e colocando em questão nosso conhecimento baseado em verdades. Na base de todos esses binarismos está a crença de que cada conceito que se opõe a outro ocupa um território sepa- rado e bem delimitado, tem identidade própria e funciona de maneira específica e previsível, o que configura uma homo- geneidade, uma unidade, uma natureza que lhe seria intrín- seca. Dessa maneira, por exemplo, psicologia e política têm sido construídas e aceitas, de um modo geral, como territó- rios separados, estanques; como objetos que se opõem, como conceitos que nada têm em comum, pois são tomados como naturais, ahistóricos e possuidores de uma essência imutá- vel. Tal compreensão tem reafirmado as práticas que sepa- ram radicalmente esses dois campos, pois se entende que a ciência psicológica não permite interlocuções com determi- nados temas, em especial os considerados políticos, não po- dendo ser conspurcada por questões consideradas tão dis- tantes dela e que nada têm a ver com sua essência. Ao contrário, negamos essas crenças e modelos hegemô- nicos e entendemos psicologia e política como territórios que se cruzam, que se atravessam, que se complementam, que são múltiplos e impossíveis de serem apreendidos em sua totalidade. O efeito Foucault nos tem permitido estranhar a separa- ção entre psicologia e política, pois em momento algum es- ses dois domínios se excluem. Ao trabalhar em psicologia - na pesquisa, na docência, na orientação de alunos, nas inter- venções em diferentes estabelecimentos - estamos atraves- sados e constituídos a todo momento pelos conhecimentos 248 Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Set-Dez 2001, Vol. 17 n. 3, pp. 245-248 C. M. B. Coimbra e M. L. do Nascimento específicos de nossa área, pelo lugar legitimado de saber/ poder que ocupamos socialmente, por nossas implicações e crenças políticas, pelo contexto histórico em que vivemos, pelos diferentes saberes-experiências que vão nos constitu- indo ao longo de nossa trajetória, pelas diferentes escolhas e opções que vamos realizando, pelos múltiplos encontros e agenciamentos que vão acontecendo em nossas vidas. Hoje é impossível para nós separar o que é psicológico do que é político; negamos suas essências, apostamos na constitui- ção histórica desses campos de conhecimento e nas articula- ções que se operam entre eles. O que quisemos enfatizar no presente trabalho, mesmo que de forma bastante rápida, diz respeito à produção, por parte da chamada ciência positivista, de duas competentes instituições2: verdade e dicotomia. As práticas consideradas científicas afirmam que devem se resguardar das misturas, das impurezas e poluições que estão ao seu redor e circulam pelo mundo. Como vestais, sarcerdotisas e guardiães do San- tuário de Vesta (deusa da Vida entre os romanos) – inacessí- vel aos considerados leigos – devem manter sua virgindade enquanto estiverem a serviço do culto. Assim, os intelectu- ais resguardam a pureza da “verdadeira” ciência e, por isso, poucos são os privilegiados que têm acesso a esses templos sagrados, poucos os que podem funcionar como vestais; antes, devem ser “purificados”, evitando toda e qualquer mistura (Coimbra, 1995). Este tem sido, em geral, o papel das formações na área das ciências humanas e sociais, em especial na da psicologia. Entretanto, se apostamos nas multi- plicidades, nas práticas sociais como produtoras dos obje- tos, saberes e sujeitos que estão no mundo, apostamos em outras formas de existência. Apostamos na possibilidade da criação e da invenção, na provisoriedade das coisas, como nos aponta Foucault. Referências Coimbra, C.M.B. (1995). Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do “milagre”. Rio de Janeiro: Oficina do Autor. Ewald, F.(1995). Foucault: analytique de l’exclusion. Magazine Littéraire, 334, 22-24. Foucault, M. (1986). Vigiar e punir: nascimento da prisão. (L.M.P. Vassallo, Trad.) Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publica- do em 1975). Foucault, M. (1987). As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. (S.T. Muchail, Trad.) São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1966). Foucault, M. (1988). Microfísica do poder. (R. Machado, Org. e Trad.) Rio de Janeiro: Graal. (Trabalhos originais publicados sem data). Foucault, M. (1995). História da loucura na idade clássica. (J.T. Coelho Netto, Trad.) São Paulo: Perspectiva. (Trabalho origi- nal publicado em 1972). Foucault, M. (1996). A verdade e as formas jurídicas (R.C.M. Machado e E.J. Morais, Trads.). Rio de Janeiro: Nau Ed. Guattari, F. & Rolnik, S. (1986). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes. Veyne, P. (1982). Como se escreve a história - Foucault revolucio- na a história. (A. Baltar e M.A. Kneipp, Trad.) Brasília: UnB. (Trabalhos originais publicados em 1971/1978). 2 Por instituição, dentro do referencial socioanalítico francês, entende- mos não o estabelecimento ou local geográfico, mas relações e cam- pos de forças instituídos e percebidos como naturais que se opõem constantemente a outros campos de forças instituintes. Daí, dizemos que as instituições, diferentemente de como são vistas, não são estáti- cas, cristalizadas e, portanto, eternas. Estão em constante movimen- to, em devir permanente. ! Recebido em 30.10.2001 Aceito em 04.02.2002