Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
A contextualização da morte e do morrer através da história Profª Liana Ribeiro A MORTE ATRAVÉS DA HISTÓRIA As representações de morte são imersas em um contexto cultural. O conceito de morte, para além de um evento biológico, se constitui como uma construção social e seu enfrentamento e forma de compreendê-la refletem o momento histórico de uma sociedade. Edgard Morin: “Nas atitudes e crenças diante da morte que o homem exprime o que a sua vida tem de mais fundamental.” Desde antiguidade, a morte presente no cotidiano do homem. A MORTE ATRAVÉS DA HISTÓRIA A figura da morte tem fascinado a humanidade desde seus primórdios. Desejosos de entender um fenômeno que ainda hoje é tão cercado de tabus e mistérios, criamos mitos e alegorias para personificar este mais do que drástico evento. A morte, ou o medo desta, inspirou lendas, ritos, costumes e histórias ao longo do percurso da humanidade. “Ideas da morte e os rituais correspondentes tornam-se um aspecto de socialização” (Nobert Elias, 2001) ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de, Envelhecer e morrer. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 12. A morte e o morrer no mundo ocidental Estudos sobre morte começa na Idade Média e segue até o século XX. Cada fase analisada foi nomeada com sua principal característica da morte nos diferentes períodos da sociedade ocidental: (ARIÈS,1977a) Morte Domada Morte de si mesmo Morte do outroMorte interdita A Morte Domada Típica da época Medieval – a morte dos antigos cavaleiros medievais Tempo das grande batalhas O homem é um expectador da natureza, contemplativo diante da possibilidade da morte → Ninguém morria sem ter tido tempo suficiente de saber que o fim estaria próximo, bem como de tomar as suas providências. morrer era motivo de orgulho e o medo somente surgia diante da possibilidade de se morrer só ou de não tomar ciência da sua morte a tempo. A morte domada Ter conhecimento sobre a proximidade da própria morte dava à pessoa a oportunidade de planejar seus últimos feitos. Uma série de providências eram tomadas, tanto do ponto de vista prático, como religioso e familiar. Mundo teocêntrico - aceitação inconteste do processo de morte, que ocorria ou na guerra ou de doenças. Grande Pesar pela despedida da vida Culpa Necessidade de Perdão A morte domada A morte era esperada no leito, uma espécie de cerimônia pública organizada pelo próprio moribundo e sua família. Todos podiam entrar no quarto, parentes amigos, vizinhos e, inclusive as crianças. Os ritos de morte eram cumpridos com manifestações de tristeza e dor e o maior temor das pessoas era morrer repentinamente, anonimamente, sem as homenagens cabidas. Morte Vivenciada no Coletivo – Vista como destino reservado a todos pela natureza A Morte Domada A morte era uma atitude familiar e próxima, por isso chamada de domada. O local da sepultura na Idade Média era nas Igrejas, perto dos santos - PROTEÇÃO. Divisão entre pobres e ricos - afastados ou próximos do altar. A importância de ser enterrado próximo aos santos ganha valor, os corpos passam a ser confiados à Igreja, não havendo mais distinção entre cemitérios e igrejas. A Morte de Si Mesmo segunda fase da Idade Média - a partir do séculos XI e XII, a morte ganha um novo sentido a partir da experiência particular de cada um. Morte apreendida a partir da existência individual de cada pessoa. Trata-se de um forte reconhecimento de si e de sua própria vida, a partir da morte. aproximação das três categorias de representações mentais: a morte; o reconhecimento de sua própria existência e o apego apaixonado às coisas e aos outros seres. A morte aqui, conferindo ao homem a possibilidade de tomada de consciência, reforça e dá sentido à vida. A Morte de Si Mesmo O homem começa a se preocupar com o que acontecerá depois de sua morte; racionaliza o processo de perda (para quem fica e para quem vai) Surgem os TESTAMENTOS - testar era um dever de consciência. - O moribundo fazia uso do documento, normalmente lavrado em um notário, para registrar os seus pensamentos, sentimentos e suas próprias convicções e fé religiosa, assim como os rituais considerados necessários para um bom encaminhamento da alma A biografia individual, ou seja, sua história de vida, ganha destaque junto com a ideia do Juízo Final, que é realizado no próprio quarto, à beira do leito. Naquela época boa parte da fortuna ia para a Igreja como uma forma de libertação para a vida eterna. Vida no Cadáver, Vida na Morte Surge a cor preta para simbolizar o luto - disfarce para espantar a morte e os mortos que viriam confundir o enlutado com um outro morto. Significação social de perda, tristeza - que criava a paz e serenidade interior. Séculos XVII/XVIII - Renascimento - mundo regido pela razão - preocupação com as condições do enterro. Surgem os VELÓRIOS como uma forma de certificação da morte ? até 48 horas após a morte. Morte com a presença da família. A Morte do Outro A partir do século XVIII – Momento de Ruptura! A morte passa a ganhar um ar romântico, dramático, com certa complacência. A própria morte não é mais tão temida como o é. A partir de agora, a morte do outro. Morte Romântica - morte desejada enquanto libertação e possibilidade de reencontro entre os amores. O moribundo continua assumindo o papel principal, à frente das decisões, mas os familiares já não ocupam mais o lugar de coadjuvantes. Gradativamente passam a ser mais participativos, iniciando um padrão de comportamento que irá se firmar no auge do século XX. Surgem os testamentos com respeito à distribuição de bens materiais. Os desejos passam a ser expressos oralmente, sendo confiados aos cônjuges e filhos A Morte do Outro Surgem os testamentos com respeito à distribuição de bens materiais. Os desejos passam a ser expressos oralmente, sendo confiados aos cônjuges e filhos. a família passa agora a ocupar um lugar mais ativo na cena final, atuando, principalmente, na assistência. Mais unida pelo afeto e por um forte sentimento familial. Protagonismo ainda pertence ao moribundo. A Morte Invertida Com a entrada na Era Industrial, a sociedade desenvolve um poder tecnológico e científico inusitado até então, que acaba distanciando o homem do respeito aos ciclos naturais e da percepção do próprio corpo. A morte, neste momento, se transforma em objeto de interdição. Comparada a algo vergonhoso e sujo, ela é colocada de lado. O movimento social se volta para as inúmeras tentativas de escondê-la ➔ morrer = evento privado e a morte = tabu O homem está desaparelhado para enfrentar a morte como uma contingência, uma vez que vem sempre acompanhada da ideia de fracasso do corpo, do sistema de atenção médica, da sociedade, das relações com Deus e com os homens, etc; A Morte Invertida Há o afastamento das crianças dos rituais fúnebres. No mundo tecnocêntrico: - A morte é negada, banida do discurso cotidiano, ocultada e temida. - -Adota-se a mentira sistemática, o silêncio - marcada pela negação e interdição. O entendimento de que tomar conhecimento sobre a gravidade de seu estado e, consequentemente, da proximidade da morte, é prejudicial ao doente. Na tentativa de poupar o enfermo de se deparar com a morte, estabeleceu-se a “MENTIRA PIEDOSA”. A Morte Invertida Diferenças Históricas Na Idade Média a morte estava nas salas de visitas; hoje, se esconde nos hospitais, nas UTIs, controlada pelos profissionais de saúde, nem sempre esclarecidos da sua penosa e socialmente determinada missão -(80% das pessoas morrem no hospital); Atualmente o velório ocorre longe da casa do morto - afastamento da própria família - morte solitária. O deslocamento do local da morte, tendo as instituições hospitalares o seu lugar privilegiado A Morte Invertida FAMÍLIA (delega assistência ao hospital) Higienização da morte HOSPITAL (inibir manifestações de pesar) Indivíduo (morte solitária) • Do ambiente Público para o privadoTransição da Morte Intenso desconforto da sociedade para lidar com a finitude humana = morte como figura inimiga Na sociedade capitalista - Ocidental Com os progressos da terapêutica e cirurgia, sabe-se cada vez menos quando uma doença grave será mortal ou não. A morte vem assim quase em surdina com uma cumplicidade dos amigos e familiares que, por amarem o doente e não querendo vê-lo partir, negam-lhe a morte; e dos profissionais que, obstinados pela cura da doença, estão sempre lançando mão de suas onipotências e de uma última medida terapêutica eficaz para prolongar-lhe a vida - o médico é o profissional que define a questão da vida e da morte. A formação de uma crença, de que a morte pode, quase sempre, ser evitada. Há uma mudança radical na visão da morte: a ilusão da eternidade. Assim, a possibilidade de morte é afastada. Apesar de buscar a negação enquanto uma defesa frente à morte, o homem angustia-se frente ao seu ser mortal. Adoecer e morrer são, então, suas preocupações permanentes. A morte foi dividida em cerebral, biológica e celular - grande aparelhagem para medir e prolongar a vida - o momento da Morte vira um acordo feito entre a família e o médico; Preparação e embelezamento para os mortos, e o cuidado de tudo referente ao morto é feito por profissionais e não pelos familiares. Na sociedade capitalista - Ocidental A Concepção de Morte no Oriente Crença na possibilidade de libertação do sofrimento, mas que parte da aceitação do sofrimento como um fato natural da existência humana, aliada à coragem de encarar os problemas de frente (Enfrentamento + Naturalidade + Coragem). A Arte de Morrer - enfrentamento da morte não só lúcida, calma e heróica, mas com o intelecto corretamente dirigido para a superação e sublimação mental da dor e do sofrimento proporcionados pela enfermidade do corpo, como se praticado corretamente a Arte de Viver. A Arte de Viver: três estágios de disciplina: escuta, reflexão e meditação, levando ao autoconhecimento. Vivência pacífica da morte: através da correta prática de uma fidedigna Arte de Morrer, a morte terá então perdido o seu estado negativo e redundará em vitória. Ocidente X Oriente Se no Ocidente a morte é vista como um fim, ruptura, fracasso, oculta, vergonhosa, os rituais corresponderão a esta forma de encarar a morte. São procedimentos de ocultamento, vergonha, raiva, temor. Na visão Oriental a morte surge fundamentalmente como um estado de transição e principalmente de evolução, para o qual deve haver um preparo: a morte é apenas uma iniciação numa outra vida. Referências KOVÁCS, Maria Júlia. KOVÁCS, M. J. Morte e Desenvolvimento Humano. Casa do Psicólogo. 2002. Cap. 3 (Atitudes diante da morte. Visão histórica, social e cultural )Disponível na Biblioteca virtual da UNESA (SIA) Leitura da parte inicial do texto: SILVA, A.L.L. & RUIZ, E.M. Cuidar, morte e morrer: significações para profissionais de enfermagem. Disponível no formato on line em Rev. Estudos de Psicologia, PUCCampinas, v. 20, n. 1, p. 15-25, janeiro/abril 2003
Compartilhar