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1 Título: O trabalho vale a pena? Considerações sobre o trabalho na pena alternativa à prisão Autor: Vania Conselheiro Sequeira 2 O trabalho vale a pena? Considerações sobre o trabalho na pena alternativa à prisão Vania Conselheiro Sequeira Resumo Este artigo é um esboço sobre o lugar do trabalho no mundo contemporâneo e mais especificamente sobre o trabalho como forma atual de penalização, através da prestação de serviços à comunidade. Reflexão feita a partir de Hannah Arendt e Christophe Dejours, que auxiliaram na compreensão da banalidade do mal e da banalização da injustiça social possibilitando uma análise psicanalítica e social desse novo modo de penalização. Palavra-chave: trabalho - pena – Lei – laço social Abstract Is woth working? Considerations about work as an alternative penalty to prison This article is a groundwork about the place of the work in our contemporary world and, specifically, about work as a present way of penalization, through the establishment of community service to society. Reflection made from Hannah Arendt and Cristophe Dyours, who helped on the comprehension of the banalidade of bad and a banalização of the soiety injustice what enable a social and psychoanalytical analysis about this new way of penalization. Key-words: work – penalization – Law - social 3 O crescimento da violência e do crime é algo que constatamos cotidianamente. Podemos observar uma banalização da violência, do crime, das injustiças sociais, enfim uma banalização do mal em nossa sociedade. Esse tema vem sensibilizando alguns intelectuais sintonizados com seu mundo e com seu tempo. Comecemos refletindo sobre o mal do século, o horror do nazismo, onde a violência e a crueldade foram evidentes. Hannah Arendt, uma das primeiras autoras a tratar do totalitarismo, escreve sobre a banalidade do mal em 1951, descrevendo o julgamento do Eichmann, mostrando, pouco a pouco, que não se tratava do julgamento de um monstro, mas pelo contrário, de um homem comum, cuja principal característica parecia ser a ausência de pensamento e crítica. Uma pessoa comum, sem a perversidade que gostaríamos de encontrar entre os assassinos do nazismo. A autora vai apontando para a banalização do mal, através de uma engrenagem muito maior, dos planos nazistas e da extrema dedicação com que muitos trabalharam para a solução final. A engrenagem nazista, é perversa, consegue inclusive o apoio dos Conselhos Judaicos que acabam colaborando com o extermínio de seu próprio povo, utiliza um planejamento cheio de etapas, desde uma suposta terra só para judeus (aliás, sonho de muitos judeus), uma estratégia de concentração dos judeus, um plano inexeqüível de enviá- los para uma ilha, até o extermínio. Trata-se de um texto angustiante porque vai mostrando como o mal não está tão longe de nós e que pode ser executado por qualquer um, sem que seja condição, a perversidade ou qualquer psicopatia. O sucesso do nazismo recaiu sobre o exército de homens comuns que contribuíram com seus trabalhos para que planos maquiavélicos fossem sendo realizados, passo a passo, peça a peça, com uso de linguagem distorcida e de 4 uma racionalização. Eichmann, um homem que não aparentava perversão, nem qualquer prazer com cenas de assassinato poderia ter se recusado a trabalhar tão zelosamente pelos ideais nazistas. A possibilidade de escolha sempre existe. Pessoas desobedeceram e se negaram a cumprir ordens desse sistema, mas milhares de soldados cumpriram ordens e efetivaram esse horror e outros milhares de pessoas conviveram com o nazismo sem se revoltarem, o que nos remete a uma questão fundamental: por que não o fizeram? É inevitável a constatação de que houve consentimento da população para que o nazismo existisse. Alguns autores, como Bauman e Todorov, defendem que o totalitarismo favorece esse tipo de posicionamento, porque trata-se de um sistema onde a pessoa perde sua identidade, há um coletivo em nome do qual se faz uma série de coisas, desresponsabilizando cada um dos envolvidos. Um sistema totalitário somado a falta de crítica, de posicionamento, até mesmo de pensamento com que vamos nos deparando no julgamento de Eichmann, nos faz pensar nas conseqüências desastrosas dessa combinação de fatores. Em síntese, Hannah Arendt não define um conceito de banalização do mal, mas aponta uma engrenagem, uma máquina perversa, onde homens comuns comportando-se como num rebanho, participam da solidificação de um ideal cruel e injusto, sem se perguntarem como e por que, fazem o que mandam, em nome da ordem e da lei. A autora vai explicitando uma falta de referência ética que levou as pessoas a se guiarem pelo imaginário momentâneo, por valores que regiam a moral daquele sistema. Será que a banalização do mal ocorre só nos sistemas totalitários? Dejours em seu livro, a banalização da injustiça social, retoma a proposta de Hannah 5 Arendt sobre a banalidade do mal e faz uma reflexão sobre a atualidade, sobre nossa sociedade, através da banalização da injustiça social e dos diversos mecanismos que o moderno mundo do trabalho vem expondo suas vítimas. Dejours desenvolve a tese de que é pelo trabalho que se disciplina o homem e cria- se condições para o consentimento com a banalização do mal; e que através da psicodinâmica do trabalho poderemos compreender esse processo de banalização do mal. Ele diferencia o sistema totalitário do nosso sistema neoliberal, a banalidade do mal da banalização do mal, mas acredita que o processo de mobilização da massa para colaborar com a injustiça social em nossa sociedade é o mesmo que permitiu a ascensão do nazismo, ou seja, o perigo está bem mais perto do que muitos imaginam. O processo de banalização do mal não começaria por características psíquicas, mas “pela manipulação política da ameaça da precarização e exclusão social.”(2000 ,p.119) Uma reação de defesa traria alterações psíquicas quando o sujeito tenta lidar com o medo, efeito da ameaça constante. O autor, reconhecido como um estudioso do mundo do trabalho desde seu livro Travail: usure mentale – essai de psychopatologie du travail (1980), vai demonstrando o paradoxo do trabalho, como fonte de prazer e de sofrimento, de desenvolvimento pessoal e de adoecimento; enfim o trabalho como possibilidade de emancipação ou de alienação, pessoal e social. Com profundidade e sensibilidade, Dejours vai analisando a realidade cotidiana e institucional do trabalho: o medo da incompetência, de não saber lidar com situações complexas para as quais quase sempre o trabalhador não é preparado, a pressão que sofremos para trabalhar mal, pela falta de condições concretas (equipamentos, espaço 6 físico, etc) de um fluxograma institucional que impede autonomia e estabelecimento de parceria entre os diversos setores; a falta de reconhecimento, o fantasma do desemprego assombrando o dia-a-dia do trabalhador. As artimanhas institucionais de distorção de comunicação, de mentiras, o apagamento de vestígios sobre os maltratos institucionais. Enfim, ele dá conta de forma brilhante da realidade do trabalho institucional. Nas relações de trabalho aparecem as relações sociais de desigualdades, de dominação, a injustiça se faz presente, o trabalho vira laboratório de aprendizado da injustiça e iniqüidade, que alterna vítimas e beneficiários. O processo de banalização do mal pelo trabalho não é novo, nem extraordinário, a novidade é que tudo parece normal, justificado e vira modelo a ser seguido por muitos. Um sistema que faz sofrer,tem injustiças e promove desigualdades parece ser bom e justo. O sofrimento no trabalho vai produzindo um terreno fértil para o medo e para a submissão, além da desmobilização que o alto índice de desemprego gera. Dejours descreve estágios de banalização do mal que vão desde líderes perversos até a massa da população que colabora com a injustiça pelo automatismo e pela estereotipia de seus atos. O autor conclui que banalização do mal não é só a atenuação da indignação contra a injustiça, mas um processo que “por um lado desdramatiza o mal (quando ele jamais deveria ser desdramatizado) e, por outro, mobiliza progressivamente um número crescente de pessoas a serviço da execução do mal, fazendo delas „colaboradores‟.”(2000, p.138) Criando um sistema onde as pessoas oscilam entre colaboradores e resistentes ao mal. Não há banalização da violência sem ampla participação num trabalho rigoroso envolvendo a mentira, sua construção, sua difusão, sua transmissão e sobretudo sua 7 racionalização; podemos também considerar o papel da mídia nessa falsificação da realidade, nessa banalização da violência e da própria vida. Vivemos numa instabilidade político-econômica, envoltos em problemas sociais gravíssimos. Cotidianamente vivemos numa indiferença, as desigualdades sociais são banalizadas e não geram revolta, os que vivem na periferia sofrem em silêncio com a violência. Vemos algumas reações de parte da população quando a violência a atinge muito de perto, como se estivéssemos todos embriagados ou num estado de sonambulismo. Trata-se de uma sociedade cuja destrutividade é grande e quem nos indica um caminho em meio a esse caos, é Freud, que apesar de seu pessimismo, enxerga uma possibilidade para a civilização pelo reforço dos laços sociais, ele nos diz: “tudo o que estimula o crescimento da civilização, trabalha simultaneamente contra a guerra.”(1932, p.197), e contra a destrutividade e a banalização do mal em que vivemos. Quais são as atividades que estimulariam o crescimento da civilização? O trabalho poderia ser fortalecedor dos laços sociais? Atividades da cultura como o desenvolvimento do conhecimento, da ciência, das artes, o desenvolvimento social, educacional de um povo poderiam ser fatores promotores de elos construtivos entre os homens. Todas essas atividades são decorrentes do trabalho humano. O trabalho, segundo Marx 1 , é uma atividade peculiar à espécie humana, constituída por um processo psíquico (antecipação mental do produto final que só o homem é capaz de fazer). A essência do trabalho está no que se produz e na forma pela qual se produz; forma determinante da alienação ou da transformação do sujeito, partindo de um campo 1 Discussão feita por Ferraz, F. C. em artigo intitulado: O Mal-estar no trabalho. 8 predominantemente econômico, Marx acabou por tirar conclusões sobre a subjetividade, ao ligar trabalho e desenvolvimento humano. Para a psicanálise, a sociedade exige que o homem renuncie à satisfação imediata de seus desejos; que renuncie às suas pulsões; que redirecione sua agressividade em nome da sua sobrevivência e da sociedade. A libido é deslocada, quanto à sua finalidade, pela sublimação, mecanismo que só é possível se a pessoa encontrar satisfações nessa atividade substitutiva. Neste ponto, temos que refletir sobre o trabalho e as possibilidades de satisfação pessoal por meio dele. Freud afirmou: “Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto à ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, e para os relacionamentos humanos a ele vinculados empresta-lhe um valor que de forma alguma está em segundo plano quanto ao de que goza como algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade ... No entanto, como caminho para a felicidade, o trabalho não é altamente prezado pelos homens.”(1930, p.21) Freud nos traz a dimensão pulsional que o trabalho envolve. Não deixa de demonstrar seu pesar com relação à pouca utilização desse caminho pelos homens e nos faz pensar que o trabalho pode ser um convite para redirecionar a destrutividade e a agressão do homem. Resta pensarmos porque a sublimação é um caminho pouco utilizado, pouco valorizado, parece que o homem contemporâneo encontra poucas situações de trabalho que 9 permitam sua realização pessoal e, portanto, a sublimação. As poucas chances de trabalhar em algo que dê satisfação pode gerar ainda mais prejuízos ao homem e à sociedade. Dejours explicita paradoxos no trabalho, pois ele não precisa ser máquina para produzir o mal e a injustiça, pode ser também mediador insubstituível da reapropriação e da realização do ego. Há uma dimensão simbólica do trabalho, uma busca de sentido, de reconhecimento do trabalho, o que possibilitaria transformar o sofrimento em prazer, em realização do ego no social. Há um processo de mediação do ego através do trabalho e, portanto de emancipação do homem, mas para isso o trabalho deveria deixar de ser uma obrigação enfadonha e se tornar um campo de desenvolvimento de capacidades humanas 2 . O trabalho propicia uma série de vivências subjetivas, de sofrimento e de prazer, que podem desencadear posições diferenciadas frente ao mundo do trabalho e ao mundo fora do trabalho, porque há uma extensão entre esses mundos. O trabalho pode desencadear processos de consciência, de posicionamento ético e/ou de redução do trabalho a mera atividade, dever cumprido, atividade alienante. É paradoxal, pois se o trabalho é uma ferramenta para o consentimento com a banalização do mal, também pode ser uma ferramenta de transformação social. A banalização do mal e da violência cria uma barreira que impede que acreditemos nos laços sociais, nas atividades humanas construtivas, no trabalho como atividade criativa e transformadora da subjetividade e da sociedade. Elo fundamental entre o particular e o coletivo. 2 Ver Castoriadis, C. A ascensão da insignificância. 10 Sendo o trabalho também potencializador de transformações sociais e subjetivas, será que podemos acreditar numa ação transformadora quando o trabalho é dado como pena? As penas alternativas à prisão vêm sendo defendidas nos diversos setores da sociedade, pelo Estado, pelos defensores dos direitos humanos, pelos sociólogos e penalistas mais modernos. A Organização das Nações Unidas determina que a prisão deve ser a última alternativa de tratamento ao delinqüente, a fim de respeitar os direitos humanos, a justiça social e a reinserção do delinqüente. A participação da sociedade na reintegração do condenado deve ser incentivada. Entre as penas alternativas, encontramos a prestação de serviços à comunidade 3 , no código penal desde 1984, pena a ser cumprida em liberdade, através de serviços gratuitos para a comunidade, durante o tempo de pena que lhe for determinado. Uma reflexão sobre o trabalho precisa ser feita, já que a PSC é uma pena cujo eixo central é o trabalho voltado à comunidade, trabalho sem ganhos, trabalho doado a uma instituição pública, ao bem estar social 4 . O trabalho como pena não é novidade na história penal. O trabalho forçado já existia no sistema penal desde a Antiguidade. Sabemos que, no Egito, havia trabalhos forçados nas minas. Em Roma, os trabalhos forçados foram introduzidos por Tibério (23d.C.); durante a execução do trabalho, o condenado pertencia ao Estado e eram chamados escravos da pena. Essa penalidade tinha três formas: nas minas, como forma mais grave de penalização, com constantes castigos corporais; trabalhos forçados perpétuos, pena mais 3 usaremos as iniciais PSC tanto para a pena como para o prestador de serviços à comunidade. 4 Sobre o assunto ver dissertação de mestrado – Penas alternativas à prisão: um estudo sobre os efeitos da prestação de serviços à comunidade. 11 leve que o trabalho nas minas, sendo que, após dez anos, se o condenado não estivesse bom para o trabalho podia ser devolvido para a família e os trabalhos forçados por tempo determinado, com pavimentação de vias públicas, limpeza de cloacas, trabalhos em valetas para os homens; as mulheres trabalhavam em teares imperiais. As galés foram utilizadas como forma particular de trabalhos forçados, do século XVI até o século XVIII. Em 1830, D. Pedro I sancionou o Código Criminal do Império do Brasil que, embora com alguns avanços, ainda previa a pena de trabalho forçado nas galés, muito utilizada na época. No Brasil, o trabalho forçado foi abolido em 1890. Alguns estudiosos relacionam o trabalho forçado ao trabalho na PSC, outros defendem que é uma sanção que surgiu da idéia de que o encarceramento deveria ser evitado, sendo, portanto, uma idéia do Direito Penal Moderno. A principal diferença entre a PSC e os trabalhos forçados parece estar ligada ao fato de que o trabalho forçado vinha acompanhado da restrição de liberdade e a PSC é uma pena restritiva de direitos, onde a liberdade é preservada. Podemos considerar que embora o trabalho na PSC não seja trabalho forçado, também não é trabalho espontâneo, visto que é decorrente de uma condenação, mas em última instância é a pessoa que decide se vai cumprir ou não a PSC, é verdade que existe um controle sobre o cumprimento da pena e que o condenado terá problemas judiciais se não cumpri-la, mas este controle é mediado pelo sujeito, possibilitando diversas formas de lidar com a pena e com trabalho. Na legislação de alguns países, está prevista, inclusive, a concordância do condenado como condição para a aplicação desse tipo de pena. No nosso país, a PSC está vinculada a instituições que beneficiem a comunidade (como hospitais, parques, clubes, 12 escolas) e as características do trabalho devem estar próximas da atividade profissional ou voltadas para alguma habilidade do condenado. Acredito que estes são fatores importantes para a relação que o prestador de serviços à comunidade vai estabelecer com o trabalho a ser realizado. Retomando a discussão de banalidade do mal e da violência feita no inicio deste texto e também a discussão sobre o papel do trabalho na banalização do mal, podemos perceber que a PSC exige bastante reflexão, toca em feridas da nossa sociedade, tanto por parte da transgressão, do crime como do trabalho como agente disciplinador e alienante. O crime é uma ruptura do tecido social, nos remete à relação do homem com a cultura, Freud nos ensina que essa relação é permeada por sofrimentos decorrentes da renúncia pulsional. Hélio Pellegrino (1983) nos ajuda a entender os efeitos da violência social na subjetividade dos que vivem à margem de um sistema desigual e injusto. Nas palavras de Pellegrino: civilizar é, portanto – e por um lado -, reprimir e suprimir. No entanto, a renúncia existe em nome de alguma coisa que a pessoa vai ganhar. O pacto edípico é uma aliança, ganha a criança e ganha a sociedade. Como diz Pellegrino é uma via de mão dupla, a criança recebe uma ordenação simbólica que lhe dá ferramentas para constituir-se sujeito e respeita as regras e interditos sociais, contribuindo para a manutenção da cultura a que pertence. Quando a criança cresce, soma-se ao pacto edípico o pacto social e este vai ser estruturado pelo trabalho; através dele se dá o intercâmbio social. O princípio de realidade é vivido no trabalho; ele nos insere nas redes sociais e na ordem simbólica. No trabalho, abrimos mão de nossas satisfações pulsionais, assumimos o pertencimento à cultura e nos ordenamos num pacto social. 13 Ambos os pactos estão articulados; o pacto edípico sustenta o pacto social e este, por sua vez, confirma o primeiro. Eles se constituem de mão dupla, o pacto social se sustenta através de direitos e deveres. A sociedade se mantém através do respeito a esses pactos, edípico e social. Se o pacto social só atingir o âmbito dos deveres das pessoas e dos trabalhadores, podemos ter problemas sociais graves e até a ruptura do pacto social, por aquele que for por ele aviltado. Na ruptura, o trabalhador pode tornar-se um revolucionário, lutando pelos direitos dos seus, preservando a aliança com o simbólico; mas essa é uma saída pouco comum. A saída mais freqüente atinge o tecido social: “Se o pacto social é iníquo, e avilta o trabalho, ele vai aviltar e tornar iníqua a renúncia pulsional por ele próprio exigida. O amor ao trabalho só é possível na medida em que os direitos do trabalhador sejam minimamente respeitados. Se isso não ocorre, há uma ruptura do pacto social. O trabalho torna-se sem sentido, aviltante e humilhante (...) Rompo, aí, com a sociedade, e esta ruptura terá, inevitavelmente, profundas repercussões intrapsíquicas, que irão sacudir, sob a forma de um abalo sísmico, os fundamentos do pacto primordial com o Pai Simbólico – e com a Lei da Cultura.” (Pellegrino,1983) A sociedade desrespeita o pacto social, não dá ao sujeito aquilo que teria por direito. A ruptura pode ocorrer e pode provocar emergências de impulsos delinquenciais, predatórios, parricidas, homicidas e incestuosos. Assistimos a uma verdadeira volta do recalcado. Tudo aquilo que ficou reprimido – ou suprimido – em nome do pacto com o pai vem à tona, sob forma de conduta delinqüente social. Pellegrino contribui para nossa discussão sobre a banalização do mal: “O surto de delinqüência que, no momento, cresce nas grandes cidades, de maneira assustadora, é uma resposta perversa à delinqüência mais do que perversa – porque 14 institucionalizada – do capitalismo selvagem brasileiro. A criminalidade do povo pobre é – pelo menos – uma resposta desesperada, e se faz fora da lei – contra a lei. Pior que ela é a delinqüência institucionalizada dos ricos, dos banqueiros, dos que lucram 500 por cento ao ano, dos que locupletam com a especulação desenfreada, dos que entregam a soberania nacional à voracidade da finança internacional”. (Pellegrino,1983) Trabalhar é inserir-se no tecido social, por imediação de uma práxis, aceitando a ordem simbólica que o constitui, é disciplinar-se, é abrir mão da onipotência e da arrogância primitiva, é poder assumir os valores da cultura com a qual, pelo trabalho, nos articulamos e nos ordenamos simbolicamente. Podemos perceber uma fragilidade simbólica na banalidade do mal quando Hannah Arendt faz referência à ausência da Lei e ao imperativo de uma lei momentânea. Podemos ver isso ocorrer em diversos setores da nossa sociedade por exemplo, no tão conhecido “jeitinho brasileiro”. Também tenho observado fragilidade na instância simbólica que o Estado deveria ocupar, já que há resistência por parte dos PSCs em compreender o Estado e seus orgãos, como instituições à serviço da comunidade, isso indica uma ruptura entre Estado e cidadãos, uma fragilidade no laço social, porque o Estado não está sendo visto e compreendido como organizador da sociedade e seus serviços não parecem ser úteis à comunidade. Muitos PSCs preferem atividades de contato direto com a população, pois assim entendem queestão cumprindo a prestação de serviços à comunidade. Acredito que devemos tentar evitar a ascensão dessa banalização do mal, e para isso devemos compreender os mecanismos sociais presentes nas diversas formas de exclusão. Ao mantermos um sistema penal que opta pela utilização da pena de prisão como pena principal, estamos diante de uma engrenagem que nos remete à engrenagem nazista, porque 15 é perversa; assim como é perverso, um sistema que aplica uma pena com poucas possibilidades de sucesso, com fracasso conhecido desde o nascimento da prisão como pena. Aprisionar para ressocializar, segregando, dando poucas condições para que os vínculos pessoais e afetivos continuem, não cuidando das condições de retorno à sociedade, sem preocupações com o desenvolvimento pessoal, e tudo isso em nome da reabilitação social. É a resposta de uma sociedade que segrega e rejeita aqueles que não conseguiram adaptar-se ao contrato social, sem refletir sobre os motivos disso. Aprisionar significa, em nome da Lei, retirar os transgressores do convívio social, para coloca-los sob a égide de uma lei do mais forte, num lugar onde predomina a corrupção e uma série de transgressões, cuja sobrevivência será garantida não pelos representantes da Lei, mas pelos que detêm poder e fazem a lei daquele lugar; no mínimo é pactuar com uma máquina bastante perversa. E a nossa boa sociedade continua pedindo justiça e segurança pública através das prisões. Nos últimos quatro anos presenciamos a inauguração de muitos presídios, muitos outros estão sendo construídos e em nada mudam a qualidade do tratamento ou de respeito aos direitos dos presos, parece que a fila de espera é muito maior e não para de crescer alimentada pelos mecanismos de exclusão que conhecemos. Acho relevante considerar o trabalho como parte importante da vida de uma pessoa, como uma atividade que traz conseqüências subjetivas. Acredito que para o PSC faz diferença ser visto não só como alguém que cometeu um delito (facilmente rotulado pelo artigo do delito que cometeu, ex: 171, 155), mas também poder ser reconhecido como um prestador de serviços, como alguém capaz de contribuir com o seu trabalho para uma instituição pública e portanto, para a comunidade local. Enfim, esse tipo de pena pode 16 fortalecer laços dentro da Lei, desencadeados pelo trabalho e isso parece ser significativo para romper o pacto com a banalização do mal. Bibliografia ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. CASTORIADIS, C. A ascensão da insignificância. Lisboa: Ed. Bizâncio, 1998. DEJOURS, C. A loucura do Trabalho. São Paulo: Ed Cortez, 1987. DEJOURS, C. A banalização da injustiça social. São Paulo: Ed FGV, 3 a edição, 2000. FERRAZ, Flavio Carvalho. O Mal-estar no trabalho. Revista Pulsional de Psicanálise.São Paulo, n.100. p. 72-80, 1997. FREUD, S. O mal estar na civilização (1930). Rio de Janeiro: Imago, Ed. Stand. Brasileira, 2 a ed, 1994, vol IX, p.21. FREUD, S. (1932). Por que a guerra? Rio de Janeiro: Imago, Ed. Stand. Brasileira, 2 a ed, 1994, vol XXII, p.197. PELLEGRINO, H. Pacto Edípico e pacto social: da gramática do desejo à sem vergonhice brasílica, Folha de SP, folhetim, setembro de1983. SEQUEIRA, V. C. Penas alternativas à prisão: um estudo sobre os efeitos da prestação de serviços à comunidade. 2000. 162 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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