se cria a si mesmo a cada vez como singularidade, como ser absolutamente único ainda que sempre se criando como membro de uma só espécie. O tipo de conhecimento que se pode e se deve obter para a educação nunca é o conhecimento objetivo, explicativo e preditivo que caracteriza outras atividades teóricas. Deliberar é uma atividade criadora que cabe ao educador. Diante da singularidade humana, fica claro que nem mesmo a posteriori, isso é, nem mesmo como aquisição da experiência repetidamente feita, a teoria é capaz de predizer, de explicar uma vez por todas o ato educativo, o aluno, seu modo de ser, de aprender, de se autoconstruir. A auto-alteração dos indivíduos, que a educação ajuda a provocar e de que deve tornar cada aluno consciente, nunca é, em suma, o resultado da aplicação de uma teoria, «produto» de um fazer técnico. Mas cabe à educação cuidar para que o aluno tome consciência de sua autonomia; de que ele não está, apesar das aparências, inteiramente condicionado pelas determinações sociais, biológicas, históricas e educacionais. Se a liberdade está na criação, a emancipação humana está na possibilidade de que o indivíduo passa a ser dotado, pela reflexão, de tomar consciência de seu poder de deliberar. As deliberações, as decisões que cabem a cada um de nós, em nossa auto-criação, podem se tornar, pela educação, pela psicanálise, pela reflexão, conscientes. Elucidar o que é e o que se pensa que deve ser a educação é concebê-la filosoficamente. A filosofia tem esse papel importante, e ineliminável, em toda educação que se quer emancipadora: tal como a teoria, ela não fornece à prática educacional garantias, ela não pode justificar nem antecipadamente nem posteriormente as nossas ações, ela não pode se substituir à iniciativa que é sempre a do professor; A filosofia é instrumento para elucidação dos sentidos que a educação veio adquirindo e adquire em cada contexto social e histórico particular, e ela permite identificar todas estas questões como essenciais para a prática da educação. E, assim, fica claro que a concepção filosófica da educação é uma tarefa de auto-reflexão individual e coletiva, e que seu objeto parte e tem como fim a emancipação humana e, portanto, a construção de uma sociedade democrática. IMMANUEL KANT A educação, portanto, é o maior e o mais difícil problema que pode ser proposto aos homens. De fato, os conhecimentos dependem da educação e esta, por sua vez, depende daqueles. Por isso, a educação não poderia dar um passo à frente a não ser pouco a pouco, e somente pode surgir um conceito da arte de educar na medida em que cada geração transmite suas experiências e seus conhecimentos à geração seguinte, a qual lhes acrescenta algo de seu e os transmite à geração que lhe segue. A origem da arte da educação, assim como o seu progresso, é: ou mecânica, ordenada sem plano conforme as circunstâncias, ou raciocinada. A arte da educação não é mecânica senão em certas oportunidades, em que aprendemos por experiência se uma coisa é prejudicial ou útil ao homem. CORNELIUS CASTORIADIS Nossa relação com a história da filosofia cria, por si só, uma questão filosófica de primeira grandeza – o que é natural, já que toda reflexão é também auto- reflexão, e a reflexão não começa hoje. Dos múltiplos aspectos dessa questão, um é particularmente importante aqui. Ruptura do fechamento, a reflexão tende, no entanto, de maneira irresistível, a se fechar novamente sobre si mesma. Isso é inevitável… já que, de outro modo, a reflexão se limitaria a ser um ponto de interrogação indeterminado e vazio. Mas a verdade da filosofia é a ruptura do fechamento, desestabilização das evidências recebidas, inclusive e sobretudo as filosóficas.Ela é esse movimento, mas um movimento que cria o solo sobre o qual caminha, e que não é, nem pode ser uma coisa qualquer – ele define, delimita, forma e determina. 0 próprio de uma grande filosofa é permitir que se vá além de seu próprio solo, e inclusive incitar a isso. Como ela tende – e deve tender – ao compromisso com a totalidade do pensável, tende a fechar-se sobre si mesma. A criação do projeto de autonomia, a atividade reflexiva do pensamento e a luta pela criação de instituições auto-reflexivas, isto é, democráticas, são resultados e manifestações do fazer humano. JEAN-JACQUES ROUSSEAU Todo animal tem idéias, posto que tem sentidos; chega mesmo a combinar suas idéias até certo ponto e o homem, a esse respeito, só se diferencia da besta pela intensidade. Alguns filósofos chegaram mesmo a afirmar que existe maior diferença entre um homem e outro do que entre um certo homem e certa besta. Não é, pois, tanto o entendimento, quanto a qualidade de agente livre possuída pelo homem que constitui, entre os animais, a distinção específica daquele. A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se manifesta a espiritualidade de sua alma, pois a física, de certo modo, explica o mecanismo dos sentidos e a formação das idéias, mas no poder de querer, ou antes, de escolher e no sentimento desse poder só se encontram atos puramente espirituais que de modo algum serão explicados pelas leis da mecânica. TEXTO 3 O CONHECIMENTO ESCOLAR A natureza do conhecimento próprio a uma «teoria da educação» – aquele que se constitui para fornecer orientação e lucidez às deliberações requeridas pela prática educativa. A interrogação que motiva essas linhas tem ainda por objeto o conhecimento, dessa vez entendido como um corpo de saberes que, acredita-se, devem ser compartilhados por todos os cidadãos; e que é instituído como tal pela tradição, pelas leis de ensino, por dirigentes e técnicos, pelos professores. A educação tem, igualmente, uma dimensão técnica, e uma dimensão científica. A dimensão científica diz respeito, quase que inteiramente, à base biológica de determinação da existência humana. Por importante que seja, no entanto, ela não concerne à deliberação sobre os fins da educação, mas às condições das quais se parte, que podem contribuir ou trazer obstáculos para a ação educativa. A dimensão técnica, quanto a ela, dependendo totalmente dos fins assinalados, tem ou deveria ter sua validade sempre limitada pelo contexto de aplicação – que, no caso do humano, é a cada vez singular e permanentemente instável. O conhecimento escolar não é produzido na Escola, mas isso não quer dizer que a Escola não produza saber: ela decerto produz, por meio da reflexão e das deliberações que a prática requer do professor, um saber prático, o «saber- fazer» da Escola. Não faria sentido se fosse diferente: uma Escola que veiculasse um saber inteiramente produzido em seu próprio interior seria uma instituição fechada sobre si mesma, que não poderia ter por finalidade senão sua perpetuação, e não a construção da sociedade – uma espécie de gueto, uma espécie de seita. É, portanto, importante frisar a natureza social dos conhecimentos escolares: uma das mais primordiais finalidades do modelo em que se baseia a educação escolar atual, a Escola pública, sempre foi justamente a de fazer com que todos participassem de uma mesma cultura – condição e exigência da vida comum. Platão: o conhecimento como conversão Em Platão, a reflexão sobre a educação se deduz e se anuncia pela interrogação acerca do conhecimento humano: seus objetos, suas condições, suas finalidades e suas limitações. É, portanto, pelo tema do conhecimento que Platão nos introduz ao que é, por excelência, seu pensamento educacional, claramente exposto em longas passagens da República e, mais especificamente, em diálogos como Protágoras e Mênon. O Protágoras, em particular, deve ser descrito como um diálogo inteiramente consagrado à educação. E é, também, um texto bastante provocativo, em que Platão, encenando o confronto de seu mestre com o famoso sofista, submete os dois personagens a um curioso e muito filosófico jogo de troca-troca. A discussão gira em torno da possibilidade de se ensinar a virtude – ou, em termos atuais, de se educar o homem e o cidadão. O objeto do ensino socrático é muito claro: é a epistéme, a ciência que visa à verdade. Para ele, o único conhecimento que se deve ensinar é aquele que tem por objeto não a dóxa, a opinião, a ilusão, mas a Verdade, única, ontológica. Por isso ele ataca um modelo de educação que é generalizado em sua época, que é baseado na dóxa e que se pretende ferramenta de construção política da cidade. …segundo Protágoras, a virtude é ensinada, tal como as outras artes, e este ensinamento existe sob mil formas nas poleis*; se a educação e as leis fracassam na tarefa de corrigir certas naturezas más, isto é facilmente explicável: em nenhum tipo de arte a educação é todo poderosa. Para Platão, porém, o verdadeiro conhecimento é todo-poderoso: ele é o responsável por, nada mais, nada menos, do que a construção ética no espaço humano e no espaço político. No Protágoras, a covardia, a ignorância, a injustiça, o desregramento, enfim, todos os vícios se resumem, na verdade, em um só: a ignorância. Uma educação que, nascida do relativismo, ao invés de se contrapor ao senso comum, o perfaz: como Protágoras afirma, o ensinamento da virtude era dispensado ao jovem grego, desde a mais tenra idade, pela família, pelos educadores profissionais e pela própria pólis. Para Platão, se a verdade não pode ser ensinada, no sentido «técnico» e pragmático que os sofistas pretendem, por vezes, lhe atribuir, é por que supõe uma verdadeira conversão: o conhecimento da verdade é «uma atitude e uma regra de vida», a adesão a um ideal radical. Conhecimento e auto-conhecimento: a crítica de Rousseau Em que pese, no entanto, toda nossa admiração por Platão, não devemos manter ilusões quanto às dimensões de seu ideal de conhecimento: como relembra Alexandre Koyré, o filósofo ateniense jamais pretendeu que o conhecimento fosse acessível a todos. E, com efeito, será preciso esperar o momento das Luzes para que o acesso à filosofia e ao saber não somente se transforme em projeto político, mas seja proclamado como necessidade universal – condição para a existência da pólis, como já afirmava Protágoras6 e exigência da emancipação humana. O ideário iluminista testemunha uma resistência bastante ilustrativa aos usos atuais das duas noções, educar e instruir: de forma quase generalizada, a idéia da formação do cidadão remete àquela da instrução da razão, como desenvolvimento de uma autonomia que, somente ela, dotará o indivíduo das condições para gozar, de fato, das prerrogativas que, de direito, a cidadania legal passa a prever. A verdadeira educação é aquela que prepara o indivíduo para essa liberdade, para um conhecimento e para uma deliberação ética que devem, a cada momento, basear-se numa adesão interior a valores livremente eleitos. O conhecimento que não é impostura é, em suma, auto-conhecimento. E a educação, mais do que nunca, jamais poderá, neste contexto, ser confundida com treinamento, ou com mera instrução. CASTORIADIS: conhecimento, deliberação, autonomia No pensamento de Cornelius Castoriadis, o conhecimento e, por conseqüência, o conhecimento escolar ocupam um lugar de destaque, definindo o caráter autenticamente democrático de umasociedade. Pois, na medida em que, rompendo com o fechamento das verdades instituídas, o conhecimento passa a significar uma «interrogação permanentemente aberta», voltada para a integralidade das questões que interessam à existência humana, ele já pode ser, ou antes, deve necessariamente ser assimilado à instituição da própria autonomia humana, individual e coletiva. Segundo Castoriadis, a sociedade e tudo que a compõe – valores, formas, necessidades, afetos – são criações humanas, ou, mais precisamente, do «coletivo anônimo» que a constitui. O ocultamento desse poder criador é, no entanto, quase uma constante na história das sociedades, que julgam dever atribuir sua existência a razões extra-sociais e supra-humanas – Deus, a História, a Economia, a tradição, a natureza humana. Não há democracia sem conhecimento: e, nas sociedades democráticas, cabe ao conjunto de indivíduos determinar quais, exatamente, são os conhecimentos que, tornando-se indispensáveis para a plena participação do total de indivíduos, não podem ser atribuídos de forma exclusiva a alguns, especialistas ou elites, mas a que todos devem ter igual acesso. Dessa forma, o conhecimento necessário à vida democrática constitui aquilo que, juntamente com Aristóteles, Castoriadis chama o «domínio do participável»: os valores e bens sociais que, devendo pertencer a todos. Eis como a definição do conhecimento escolar não somente é uma questão eminentemente política, mas está historicamente associada aos ideais democráticos. Se «socializar os indivíduos é fazê-los participar do não- partilhável, do que não deve ser dividido, privativamente, entre os membros da comunidade. JOHN LOCKE Sendo, portanto, meu propósito investigar a origem, certeza e extensão do conhecimento humano, juntamente com as bases e graus da crença, opinião e assentimento (…) imaginarei que não terei divagado… puder dar algum relato dos meios pelos quais nosso entendimento alcança as noções das coisas que possuímos, e puder estabelecer algumas medidas de certeza de nosso conhecimento, ou as bases dessas persuasões [crenças] que são encontradas entre os homens, tão variados, diferentes e inteiramente contraditórios. …[E já que opiniões e crenças as mais díspares são, em diferentes partes do mundo, dadas como seguras]…quem leva em conta as opiniões da humanidade, observa sua posição e, ao mesmo tempo, considera o afeto e a devoção com os quais elas são enlaçadas, tanto quanto a resolução e avidez por meio das quais elas são mantidas, [essa pessoa que é o filósofo] tem talvez razão para suspeitar que não há de modo algum tal coisa como a verdade, ou que a humanidade não tem meios suficientes para ter sobre ela um conhecimento certo. PLATÃO Reflete comigo: existe ou não uma certa coisa de que todos os cidadãos devem necessariamente participar, para que a existência de uma pólis seja possível? Está aí, e em nenhum outro lugar, a solução para o problema que tu levantaste [é possível ensinar a virtude?]. Se é verdade que tal coisa existe, e se esta coisa é, não a arte do carpinteiro, ou do fundidor, ou do oleiro, mas a justiça, a temperança, a conformidade à lei divina, é tudo o que denomino, em uma palavra, a virtude própria ao homem. ERNST CASSIRER Não existe um século que tenha sido tão profundamente penetrado e empolgado pela idéia de progresso intelectual quanto o Século da Luzes. Equivocar-se-iam, porém, sobre o sentido essencial dessa idéia, aqueles que tomassem «progresso» num sentido quantitativo como uma simples extensão do saber. A diversidade, a variedade das formas é tão-só o desenvolvimento e o desdobramento de uma força criadora única, de natureza homogênea. Quando o século XVIII quer designar essa força, sintetizar numa palavra a sua natureza, recorre ao nome de «razão». A «razão» é o ponto de encontro e o centro de expansão do século, a expressão de todos os seus desejos, de todos os seus esforços, de seu querer e de suas realizações (…). O século XVIII está impregnado de fé na unidade e imutabilidade da razão. A razão é una e idêntica para todo o indivíduo pensante, para toda a nação, toda a época, toda a cultura. JEAN LE ROND D’ALEMBERT Por pouco que se observe com olhos atentos o meio do século em que vivemos [XVIII], os acontecimentos que nos perturbam ou, pelo menos, que nos ocupam, os nossos costumes, nossas obras e até nossas conversas – sem dificuldade percebe-se que, em muitos aspectos, houve uma notável mudança em nossas idéias; mudança esta que, pela rapidez, parece-nos prometer uma outra ainda maior. É o momento de fixar o objeto, a natureza e os limites dessa revolução, cujos inconvenientes e vantagens a posteridade conhecerá melhor do que nós. (…) O nosso século é chamado o Século da filosofia por excelência (…). Não obstante, a invenção e o uso de um novo método de filosofar, a espécie de entusiasmo que acompanha as descobertas, uma certa elevação de idéias que em nós suscita o espetáculo do universo, todas essas causas certamente excitaram uma viva fermentação nos espíritos (…). Uma nova luz sobre alguns objetos, uma nova obscuridade sobre vários, foi o fruto ou a consequência dessa efervescência. IMMANUEL KANT O iluminismo [em alemão, Aufklärung: esclarecimento] é a saída do homem de sua imaturidade de que ele próprio é responsável. Imaturidade é a incapacidade de usar o próprio entendimento sem o auxílio de outrem. Esta imaturidade é por responsabilidade própria não quando sua causa é falta de entendimento, mas a falta de resolução e coragem para usá-la sem o auxílio de outrem. Assim, a divisa do Iluminismo deve ser: Sapere aude! [«Ouse saber!» – Horácio] Tenha a coragem de usar seu próprio entendimento. JEAN-JACQUES ROUSSEAU A inteligência humana tem seus limites. Não somente um homem não pode saber tudo, como nem pode saber completamente o pouco que sabem os outros homens. Já que a contraditória de uma proposição falsa é uma verdadeira, o número das verdades é inesgotável, assim como o dos erros. Há, portanto, uma escolha das coisas que devemos ensinar, assim como do tempo próprio para ensiná-las. Dos conhecimentos que estão ao nosso alcance, uns são falsos, outros são inúteis e outros servem para alimentar o orgulho de quem os tem. Os poucos que realmente contribuem para nosso bem-estar são os únicos dignos das pesquisas de um homem sábio e, portanto, de uma criança que queiramos tornar sábia. Não se trata de saber o que existe, mas apenas o que é útil.
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